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Direito, economia e desenvolvimento

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:06:35

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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 99 comparação, foi feita no âmbito da dogmática penal ao contrastar o conceito ontológico de ação, presente nas teorias finalista e causalista do delito, com a ação significativa do professor Vives Antón. Desse modo se propôs, sem a pretensão de se esgotar o tema, compreender as deficiências das teorias ontológicas do delito quanto a capacidade de ação da pessoa jurídica e as vanta‐ gens da adoção de um modelo significativo da ação para a responsabilização penal das pessoas morais. A PESSOA JURÍDICA COMO SUJEITO CAPAZ DE UMA AÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS SOBRE A CONCEPÇÃO SIGNIFICATIVA DA AÇÃO Thomas Kuhn já dizia que a superação de paradigmas não pode se olvidar de uma mudança em algumas de suas teorias supedâ‐ neas2. É a crise do paradigma definido por Kuhn que ocorre quando uma área do saber possui estrutura complexa ao ponto de o seu atual paradigma ser insuficiente para apontar novos proble‐ mas, sendo necessário que se crie novos paradigmas.3 O processo de mudança de paradigma e a sua consequente supe‐ ração, frequentemente, ocorre de forma que é necessário primei‐ ramente rever aquilo que foi proposto por pensadores que já refletiram sobre o assunto, para só então haver a criação de um novo paradigma. E é exatamente por esse processo que passa o Direito Penal ao ser visto pela concepção significativa da ação do professor catedrático da Universidade de Valência, Tomás Salvador Vives Antón. Anteriormente, a ação era vista por meio de paradigmas ontoló‐ gicos da ação. Por exemplo, vista a partir do paradigma causal- naturalista de Von Liszt, a ação era considerada como uma modi‐ ficação do meio exterior, sensorialmente perceptível, e produzida por uma manifestação de vontade que se expressava na realização

100 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO ou omissão de um movimento corpóreo voluntário. A ação seria um processo causal, na medida em que a vontade humana seria determinante do movimento corporal que “pode definir-se fisica‐ mente como intervenção”.4 Enquanto que, para Hans Welzel, baseado em um paradigma finalista, a ação é definida como o exercício da atividade humana direcionada para um fim. Essa conceituação de ação diferencia-se da ação causal de Von Liszt, como o autor alemão explica5: Actividad humana es ejercício de actividad final. La acción es por eso, acontecer “final”, no solamente “causal”. La “finali‐ dad” o el carácter final de la acción se basa en que el hombre, gracias a su saber causal, puede prever, dentro de ciertos límites, las consecuencias posibles de sua actividad, ponerse, por tanto, fines diversos y dirigir su actividad, conforme a sua plan, a la consecución de estos fines. En virtud de su saber causal previo puede dirigir los distintos actos de sua actividad de tal modo que oriente el acontecer causal exte‐ rior a un fin y asi lo sobredetermine finalmente. Actividad final es un obrar orientado conscientemente desde el fin, mientras que el acontecer causal no está dirigido desde el fin, sino que es la resultante causal de los componentes causales existentes en cada caso. Porém um dos principais marcos dogmáticos da proposta de Vives Antón é justamente romper com esse conceito ontológico de ação, vinculado a um substrato material. Isso significa dizer que o conceito significativo não está lastreado no “ser” natura‐ lista, nem tampouco pode ser qualificado exclusivamente como axiológico, pois não é totalmente situado no “dever ser”. Tanto é

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 101 que os fundamentos de um conceito significativo de ação se encontram na ideia de sua percepção como algo que transmite um significado, ou seja, a ação é o sentido de um substrato.6 Isso significa que a categoria da ação, sob o prisma desse novo marco teórico, passa a ser identificada através de sua interpre‐ tação social, por meio da comunicação, da linguagem, do sentido que possui. As ações são entendidas não como eventos naturalís‐ ticos, mas como interpretações que podem ser dadas ao compor‐ tamento, a partir de diferentes tipos de regras sociais. Abandonam-se as tentativas da dogmática de explicar a ação a partir de fenômenos psicológicos e internos, tais como a vontade. O enfoque agora é dado não na intenção do sujeito, passa a ser compreendida como um sentido que é dado por uma previsão legal específica e, por isso, não pode ser esvaziado desse sentido tentando alargar esse conceito para além de suas fronteiras legais. Cria-se uma limitação que também possui um respaldo de proteção de direitos constitucionais, especificamente do prin‐ cípio de legalidade7. A concepção significativa da ação é lastreada tanto na Filosofia da Linguagem ordinária de Ludwig Wittgenstein (após o giro prag‐ mático-linguístico presente em seu livro Investigações Filosóficas8), que tem por base a ação e a racionalidade prática, quanto na teoria da ação comunicativa e na teoria do discurso de Jürgen Habermas, naquilo que se refere à metodologia de apre‐ sentação. Vale ressaltar que ambas avançam a partir da Semiótica para uma estruturação do discurso pragmático da linguagem. Tomás Salvador Vives Antón concebeu tal teoria na Espanha em 1996, tendo por base o Direito como uma ordem de convivência humana9,enxergando-o como o produto de um processo de comunicação de sentido estabelecido em um modelo hermenêu‐ tico pragmático.Vives Antón organiza a racionalidade penal a

102 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO partir dos jogos de linguagem de Wittgenstein, os quais são expressos na ação e nas formas de vida que dão racionalidade prática às regras. No que tange à metodologia de apresentação dos temas atinentes à parte geral, ele “afirma as realidades a partir da compreensão da linguagem como acordo comunicativo que legitima as normas segundo pretensões de validade”10. O professor Vives Antón declara que o seu objetivo é propor uma nova perspectiva de interpretação das categorias dogmáticas através de um olhar sob o significado dos conceitos jurídico- penais.11 Nesse sentido, a proposta significativa se constitui em um sistema de imputação que tem por seus pilares fundamentais a conduta e a norma, as quais estão estruturadas dentro de uma proposta de significado. Reforçando: para Vives, a ação é um sentido de um substrato e, por este motivo, não pode ser compreendida de forma unitária, pois cada ação manifesta seu sentido de uma maneira específica. De acordo com o escólio de Vives Antón (2011): (...)decir que la acción es el significado de un hecho no es sólo cancelar de un portazo la investigación de la acción como acontecimiento natural; sino que, a la vez, tal afirma‐ ción abre tantos interrogantes como cierra. Pues no puede decirse que represente una solución del problema del supra‐ concepto de acción, tal como históricamente se había plante‐ ado: al contrario, puesto que la clase de todos los sentidos no puede, a su vez, definirse conceptualmente (puesto que no hay un significado común a todos los significados), entender la acción como sentido equivale a entender que el problema del supraconcepto de acción se hallaba mal planteado y que era, por tanto, un pseudo-problema.12

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 103 Desse modo, se uma ação é um sentido de um substrato, dentro desse substrato não está somente a locução formal, mas também o contexto em que esse sentido é expressado. “A determinação da ação que se realiza não depende da concreta intenção que o sujeito queria levar a cabo, mas do código social conforme o qual se interpreta o que ele faz”13 Exemplo clássico disso é o conhecido exemplo do guarda do palácio de Buckingham de George Fletcher, segundo o qual, se alguém observa um guarda parado e imóvel em frente ao palácio de Buckingham, imediatamente entenderia o que ele está fazendo, ao passo que se visse o mesmo guarda imóvel de uniforme em meio a uma clareira na floresta, interpretaria que ele seria alguém hipnotizado ou um robô que apenas mexe os olhos.14 Ainda pode-se entender que “a ação é percebida, não determi‐ nada, é um fenômeno que se relaciona com comunicação mais do que com determinações objetivas ou subjetivas. É uma expressão que se produz da inter-relação do sujeito com o meio. A adoção de um conceito significativo de ação implica o reconhecimento e adoção da linguagem na interpretação”.15Assim, o significado nada mais é do que uma interpretação que nasce das regras de uso dos símbolos nos diferentes jogos de linguagem.16 Por esse motivo, Vives Antón utiliza os jogos de linguagem de Wittgens‐ tein, os quais são primordiais para a concepção significativa da ação. Os jogos de linguagem têm por base as contribuições de Witt‐ genstein, com os quais se verifica que o sentido da linguagem está no contexto em que se desenvolve e não em vinculações prévias. É o uso que vai determinar o significado de uma palavra. Segundo esse pensamento, uma expressão é “apropriada, mas só

