A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE… | 49 violência urbana, todos que se encaixariam nesse conceito”. Fica claro que o Estado brasileiro é ineficiente, visto que existem problemas em todos os setores dos serviços públicos prestados pelos os entes federativos. Nessa lógica, se pode concluir a necessidade de inclusão de temas consagrados no Texto Maior de 1988 relacionados com os direitos fundamentais, que corriqueiramente vêm sendo atingi‐ dos, seja de forma comissiva ou omissiva, havendo um manifesto flagrante de inconstitucionalidade, não merecendo o descarte do problema da saúde pública brasileira na lista de solução de conflitos por parte do Supremo, pois a saúde pública está estrita‐ mente ligada ao direito à vida, e a atual Constituição consagra o bem-estar social respeitando-se assim a dignidade da pessoa humana. O Min. Marcos Aurélio, no mesmo julgamento, destacou que não existe nenhuma espécie de violação do princípio da separação dos poderes, nas palavras do ministro (p. 31): [...] Controvérsias teóricas não são aptas a afastar o convencimento no sentido de que o reconhecimento de estarem atendidos os pressu‐ postos do estado de coisas inconstitucional resulta na possibilidade de o Tribunal tomar parte, na adequada medida, em decisões primariamente políticas sem que se possa cogitar de afronta ao princípio democrático e da separação de poderes. Sendo assim, não se podem prosperar vozes em sentido contrário ao ECI, visto que esse instituto visa a tutela de direitos funda‐ mentais, sendo papel do próprio Estado (por intermédio do Judi‐ ciário) promover a efetividade de tais direitos.
50 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Ainda, sobre a alegação da violação do princípio da separação dos poderes, Silva (2018, p. 71) preleciona de maneira acertada: Não se quer dizer que existe qualquer tipo de afronta ao princípio da separação dos poderes [...]. O que se deseja aqui é que esta possua uma conduta ativista e cooperativa em face da defesa dos direitos fundamentais perante os indivíduos para que a igualdade seja respeita. O Poder Judiciário não deverá se esquivar de sua competência constitucional de preservar e assegurar os preceitos estabelecidos no Texto Maior de 1988, não se podendo esquecer que a ideia de separação dos poderes é meramente organizacional, ou seja, quando se fala nos três poderes (executivo, legislativo e judiciário) se está falando do próprio Estado. E, complementa o Min. Marcos Aurélio (p. 31): “A forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva do Tribunal”, destacando-se por meio do Judiciário a efetividade dos direitos estampados na Carta da República de 1988. CARACTERÍSTICAS DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL A partir da análise quanto às decisões da Corte Colombiana, Cunha Júnior (2016) destaca algumas características do ECI, são elas: i) grave, permanente e generalizada a violação de direitos fundamentais; ii) a existência de comprovação de omissão reite‐ rada de distintos órgãos; iii) a ocorrência de um número de
A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE … | 51 indivíduos atingidos pela a violação; e, iv) a importância da solução ser construída com base no diálogo entre as instituições. Interpretando a teoria colombiana no que tange a suas caracterís‐ ticas e requisitos, se percebe que na triste situação da saúde pública brasileira se preenche todos os pressupostos para o reco‐ nhecimento do Estado Coisas Inconstitucional. No que diz respeito ao primeiro pressuposto trazido pelo autor, a situação da saúde pública é grave, duradoura e atinge um número indeterminados de pessoas. Já que é muito comum de se ver pessoas morrerem nas filas dos hospitais, sem vagas nos leitos e muitas vezes sem a presença de um médico. Ademais, essas pessoas já perderam a esperança de concretização do direito a saúde pública. Acerca da comprovação da omissão contínua de vários órgãos do Poder Público, é preciso destacar que a competência para a pres‐ tação do serviço de saúde é de todos os entes da federação, além de toda a sociedade. Os entes da federação costumam “jogar para os outros” a sua responsabilidade, ou criam empecilhos para sua efetivação justificando-se falta de verbas orçamentárias para a sua concretização. O problema da saúde no Brasil atinge um número indetermi‐ nados de pessoas, por causa de a maioria da população não possuir nenhum plano de saúde, dependendo exclusivamente do SUS para atender suas necessidades médicas. Para solucionar os graves problemas do SUS, é necessário diálogo e comprometimento com a causa, não adianta ficar em discursos e apenas o direito a saúde ser considerado uma mera folha de papel. Tem que ter efetividade, é isso que as pessoas esperam, que o Judiciário socorra as pessoas que necessitem de atendimento
52 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO médico (que muitas vezes não têm) e que imponha medidas coer‐ citivas para o mandamento constitucional. Realizados breves comentários referentes às características do ECI, logo abaixo será tratado acerca da discussão que este possui com o ativismo judicial. ATIVISMO JUDICIAL E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL Existe uma correlação entre o Estado de Coisas Inconstitucional com a teoria do ativismo judicial, pois sustentam alguns que caso ocorra o reconhecimento do ECI se estaria admitindo mais uma espécie de ativismo judicial. Antes de mais nada, é preciso destacar a origem do ativismo judi‐ cial que, nas palavras de Barroso (2017) o termo em estudo foi utilizado com o rótulo de qualificar a atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos da América nos anos de 1954 e 1969, sendo uma atividade do Judiciário mais ativa, sem a participação do Legislativo ou do Executivo, vindo a sofrer duras críticas com o fundamento do exercício atípico do Judiciário. Segundo Barroso (2017), a tese do ativismo judicial está estrita‐ mente ligada a um envolvimento maior e intenso do Judiciário na efetivação dos valores e fins constitucionais, com maior inter‐ venção no campo de atuação dos demais poderes. É louvável a tese do ativismo judicial, pois preconiza a ideia que o Judiciário possui poderes para concretizar as ideias contidos nas constituições de cada país, sendo, na prática, um órgão que tem papel importante na concretude dos direitos fundamentais, situ‐ ação na qual os demais poderes não cumprem com os manda‐ mentos constitucionais.
A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE… | 53 Em sentido oposto, existe adeptos teóricos negando a possibili‐ dade do ECI com o fundamento de que o Judiciário estaria usur‐ pando a competências dos demais poderes. É nesse sentido que os ensinamentos de Streck (2018, p.500) sustentando que: “[...] em uma democracia quem faz as escolhas é o Poder Executivo, e não o Judiciário. [...] as promessas incum‐ pridas da Constituição não estão à disposição do Poder Judiciá‐ rio”. Mas, na atual conjectura política do Brasil, no Legislativo e Executivo, muitas vezes, há a elaboração de leis e reformas cons‐ titucionais que vão de encontro com a vontade do povo, como, por exemplo, a Emenda Constitucional nº 95 de 2016. Então, só resta ao povo ir ao Judiciário para que o mesmo venha a controlar, nos moldes da Carta Magna de 1988, os atos dos demais poderes da República. E, arrematam Di Giorgi, Campilongo e Faria (2015 apud STRECK 2018, p. 501): Invocar o ECI pode causar mais dificuldades à eficácia da Constituição do que se imagina. Basta fazer um exercício lógico, empregando o conceito do ECI a ele mesmo. Se assim estão ‘coisas’- e, por isso, a ordem jurídica é ineficaz e o acesso à Justiça não se concretiza -, por que não decretar a inconstitucionalidade da Constituição e determinar o fecha‐ mento dos tribunais? Trata-se de um posicionamento doutrinário respeitável, mas não merece prosperar a tese. Como dito alhures, o ECI tem como objetivo “forçar” um diálogo entre os poderes da República para solucionarem, em conjunto, as graves violações aos direitos
54 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO fundamentais. Não violando assim a separação dos poderes, seria na verdade a união dos poderes em prol dos direitos funda‐ mentais. Nesse viés, Cunha Júnior (2016) preleciona que atualmente, no constitucionalismo contemporâneo, não se fala mais em “separa‐ ção” dos poderes, e sim, o verdadeiro equilíbrio entre os poderes. Cunha Júnior (2016) afirma ainda que no atual Estado para a efetivação dos direitos sociais necessita de mudanças nas funções clássicas dos juízes, se tornando, corresponsáveis pelo exercício das políticas públicas dos demais poderes. Em concordância, Barroso (2017) ensina que o papel do Supremo Tribunal Federal é tutelar e garantir a prática dos direitos funda‐ mentais, além de resguardar as regras inerentes a democracia, havendo atuação contramajoritária do Poder Judiciário na proteção dos conteúdos essenciais da Constituição da República de 1988 se dará a favor e jamais contra a democracia. E, faz um alerta Barroso (2017): que nas outras situações, quando não se estiver a discussão de direitos fundamentais ou procedi‐ mentos democráticos, o Judiciário deve aceitar as escolhas legí‐ timas feitas pelo o Legislativo, bem como, a atuação discricionária do Executivo. Para Coelho (1997 apud CUNHA JÚNIOR, 2016) nos atuais processos legislativos, que são lentos e demoram a solucionar os anseios da sociedade, o ativismo judicial surge para solucionar os variados conflitos de interesses de forma mais célere do que as atitudes adotadas pelo o legislador.