104 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO para este domínio estritamente circunscrito, não para a totali‐ dade do que pretendemos representar”17 Vale ressaltar que Wittgenstein opta por não oferecer um conceito de “jogo de linguagem”, apresentando, em vez disso, exemplos do que seriam tais jogos, como resolver enigmas, relatar um acontecimento, dar ordens e obedecer-lhes, formular e testar hipóteses, expor um caso18. Todos esses exemplos demons‐ tram que os jogos de linguagem devem conter a existência de uma descrição e uma compreensão, ou seja, “que os participantes deste jogo compartilhem determinadas impressões a respeito da linguagem, determinadas regras, determinados pontos de partida, para que estes jogos tenham sentido. Por isso, associa-se a linguagem a ações, e o todo formado por estas relações é o chamado jogo de linguagem”.19 Vives define a ação de forma a promover uma ruptura com as concepções clássicas da ação, que a viam formada por elementos objetivos e subjetivos. Os elementos objetivos da ação corres‐ pondem à materialidade da ação, o movimento físico. Desde os causais-naturalistas, tais elementos estão presentes no conceito de ação e, por sua natureza ontológica, são inegáveis e indiscu‐ tidos pela doutrina penal. Contudo, a definição daquilo que viria a ser os elementos subje‐ tivos da ação se alterou ao largo do desenvolvimento da teoria do delito, podendo ser desde uma vontade até uma manifestação de personalidade. Porém, em todos os modelos dogmáticos, tais elementos subjetivos foram posicionados dentro da mente humana, do inacessível inconsciente humano e considerados como elementos passíveis de interpretação e valoração da ação. Vives Antón critica fortemente essa tentativa da dogmática de interpretar a ação com base em critérios subjetivos, uma vez que ele se apresenta como inacessível para um observador externo.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 105 Os estados mentais de uma pessoa não podem ser compreen‐ didos por alguém que não seja a própria pessoa. Conceitos como dolo, omissão e imprudência são atribuições de sentido que damos às ações.20 Nessa toada, Vives Antón utiliza o exemplo dado por Wittgens‐ tein da caixa de escaravelho21, segundo o qual as mentes são como caixas, as quais somente nós podemos acessar. Segue a transcrição do aforismo 293 presente nas “Investigações Filosófi‐ cas” de Wittgenstein: Ora, alguém me diz, a seu respeito, saber apenas a partir de seu próprio caso o que sejam dores! – Suponhamos que cada um tivesse uma caixa e que dentro dela houvesse algo que chamamos de “escaravelho”. Ninguém pode olhar dentro da caixa do outro; e cada um diz que sabe o que é um escara‐ velho apenas por olhar seu escravelho. – Poderia ser que cada um tivesse algo diferente em sua caixa. Sim, pode‐ ríamos imaginar que uma tal coisa se modificasse continua‐ mente. – Mas, e se a palavra “escaravelho“ tivesse um uso para estas pessoas? – Neste caso, não seria o da designação de uma coisa. A coisa na caixa não pertence, de nenhum modo, ao jogo de linguagem nem mesmo como um algo: pois a caixa poderia também estar vazia. – Não, por meio desta coisa na caixa, pode-se ‘abreviar’; seja o que for, é suprimido22. Desse modo, torna-se impossível a um observador externo saber o que “se passava na cabeça de um indivíduo”. Em verdade, os elementos subjetivos da ação são atribuídos linguisticamente, linguagem esta que depende de sentidos formados pelo uso dela.

106 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Categorias jurídicas como dolo, omissão, imprudência, etc. são interpretações de sentido que damos à ação, entendendo-a imersa em um contexto social. A ação significativa, utilizando o instrumental da filosofia da linguagem, permite ao Direito Penal avaliar os elementos subje‐ tivos da ação sem a necessidade de supor sobre o inconsciente humano. A linguagem expressada pela conduta imersa em seu contexto é que irá preencher esse aspecto subjetivo da ação. Acerca da concepção de significados, trata-se de um processo semântico, ou seja, hermenêutico de entender o conteúdo de uma norma que venha a prever uma ação, é o processo de compre‐ ender um enunciado linguístico. Tal processo pode ser intencio‐ nal, quando tenta encontrar os propósitos do locutor; formal, quando pretende acompanhar uma interpretação literal da norma (e da ação prevista por ela); ou formal, quando também analisa o contexto em que a locução é dita, verificando-a como componente de um sistema que reflete a estrutura do mundo. Por essa nova forma de interpretar a ação, ela passa a ser o sentido não de um substrato típico, mas o sentido de um subs‐ trato social. Isso se deve ao fato de as ações que interessam ao Direito Penal serem aquelas que, segundo considerações político- criminais referidas ao controle social, interessam ser coibidas através da ameaça de pena. Tais ameaças se configuram através dos tipos penais, os quais têm o objetivo de proteger bens jurí‐ dicos que são escolhidos por essas mesmas pretensões político- criminais.23

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 107 A PESSOA JURÍDICA COMO SUJEITO CAPAZ DE UMA CONDUTA CRIMINOSA O maior obstáculo dogmático à responsabilidade penal da pessoa jurídica está centrado em uma suposta incapacidade de esta cometer uma ação. Obstáculo esse que tem sua origem em uma forma de entender a ação por critérios ontológicos, ou seja, vinculada a um substrato físico, como produto da conjunção de elementos subjetivos e objetivos. A ação significativa vem a quebrar esse paradigma ao entender a ação como uma atribuição de sentido, a qual deve ser compreen‐ dida em seu contexto de realização. O sentido expressado “não deriva das intenções que os sujeitos que atuam pretendem expressar, senão do significado que socialmente se atribui ao que fazem.”24 Porém superar o conceito ontológico de ação não basta, uma vez que esse, inicialmente, fora abandonado não por uma reorien‐ tação teórica, mas por um simples abandono da ação como cate‐ goria basilar da teoria do delito, através da adoção de modelos funcionalistas baseados na imputação. Os modelos funcionalistas, muito embora tentem resolver o problema da ação ontológica, acabam por não resolverem a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por um outro lado, a concepção significativa da ação oferece um ponto de partida proveitoso para resolver a questão em tela. Compreendendo a ação como uma expressão de significado, essa só poderá ter um sentido jurídico desde que interpretada a partir de seu entorno. Assim sendo, o sentido atribuído à ação não dependerá da intenção concreta daquele que a realiza, mas do código social no qual a ação é interpretada. Tendo por base a ação, enquanto atri‐

108 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO buição de sentido, é perfeitamente possível aceitar que a pessoa jurídica realize condutas criminosas. Nesse sentido, Paulo Busato afirma que a ação deve ser compreendida “globalmente, orientada não somente ao ato mecânico e isolado que gera o resultado, senão como o produto de tudo o que envolve e determina a conduta”.25 Aqui vale trazer a lição do professor Juan Carbonell Mateu, o qual sustenta que o giro pragmático-linguístico26, quando adap‐ tado para o sistema penal, permitiu a superação do impedimento da teoria clássica para explicar a capacidade de ação de pessoas jurídicas, não necessitando a existência de um movimento corpóreo no mundo físico. Por exemplo, uma empresa pode cele‐ brar um contrato mesmo que não seja ela que efetivamente pegue a caneta e deixe a sua assinatura na folha de papel27. O professor catedrático da Universidade de Valência, Juan Carbonell Mateu, consagra o ente moral como uma fonte de significado, uma vez que é exigível que essa atue de acordo com o Direito. Em um raciocínio simples, se as condutas das pessoas jurídicas possuem um significado valorado socialmente, essas são ações, e possuindo essas ações uma natureza contrária ao ordena‐ mento jurídico penal, a pessoa jurídica pode ser sujeito ativo na prática de delitos. Em sua linha de raciocínio, Carbonell Mateu declara que a ação deve ser entendida não como um fazer, mas como um sentido comunicativo28, ou seja, reiterando, a ação como um sentido de um substrato, o qual pode ser compreendido como um conjunto de fatos materialmente verificáveis e o contexto em que ocorrem esses fatos. Utilizando as regras sociais e linguísticas, analisam-se esses fatos materiais e o contexto em que estão inseridos a fim de se obter o sentido que é a ação. Imediatamente surge a necessidade de se compreender que, para

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 109 Vivés Antón, como dito anteriormente, a ação é vista agora vinculada ao seu sentido linguístico, sendo esquematizada na teoria significativa em três partes distintas: a aparência de ação, a concepção de significados e as regras linguísticas e normativo- linguísticas. As regras ou normas que definem as ações devem ser interpre‐ tadas conforme o seu uso, dando a elas o seu significado. As regras restringem o uso da linguagem e o sentido das ações para os enunciados previstos na lei, tais enunciados explicam a ação e permitem que ela seja definida, interpretada, avaliada e justificada.29 É a interpretação do comportamento humano relacionado com um substrato legal, ou seja, é seguir uma regra: El seguimiento de una regla (following a rule) apunta a una relación de la regla con el sujeto, y explica la naturaleza de las reglas. Una regla sólo puede seguirse si hay un uso esta‐ blecido, conforme al cual haya una captación de la regla que se manifieste, de caso em caso de aplicación, en lo que llamamos <<seguir la regla>> y em lo que llamamos <<contravenirla>>.30 Pode-se dizer que, para a concepção significativa da ação, os fatos somente podem ser compreendidos através das normas e, para tal, devem ser entendidos como tipos de ação.31 Desse modo, sendo possível identificar uma ação ou omissão a partir do contexto em que essas ocorrem e observando se as expressões de sentido dadas correspondem aos tipos penais. Como lembra Vives: “o pertencimento a um tipo de ação é o que determina a aparência de ação”32.

110 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Ao se falar sobre a aparência de ação, deve-se lembrar de que a quantidade de possíveis conceitos de ação é semelhante à quanti‐ dade de diversos sentidos que possam vir a existir que, por sua vez, são tantos quanto a linguagem vier a permitir. Através do conhecimento de mundo, consegue-se identificar o que possui aparência de ação, mas se necessita de interpretações ulteriores para confirmar essa aparência em uma ação. Pode-se melhor entender esse conceito através de um exemplo que é dado pelo professor Vives Antón: Si observo que um amigo passa por la calle, pienso que, em esse sentido mínimo, está actuando, mas no sé todavia si huye ante algo que le atemoriza, o si, quizás, trata de acudir a uma cita. La interpretación ulterior puede, incluso, leevar a negar que hubiese acción de classe alguna, v.g., porque, en el ejemplo propuesto, se tratase de um sonámbulo(...). 33 Assim sendo, mostra-se absurda a ideia de um supra conceito de ação que fosse aplicável a atos comissivos, omissivos, dolosos e culposos, um único conceito de ação capaz de abranger todas as classes possíveis de ação que representassem uma determinada conduta criminosa. Por exemplo, matar alguém, o que pode se realizar pelas mais diversas ações possíveis (atirar, esfaquear, afogar, etc.). A concepção significativa da ação supera uma visão errônea que as concepções clássicas da ação tinham ao considerarem-na tendo por base um pensamento cartesiano e naturalista, ligando a ação a uma mera modificação de um substrato físico. Agora utili‐ zam-se o Direito e a linguagem para chegar à conclusão de que a ação não é um mero fazer, mas um sentido comunicativo. Explo‐

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 111 ram-se, desse modo, os jogos de linguagem de Wittgenstein, sem ignorar que este, ao concebê-los, referia-se apenas às ações humanas. Contudo, conforme o próprio filósofo vienense, a ação é uma práxis, uma atividade humana guiada por regras. Daqui pode-se inferir a importância da linguagem comum para uma concepção do que viria a ser a ação. Com isso, é interessante notar que o sentido da ação da pessoa jurídica não necessita se sobrepor ao sentido da ação da pessoa física. Necessário é que ambas tenham sentido de acordo com o seu uso na linguagem comum. Significa afirmar que tem sentido tudo aquilo que, de acordo com a linguagem comum, pode ser fonte de significado. Assim, se uma ação ou uma omissão é a expressão comunicativa de um fazer ou não fazer, traduzido em um verbo típico que expressa intenções segundo a linguagem comum, torna-se possível que uma pessoa jurídica efetivamente atue.34 A ação é independente do tipo, entretanto não é independente do seu sentido e significado sociais. Desde o ponto de vista do inte‐ resse jurídico-penal, tipo e ação estão unidos sobre o sentido comum de controle social. Sobre isso, leciona Paulo Busato: Não é o tipo que condiciona a ação nem vice-versa. É o inte‐ resse social na tipificação de uma determinada conduta (ação ou omissão) expresso na recepção comunicativa da norma, que identifica a ação e determina seu significado ou sentido.35 Consequentemente, ao se analisar a ação, deve-se analisar o sentido expresso por essa, abarcado dentro dos sentidos que se pretendia regular com o tipo penal em tela. Verificando se existe

112 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO ou não uma “ação relevante para o Direito Penal” ao observar se tal ação pertence a algum dos tipos de ação que existem na lei penal. Ao se investigar se existe essa ação relevante para o Direito Penal, também se deve analisar se essa ação e está dentre as inúmeras possíveis determinadas por um tipo de ação. É uma análise contextual que nos permite identificá-la enquanto tal36. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou investigar, brevemente, se uma pessoa jurídica teria capacidade ou não para cometer uma conduta criminosa. Para tal foi, primeiramente, explicada a Concepção Significativa da Ação e a sua relação com a possibili‐ dade de ação de uma pessoa jurídica. Em sequência estudou-se a concepção significativa da ação de modo a aplicá-la às pessoas jurídicas. Restou-se claro que as dimensões biopsicológicas de um indivíduo agente não são deter‐ minantes ou sequer restritivas para a elaboração da teoria do delito quando se trata da capacidade de ação. Inclusive, quando abordada a Capacidade de ação das pessoas jurídicas, essa reside no próprio conceito de ação criado por Vives Antón: a ação como a atribuição de sentido sobre um subs‐ trato.37 Esse conceito de ação rompe com o paradigma clássico da ação vinculada a um substrato material, que a ação só poderia ser realizada por um indivíduo mediante a somatória de elementos subjetivos e objetivos. Isso se devido ao sentido de uma ação agora passar a ser considerado a somatória da manifestação física com o contexto no qual ela se insere. Por esse motivo, muito embora a pessoa jurídica não possua um corpo físico, ela pode

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 113 realizar uma conduta criminosa, pois a sua atuação pode ser atri‐ buída através da sua contribuição contextual. Na sequência, foram vistos conceitos basilares dentro da filosofia da linguagem, notadamente os conceitos propostos pelo filósofo Ludwig Wittgenstein. Com isso, objetivou-se a compreensão da relação entre a linguagem cotidiana (ordinária) e a atribuição de condutas criminosas às pessoas jurídicas. Por fim, observa-se que o Direito deve andar em compasso com os usos linguísticos da comunidade na qual se insere e não ser mera abstração desconexa com a realidade que pretende regular. Com a pesquisa, portanto, objetivou-se utilizar uma nova forma de compreender a teoria do delito, utilizando a filosofia da linguagem aplicada ao Direito Penal. A partir da concepção signi‐ ficativa da ação, é possível identificar a ação como expressão de sentido realizada pela pessoa jurídica, sentido esse que, ao ser determinado pelo uso da linguagem, permite delimitar quais condutas uma pessoa jurídica pode cometer ou não. REFERÊNCIAS BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal – parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017. ___________________. Direito Penal: parte especial. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2017. ___________________. Direito Penal e Ação Significativa. 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. ___________________. La tentativa del delito – Análisis a partir del concepto significativo de la acción. ¿ ed. Curitiba. Juruá, 2011.

114 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO ___________________. Reflexões sobre o Sistema Penal do Nosso Tempo. ? ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. ___________________. Tres Tesis sobre la responsabilidad penal de personas jurídicas. Valência. ? ed. Tirant Lo Blanch, 2019. BUSATO, Paulo César; GUARAGNI Fábio André. Responsabili‐ dade penal da pessoa jurídica: fundamentos criminológicos, superação de obstáculos dogmáticos e requisitos legais do inte‐ resse e benefício do ente coletivo para a responsabilização criminal. ? ed. Curitiba: Juruá, 2012. CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Responsabilidad penal de las personas jurídicas: reflexiones em torno a su dogmática y al sistema de la reforma de 2010. Cuaderno de Política Criminal, núm. 101, 2010. CARBONELL MATEU, Juan Carlos. Aproximación de la dogmá‐ tica de la responsabilidad penal de las personas jurídicas, in Constitución, Derechos Fundamentales y Sistema Penal. Semblanzas y estúdios com el motivo del setenta aniversario del Profesor Tomás Salvador Vives Antón. Tomo I. [ J.C.Carbonell Mateu, J.L. González Cussac e E. Orts Berenguer- orgs.], Valên‐ cia: Tirant lo Blanch, 2009. FLETCHER, George Patrick. Conceptos básicos del Derecho Penal. ¿ ed. Tradução de Francisco Muñoz Conde, Valencia: Tirant lo Blanch,1997. KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. 11. ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2011. MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal econômico y de la empresa. Parte General. 2.ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDAD… | 115 MCGINN, Colin. Philosophy of Language: The Classics Explained. ? ed. Massachusetts Institute of Technology (MIT). Cambridge. 2015. MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da pesquisa no Direito – 5ª edição. Saraiva. 2009 VIVES ANTÓN, Tomás. Salvador. Fundamentos del Sistema Penal. 2 Edición. Valência: Tirant lo Blanch, 2011. WELZEL, Hans. Derecho penal alemán parte general. ? ed. Santiago de Chile, Ed. Juridica de Chile, 1976. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas; tradução de José Carlos Bruni. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL NO AMBIENTE DE TRABALHO: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI N° 4742/2001 CAIO JOSÉ ARRUDA AMARANTE DE OLIVEIRA; JOSIEL BRANDÃO DE MELO FILHO INTRODUÇÃO AS RELAÇÕES DE TRABALHO PODEM SER CLASSIFICADAS COMO AS interações sociais em que os indivíduos, por meio de uma contra‐ prestação, recebem em troca os insumos necessários para a própria subsistência e dos seus pares. Enquanto, nas raízes da história, a produção dos bens e serviços era feita pela submissão dos fortes sobre os mais fracos, o desenrolar dos tempos atentou para premência de humanização, elencando esta característica como sendo preponderante para o desenvolvimento da humanidade É sabido, porém, que com a modernidade, necessita-se cada vez mais de celeridade na prestação dos serviços. Não obstante, aparentaria ser indissociável a característica apontada com a lisura e segurança dos contratos de trabalho. No entanto, aparecem como alternativas às sociedades empresá‐ rias, mecanismos que visam assegurar a prestação do trabalho, sem ao mesmo tempo comprometer a fluidez e a natureza desta