A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE… | 55 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo científico obteve como problema a seguinte indagação: Há possibilidade jurídica do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional relacionado ao direito à saúde? Em relação ao que foi dito durante toda a pesquisa acadêmica, é de se concluir pela possibilidade e a necessidade do reconheci‐ mento do Estado de Coisas Inconstitucional como forma de reduzir os graves problemas que ocorrem na saúde pública brasi‐ leira, sendo este, um instrumento que terá efetividade na concre‐ tização dos direitos fundamentais. É imperioso observar que o ECI possui como escopo o diálogo entre as instituições que atuam na área da saúde, e com o reco‐ nhecimento do mesmo pelo Judiciário haverá esperança para o povo, uma vez que cotiando forense, o Poder Judiciário é provo‐ cado todos os dias para solucionar demandas dessa ordem, forçando os entes federativos atuarem de forma efetiva, para amenizar o sofrimento da população. Este poder foi criado justa‐ mente para tutelar os direitos fundamentais, não se podendo esquivar-se na tese de separação dos poderes. Portanto, se faz necessário o reconhecimento e a implementação do Estado de Coisas Inconstitucional para se dá efetividade aos direitos previstos expressamente na Constituição da República Federativa de 1988, no caso em estudo, o direito à vida e o direito à saúde. Destarte, sucedendo uma parceira institucional entre os poderes, haverá consequência melhora de forma significativa na saúde dos brasileiros, visto que o povo não suporta mais tantas omissões do Poder Público nessa área, e esse instituto se amolda perfeita‐ mente para o preenchimento desta lacuna.
56 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 9 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. AZEVEDO CAMPOS, Carlos Alexandre de. O Estado de Coisas Inconstitucional e o litígio estrutural. Consultor Jurídico 01 de setembro de 2015. Disponível <https://conjur.com.br/2015-set- 01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio- estrutural>. Acesso em: 27 de abr. 2020. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado até a Emenda Constitucional nº 105/2019. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2020. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 374/DF. Min. Rel. Marcos Aurélio. Tribunal Pleno. Julgado em 09/09/2015. Publi‐ cado em 19.02.2016. Disponível em: <http://stf.jus.bre/portal/ jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28APDF%24% 2ESCLA%2E+E+347%2ENUME%2E%29+OU+%28ADPF% 2EACMS%2E+ADJ2+347%2EACMS%2E%29&base= baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/nh82k29> . Acesso em: 14 de abr. de 2020. BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. G1 PE. Pacientes denunciam falta de remédios para tratar doença de Parkinson na Farmácia do Estado. G1, Recife, 22 abr. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/ 2020/04/22/pacientes-denunciam-falta-de-remedios-para- tratar-doenca-de-parkinson-na-farmacia-do-estado.ghtml>. Acesso em: 01 mai. 2020.
A NECESSIDADE DO RECONHECIMENTO DO ESTADO DE… | 57 GONÇALVES FERNANDES, Bernardo. Curso de Direito Cons‐ titucional. 9. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2017. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2017. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2017. GUIMARÃES, Mariana Rezende. O estado de coisas inconstitu‐ cional: a perspectiva de atuação do Supremo Tribunal Federal a partir da experiência da Corte Constitucional colombiana. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a.16 – n. 19, p. 79 – 111- jan./jun. 2017. Disponível em: < https://escola.mpu.mp.br/ puclicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim/boletim- cientifico-n-49-janeiro-junho-2017/o-estado-de-coisas- inconstitucional-a-perspectiva-de-atuacao-do-supremo- tribunal-federal-a-partir-da-experiencia-da-corte- constitucional-colombiana/at_download/file&ved= 2ahUKEwjatPmRczoAhVgHbkGHRB0AG8QFjAJegQIBBAB& usg=AOvVaw34IQPx8kRBRfee1OGR62Ds> Acesso em: 03 de abril de 2020. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 10. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2016. FONTES, Bruno; GÓES, Clarissa. Falta de remédios na Farmácia do Estado prejudica tratamento de pacientes com doenças crôni‐ cas. G1, Recife, 06 fev. 2020. Disponível em: < https://g1.globo. com/pe/pernambuco/noticia/2020/02/06/falta-de-remedios- na-farmacia-do-estado-prejudica-tratamento-de-pacientes-com- doencas-cronicas.ghtml>. Acesso em: 01 mai. 2020. LABOISSIÈRE, Paula. Quase 90% dos brasileiros consideram saúde péssima, ruim ou regular. Agência Brasil. Brasília – DF.
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ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENTE AO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS JOSIEL BRANDÃO DE MELO FILHO; MARIA REGINA BARRETO LIMEIRA INTRODUÇÃO O ESTUDO DAS CIÊNCIAS CRIMINAIS FRENTE A ORDEM ECONÔMICA não é novidade na dogmática penal internacional, pois, sabe-se que os pilares e estruturais do Direito Penal Econômico já vem sendo estudado desde meados da década de 1930, quando infra‐ ções penais cometidas neste nicho foram popularmente conhe‐ cidas como crimes de colarinho branco, ou seja, na linguagem popular, é o crime praticado de forma sofisticada e cometido por alguém com prestigio financeiro e social. Ao passar dos anos, convém acreditar que a população em geral continua a repudiar esta modalidade ilícita de auferir lucros. Nesta perspectiva, e em consonância com os sistemas jurídicos de outros países, o legis‐ lador brasileiro, na intenção de responsabilizar criminalmente a conduta criminosa do colarinho branco, aprova a Lei N° 9.613/98 – e posteriormente suas alterações no ano de 2012 – visando penalizar a ocultação e/ou dissimulação da origem de bens e valores angariados com práticas criminosas antecedentes. Assim sendo, diante deste bojo legislativo, este artigo irá analisar a
60 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO possibilidade da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada frente ao elemento subjetivo do dolo na Lei N° 9.613/98. Neste contexto de fronte a lei que combate à lavagem de capitais, custa afirmar que a Teoria da Cegueira Deliberada, Teoria das Instruções de Avestruz, Willful Blindness ou, por fim, Ostrich Instructions é neófita no que se refere ao seu assentamento no ordenamento penal brasileiro, tendo em vista que apenas é possível verificar sua constância em julgados de crimes especí‐ ficos como o de lavagem de capitais ou receptação de produto roubado. Por sua vez, têm-se por certo que esta teoria possui sua origem no sistema da Common Law, especificadamente nos tribu‐ nais ingleses no ano de 1861, sendo utilizada posteriormente no cenário jurídico estadunidense e espanhol. Pautado nesta exposi‐ ção, essa tese tem a sua definição clara e suscinta no sentido de que o agente finge não enxergar a existência de uma conduta ilícita em seu ambiente, mas, aufere vantagens indevidas sobre a prática do ato criminoso ali praticado. Nesta conjectura, o indi‐ víduo não agirá com dolo direto, mas exercerá o elemento subje‐ tivo do dolo eventual, como costumeiramente tem acatado sondado a tese dos magistrados no que se refere a aplicação da teoria, em harmonia com o entendimento majoritário da doutrina. Isto posto, essa tese é costumeiramente acolhida no âmbito do Direito Penal Econômico, principalmente nas condutas tipificadas como “lavagem de dinheiro” – como é conhecida na sua forma popular – ou branqueio de capitais, diante da expressão doutrinária, as quais ocasionam na macula da ordem econômica vigente. Assim sendo, o presente trabalho far- se-á uma análise conceitual, doutrinária e jurisprudencial acerca da aplicação do Willful Blindness no transcurso do processo criminal que verse sobre o crime previsto o Art. 1° da Lei 9.613/98, a fim de verificar o real posicionamento desta teoria no cenário jurídico do Direito Penal Econômico Brasileiro.
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 61 À vista disso, a referida pesquisa passar-se-á ao estudo da concei‐ tuação e do elemento subjetivo presente no Ostrich Instructions em consonância com o crime de lavagem de capitais, previsto na Lei N° 9.613/98. Ademais, buscar-se-á destrinchar o dispositivo penal, bem como apreciar a Teoria em questão com o intuito de aprofundar-se sobre a tese anglo-saxã que atracou no Brasil e delinear os seus traços na aplicação das decisões judiciárias que são embasadas na cegueira deliberada. METODOLOGIA Em primeiro plano, é essencial trazer à baile uma discussão sobre a importância de ser respaldado pelo zelo técnico e cientifica na elaboração de uma pesquisa, visto que isto é fundamental para a sua formulação. Assim, entre a pesquisa e o método há uma relação simbiótica de padronização do engajamento, na intenção de alcançar um domínio sobre a temática. Outrossim, a metodo‐ logia visa encurtar o caminho do conhecimento, agregando eficácia e consistência ao estudo, utilizando processos de investi‐ gação atrelados a resolução de problemas. Portanto, a produção cientifica é construída por intermédio da investigação sobre o objeto de pesquisa, utilizando-se da metodologia. Assim, é possível destacar o pensamento de Auro de Jesus Rodrigues: Assim pode-se dizer que a metodologia científica consiste no estudo, na geração e na verificação dos métodos, das técnicas e dos processos utilizados na investigação e resolução de problemas, com vistas ao desenvolvimento do conhecimento científico. O conhecimento científico se constrói por meio da investigação científica, da pesquisa utilizando-se a meto‐ dologia (RODRIGUES, 2016, p.19).
62 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Neste intento, o presente trabalho abordará como métodos de procedimento: O histórico, abordando a evolução da teoria da cegueira deliberada em face do crime de lavagem de capitais e o enquadramento deste crime na legislação brasileira, apontando também, para as reflexões sobre o dolo direito e eventual de fronte ao fato típico descrito na Lei 9.613/98. Por outro ângulo, servirá também o método explicativo e comparativo, evidenci‐ ando a conceituação e repercussão dessa teoria nos julgados e estudos contemporâneos do Estado brasileiro. Por fim, é indis‐ pensável que poder-se-á apontar estes como os métodos mais relevantes que contornem a pesquisa, sem que ocorra prejuízos a outros, no transcurso investigativo. Dessa maneira, a pesquisa visa esclarecer, pontuar e analisar sobre a temática da teoria da cegueira deliberada nos delitos de lavagem de capitais. Para isto, é possível esclarecer nesta pesquisa, em decorrência da natureza do método, o dever do pesquisador de afirmar as premissas pesquisadas, sob a pena de ser penalizado por não alcançar seu objetivo. CONCEITUAÇÃO SOBRE A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA A teoria da cegueira delibera é um conceito doutrinário que não é costumeiramente aplicado no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista que os tribunais a acataram de forma recente e majorita‐ riamente no âmbito dos crimes que permeiam o direito penal econômico. Em vista disto, sabe-se que historicamente a presente teoria possui sua origem no sistema da Common Law inglês e a primeira vez que foi equiparada no plano jurídico foi em 1861, no processo de Regina vs Sleep, esse caso em questão tratou-se de julgar um indivíduo acusado de desvio de fundos públicos no
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 63 exercício do cargo ao adentrar em uma embarcação com um barril de cobre que pertencia ao Império Britânico. Posterior‐ mente observa-se a ampla utilização deste posicionamento teórico na aplicação de decisões judiciais nos Estados Unidos e Espanha, ainda no século XIX.Sendo assim, a partir de um relato suscinto sobre o contexto histórico acerca no surgimento da Teoria da Cegueira Deliberada, é necessário a conceituação desta tese. Neste espectro, Bernardo Feijoo Sánchez (2005) afirma que o sujeito necessita possuir a intenção de ignorar a conduta ilícita ali praticada por outrem na intenção de auferir lucros, facilitando ou tornando mais cômoda a sua decisão moral para que a teoria do avestruz seja aceitável no caso em concreto. Ainda no contexto doutrinário sobre a teoria do avestruz, Marcos Antônio de Barros e Thiago Minetti Apostólico Silva sintetizam o conceito básico da Willful Blindness. Vide: Podemos dizer que a teoria da cegueira deliberada constitui uma tese jurídica por meio da qual se busca atribuir respon‐ sabilidade penal àquele que, muito embora esteja diante de uma conduta possivelmente ilícita, se autocoloca em situação de ignorância, evitando todo e qualquer mecanismo apto a conceder-lhe maior grau de certeza quanto à potencial anti‐ juricidade. (2015, p. 213) Outrossim, de fronte ao conceito doutrinário sobre a teoria do avestruz é necessário destacar que a aplicação desta tese não poderá ser exercida isoladamente. Deste modo, insta analisar que a efetividade de sua aplicação depende prioritariamente de requi‐ sitos cumulativos básicos na conduta praticada. Dessa forma, ressalta-se que a aplicação do Ostrich Instructions
64 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO não pode ser condicionada a crimes específicos, mas resta crista‐ lino afirmar que o elemento subjetivo imprescindível na conduta típica ilícita é o dolo eventual, ou seja, o agente ativo do delito necessita possuir conhecimento sobre a prática criminosa, mas evita o reconhecimento da conduta, ignorando o fato criminoso, auferindo valores sobre o crime e assumindo o risco. Consequen‐ temente, em observância aos pressupostos necessários para apli‐ cabilidade da Teoria da Cegueira Deliberada, Douglas N. Husak e Craig A. Callender (1994, p. 34) enumeram os três pilares da teoria, são eles: O sujeito necessita possuir uma justificada suspeita sob os elementos da conduta tipificada; a informação precisa ser de fácil acesso ao agente e, por fim, a existência de uma motivação, o personagem deve possuir um motivo para permanecer ignorante àquela conduta, podendo ser a mais variada justificativa, desde que haja uma. Por conseguinte, diante das variáveis existentes sob a aplicação do Ostrich Instructions, principalmente no que se refere aos crimes que tutelam a ordem econômica, em especial o delito de lavagem de capitais, objeto de estudo desta pesquisa, é primordial analisar a aplicabilidade deste conceito, atrelado aos seus pressupostos, no ordenamento jurí‐ dico brasileiro, pois, o julgador no exame das provas e narrativas construídas durante o processo criminal não poderá ignorar os elementos ali expostos que configurem a possibilidade da exis‐ tência do elemento subjetivo do dolo eventual diante da conduta do agente executor das condutas típicas. Observa-se, portanto, nas decisões sentenciais pátrias que não é comum vislumbrar a teoria do avestruz, haja vista a sua recente aceitação pelos tribu‐ nais tupiniquins. No entanto, por mais que esta tese esteja conso‐ lidada no modelo de justiça inglês e expressamente utilizada nas decisões judiciais norte-americanas, é importante objetivar a sua conduta no sistema de justiça brasileiro, a qual vêm aos poucos ganhando espaço e solidificando entre os tribunais do Brasil.
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 65 Em virtude da natureza dos julgados em que é plenamente visível a sua utilização, observa-se a aplicabilidade nos crimes em que envolvam a Lei N° 9.613/98, a qual trata da Lavagem de Capitais e outras disposições, assim, faz-se necessário esmiuçar o debate acerca da referida legislação. O CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS SOB A ÓTICA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA O crime de lavagem de dinheiro é um delito já tipificado e classi‐ ficado dogmática penal internacional, sendo penalizado na maioria dos países. Nesta esteira, Janeci Agosinho Barreto Ascari (2003, p. 215) destaca algumas nomenclaturas que são utilizadas em diversos ordenamentos jurídicos pelo mundo, são elas: money laundering; riciclaggio del denaro; blanchiment de l’argent; lavados de ativos; blanqueo de activos e lavado de dinero. No entanto, por mais que ocorra variadas nomenclaturas para a classificação deste fato típico, importa saber que todos desembocam na ocultação ou dissimulação da origem do dinheiro provido de uma ou mais atividades ilícitas penais antecedentes. Diante destas considerações iniciais, importa conceituar doutri‐ nariamente o crime de lavagem de capitais na dogmática penal internacional. Assim, nas palavras de Isidoro Blanco Cordero (2002, p. 93) o delito de branqueio de ativos pode ser classificado da seguinte forma: “el processo en virtude del cual los bienes de origen delictivo se integran en el sistema económico legal con aparência de aber sido obtenidos de forma lícita”. De fronte a esta definição, observa-se que o agente delituoso busca integrar ao sistema econômico valores ilícitos com aparência de lícitos, obje‐ tivando o lucro de uma ação criminosa anterior. Posto isto, ao se tratar o ilícito penal de “lavagem de dinheiro” no Brasil observa- se a sua expressão em legislação penal extravagante, a Lei N°
66 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO 9.613/98, com dois verbos nucleares da ação delituosa; “ocultar” e/ou “dissimular” a localização, origem, movimentação ou propri‐ edade de bens provenientes de ilícito penal. Destarte, embasado na conjectura internacional sobre o delito de branqueio de capitais, importa ressaltar que esse meio ilícito de obtenção de lucros é abertamente utilizada por organizações criminosas nacionais e transnacionais, as quais possuem o intuito de esconder a origem do dinheiro proveniente do tráfico de entorpecentes, tráfico de armas e assaltos a estabelecimentos bancários, dentre outros crimes que ocasionam em frondosos valores monetários. Diante disto, sabe-se que o delito de “lavagem de dinheiro” visa gerar diversas operações financeiras para ocasionar em uma aparência lícita do dinheiro e dos bens ali negociados, na intenção de que o agente utilizar-se-á do lucro de materiais oriundos do crime. Neste espectro, ainda sobre a conceituação doutrinária é importante trazer ao debate as palavras de Celson Sanchez Vilardi (2004, p. 11, 12), as quais conceituam o delito de branqueio de capitais da seguinte forma:
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 67 A lavagem de dinheiro é o processo no qual o criminoso busca introduzir um bem, direito ou valor oriundo de um dos crimes antecedentes na atividade econômica legal, com a aparência de licito (reciclagem). Este processo, em regra, é formado por três etapas distintas: a de ocultação, em que o criminoso se distancia do bem, direito ou valor da origem criminosa; a etapa da dissimulação, através da qual o objeto da lavagem assume aparência de licito, mediante algum tipo de fraude; e a etapa da reintegração: feita a dissimulação, o bem, o direito ou o valor reúne condições de ser reciclado, ou seja, reintegrado ao sistema, como se lícito fosse. Em continuidade aos conceitos expostos, observa-se que existe um esquema pré-definido para a feitura dos atos de “lavagem de dinheiro”, com a finalidade de usufruir dos bens, capitais e direitos adquiridos em infração penal anterior, salienta-se que não há um tipo especifico de crime antecedente, necessita-se apenas que o agente possua valores, pertences ou direitos para que sejam maquiados a sua origem. Neste contexto fático que traz o conceito doutrinário do delito de lavagem de capitais, faz-se necessário as especificações sobre o bem jurídico tutelado por esta legislação, tendo em vista a impor‐ tância da garantia da ordem jurídica sob determinado bem.Assim sendo, no âmbito da tutela do bem jurídico, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fábio de Almeida Delmanto (2006, p. 547-552) afirmam que existem cinco bens jurídicos tutelados no contexto do branqueamento de capitais, sendo eles: a ordem econômica e o sistema financeiro; a transparência e a integridade do sistema econômico-financeiro, a administração da justiça, e a eficácia da efeito da condenação pelo delito antecedente.