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 117 prestação. Desvencilhando-se do papel de pitonisa, o Compliance, a cada dia, se põe na realidade dos departamentos jurídicos das empresas, com a finalidade de prevenir os passivos trabalhistas. Fica denotado, então, que a justiça do hoje em dia, não mais se presta ao papel adversarial, mas, mormente, assume a face preventiva, de evitar que os conflitos aconteçam e contaminem a relação entre as partes. Por outro lado, o mecanismo supracitado visa também expurgar da relação entre empregadores e trabalhadores, condutas que tendem a ferir a dignidade no ambiente de trabalho. Assim, o assédio moral é ainda latente em muitas relações trabalhistas e necessário se faz salientar, que tal conduta se materializa quando o autor da ofensa é o superior hierárquico se valendo de seus poderes de direção. Nessa esteira, Cassar (2012, p.92) sintetiza o assédio como “termo utilizado para designar toda conduta que cause constrangimento psicológico ou físico à pessoa.” Nessa realidade, insere-se o Projeto de Lei de nº 4742 de 2001, de autoria do deputado federal, à época, Marcos de Jesus, do Estado de Pernambuco. O projeto aludido faz menção a uma propositura de alteração do Código Penal Brasileiro, com a finalidade de tipi‐ ficar como crime o assédio moral no ambiente de trabalho. Importante destacar que, o assédio moral no labor admite somente um autor pelo projeto proposto, ou seja, somente será criminalizada a conduta quando praticada pelo empregador. Assim, o projeto remonta que a conduta ilícita é aquela praticada “de forma repetitiva, de natureza psicológica, causando ofensa à dignidade, à personalidade e à integridade do trabalhador.” (MARTINS, 2012, p.434). Por fim, a posição adotada pelo legislador não poderia ser dife‐ rente, haja vista que presente no Direito do Trabalho, o Princípio da Proteção ao trabalhador. Por este, se houver dúvida no caso

118 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO concreto sobre aplicação da norma trabalhista, aplicar-se-á a mais favorável ao trabalhador. Por sequência, a predisposição principiológica tomada se justifica pela hipossuficiência e vulne‐ rabilidade do trabalhador na relação laboral. Arrematando, a presente pesquisa terá como finalidade a discussão acerca do Projeto de Lei nº 4742/2001, bem como sua necessidade perante o asseguramento pleno dos direitos sociais e fundamentais previstos na Constituição e nas Cartas Internacio‐ nais de proteção dos Direitos Humanos. Ademais, analisar-se-á a eficácia do Compliance Trabalhista como instrumento de apazi‐ guamento das relações inerentes ao convívio laboral. METODOLOGIA De antemão, é mister esclarecer a importância de se ter um zelo técnico acentuado na elaboração da metodologia da pesquisa científica, visto que aquela é essencial à esta, isto é, existe entre a pesquisa e o método utilizado uma relação simbiótica de padro‐ nização do engajamento científico com vistas à fruição de um conhecimento que possa alcançar solução com os embates desen‐ cadeados pela sociedade. Desse modo, Rodrigues (2016, p.19) assevera: Assim pode-se dizer que a metodologia científica consiste no estudo, na geração e na verificação dos métodos, das técnicas e dos processos utilizados na investigação e resolução de problemas, com vistas ao desenvolvimento do conhecimento científico. O conhecimento científico se constrói por meio da investigação científica, da pesquisa utilizando-se a meto‐ dologia. (RODRIGUES, 2016, p.19)

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 119 Por este raciocínio, entende-se o quão necessário é a elaboração da metodologia. Assim, o presente trabalho arrolará como métodos de procedimento: O histórico, discutindo as evoluções da proteção ao trabalhador por condutas abusivas praticadas pelo empregador. Além deste, servirá também o método explicativo, atendendo as indagações e controvérsias acerca do mecanismo do Compliance e sua aplicação na relação trabalhista. Dessa forma, poder-se-á apontar estes como os principais a contornarem a pesquisa, todavia, sem prejuízo que ao longo desta investigação, se reúna outros métodos de procedimento. No que concerne ao método de abordagem, a pesquisa se deterá ao método dedutivo, assim, se absorverá as questões envolvendo o assédio moral no ambiente de trabalho, e a responsabilidade penal do empregador postas tais condutas, apontando o Compli‐ ance como saneador das contaminações da relação laboral. Por fim, o estudo visa identificar e esclarecer a problemática que envolve as matérias em discussão. Nesse sentido, “a questão fundamental da dedução está na relação lógica que deve ser esta‐ belecida entre as proposições apresentadas, a fim de não compro‐ meter a validade da conclusão (MEZZAROBA, MONTEIRO, 2003, p.65).” Há nesse apontamento, devido à natureza do método, o dever do pesquisador de convalidar as premissas sob pena de não alcançar resultados científicos e efetivos. PROJETO DE LEI Nº 4742/2001: Premência do enfrentamento ao assédio moral no ambiente de trabalho Em 2001, apontando para necessidade de criminalização dos comportamentos anômalos da pessoa do empregador - consubs‐ tanciados nos atos abusivos que ferem o psicológico e o emoci‐ onal do trabalhador – o deputado Marcos de Jesus apresentou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4742. O presente

120 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO projeto traz à baila a premência do enfrentamento do assédio moral no ambiente laboral, introduzindo ao Código Penal, o Art.146-A. Embora o PL vise a criminalizar o fato – assédio moral – salta aos olhos, o caráter moralizador e educativo que a pretendida norma impõe. Nesse sentido, o novel projeto indica que o sujeito passivo do crime é próprio. Ademais, o tipo prevê mais de um comportamento, assim, sendo misto alternativo. Note-se que, o verbo inicial do artigo é “desqualificar reiteradamente”; uma conduta reiterada presume intenção, animus, e nesse sentido, afasta-se a modalidade culposa, sendo o crime de dolo direto. Nessa perspectiva, imprescindível faz-se apontar que o assédio moral no ambiente de trabalho atualmente é punido no âmbito da Justiça do Trabalho, haja vista, que após a Reforma Trabalhista (Lei nº13.467/2017) a punição por atos ilícitos é tratada exclusi‐ vamente pela Consolidação das Leis Trabalhistas – insurgiu a figura do dano extrapatrimonial. Assim, aduz a CLT: Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título. Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação. Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integri‐ dade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 121 Art. 223-D. A imagem, a marca, o nome, o segredo empresa‐ rial e o sigilo da correspondência são bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa jurídica. (BRASIL, 2017) Os artigos em comento demonstram o intuito do legislador de tutelar o aspecto subjetivo do trabalhador, ou seja, a honra, a imagem, a intimidade e a privacidade. Tais direitos da personali‐ dade são intitulados por Jobim (2018) como inespecíficos. Numa análise sumária e fordista da relação de emprego, estes direitos não seriam observados. Entretanto, o Estado Democrá‐ tico de Direito emergiu com a finalidade de promover os direitos fundamentais, entre eles, o direito ao trabalho previsto no Art. 6º da Carta Maior. Nesse sentido, penalizar os crimes de assédio moral no ambiente de trabalho é uma conquista histórica na proteção dos direitos humanos dos trabalhadores. Assim, aponta Bobbio (1992, p.5) Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circuns‐ tâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liber‐ dades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOB‐ BIO, 1992, p.5) Fica evidente, portanto, que o trauma causado ao trabalhador nos casos de assédio moral são tantos, que não se mostra razoável que fique à cargo do direito privado impor uma eventual indenização aos episódios de constrangimento ao trabalhador. Nesse diapasão, o papel do Estado é irrenunciável no sentido de

122 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO favorecer a proteção do trabalhador, quando infringidos - pelo empregador ou superior hierárquico – os direitos individuais dos proletários. Sob a mesma perspectiva, identifica-se que o traba‐ lhador, parte hipossuficiente, deve ter consciência de sua digni‐ dade, à medida que a tutela do bem jurídico da PL exposta – a dignidade do trabalhador – é penalmente relevante, assim, aduz Herkenhoff (1997, p.37): O Direito nasce no conflito e do conflito, na luta e da luta. O Direito é sempre provisório porque o Direito tenta estabi‐ lizar e regular, num determinado momento histórico, um pacto de conveniência social. Às vezes, positiva-se na lei um pacto extremamente opressivo, no qual se reconhece aos fracos, male mal, o direito de sobreviver, se possível. Mas à medida que os fracos adquirem consciência de sua dignidade e da possibilidade de se tornarem fortes pela união e pela luta, pactos legais menos injustos podem ser conquistados. É dentro dessa dinâmica histórica que o Direito se constrói. Os Direitos Humanos não estão fora desse processo de criação contínua e conflitiva do Direito. (HERKENHOFF,1997, p.37) Imperioso frisar, que é fato pacífico na jurisprudência a respon‐ sabilidade do empregador de fronte o assédio moral na relação de emprego. Nessa esteira, foi em 2002, que o 17º TRT (Vitória – ES) analisou o primeiro processo trabalhista sobre assédio moral, concluindo pela ementa: ASSÉDIO MORAL - CONTRATO DE INAÇÃO - INDENI‐ ZAÇÃO POR DANO MORAL – “A tortura psicológica,