68 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Diante da afirmativa exposta acima, compreende-se que a ordem econômica através da lisura das transações financeiras e comer‐ ciais é o bem jurídico mais importante que a Lei N° 9.613/98 tutela no ordenamento jurídico brasileiro. Por conseguinte, de fronte aos bens jurídicos protegidos, é de extrema importância caracterizar o elemento subjetivo no delito de ocultar ou dissimular a origem, localização, disposição, movi‐ mentação ou propriedade de bens, direitos ou valores proveni‐ entes de infração penal antecedente, no intuito de analisar categoricamente a penalidade imposta ao agente executor da ação, bem como quais são suas responsabilidades sobre o fato criminoso. Considerações sobre o dolo direto e dolo eventual sob a ótica da lavagem de capitais Nesta situação, diante da teoria da cegueira deliberada e o crime de lavagem de capitais, é fundamental afirmar que a lei impõe uma penalidade a quem ocultar ou dissimular a origem do dinheiro proveniente de ação ilícita. Consequentemente, a lavagem de capitais na sua forma simplificada é expressa na Lei N° 9.613/98 com a seguinte redação e penalidade. In verbis: Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localiza‐ ção, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. (...) Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa.
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 69 Assim, diante da letra da lei é possível constatar que a pena pra quem praticar branqueio de capitais poderá chegar a dez anos de prisão, excluindo a penalidade do crime antecedente, caso seja comprovado a participação do agente, tendo em vista que não há necessidade que o indivíduo participe de infrações antecedentes e exclui-se também as causas de aumento de pena disposto na mesma legislação. Em continuidade com a exposição da legis‐ lação aqui debatida, é importante ressaltar que não há previsão legal de modalidade culposa no ilícito penal descrito na Lei N° 9.613/98. Dessa forma, consegue-se extrair que o elemento subjetivo prin‐ cipal para a caracterização do crime é o dolo direto, extinguindo- se a possibilidade jurídica da aplicação do instituto da culpa disposto no art. 18; inciso II do Código Penal Brasileiro. Nas palavras de Henrique Gustavo Badaró e Cruz Bottini Pierpaolo observa-se a exclusão da culpa no delito de lavagem de dinheiro. Vide: Ao contrário de outros países – como a Espanha, a Bélgica, a Irlanda, a Suécia e o Chile – o tipo penal não existe aqui na forma culposa – consciente ou inconsciente. Apenas o comportamento doloso é objeto de repressão, caracterizado como aquele no qual o agente tem ciência da existência dos elementos típicos e vontade de agir naquele sentido. Logo, não basta a constatação objetiva da ocultação ou dissimula‐ ção. É necessário demonstrar que o agente conhecia a proce‐ dência criminosa dos bens e agiu com consciência e vontade de encobri-los. (2016, p. 138)
70 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Neste espectro, a conceituação do dolo poderá ser vislumbrada na leitura do artigo 18; inciso I do CPB, como também é ampla‐ mente discutida sob o olhar da doutrina brasileira. Dessa forma, Juarez Tavares (1971, p. 110) caracteriza o dolo direto da seguinte forma: Diz-se que há dolo direto, quando a vontade de realização associa-se necessariamente à representação das circunstân‐ cias típicas como objetivo final de sua ação, meio para a consecução de outros objetivos ou como consequências acompanhantes ao fato. Outrossim, na mesma perspectiva da legislação extravagante é possível auferir que sob a aplicação do Ostrich Instructions é plena‐ mente capaz a apresentação e a verificação do dolo eventual no delito de lavagem de capitais. Neste sentido, necessita-se concei‐ tuar doutrinariamente este elemento subjetivo que poderá ser vinculado ao crime aqui debatido. Assim, Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (1997. apud. Sérgio Moro, 2010, p. 69) classificam o dolo eventual da seguinte forma: O dolo eventual, conceituado em termos correntes, é a conduta daquele que diz a si mesmo ‘que aguente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me importo’. Observe-se que aqui não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade. Diante dos conceitos jurídicos e doutrinários à respeito da classi‐ ficação do dolo direto e dolo eventual, vislumbra-se que de fronte
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 71 a definição do crime de lavagem de capitais esses são os dois elementos subjetivos aceitáveis na tipificação da conduta, seja o dolo direto na sua forma mais simplória e direta de aplicação ou o dolo eventual quando evocada a teoria do Willful Blindness ao caso em concreto em que o agente delitivo se portará com igno‐ rância ao delito, mas auferindo vantagens sobre a ação. Neste sentido, diante da teoria anglo-saxã a jurisprudência brasi‐ leira vem adotando teses em que o elemento subjetivo do delito da “lavagem de dinheiro” é o dolo eventual. Por conseguinte, far- se-á uma breve explanação sobre os julgados pronunciados no Brasil acerca da Teoria da Cegueira Deliberada e os delitos de lavagem de dinheiro, como forma de garantia processual, susten‐ tação de tese defensiva no processo criminal e enquadramento da teoria no ordenamento jurídico pátrio. A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA SOB ANÁLISE DO CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS NO BRASIL Em primeiro plano, custa salientar que a doutrina brasileira e os julgados não são simétricos a respeito da aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, em virtude de diversos fatores que permeiam o cenário jurídico. Assim sendo, é necessário analisar o elemento subjetivo do dolo eventual descrito para a caracteri‐ zação da construção da teoria aqui discutida, a fim de que se vislumbre a possibilidade de aplicação nas decisões brasileiras.‐ Neste sentido, o Brasil possui alguns poucos julgados em que concretizou a teoria em questão, mas que são de grande reper‐ cussão e valia para o estudo dos crimes de lavagem de capitais frente a teoria do avestruz. Portanto, é de suma importância observar a Ação Penal N° 470 do Supremo Tribunal Federal, mais conhecida como “O Mensa‐ lão”, e o caso em que indivíduos envolvidos no furto ao Banco
72 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Central em Fortaleza, no ano de 2005, utilizaram-se do dinheiro em espécie para comprar onze veículos em uma concessionária, esses são exemplos clássicos da utilização do Ostrich Instructions no ordenamento jurídico pátrio. Assim sendo, de fronte a estes casos jurídicos e como outrora já fora demonstrado, o agente necessita possuir a ignorância inten‐ cional sobre o fato criminoso ali cometido na intenção de anga‐ riar vantagens indevidas. Neste espectro, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Melo (2012), admitiu no informativo de N° 684 do STF a possibilidade jurídica de aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada. Vide: Ato contínuo, o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida (informativo 684 do STF). Por mais evidente notório que seja a constatação do Willful Blind‐ ness no cenário jurídico brasileiro, custa saber que esta não é uma posição unívoca dos julgados e da doutrina brasileira. À vista disto, é possível elencar uma decisão proferida no 4° Tribunal Regional Federal na Apelação Criminal N° 2002.71.00.036771- 1/RS, a qual disserta da seguinte forma: As condutas descritas no art. 1º, V, § 1º, II, da Lei nº 9.613/98 só possuem relevância penal se cometidas com dolo direto (genérico e específico), ou seja, com o objetivo
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 73 específico de ocultar e dissimular a origem de bens, direitos ou valores procedentes de determinado crime. Não se cogita de atuação imbuída de dolo eventual. Atipicidade que se reconhece por ausência de elemento subjetivo do tipo. No entanto, esta não se torna uma decisão generalizada e atri‐ buída a todos os julgados em que a teoria do avestruz é apresen‐ tada como narrativa fática. Neste sentido, sabe-se que a legislação sobre “lavagem de dinheiro” traz consigo o dolo direto, é impor‐ tante destacar que Sérgio Fernando Moro (2010, p. 69) defende a inclusão do elemento subjetivo do dolo eventual na caracterização do crime de “lavagem de dinheiro”, com o intuito de criminalizar as condutas praticadas por “lavadores profissionais”, adotando assim a Teoria da Cegueira Deliberada. De igual modo, constata-se que o judiciário do Brasil não se absteve de utilizar a Willful Blindness Doctrine nos julgados. Assim, observa-se a utilização da tese defendida por Sérgio Fernando Moro reconhecendo o dolo eventual no decorrer da Apelação Criminal de N° 2006.71.00.032684-2/RS. Vide:
74 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO (...) Segundo o magistério de Sérgio Fernando Moro (Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem. Lavagem de dinheiro - Comentários à lei pelos juízes das varas especiali‐ zadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 99-101), a \"igno‐ rância deliberada\" não se confunde com negligência, havendo aqui a mesma fronteira tênue, pelo menos do ponto de vista probatório, entre o dolo eventual e a culpa consci‐ ente. A willful blindness doctrine tem sido aceita pelas Cortes norte-americanas, quando há prova de: a) que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos eram provenientes de crime; b) que o agente agiu de modo indiferente a esse conhecimento. Além disso, de acordo com Sérgio Moro, tais construções, em uma ou outra forma, assemelham-se ao dolo eventual da legislação e doutrina brasileira. Por isso e consi‐ derando a previsão genérica do art. 18, I, do CP, e a falta de disposição legal específica na lei de lavagem contra a admissão do dolo eventual, podem elas ser trazidas para a nossa prática jurídica. São elas ainda especialmente valiosas nos casos já mencionados em que o agente do crime antece‐ dente não se confunde com o do crime de lavagem. Ainda nesta perspectiva, é visível o discurso sobre a Teoria da Cegueira Deliberada em outro processo criminal em trâmite no 4° Tribunal Regional Federal, a AC nº 5007069- 33.2016.4.04.7002/PR, que tem como relator o Desembargador João Pedro Gebran. In verbis:
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 75 A willful blindness doctrine tem sido aceita pelas Cortes norte- americanas para diversos crimes, não só para o transporte de subs‐ tâncias ou produtos ilícitos, mas igualmente para o crime de lavagem de dinheiro. Em regra, exige-se: a) que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que pratica ou participa de atividade criminal; b) que o agente agiu de modo indiferente a esse conhecimento; e c) que o agente tenha condições de aprofundar seu conhecimento acerca da natureza de sua atividade, mas delibe‐ radamente escolha permanecer ignorante a respeito de todos os fatos envolvidos. Por consequência, têm-se por certo que não há uma unicidade a respeito da temática anglo-saxã nos discursos judiciais brasilei‐ ros. Entretanto, sabe-se que este vem ganhando espaço em virtude da caracterização do crime de lavagem de capitais come‐ tidos de maneira profissional, a exemplo do envolvimento de doleiros na ocultação ou dissimulação de quantias angariadas com o crime. Neste espectro, diante dos julgados existentes e da Teoria da Cegueira Deliberada é plenamente possível culpabilizar os que agem com ignorância frente ao crime de Lavagem de Dinheiro, previsto na Lei N° 9.613/98, com o elemento subjetivo do dolo eventual, esses ignoram a origem do dinheiro e continuam aufe‐ rindo vantagens lucrativas em virtude de atos ilícitos cometidos anteriormente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após discorrer sobre a Teoria da Cegueira Deliberada e o crime de lavagem de dinheiro, constata-se que as ações delituosas vêm
76 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO tomando proporções mais organizadas e profissionalizantes, principalmente no que se refere a dissimulação ou ocultações de bens e valores das organizações criminosas nacionais e transnaci‐ onais, ocasionando na profissionalização do delito na intenção de auferir vantagem lucrativa frente a ato ilícito antecedente. Assim, diante da narrativa doutrinária e jurisprudencial discutida neste trabalho, é importante destacar que esse estudo possui o objetivo de esclarecer acerca da teoria do avestruz no ordena‐ mento jurídico brasileiro, desde os primórdios de seu surgimento na cultura anglo-saxã, bem como sua recepção no Brasil através da possibilidade de coadunar com o dolo eventual na Lei N° 9.613/98, legislação que criminaliza a conduta de “lavagem de dinheiro” e tutela a ordem econômica, a lisura das transações financeiras. Dessa forma, em consonância com a doutrina majoritária e os julgados brasileiros de grande relevância, a exemplo da Ação Penal N° 470 do STF e do caso envolvendo o furto ao Banco Central de Fortaleza com compra em uma concessionária de 11 veículos em dinheiro vivo, observa-se a receptividade do Willful Blindness nos estudos das ciências penais e nas decisões criminais brasileiras. Neste sentido, têm-se por condizente a receptividade desta teoria em decisões pátrias, bem como em amplos debates da dogmática penal nacional. Entretanto, para que ocorra a acei‐ tação da teoria do avestruz nas decisões de juízo criminal, a doutrina é categórica ao afirmar que o agente precisa possuir pressupostos na conduta criminal, são estes: ignorância quanto ao fato criminoso; fácil acesso aos dados prestados; vantagem lucrativa auferida para si ou terceiros. Em geral, observa-se esses como sendo os requisitos básicos para que se verifique a possibi‐ lidade da aplicabilidade do dolo eventual na conduta criminosa de lavagem de capitais, acatando assim o dolo eventual nos casos em tela. Ainda mais, afirma-se que este posicionamento doutri‐
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 77 nário poderá ser usado em tese defensiva ou acusatória, há de se analisar o caso em questão pra verificabilidade na aplicação favo‐ rável como estratégia da promotoria ou da advocacia.Por fim, para que se torne mais rica e difundida a Teoria da Cegueira Deliberada no cenário jurídico nacional, é importante a perma‐ nência do debate doutrinário e judicial acerca da tese em questão, no intuito de apresentar o dolo eventual na Lei de Lavagem de Capitais - tendo em vista que ainda existe o posicionamento doutrinário em que acata apenas o dolo direto – a fim de gerar uma responsabilização penal à indivíduos que praticam a conduta de maneira profissional, como preconiza o Ex-Juiz Federal do 4° Tribunal Regional Federal, Sérgio Fernando Moro. REFERÊNCIAS ASCARI, Janice Agostinho Barreto. Algumas notas sobre a lavagem de ativos. Revista brasileira de ciências criminais. Revista de Tribunais, São Paulo, n 45, p. 215-223, out/dez. 2003. BADARÓ, Henrique Gustavo; PIERPAOLO, Cruz Bottini. Lavagem de Dinheiro – Aspectos Penais e Processuais Penais. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Brasil. Decreto-Lei nº. 2848, de 07.12.1940. Código Penal. Disponível de < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto- Ley/del2848.htm> Acesso em: 20 de mar. de 2020 Brasil. Lei nº 9613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavado” ou ocultação de bens, direitos s e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm> Acesso em: 19 de mar. de 2020.
78 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Brasil. Lei nº 12683, de 9 de julho de 2012. Altera a Lei no 9.613, de 3 de março de 1998, para tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavado de dinheiro. Disponível em < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/ L12683.htm#art2 > Acesso em: 19 de mar. de 2020. BRAGA, Romulo Rhemo Pallitot. Lavagem de dinheiro: feno‐ menologia, bem jurídico protegido e aspectos penais relevan‐ tes. Curitiba: Juruá, 2013. BRASIL. Tribunal Regional Federal 4ª Região. Ac nº 2002.71.00.036771-1/RS. Porto Alegre, 08 out. 2008. BRASIL. Tribunal Regional Federal 4ª Região. Ac nº 2006.71.00.032684-2/RS. Brasil. Tribunal Regional da 4ª Região. AC 5007069- 33.2016.4.04.7002/PR5007069- 33.2016.4.04.7002/PR. BARROS, Marco Antônio de; SILVA, Thiago Minetti Apostólico. Lavagem de ativos: dolo direto e a inaplicabilidade da teoria da cegueira deliberada. Revista dos Tribunais, vol 957, ano 104. p. 203-256. São Paulo: RT, julho, 2015. p. 231. CORDERO, Isidoro Blanco. El delito de blanqueo de capitales. Navarra: Arazandi, 2002. DELAMANTO, Roberto. DELMANTO JÚNIOR, Roberto. DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. HUSAK, Douglas N.; CALLENDER, Craig A. “Willful Igno‐ rance, Knowledge, and the ‘Equal Culpability’ Thesis: a Study of the Deeper Significance of the Principle of Legality”, Winconsin Law Review, Madison, 1994.
ANÁLISE DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA FRENT… | 79 MORO, Sérgio Fernando. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010 RODRIGUES, Auro de Jesus. Metodologia científica: completo e essencial para a vida universitária. [s.l]: Avercamp, 2006. SANCHEZ, Bernardo Feijoo. La teoría de la ignorancia delibe‐ rada em derecho penal: uma peligrosa doctrina jurispruden‐ cial. InDret. Revista para el Análisis del Derecho, Barcelona, n. 3, jul. 2005 Supremo Tribunal Federal. Informativo N° 648 STF. Disponível em <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/ informativo648.htm> Acesso em: 22 de mar de 2020. TAVARES, Juarez. Espécies de dolo e outros elementos subje‐ tivos do tipo. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Paraná, v. 14, p. 107-119, 1971 VILARDI, Celso Sanchez. O crime de lavagem de dinheiro e o início de sua execução. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Revista de Tribunais. São Paulo, n 47, p. 11-30, mar/2004. ZAFFARONI, Enrique Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. São Paulo, RT, 1997. MORO, Sérgio Fernando. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, p. 69, 2010
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISLATIVO- JURISPRUDENCIAL EM RELAÇÃO AO IMÓVEL RURAL NO BRASIL PARA FINS TRIBUTÁRIOS E DE PARCELAMENTO DO SOLO MELINA DE FIGUEIREDO LOPES MAIA PIRES; ALINE DE FIGUEIREDO LOPES MAIA; CIRO LEITE PIRES INTRODUÇÃO EM DIVERSOS MOMENTOS HISTÓRICOS A RELAÇÃO ENTRE URBANO E rural tem sido discutida a partir de diferentes perspectivas e que resultam, consequentemente, no estabelecimento de distintos critérios para definir esses espaços. Entretanto, com o desenvol‐ vimento técnico-científico e o processo de globalização, essas diferenças espaciais têm sido, gradativamente, reduzidas, fortale‐ cendo a noção de um “novo rural”, sendo essa expressão utilizada para se referir ao cenário de desenvolvimento de atividades terciárias, como turismo e prestação de serviços nos espaços rurais. Apesar de haver uma maior indiferenciação entre o urbano e o rural na contemporaneidade, essa dicotomia persiste na área jurí‐ dica, especialmente para fins tributários e de parcelamento e uso do solo. Ainda que desde 2001, em razão do advento da Lei do Estatuto da Cidade, o planejamento local deva considerar a tota‐
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 81 lidade do território municipal, a questão agrária é uma compe‐ tência privativa da União, com pouca ou nenhuma ingerência estadual e local. Já a questão urbanística é uma competência comum, havendo sua execução sido tradicionalmente tratada no âmbito local. Portanto, a dicotomia entre a regulação do solo urbano e rural, na prática, persiste no Direito brasileiro, gerando diversos conflitos para o planejamento municipal. Nessa perspectiva, este artigo visa analisar se é possível haver uma intervenção municipal em imóveis rurais para fins tributá‐ rios e de parcelamento do solo baseado em aporte legislativo- jurisprudencial. Para tanto, a metodologia adotada foi a análise qualitativa, utilizando as técnicas de revisão bibliográfica e análise jurisprudencial. Ressalte-se que a temática abordada tem grande relevância prática e é inovadora em virtude da edição do novo marco de regularização fundiária urbana no país que ocorreu no ano de 2017. RESULTADOS E DISCUSSÕES: URBANO X RURAL A ideia de contraposição entre o urbano e o rural vem sendo superada por diversas razões que devem ser levadas em conside‐ ração. Segundo Endlich (2006), existem diferentes critérios de definição sobre o urbano e o rural a serem analisados comple‐ mentarmente, são eles: limites oficiais ou delimitação administra‐ tiva, delimitação de um patamar demográfico, densidade demográfica e ocupação econômica da população. O critério estabelecido a partir da delimitação administrativa remete à ideia de rural e urbano como adjetivos espaciais, pois se fundamenta nos limites estabelecidos oficialmente pelo Estado, sendo esta a concepção adotada pelo Brasil. De acordo com
82 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Fischer (2014), a definição do perímetro urbano é uma das competências local a partir da qual o Município delimita o seu espaço para o exercício do poder de polícia de controle do parce‐ lamento e uso do solo. Para essa definição, é utilizado o critério jurídico em consonância com o art. 3º do Decreto-Lei n. 311/1938. Ainda a respeito do critério administrativo, é interessante notar que, de acordo com as lições de Veiga (2004), em outros países, é comum a combinação entre critérios estruturais, como: número de habitantes ou densidade; e funcionais, a exemplo dos serviços indispensáveis aos cidadãos, sendo que o Brasil se distingue mundialmente por considerar como cidades locais tão precários, nos quais não há sequer escolas ou transporte coletivo. De acordo com Endlich (2006), as definições de caráter demográ‐ fico remetem à ideia de um urbano como aglomeração e o rural enquanto dispersão, entretanto, essa concepção mostra-se insufi‐ ciente para avaliar questões importantes, como, por exemplo: a riqueza ou a pobreza e o nível de educação dos habitantes. Atualmente, a vinculação à ocupação econômica se encontra superada, já que se fortalece o posicionamento de que diversas atividades vêm sendo desenvolvidas no campo, o que constitui o novo rural. Nesse sentido, Veiga (2004) destaca que, nos territó‐ rios rurais mais dinâmicos, predominam as atividades terciárias, principalmente serviços que geram fluxo de capital, a exemplo do turismo e da recreação. O Brasil tem passado por várias modificações socioeconômicas e em virtude dessas mudanças é que, de acordo com Endlich (2006), os critérios analisados se mostram insuficientes para contemplar as complexidades entre urbano e rural. Por esta razão, considera-se que a concepção de centralidade é aquela que se mostra mais adequada a esse novo contexto, pois não pres‐
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 83 supõe limites fixos entre urbano e rural: ou seja, o urbano pode se estender para além das cidades, se relacionando, diretamente, com o rural e, consequentemente, superando a ideia de comparti‐ mentação entre essas áreas A partir do ano de 2001, ocorreram alterações jurídicas no orde‐ namento na regulação dos espaços urbanos, afetando, consequen‐ temente a definição de rural. A primeira delas está contida no art. 39, § 2o da Lei nº 10.257/2001, determinando que “o plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo”. Contudo, tal determinação não superou a dicotomia entre o emprego do critério de urbano e rural na legislação brasileira. Em 2009 foi editada a Lei nº 11.952 que apresentou critérios que devem ser observados para a definição de área urbana. A aludida legislação dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, que estabelece que “são passíveis de regulari‐ zação fundiária as ocupações incidentes em terras públicas da União, [...] situadas em áreas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica”. Essas doações ocorreriam nas áreas previstas no perímetro indi‐ cado na Lei Municipal de Ordenamento Territorial Urbano (plano diretor, em lei municipal específica para a área ou áreas objeto de regularização ou em outra lei do município), sendo tal exigência dispensada, apenas, nos casos de áreas urbanas conso‐ lidadas. O Decreto nº 7.341/2010, que regulamentou as disposições acima, define no art. 2º, áreas urbanas consolidadas como aquelas que possuam: a) sistema viário implantado com vias de circulação pavimentadas ou não, que configuram a área urbana por meio de quadras e lotes; b) uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de instalações e edificações residenciais, comerci‐
84 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO ais, voltadas à prestação de serviços, industriais, institucionais ou mistas, bem como demais equipamentos públicos urbanos e comunitários. Assim, percebe-se que, além do tradicional critério administra‐ tivo, passou o ordenamento jurídico a considerar o elemento da destinação efetiva, isto é, a função urbana, independentemente da localização urbana ou rural para fins de regularização fundiária. Esse critério, no entanto, aplica-se, somente, aos municípios loca‐ lizados na Amazônia Legal. Além da supracitada legislação, a Lei nº 11.977/2009 dispunha sobre a regularização fundiária de assentamentos localizados em área urbana cabendo ao município a competência para executar esse procedimento. De acordo com ela a área urbana seria definida como “parcela do território, contínua ou não, incluída no perí‐ metro urbano pelo Plano Diretor ou por lei municipal específica” e área urbana consolidada como “parcela da área urbana com densidade demográfica superior a cinquenta habitantes por hectare e malha viária implantada e que tenha, no mínimo, dois dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implanta‐ dos: a) drenagem de águas pluviais urbana; b) esgotamento sanitá‐ rio; c) abastecimento de água potável; d) distribuição de energia elétrica; ou e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos”. Nessa lei, o uso do conceito de área urbana tinha finalidade de criar critérios objetivos para autorizar ou não a intervenção em áreas de preservação permanente situadas em núcleos urbanos contínuos ou descontínuos, assim definidos por legislação municipal. A Lei nº 12.651/2012, conhecida como Novo Código Florestal, incorporou a definição de área urbana estabelecida na Lei nº 11.977/2009, utilizando, cumulativamente, o critério demográ‐
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 85 fico e administrativo para autorizar a regularização fundiária de interesse social em áreas de preservação permanente, realização de obras habitacionais e de urbanização, não havendo qualquer inovação sobre a matéria. A Lei nº 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, alterou as disposições acima descritas, nos termos do art. 9º, § 1º, introduzindo uma nova definição de urbano para fins de regularização, que é a de núcleos urbanos informais. Segundo a mencionada lei, um núcleo urbano é definido como: Assentamento humano, com uso e características urbanas, constituído por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcelamento prevista na Lei nº 5.868, de 12 de dezembro de 1972, independentemente da proprie‐ dade do solo, ainda que situado em área qualificada ou inscrita como rural. Verifica-se que esta definição é aplicável mesmo aos imóveis localizados em área rural, ou seja, em áreas não previstas no plano diretor como urbanas, de expansão urbana ou de urbani‐ zação específica. Destaque-se que ficaram excluídas dessa lei os núcleos urbanos informais situados em áreas indispensáveis à segurança nacional ou de interesse da defesa, assim reconhecidas em decreto do Poder executivo federal. Nesse contexto, a única exigência é de que o espaço ocupado pelo núcleo urbano informal tenha área inferior à fração mínima de
86 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO parcelamento na região, sendo caracterizado pela legislação agrária como um minifúndio. Sendo assim, pode-se afirmar que a nova legislação abandona o critério administrativo para fins de regularização fundiária, considerando apenas a destinação efetiva da área ocupada para funções urbanas. Portanto, a prévia definição da área como urbana, tradicional no ordenamento jurídico brasileiro, foi supe‐ rada, sendo compatível com a noção de planejamento territorial municipal único, prevista no Estatuto da Cidade. Destaque-se que, no caso da Amazônia Legal, mesmo após as modificações ocorridas no ano de 2017, a regra da destinação permanece válida, apenas, para as áreas urbanas consolidadas. Contudo, o critério da destinação efetiva pode afetar tanto o planejamento das cidades, gerando descontrole da expansão da mancha urbana, como prejudicar a segurança alimentar do terri‐ tório, pois a conversão do solo rural em urbano é altamente rentável para fins de especulação imobiliária. Para limitar esse possível efeito adverso, essa regularização limita-se aos imóveis rurais classificados como minifúndios, ou seja, que perderam de fato sua capacidade produtiva. IMÓVEL AGRÁRIO: DEFINIÇÃO E REGRAS DE PARCELAMENTO A definição de imóvel rural foi unificada na legislação agrária e tributária, aplicando-se o critério da destinação efetiva. O conceito legal citado no art. 4º, inciso I do Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64), o define como o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à atividade agrária.