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 123 destinada a golpear a autoestima do empregado, visando forçar sua demissão ou apressar sua dispensa através de métodos que resultem em sobrecarregar o empregado de tarefas inúteis, sonegar-lhe informações e fingir que não o vê, resultam em assédio moral, cujo efeito é o direito à inde‐ nização por dano moral, porque ultrapassa o âmbito profis‐ sional, eis que minam a saúde física e mental da vítima e corrói a sua autoestima. No caso dos autos, o assédio foi além, porque a empresa transformou o contrato de atividade em contrato de inação, quebrando o caráter sinalagmático do contrato de trabalho, e por consequência, descumprindo a sua principal obrigação que é a de fornecer trabalho, fonte de dignidade do empregado.\" (TRT - 17ª Região - RO 1315.2000.00.17.00.1 - Ac. 2276/2001 - Rel. Juíza Sônia das Dores Dionízio - 20/08/02, na Revista LTr 66-10/1237). Outrossim, voltando-se para o olhar internacional, acrescenta-se uma das declarações internacionais - que revela ter o caráter de “soft law”1 -, a Declaração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho elenca no ponto 2, a): 2. Declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais que são objeto dessas convenções, isto é: [...] d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação. (OIT, 1998)

124 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Concluindo, a exegese do posicionamento que deve ser adotado pelos Estados-Membros da Organização Internacional do Trabalho revela o papel em prol dos Direitos Humanos, que a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra ter para com os trabalhadores. Assim, Oliveira (2003, p.71) indica os prejuízos que o assédio moral pode causar nos custos sociais da empresa, aduzindo para a: [...] maior rotatividade da mão de obra, bem como pela diminuição da eficácia e da produtividade, não só das vítimas do assédio moral, mas também de colegas de trabalho afetados pelo clima psicossocial negativo existente no ambiente de trabalho nessas ocasiões. (OLIVEIRA, 2003, p.71) De maneira linear, a aprovação do Projeto de Lei nº 4742 salienta a efetivação da proteção dos empregados e a supressão do assédio moral no ambiente de trabalho, criminalizando os atos que viciam a atividade do obreiro e influenciam o florescimento de doenças ocupacionais. Por outro lado, do ponto de vista da empresa, a PL só tende a impulsionar os programas de redução de passivos trabalhistas, que por lógica estão aliados ao enfrenta‐ mento do assédio moral no ambiente de trabalho. 2.1 Compliance Trabalhista e os mecanismos de prevenção dos custos sociais da empresa Diante do que foi suscitado, desponta a necessidade do empre‐ gador de preservar-se dos passivos trabalhistas – causados pelas ações judiciais – que podem macular às empresas. Emerge nesse ponto da discussão a figura do Compliance, que vem do verbo to

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 125 comply e significa “agir de acordo”. Nesse sentido, Mathies (2018, p.154) aponta: Considerando que a gestão de pessoas não está mais adstrita a questões burocráticas como admissão e demissão de pessoal, possuindo atuação mais abrangente, com foco também no bem-estar dos empregados e na promoção de um ambiente de trabalho saudável, o compliance na relação de emprego, além de evitar situações que impliquem custos e despesas adicionais para a empresa, como pagamentos equi‐ vocados de verbas trabalhistas, reclamações trabalhistas, multas, indenizações por danos morais, entre outros, tem também o objetivo de promover ações voltadas para a ética, qualidade de vida dos empregados e combate à discrimina‐ ção. Diante disso, é essencial “rever os paradigmas, crenças e valores em busca de normas e procedimentos mais condi‐ zentes com a realidade e o avanço do mundo moderno.” (MATHIES,2018, p.154) Nessa esteira, fica evidente a preocupação do Compliance Traba‐ lhista de extirpar da realidade das relações laborais, qualquer tipo de discriminação e assédio que venha a suprimir as liberdades individuais dos trabalhadores. Orientado por alguns pilares, o mecanismo novel tem na sua concepção teleológica, a promoção qualitativa da relação trabalhista. Por conseguinte, uma das orientações do método supracitado é o Risk assessment. Este consiste na avaliação do risco, para pontuar aqueles mais críticos e as situações em que as empresas devem investir mais, visando o contingenciamento dos gastos. Linear então, chegar à conclusão de que uma conduta penalmente rele‐

126 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO vante – o assédio moral – deve ser combatido pelas pessoas incumbidas nas empresas de gerir os recursos humanos. Assim, a gestão de risco: [...] envolve basicamente três fases: mensuração do risco: identificação e avaliação dos riscos e dos impactos dos riscos, com a indicação de medidas corretivas; mitigação do risco: definição de prioridades, implementação e gestão das medidas indicadas na fase 1; e avaliação contínua e revisão do processo. (COIMBRA; MANZI, 2010, p. 92). Além disso, permeia no Compliance o due diligence, isto é, a dili‐ gência adequada, que se revela como a investigação de uma pessoa jurídica sobre outra, para saber se àquela segue de fato os padrões éticos e morais em suas relações trabalhistas/empresari‐ ais. Alerta-se, nesse ponto, para a importância da probidade para possibilidade de futuros negócios. Assim, Tobias (2017) expõe: Due Diligence refere-se à investigação completa de um negócio, geralmente feita durante o processo de negociação de compra de venda de um negócio ou empresa. É um serviço especial ligado à auditoria financeira, contábil e operacional que executa testes complementares para certifi‐ cação dos números dos últimos demonstrativos financeiros da empresa em negociação, utilizados como base para a elaboração do cálculo do valor da empresa/negócio. Além disso, verifica também eventuais passivos ocultos, sejam eles fiscais, trabalhistas, ambientais, previdenciários, entre outros. (TOBIAS, 2017)

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 127 Por fim, configuram procedimentos adotados pelo Compliance na esfera trabalhista: Os códigos de conduta ética, os canais de denúncia, os programas de treinamento contínuo e os meca‐ nismos de investigação de infração disciplinar. Desabrochando do âmbito penal, o mecanismo estabeleceu ramificações com vários ramos do direito – se não todos – inclusive e mais mormente o laboral. Sob esse olhar, Mathies (2018, p.153) aponta: O estudo do compliance na relação de emprego tem como foco a análise de conformidade de inúmeros direitos e deveres relacionados ao contrato de trabalho e previstos na legislação trabalhista, tais como gestão de benefícios, jornada de trabalho, pagamentos, convenções coletivas de trabalho, segurança e medicina do trabalho, entre outros. No entanto, a verificação da conformidade não se restringe ao cumpri‐ mento da legislação laboral, pois, atualmente, o campo de atuação da gestão de pessoas é mais abrangente e envolve a valorização e o desenvolvimento do empregado como indi‐ víduo inserido no ambiente organizacional, com objetivos e anseios pessoais. (MATHIES (2018, p.153) É mister que todas as posturas adotadas pela empresa, sejam documentadas em ata de reunião ou assembleia com finalidade específica. Ratificando a postura do mecanismo estudado no tópico, a Controladoria Geral da União (CGU), publicou em 2009 trabalho intitulado “Instituição de um Programa de Integridade e Combate à Corrupção”. Neste, para a prevenção de prejuízos, o órgão alude para:

128 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO 1)Elaboração de Códigos de Conduta. 2)Implantação de política de comunicação permanente. 3)Criação de um Comitê de Ética. 4)Sistema de recrutamento centrado em ética. 5)Instituição de sistemas de controle interno e auditoria. (CGU, 2009) Detalhe que, que embora o Compliance tenha ganhado notorie‐ dade somente em 2013, com a Lei nº 12.846, o trabalho da CGU se apresentou bastante inovador. No entanto, é inegável que houve um avanço considerável com a Lei Anticorrupção na prevenção dos conflitos trabalhistas. Pelo exposto, Mathies (2018, p. 189) indica o dispositivo específico para aplicação de sanções pecuniárias na esfera judicial, assim: O art. 7º, inciso VIII da Lei n. 12.846/2013, determina que na fixação das sanções, entre outros elementos, será sope‐ sada a efetividade de programa de compliance implantado pela empresa. Assim, na dosimetria da sanção pecuniária a ser imposta à empresa, a existência do programa de compli‐ ance e a sua efetividade são fatores que influenciam no valor da multa a ser estipulada. (MATHIES, 2018, p.189) Portanto, diante do que foi abordado, é valioso acrescentar, que a presença de gestores que violam constantemente os direitos da personalidade dos obreiros pode gerar prejuízos milionários às empresas. Exemplificando, Mathies (2018, p.179) alude que:

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 129 A existência de gestores que violam constantemente os direitos de personalidade dos empregados representa grande risco às empresas, ocasionando-lhes perdas milionárias. A empresa de eletrônicos Samsung pagou R$ 10 milhões, em acordo firmado com o Ministério Público do Trabalho, pela prática “de assédio moral por parte de alguns gestores, que teriam se referido aos empregados como “estúpidos”, “bur‐ ros” e “incompetentes”. (MATHIES, 2018, p.179) Desse modo, e finalizando, levando em consideração a proposta de criminalização do assédio moral no ambiente de trabalho, e isto posto, a pungente realidade dos trabalhadores que sofrem com as doenças ocupacionais desencadeadas pelos abusos sofridos pelos empregadores, o Compliance se amolda como uma alternativa verossímil na redução dos passivos trabalhistas e também, na promoção dos direitos humanos dos trabalhadores. 2.2 A responsabilidade penal do empregador frente o assédio moral no ambiente de trabalho Em que pese os questionamentos superados nos tópicos anterio‐ res, e diante de todo arcabouço fático, normativo e dissertativo, se faz necessário e imprescindível a análise da responsabilidade penal do empregador ao lume da prática do assédio moral come‐ tido em ambiente laboral. É sabido, de antemão, que a responsa‐ bilidade do empregador nos casos de assédio moral é dúplice, ou seja, tem o dever de não praticar o ato e de inibir o dano. Afir‐ mando esta constatação, aplica-se o Art.932, inciso III do Código Civil de 2002, que aduz:

130 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: [...] III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele; (BRASIL,2002) Desta feita, ao iniciar o debate acerca da possibilidade jurídica de responsabilizar penalmente as condutas assediadoras no local de trabalho, deve-se observar a Lei Maior Brasileira no que se refere ao seu Art.5°. Este aponta para os direitos e garantias fundamen‐ tais nos incisos XXXIX; XL da CRFB/88. Vide: XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu; (BRASIL, 1988) Por conseguinte, diante do texto normativo constitucional veri‐ fica-se que uma ação só será tipificada como crime se houver legislação que a enquadre, da mesma forma a lei penal só retroa‐ girá se for para beneficiar o assediador. No entanto, tal afirmativa não impede que o legislador, respeitadas as formalidades consti‐ tucionais, venha a tornar o assédio moral no ambiente de trabalho um fato típico, ilícito e culpável. Assim sendo, em harmonia com o princípio penal da reserva legal, não poderá ocorrer a punição do autor do fato assediador se não houver lei penal anterior que puna a conduta. No mesmo sentido, sabendo que a lei penal é irretroativa, somente

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 131 serão punidos os fatos após o cometimento da conduta tipificada. Desta maneira, observa-se com animosidade a proposta legisla‐ tiva de n° 4742/2001, que criminaliza a conduta do assediador, acrescentando o artigo 146-A no Código Penal, em seu capítulo IV, Seção I – Dos crimes contra a liberdade pessoal. Essa PL cria o crime de Assédio Moral no Trabalho, com a seguinte redação: Assédio Moral no Trabalho Art. 146-A. Desqualificar reiteradamente, por meio de pala‐ vras, gestos ou atitudes, a autoestima, a segurança ou a imagem do servidor público ou empregado em razão de vínculo hierárquico funcional ou laboral. Pena: Detenção de 3 (três) meses a um ano e multa. (Projeto de Lei N° 4742/2001) Assim, diante do projeto de lei em trâmite no Congresso Nacio‐ nal, é importante ressaltar que ainda não existe no ordenamento jurídico brasileiro penalidade de cunho “criminalizador” para a conduta de assédio moral no trabalho. Nesta esteira, Alkimin (2013) nos lembra que a conduta de assediar alguém no trabalho poderá ser enquadrada em outras tipificações penais, a exemplo dos crimes contra a honra. Todavia, tipificar o assédio moral no ambiente de trabalho como crime pontua uma postura peremptória no combate às discrimi‐ nações e abusos no labor. Ressaltando a importância desse discurso, no I Seminário Internacional sobre Assédio Moral no Trabalho, realizado pelo Sindicato de Químicos e Plásticos de São Paulo, Maria France Hirigoyen (2002, s.p) assinalou:

132 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Era um senhor, um executivo comercial numa empresa, era um bom funcionário que tinha bons resultados. Houve, então, uma mudança de superior hierárquico. Colocaram um jovem superior hierárquico recém saído de uma Escola de Comércio que quis colocar cada vez mais pressão. Ele não suportava este Senhor porque ele era mais velho, tinha 53 anos e passou então a vigiá-lo diariamente, a telefonar para saber o que estava fazendo, a perguntar por tudo, a exigir que justificasse tudo, a ridicularizá-lo porque era mais velho. Foram exigidos dele objetivos cada vez mais importantes a realizar e, ao mesmo tempo, seu “setor geográfico de atua‐ ção” e suas possibilidades de trabalho foram limitadas. Após algum tempo, enviaram uma primeira carta registrada dizendo que ele não trabalhava o suficiente; pouco tempo depois, enviaram uma segunda carta registrada, dizendo que ele precisava produzir mais. Quando este senhor recebeu a terceira carta registrada, ele deu um tiro na cabeça e se suici‐ dou, no seu carro, indo para o trabalho. Na terceira carta registrada dele escreveu: ‘O que vocês fizeram não é ético’. (…) O juiz constatou que o que era exigido dele eram coisas absolutamente impossíveis de realizar. Este senhor estava numa armadilha, não era possível fazer o que lhe era exigido e ele ficou tão desestabilizado com a situação, que acabou se suicidando. É um caso interessante porque se tornou juris‐ prudência antes mesmo da lei e, pode ser utilizado agora, para sancionar este tipo de comportamento. (HIRIGOYEN, 2002, s.p) Dessa forma, ainda que não exista – ainda - uma responsabili‐ dade penal positivada no Código Penal Brasileiro, necessita-se

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 133 atentar-se no caso em concreto podendo assim evidenciar uma conduta que já é tipificada no Codex, ocasionando uma sanção penal, devido a existência de um fato típico ilícito com agente imputável. Não obstante, é indispensável, o posicionamento rigo‐ roso do Estado frente o assédio moral no ambiente laboral, visando a tutela dos direitos humanos e os sociais, estabelecidos constitucionalmente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por intermédio do debate jurídico acerca da possibilidade de introdução do Art. 146– A no Código Penal Brasileiro, o qual versa sobre a tipificação do assédio moral no ambiente de traba‐ lho. Verificou-se, então, a necessidade da aprovação do Projeto de Lei N° 4742/2001, bem como os benefícios que esta alteração legislativa poderá ocasionar no combate às condutas assediadoras praticadas por superiores hierárquicos. Dessa forma, chegou-se à conclusão que na conjectura atual, o assediador não poderá ser responsabilizado criminalmente pela conduta praticada, salvo nos casos em que se configurar os delitos de outra natureza como exemplifica Maria Aparecida Alkimin (2013). Seguindo esse entendimento, é possível creditar que com a tipifi‐ cação da conduta nos casos de assédio moral no ambiental labo‐ ral, possuir-se-á maior visibilidade, e se ocupará assim mais fortemente as estatísticas, gerando a clamor público pelo enfren‐ tamento e a conscientização da conduta discriminatória e asse‐ diadora. Outrossim, de fronte a possível efetividade e validade que a norma proposta em 2001 na forma de Projeto de Lei poderá

134 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO adquirir, faz-se estritamente necessário a realização da adequação das empresas brasileiras ao dispositivo que outrora poderá se tornar vigente. Essa adequação poderá ser feita por intermédio dos métodos de Compliance – que tem a finalidade de prevenir os passivos na esfera trabalhista. Dessa forma, as empresas passarão a possuir mais atenção frente os direitos inespecíficos dos trabalhadores, tendo em vista que com a outorga da implantação do dispositivo no Código Penal Brasileiro, os assediadores serão responsabilizados criminal‐ mente, e não apenas – e tão somente - na esfera cível ou traba‐ lhista, mas com punições impostas frente o Direito ultima ratio – demonstrando a relevância da matéria. Por esta razão, se faz imprescindível uma gestão jurídica eficiente que previna, conscientize e fiscalize as condutas de assédio moral no local de trabalho, pois, essa prática poderá resultar na respon‐ sabilidade penal do agente ativo da conduta, e por conseguinte, em obrigação do empregador de reparar o dano extrapatrimonial sofrido pelo obreiro. REFERÊNCIAS ALKIMIN, Maria Aparecida. Assédio moral na relação de trabalho. Curitiba: Juruá, 2013. ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016, edição Kindle. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Fede‐ rativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfi‐ co,1988. 292 p.

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136 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Empresas no Combate a Corrupção. Disponível em:<http:// www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-eintegridade/arquivos/ manualrespsocialempresas_baixa.pdf> Acesso em: 15/03/2020 HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos: A Cons‐ trução Universal de uma Utopia. Aparecida: EditoraSantuário, 1997, p. 37. HIRIGOYEN, Marie France. Marie-France Hirigoyen: apresen‐ tação [2002] I Seminário Internacional sobre Assédio Moral do Sindicato de Químicos e Plásticos de São Paulo. Disponível no site http://www.assediomoral.org/spip.php?article214. Acesso em 06 ago. 2016. JOBIM, Rosana de Souza Kim. Compliance e Trabalho: Entre o Poder Diretivo do empregador e os Direitos Inespecíficos do empregado. [s. L.]: Tirant Lo Blanch, 2018. 119 p. MARTINS, Sérgio Pinto. Assédio moral no emprego. São Paulo: Atlas, 2012. MATHIES, Anaruez. Assédio Moral e Compliance na Relação de Emprego: Dos Danos e dos Custos e Instrumentos de Preven‐ ção. Santa Catarina: Juruá, 2018. 210 p. MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014. O DANO PESOAL NO DIREITO DO TRABALHO, LTR, Paulo Eduardo V. Oliveira. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Decla‐ ração da OIT sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho. Genebra, 1998.