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 87 O conceito de rústico está ligado à noção de não edificado. No entanto, com o desenvolvimento técnico-científico, esse elemento deixa de ser uma característica essencial para a defi‐ nição ocorrendo predominantemente em meio rural. Nesse sentido, é esclarecedor o precedente do STJ sobre o tema, ao esta‐ belecer que “[o] critério para a aferição da natureza do imóvel, para sua classificação, se urbano ou rural, para fins de desapro‐ priação, leva em consideração não apenas sua localização geográ‐ fica, mas também a destinação do bem”1. Tal entendimento também é o que se depreende da leitura do art. 4º, I, do Estatuto da Terra, que deixa em segundo o plano o critério da localização para definir imóvel rural, colocando em evidência a forma de exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial. A expressão área contínua está ligada à continuidade econômica da atividade agrária, e não à mera continuidade física. Por essa razão, a existência de estrada, cerca ou rio, desde que não atra‐ palhe o exercício da atividade e a circulação, não descaracteriza o elemento da área contínua. Nesse sentido dispõe o Ato Declaratório n. 9/1998 da Secretaria da Receita Federal, que dispõe que: I – a expressão “área contínua” de que trata o § 2º do art. 1º da Lei 9.393, de 19.12.1996, tem o sentido de continuidade econômica, de utilidade econômica e de aproveitamento da propriedade rural; II – considera-se imóvel rural de área contínua a área do prédio rústico seja ela um todo único, indivisível, seja ela dividida fisica‐ mente por estrada, rodovia, ferrovia ou por um rio
88 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Cumpre observar que a possibilidade de descontinuidade não é, apenas, espacial, mas registral. O imóvel rural contínuo, assim, poderá ser constituído por uma ou mais propriedades rurais, inclusive de proprietários diferentes. Nesse sentido destacamos precedente do STF, que estabelece que “[a] existência de condo‐ mínio sobre o imóvel rural não impede a desapropriação-sanção do art. 184 da Constituição do Brasil, cujo alvo é o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”.2 A Lei n. 13.465/2017 conferiu maior autonomia ao Município para promover a regularização fundiária em áreas de expansão urbana e de urbanização específica. Com base nas novas regras de regularização fundiária, compete, exclusivamente, aos Municí‐ pios, que estejam situados os núcleos urbanos informais a serem regularizados, classificar a modalidade de regularização; processar análises, aprovar os projetos propostos e emitir a Certidão de Regularização Fundiária (CRF). A referida certidão de regularização fundiária substitui a exigência anterior do licenciamento urbanístico-ambiental inte‐ grado prevista na Lei n. 11.977/2009 no processo de aprovação dos projetos de regularização fundiária urbana. Esse ato, também, substitui os processos individuais de titulação da área regulari‐ zada, pois nela, também, está contida a listagem com nomes dos ocupantes que tenham adquirido a respectiva unidade por título de legitimação fundiária ou mediante ato único de registro. HIPÓTESES DE INCIDÊNCIA DO IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO Nos termos do art. 156, inciso I da Constituição Federal (CF), a incidência do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) é defi‐ nida pelo ente municipal e Distrito Federal sobre os imóveis loca‐ lizados na zona urbana. Para efeitos de incidência desse imposto,
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 89 o art. 32 da Lei n. 5.172/1966, o Código Tributário Nacional (CTN), dispõe que se entende por zona urbana aquela que for definida pela lei municipal, devendo existir concomitante nessa área pelo menos dois melhoramentos dentre os que estão elen‐ cados na legislação. As alíquotas desse imposto progridem de acordo com o valor da propriedade que varia em razão da locali‐ zação e do uso do imóvel, conforme o art. 4º, inciso II, da CF. Por outro lado, a cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial (ITR) é competência da União, e, conforme o art. 153, §4º, inciso III da CF, incide com base de cálculo, apenas, sobre o valor da terra nua, considerando toda a extensão do lote e o seu grau de utilização, conforme a incidência de alíquotas aplicadas progressivamente, como determina o art. 11 da Lei n. 9.393/1996, a qual depende diretamente da relação entre a extensão da propriedade e o seu grau de utilização, sendo este um ponto importante para a análise deste imposto, em virtude da questão central sobre a destinação agrária desses imóveis. De acordo com Trentini (2017), com relação à doutrina agrária, o imóvel será compreendido como agrário independentemente de sua localização, sendo considerada principalmente a sua destina‐ ção. O Estatuto da Terra, também, é taxativo quanto a esse ponto em seu art. 4º, inciso I, ao dispor que será considerado imóvel rural qualquer que seja a sua localização, desde que se destine às atividades dispostas no art. 15 do Decreto-Lei n. 57/1966. Sendo assim, quanto maior for a propriedade, tendo em vista a classificação constitucional; e menor for o grau de utilização, previsto pela legislação infraconstitucional, maior será a alíquota incidente sobre o ITR. Depreende-se que existe um esforço legis‐ lativo para desestimular as propriedades improdutivas. A partir da presente discussão, vislumbra-se uma dissonância existente entre o critério da localização para incidência tributária
90 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO decorrente do CTN e as disposições da legislação agrária que considera o critério da destinação do imóvel. Logo, por esta razão, são verificados determinados problemas quanto à tribu‐ tação dos imóveis agrários localizados em áreas urbanas. Diante da complexidade que envolve o imóvel agrário localizado em área urbana, seja em matéria de Direito Agrário ou Direito Tributário é importante buscar verificar qual tem sido, atual‐ mente, o entendimento jurisprudencial sobre esta temática. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se manifestado no sentido de que o critério da localização do imóvel não é sufici‐ ente para que se decida sobre a incidência do IPTU ou ITR, sendo necessário observar-se também a destinação econômica. No ano de 2004, o STJ3, se manifestou a respeito da matéria, assentando o entendimento de que ao dispor a respeito do IPTU, o legislador optou, a prima facie, pela adoção do critério da locali‐ zação do imóvel em área urbana, mas, ainda assim, o Tribunal assevera que no caso do ITR, este não incide somente nos imóveis localizados em área rural, podendo também recair sobre aqueles que se encontram em zona urbana quando se voltam à atividade agrária. A decisão esclarece, ainda, que essa fundamen‐ tação se encontra em consonância com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF)4. Assim tem se posicionado diversos tribunais do país em relação a este tema, senão vejamos:
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 91 APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS À EXECUÇÃO – IMÓVEL EM ÁREA URBANA – DESTINAÇÃO RURAL – NÃO – INCIDÊNCIA DO IPTU – ACOLHIMENTO – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. Na hipótese deve ser mantida a sentença quanto ao reconhecimento de que o imóvel possui destinação rural e por isso é nula a cobrança de IPTU. (TJ-MS - AC: 08034821420178120002 MS 0803482-14.2017.8.12.0002, Relator: Des. João Maria Lós, Data de Julgamento: 14/10/2019, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 17/10/2019) DIREITO TRIBUTÁRIO. IMÓVEL NA ÁREA URBANA. DESTINAÇÃO RURAL. NÃO INCIDÊNCIA DE IPTU. INCIDÊNCIA DE ITR. DL 57/1966. ART. 543-C DO CPC/1973. REMESSA OFICIAL DESPROVIDA. 1. Não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do Município, desde que comprovadamente utilizado em atividade rural. 2. Remessa oficial desprovida. (TRF-3 - REOMS: 00021430820164036102 SP, Relator: DESEM‐ BARGADOR FEDERAL CARLOS MUTA, Data de Julga‐ mento: 06/09/2017, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:13/09/2017)
92 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO APELAÇÃO CÍVEL / REEXAME NECESSÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS DE DEVEDOR. IPTU. ÁREA URBANA COM DESTINAÇÃO RURAL. NÃO INCI‐ DÊNCIA DO IPTU. O princípio da prevalência da desti‐ nação econômica sobre a localização foi estabelecido pelo Decreto-Lei n. 57/66, restringindo a incidência do art. 32 do CTN. A prova produzida na instrução revela a utilização de área rural, com exploração econômica. Não incidência do IPTU. Apelo desprovido. Sentença confirmada em reexame necessário. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70057428518, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Julgado em 18/12/2013) (TJ-RS - REEX: 70057428518 RS, Relator: Marco Aurélio Heinz, Data de Julgamento: 18/12/2013, Vigésima Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 20/01/2014) Cumpre salientar que, em decisão5 do TRF da 5ª Região no ano de 2011, além de manter o posicionamento dominante na juris‐ prudência que considera o critério topográfico em conjunto com a destinação do imóvel, o aludido tribunal destacou que compete ao ente municipal delimitar a zona urbana por meio do Plano Diretor Municipal que é um importante instrumento da política urbana e, por consequência, do ordenamento territorial. Esse instrumento se encontra previsto tanto no plano constitucional, por meio do art. 182, §1º, da Constituição Federal; quanto na legislação infraconstitucional, como é o caso da Lei n. 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade, que regula‐ menta os arts. 182 e 183 da Constituição96, estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana.