COMPLIANCE TRABALHISTA E A CRIMINALIZAÇÃO DO … | 137 RODRIGUES, Auro de Jesus. Metodologia científica: completo e essencial para a vida universitária. [s.l]: Avercamp, 2006. TOBIAS, Afonso Celso B. O que é “DUE DILIGENCE”? Dispo‐ nível em: < http://www.cavalcanteassociados.com.br/utd/ UpToDate250.pdf> acesso em: 15/03/2020 GT 3: ESTADO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SOBRE O INDIVÍDUO DIANA FREITAS DE ANDRADE INTRODUÇÃO O DESENVOLVIMENTO NÃO É UM PROCESSO LIMITADO A FATORES econômicos. Logo o contrário, ele deve subordinar o incremento da renda e os demais indicadores econômicos de forma que as sociedades possam utilizá-los para concretizar as potencialidades humanas relativas aos impulsos mais fundamentais dos indiví‐ duos, às atividades criativas, à reflexão filosófica, à invenção artística, à pesquisa científica básica. Essa concepção de desenvolvimento, defendida por Celso Furtado, conecta-se a investigações mais amplas sobre o mundo social, e, por isso, este trabalho analisará teorias que se voltaram à relação entre a sociedade e o indivíduo, enfatizando a força social sobre a vida humana. A relação da abordagem teórica de autores como Émile Durkheim, Robert Merton e Zygmunt Bauman com o desenvolvimento desponta a partir da consideração do processo desenvolvimentista como um caminho através do qual se busca acessar a determinados fins sociais, sejam eles materiais

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SO… | 139 ou imateriais. Portanto, este artigo trata-se de uma produção metodologicamente qualitativa, com natureza bibliográfica, explorando-se aspectos teóricos desses autores. Além do mais, essas teorias fornecem um substrato sólido para que se possam entrever causas estruturais do fenômeno desvi‐ ante, permitindo o rechaço às ideias que atribuem ao indivíduo toda a responsabilidade por atos de desvio. CELSO FURTADO: DESENVOLVIMENTO E A CRIAÇÃO DE VALORES SUBSTANTIVOS O desenvolvimento é um processo que tem sido conceituado de diversas formas e, neste estudo, será considerado o enforque teórico levado a cabo por Celso Furtado. Trata-se de uma concepção do desenvolvimento como fenômeno não só distinto, mas também muito mais complexo do que o crescimento econô‐ mico, já que fortemente relacionado a valores imateriais. Na defesa de uma acepção do desenvolvimento conectado ao universo valorativo do ser humano, Furtado assinala que, na história da humanidade, só excepcionalmente o excedente econô‐ mico foi canalizado para o desenvolvimento, ou seja, para a reali‐ zação das potencialidades múltiplas do ser humano. Para ele, A rigor, é quando a capacidade criativa do ser humano se volta ao descobrimento de si mesmo, se empenha em enri‐ quecer seu universo de valores, que se pode falar em desen‐ volvimento. Quando a acumulação conduz à criação de valores que se difundem em segmentos importantes da cole‐ tividade o desenvolvimento se realiza. (FURTADO, 2011, p. 172)

140 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Furtado sustenta ainda que uma característica sobressalente da civilização industrial é a canalização da capacidade inventiva para a criação tecnológica, para o processo de acumulação. Isso também explicaria por que os estudos sobre o desenvolvimento teriam dado tanta ênfase à lógica da acumulação em detrimento de outros aspectos (inclusive até mais importantes) do processo de desenvolvimento. Segundo o pensador, dentro dessa ótica a difusão da civilização industrial se resumiria ao avanço da domi‐ nação sobre a natureza e à maior eficiência na utilização de recursos escassos. (FURTADO, 2011, p. 173) Contrapondo-se a essa artificiosa simplificação da difusão da civilização ocidental, Furtado encampou uma teoria do subde‐ senvolvimento por meio da qual denunciou a falsa neutralidade das técnicas e chamou a atenção para uma dimensão oculta do desenvolvimento: a criação de valores substantivos. Nesse sentido, sua defesa de um desenvolvimento endógeno “não é outra coisa que a faculdade que possui uma comunidade humana de ordenar o processo de acumulação em função de prioridades definidas por ela mesma”. (FURTADO, 2011, p. 173-174). Invertendo a lógica que toma a produção do excedente e o cresci‐ mento econômico como o fim último (ou o sinônimo) do desen‐ volvimento, Furtado assevera que é quando associado à criatividade que o desenvolvimento adquire certa nitidez, sendo a emergência de um excedente adicional um fato passível de revelar aos membros da sociedade uma miríade de opções. Então, mais do que meramente reproduzir suas estruturas tradicionais, as sociedades podem se valer do excedente para ampliar o campo do imediatamente possível, no qual se concretizam as potenciali‐ dades humanas. De outro lado, assumindo a feição de uma via de mão dupla, a criatividade, na medida em que estimula a busca por um novo excedente e impulsiona o surgimento de novos valores

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SO… | 141 culturais, também pode ser tida como a fonte última do desenvol‐ vimento. (FURTADO, 2013, p. 462) Segundo o pensamento furtadiano, os impulsos mais fundamen‐ tais do homem, gerados pela sua necessidade de auto-identifi‐ cação e de se situar no mundo – os quais seriam a base de toda atividade criativa, como a reflexão filosófica, a invenção artística, a pesquisa científica básica etc. - foram subordinados ao processo de modificação do mundo físico pela acumulação. São suas pala‐ vras: “Atrofiaram-se os vínculos de criatividade com a vida humana concebida como um fim em si mesma, e hipertrofiaram- se suas ligações com os instrumentos que utiliza o homem para transformar o mundo.” (FURTADO, 2013, p. 464) Diante desse esboço sobre o pensamento furtadiano, pode-se dizer que a modernização da estrutura política e a expansão do universo valorativo do ser humano sempre integraram a concepção multissetorializada de desenvolvimento encampada por Furtado. Para ele, a preservação ecológica, a proteção aos trabalhadores, a criatividade e a democracia não podiam ser tidas como metas a serem alcançadas com o desenvolvimento, já que são dele partes constitutivas. Desse modo, o cientista paraibano, indo além de concepções meramente estruturalistas, combinou sua análise do processo de desenvolvimento com uma visão historicista da economia e, principalmente, com sua preocupação quanto aos fins e valores do desenvolvimento, o que o levou à afirmação de que somente a participação política e a subordinação da técnica pelos valores poderiam empoderar a sociedade de forma a torná-la a principal responsável pela condução do desenvolvimento.

142 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO SOCIEDADE, DESENVOLVIMENTO E DESVIO: A FORÇA DO SOCIAL SOBRE O INDIVÍDUO Conforme defendido por Celso Furtado, o desenvolvimento não é um processo limitado a fatores econômicos, pois significa, antes de tudo, voltar a capacidade do ao descobrimento de si mesmo, de modo a enriquecer seu universo de valores. Essa concepção do processo desenvolvimentista, portanto, deve ser relacionada a investigações mais amplas sobre o mundo social, sobretudo ao exame de teorias que enfocaram a relação entre a sociedade e o indivíduo, enfatizando a força social sobre a vida humana. A relação da abordagem teórica de autores como Durkheim, Merton e Bauman com o desenvolvimento desponta a partir da consideração do processo de desenvolvimento como um caminho através do qual se busca acessar a determinados fins sociais, sejam eles materiais ou imateriais. Além do mais, essas teorias fornecem um substrato sólido para que se possam entrever causas estruturais no fenômeno violento, permitindo o rechaço às ideias que atribuem ao indivíduo toda a responsabili‐ dade pela prática da violência. Um dos mais importantes pensadores da sociologia, o francês Émile Durkheim, dedicou-se ao estudo da vida coletiva partindo da consideração que ela não se tratava de uma mera ampliação da vida individual. O autor assevera que a explicação da vida social deve ser radicada no exame da sociedade, e não no sujeito indivi‐ dual, defendendo a ideia de que a sociedade é muito mais do que a soma de indivíduos que a integram (DURKHEIM, 1978, p. 133). Para o cientista, no estudo dos fatos sociais, é preciso ir além da atividade de descrevê-los e classificá-los, sendo necessário explicá-los de forma a evidenciar as causas e razões subjacentes ao comportamento coletivo. Na teoria durkheimiana, sobreleva de importância o conceito de função social, e aqui os fatos sociais

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SO… | 143 (partes) existem em função da sociedade (todo). Assim, a ideia funcionalista remonta à ligação existente entre as práticas e insti‐ tuições sociais e o conjunto social como um todo. Ao inflexionar sua investigação sobre o tema da modernidade, Durkheim sustenta que, com a passagem da sociedade de solida‐ riedade mecânica para a de solidariedade orgânica, a esfera da individualidade sofreu um processo de ampliação. O paradoxo da modernidade residiria na contraposição entre a maior autonomia dos sujeitos individuais e o risco que essa liberdade implica para a coesão social, já que, nas sociedades avançadas, a consciência coletiva tem menos poder de agregação, sendo mais frágeis os laços entre os indivíduos, especialmente porque a solidariedade passa a ser resultante das funções diferenciadas de cada sujeito individual. De todo modo, o autor vê o individualismo moderno com otimismo: “E como cada um de nós encarna algo da humani‐ dade, cada consciência individual encerra algo de divino e fica assim marcada por um caráter que a torna sagrada e inviolável para os outros. O individualismo é isso.”(DURKHEIM, 1975, p. 244) O individualismo durkheimiano opunha-se frontalmente ao egoísmo, embora na contemporaneidade o primeiro termo possa vir a sugerir uma identificação com o último. Com efeito, ao se voltar sobre a obra de Durkheim, Anthony Giddens (1995) escla‐ receu que, para o pensador francês, o individualismo seria o culto ao indivíduo, mas que isso de forma alguma promoveria a deca‐ dência moral. São palavras de Giddens:

144 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Esse [individualismo de Durkheim] era, em um aspecto importante, o verdadeiro oposto do egoísmo. Envolvia a não-glorificação do autointeresse, mas a do bem-estar dos outros: era a moralidade da cooperação. Individualismo, ou “culto do indivíduo”, estava baseado no sentimento de comi‐ seração pelo sofrimento humano, em um desejo de igualdade e de justiça. (GIDDENS, 1995 citado por BELLI, 2004, p. 116) Outro conceito fundamental na obra de Durkheim é o de anomia. Na teoria durkheimiana, a anomia surge quando aquilo que até certo momento era tido como positivo ou que permitia um deter‐ minado projeto de vida deixa de sê-lo diante do surgimento de novas normas às quais os sujeitos não conseguem se adaptar, daí advindo sua frustração. Anomia, portanto, não se equaciona com a ausência de normas, mas sim com o processo de mudança gerador um sentimento de falta de objetivos e de desespero (DURKHEIM, 2000). Além disso, a anomia durkheimiana parte do pressuposto de que, na era moderna, as pessoas têm menos limites do que nas sociedades tradicionais, de modo que o alarga‐ mento do espaço das escolhas pessoais engendra um inevitável grau de inconformidade ou desvio (GIDDENS, 2012, p. 666). Para combater esse estado de anomia, contudo, o sociólogo francês entende ser necessária uma nova moralidade, que pudesse se desenvolver no mesmo ritmo do crescimento econô‐ mico e do avanço da industrialização, de forma a controlar os afetos – esses últimos desregrados justamente em razão da inexistência de normas ou da falta de respeito a elas. Em sua acepção, por mais que a atividade econômica tenha acompanhado a civilização, a última é moralmente neutra e, por isso, não se

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SO… | 145 presta ao progresso moral. Não por outra razão, são justamente as regiões de maior opulência industrial que apresentam os mais elevados índices de suicídios e imoralidade coletiva (QUINTA‐ NEIRO, 2009, p. 88). Defende Durkheim que o Estado deveria ter [...]como tarefa essencial, não o crescer, o estender as frontei‐ ras, e sim o organizar, o melhor que possa, sua autonomia, chamar a uma vida moral mais e mais alta o maior número de seus membros [...] Não tenha o Estado outro fim senão fazer, de seus cidadãos, homens, no sentido completo da palavra, e os deveres cívicos não passarão de forma mais particular dos deveres gerais da humanidades. [...] As socie‐ dades, porém, podem consagrar seu amor próprio, não a ser as maiores, ou as mais abastadas, e sim a ser as mais justas, as mais bem organizadas, a possuir a melhor constituição moral. (DURKHEIM, citado por QUINTANEIRO 2009, p. 88) Um fato social ao qual Durkheim (2000) devotou grande atenção foi o suicídio. Na análise desse fato, o autor não analisou casos isolados de suicídio, pois defendia que a causa geradora do comportamento suicida não estava encerrada em cada sujeito: ela era exterior aos indivíduos. Em sua acepção, as predisposições particulares, o temperamento pessoal, as condições do meio físico, apesar de em regra serem tomadas como a causa imediata do suicídio, refletem apenas o estado moral da sociedade. Ao buscar no meio social as disposições ao suicídio, Durkheim asse‐ vera que elas têm relação constante e imediata com certas condi‐ ções sociais, concluindo que:

146 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO [...] a taxa social de suicídios só se explica sociologicamente. É a constituição moral da sociedade que estabelece, a cada instante, o contingente de mortes voluntárias. Existe, portanto, para cada povo, uma força coletiva, de energia indeterminada, que leva os homens a se matar. Os movi‐ mentos que o paciente realiza e que, à primeira vista, parecem exprimir apenas seu temperamento pessoal, são na verdade a consequência e o prolongamento de um estado social que eles manifestam exteriormente. (DURKHEIM, 2000, p. 384) Aqui, mesmo quando os acontecimentos privados são vistos pelo próprio indivíduo como hábeis a explicar seu desinteresse pela vida, ainda assim Durkheim sustenta que quando o sujeito está triste a tristeza lhe vem de fora, do grupo social de que ele faz parte (DURKHEIM, 2000, p. 385). Nessa linha argumentativa, o autor assevera que cada sociedade tem seu maior ou menor grau de disposição coletiva ao surgimento de comportamentos suici‐ das. Essa disposição é constituída por tendências na coletividade que estimulam o egoísmo, altruísmo ou o surgimento da anomia. A partir dessas três correntes suicidógenas, Durkheim elabora uma tipologia do suicídio, classificando-o em: suicídio egoísta (mais frequente em sociedades modernas, onde há uma excessiva individuação); suicídio altruísta (comum nos grupos sociais infe‐ riores, onde o ato é considerado um dever que, uma vez não cumprido, é punido pela desonra); e, por fim, suicídio anômico (também típico de sociedades modernas, e derivado da ausência ou da falta de respeitabilidade das normas) (DURKHEIM, 2000, p. 463-465). Ao cotejar as taxas sociais de suicídio com as de homicídio, Durkheim aduz que esses fenômenos não se relacionam de modo

DESENVOLVIMENTO, DESVIO E A FORÇA DO SOCIAL SO… | 147 uniforme, já que dentre as espécies de suicídio apenas algumas guardam alguma proximidade com os homicídios, enquanto outras lhe são adversas (DURKHEIM, 2000, p. 462). Para o autor, o suicídio anômico é a modalidade desse ato cujas causas são comungadas pelo homicídio. Assim, tudo o que pode refrear a anomia causadora do suicídio também se presta à contenção dos homicídios, pois a anomia “faz surgir um estado de exasperação e de lassidão irritada que pode, conforme as circunstâncias, voltar- se contra o próprio sujeito ou contra o outro: no primeiro caso, há suicídio, no segundo, homicídio.” (DURKHEIM, 2000, p. 465). A tomada de atitude em uma ou outra direção dependeria da constituição moral do sujeito:o sujeito de moralidade medíocre “antes mata do que se mata”, embora também ocorra de o estado de exacerbação do indivíduo ser tal que, para sentir algum alívio, ele decide proceder aos dois atos, é dizer, ceifar a vida do outro e em seguida dar cabo à sua. Na teoria durkheimiana, o paralelismo constatado entre o suicídio anômico e o homicídio ocorre sobre‐ tudo nos grandes centros e nas regiões civilizadas, pois é ali que a anomia desponta em estado agudo, acompanhando de muito perto o desenvolvimento econômico. (DURKHEIM, 2000, p. 466). Outro sociólogo que também se debruçou sobre o conceito de anomia foi Robert Merton, o qual, apesar de ter lançado mão das bases teóricas da precedente obra de Durkheim, procedeu a uma significativa modificação do conceito de anomia (MERTON, 1957 citado por GIDDENS, 2012, p. 671). O autor, no intuito de compreender por que as taxas de criminalidade eram altas em sociedades relativamente ricas, tratou de estudar a sociedade norte-americana de meados do século XX, e constatou que a cultura dos Estados Unidos impunha como meta o sucesso monetário, condenando o fracasso daqueles que não conseguiam aceder a esse objetivo. Assim, para Merton a tensão surge quando

148 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO as metas (estrutura cultural) são universalizadas e os meios (estrutura social) permanecem limitados. Já a anomia mertoniana consistiria na falta de meios lícitos para a consecução dos objeti‐ vos, é dizer, do êxito econômico. Com relação ao comportamento desviante, Merton o considera como a prática daqueles que se valem de meios não institucionais para atingirem a meta visada. Os criminosos, aqui, são classifi‐ cados juntamente com os inventores na categoria de sujeitos inovadores. Assim, o autor sustenta que o delito não resulta somente da contingência dos recursos para o acesso à riqueza, nem tampouco da glorificação isolada das metas: ele é produto da combinação entre as metas pecuniárias e os limitados meios para obtê-las. Ao cotejar a ampliação dos desejos com a persistência de desigualdades, o autor enxerga um contraste que dirige à conclusão que a privação relativa constitui um dos elementos propulsores – embora não o determinante - do comportamento desviante. Para Merton: A pobreza em si e a consequente limitação de oportunidades não bastam para produzir uma proporção alta e conspícua de comportamento criminoso. Mesmo a “notória pobreza no meio da opulência” não conduzirá, necessariamente, a este resultado. Porém, quando a pobreza e as desvantagens a ela associadas, em competição com os valores aprovados para todos os membros da sociedade estão articuladas com uma ênfase cultural do êxito pecuniário como objetivo domi‐ nante, as altas proporções do comportamento criminoso são o resultado normal. (MERTON, 1968, p. 220)


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