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 93 Com base nas decisões analisadas acerca do imóvel agrário locali‐ zado em área urbana, uma realidade que se intensifica em razão da globalização, pode-se afirmar que, do ponto de vista do STF, STJ e dos TRFs, esses imóveis devem ser submetidos ao regime jurídico de tributação do ITR, uma vez que, em conjunto com o critério topográfico, se analisa o critério da destinação do imóvel referente às atividades de exploração agrícola, pastoril, extrativa vegetal ou agroindustrial, atentando-se, também, às devidas regu‐ lamentações do regime de parcelamento de uso do solo rural. Ademais, é possível afirmar que em caso de conflito entre o regime de tributação municipal e federal, prevalecerá o regime da propriedade rural, independentemente se localizado em área urbana, de expansão urbana ou de urbanização específica. Na prática, a existência desses imóveis rurais em áreas que o muni‐ cípio deseje influenciar no parcelamento do solo causa grandes empecilhos para o Poder Público Municipal, uma vez que não há no ordenamento jurídico instrumento que permitisse ao ente local forçar a conversão de imóvel rural em urbano. A única menção que a Lei nº 13.465/2017 faz à questão tributária está ligada à impossibilidade do cartorário obstar o registro da regularização fundiária nos casos de falta da comprovação do pagamento de tributos ou penalidades tributárias (art. 13, § 2º, e 44, § 3º) A falta de instrumentos preventivos de controle do uso do solo de imóveis rurais, mesmo quando localizados em zonas urbanas definidas em lei municipal, faz com que a pressão pelo uso da terra gere ocupações e conflitos fundiários urbanos. Nesses casos restará apenas aos Municípios convalidar situações de ocupações consumadas, sem a possibilidade de planejar o uso do solo por meio da aplicação do princípio da destinação efetiva assegurado pelo novo marco legal. No entanto, ainda que tal modificação
94 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO legislativa tenha dado maior autonomia aos municípios em garantir o direito à moradia da população, tal medida não contribui para o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, considerado um princípio da política urbana brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei nº 13.465/2017 introduziu a aplicação do princípio da destinação efetiva para fins de regularização fundiária urbana, bem como adotou uma nova terminologia: o núcleo urbano. Essa nova definição permite a intervenção do município mesmo nos imóveis localizados em área rural, ou seja, em áreas não previstas no plano diretor como urbanas, de expansão urbana ou de urba‐ nização específica. A única exigência é de que a área ocupada seja inferior à fração mínima de parcelamento na região. Essa abor‐ dagem é compatível com a noção de planejamento territorial municipal único, prevista no Estatuto da Cidade. Contudo, o critério da destinação efetiva pode afetar tanto o planejamento das cidades, gerando descontrole da expansão da mancha urbana, como prejudicar a segurança alimentar do terri‐ tório, pois a conversão do solo rural em urbano é altamente rentável para fins de especulação imobiliária. Para tentar limitar esse efeito, a autonomia do município para desafetar o solo rural está limitada aos casos em que a área perdeu sua capacidade produtiva. Quanto ao aspecto tributário, a partir da análise jurisprudencial, pode-se concluir que em caso de conflito entre o regime de tribu‐ tação municipal e federal, prevalecerá o regime da propriedade rural, independentemente se localizado em área urbana, de expansão urbana ou de urbanização específica. Os principais instrumentos disponíveis para esse fim na Constituição de 1988 e na Lei Federal nº 10.257/2001, que são o parcelamento compul‐
ANÁLISE SOBRE O ENTENDIMENTO LEGISL ATIVO-JURIS… | 95 sório, a tributação progressiva e a desapropriação por descum‐ primento da função social da propriedade urbana não são inaplicáveis a esses imóveis, independentemente de sua localiza‐ ção, uma vez que prevalece o princípio da destinação agrária sobre o princípio da localização do IPTU. A Lei nº 13.465/17, nesse ponto, não trouxe uma solução para a questão. REFERÊNCIAS BAGLI, Priscila. Rural e urbano: harmonia e conflito na cadência da contradição. In: SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão & WHITACKER, Arthur Magon (Orgs). Cidade e campo. São Paulo: Expressão Popular, p. 81-109, 2006. BRASIL. Decreto-Lei n. 311, de 2 de março de 1938. Dispõe sobre a divisão territorial do país. Disponível em: <http:// www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei- 311-2-marco-1938-351501-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 01 ago 2020. ENDLICH, Ângela Maria. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; WHITACKER, Arthur Magon (Orgs.). Cidade e campo. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 11-31. ENDLICH, Ângela Maria. Perspectivas sobre o urbano e o rural. In: SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; WHITAC‐ KER,Arthur Magon. (Org.). Cidade e campo: relações e contradi‐ ções entre rural e urbano. São Paulo: Expressão Popular, 2006. p. 13. FISCHER, Luly Rodrigues da Cunha. Ordenamento territorial e planejamento municipal: estudo de caso das limitações supra‐ locais à aplicação do art. 30, VIII da Constituição de 1988 pelo município de Parauapebas, Pará. 2014. Tese (Doutorado em
96 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Direito) - Instituto de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2014. p. 145-148. TRENTINI, Flavia. Teoria do direito agrário contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012. p. 26. VEIGA, José Eli da. Nem tudo é urbano. Cienc. Cult., São Paulo, v. 56, n. 2, p. 26-29, Apr. 2004. Disponível em: <http:// cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009- 67252004000200016. >Acesso em: 01 ago 2020.
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA À LUZ DA CONCEPÇÃO SIGNIFICATIVA DA AÇÃO RHAYSSAM POUBEL DE ALENCAR ARRAES CONSIDERAÇÕES INICIAIS O PRESENTE ARTIGO TEM POR OBJETIVO ANALISAR ALGUNS ASPECTOS atinentes à possibilidade de uma pessoa jurídica cometer uma conduta criminosa. Parte-se da premissa de que a linguagem ordinária deve ser a principal baliza interpretativa para tais condutas. Longe de esgotar o tema, pretende-se lançar as bases para discussões futuras sobre essa temática, trazendo uma pers‐ pectiva cujo debate se faz necessário no âmbito da responsabili‐ zação penal das pessoas jurídicas. É investigado se a pessoa jurídica possui capacidade de ação, a partir do principal referencial teórico utilizado: a Concepção Significativa da Ação, criada pelo professor espanhol Tomás Salvador Vives Antón. É necessário, portanto, tecer breves consi‐ derações sobre essa teoria e a forma pela qual ela rompe com o paradigma de uma ação ontológica em Direito Penal para uma ação interpretada pelo seu sentido sociolinguístico, desse modo permitindo que uma empresa cometa uma conduta criminosa.
98 | DIREITO, ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO Em seguida, torna-se premente analisar, à luz da concepção significativa da ação, como a filosofia da linguagem, principal‐ mente pelos trabalhos desenvolvidos pelo filósofo Ludwig Witt‐ genstein, concebe quais condutas criminosas uma pessoa jurídica pode cometer e a sua relação com o uso da linguagem. Também se torna vital, neste trabalho, a compressão do conceito de tipo de ação, dado o abandono do supra conceito de ação para melhor investigar-se quais tipos de ação seriam vedados às pessoas jurídicas. Igualmente investiga-se brevemente a relação entre ação e tipo, proposta por Vives, tendo como pano de fundo o princípio da legalidade, com sede constitucional, o qual se apresenta como fator um restritivo de interpretação das possibilidades de impu‐ tação. Observa-se também que o Direito deve atuar em conso‐ nância com os usos linguísticos da comunidade a qual ele pretende regular. Longe de uma abstração meramente formal, as leis penais devem recepcionar os significados criados pelos múltiplos jogos de linguagem de uma sociedade, tornando o Direito assim mais próximo da realidade social na qual se insere. No nosso mundo globalizado e permeado pela microcriminali‐ dade, debater caminhos para a responsabilização penal da pessoa jurídica se torna premente ao vermos que estas estão diretamente ligadas a graves ameaças a bens jurídicos, a exemplo dos desastres de Mariana/ MG e Brumadinho/MG. Para atingir os objetivos mencionados anteriormente foram utili‐ zados, como metodologia de pesquisa, os métodos dedutivo e comparativo1. O método dedutivo se deu através de extensa pesquisa bibliográfica sobre a Concepção Significativa da ação de Tomás Salvador Vives Antón e a sua direta relação com a proble‐ mática da capacidade de ação da pessoa moral e a sua conse‐ quente responsabilização penal. A segunda metodologia, a
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