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Linguagens em perspectiva

Published by Papel da palavra, 2021-11-03 13:09:40

Description: Linguagens em perspectiva

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LIMA, I.L.B. A linguagem multimodal da criança com síndrome de Down em contexto clínico.135f. Dissertação (Mestrado em Linguística) Programa de Pós-graduação em Línguística, UFPB, João Pessoa, 2016. LIMA, K.A. Estudo comparativo do uso do apontar e sua relação com a produção vocal infantil, em cenas de atenção conjunta. 99 f. Dissertação Mestrado- Programa de Pós-graduação em Linguística – Universidade Federal da Paraíba. 2014. ________. DELGADO, I. C.; CAVALCANTE, M. C. B. Language develo- pment in Down syndrome: literature analysis. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 354- 364, 2017. MELO, E.M. Gestos emblemáticos produzidos por duas crianças com Sín- drome de Down na terapia fonoaudiologica.135f. Dissertação de Mestrado em Linguística- Programa de Pós-graduação em Linguística, UFPB, João Pessoa, 2017. MELO, G.M.L.S. Cenas de atenção conjunta entre professoras e crianças em processo de aquisição de linguagem. 274f. Tese-Doutorado em Línguística, João Pessoa: PROLING/UFPB, 2015. MCNEILL, D.; CASSELL, J; LEVY, E.T. Abstract deixis. In: Semiótica, v. 95, n.1. p. 5-19 Berlin: Walter de Gruyter, 1993. _______. So you think gestures are nonverbal?. Psychological Review. v 92, n.3, p.350-371, Jul., 1985. ___________. Introduction. In: MCNEILL, D. (ed.) Language and Gesture. Cambrige University Press, Cambridge, UK, 2000. MUSTACCHI, Z. Guia do bebê com Síndrome de Down. São Paulo, 2009. PATEIRO, A. R. A. B. 120 f. A linguagem na criança com síndrome de DownDissertação de Mestrado). Universidade Portucalense, Portugal,2013. PORTO-CUNHA, E.; LIMONGI, S.C.O. Modo comunicativo utilizado por crianças com síndrome de Down. Pró-Fono Revista de Atualização Científica, Barueri (SP), v.20, n.4, p. 243-8, 2008. 149

STRAY-GUNDERSEN, K. Crianças com síndrome de down: guia para pais e educadores; tradução: Maria Regina Lucena Borges-Osório. Porto Alegre, RS: Artmed, 2007. TOMASELLO, M. Um enigma e uma hipótese. Origens culturais da aqui- sição do conhecimento humano. São Paulo,2003. VEZALI, P. O corpo e as considerações acerca da relação gesto e fala. ILINX- -Revista do Lume, São Paulo, v.2, n.1, 2012. 150

RTEPÉSACDPNNEODINHCESIAMSÁSTIVAÓDEREDIISECADOSCNUOPRTVAAAIRDÇNA-ÃT1OE9A Arilane Florentino Félix de Azevêdo Universidade Federal da Paraíba/PPGE – João Pessoa/PB [email protected] Edito Romão da Silva Júnior Professor da Rede Estadual de Ensino – João Pessoa/PB [email protected]

Em virtude da pandemia causada pelo novo coronavírus, as escolas se viram obrigadas, por medida de segurança, a transferir suas atividades para o espaço virtual. Por sua vez, os responsáveis por milhares de crianças passaram a ter a função de agirem efetivamente para educação for- mal dos seus filhos ou tutorados. Diante desse fato, o presente artigo aponta como objetivo geral instrumentalizar pais ou responsáveis para realização de contação de histórias. Utilizou-se como referencial teórico Abramovich (1997) para demonstrar a importância desse gênero textual na formação leitora e Brasil (2018) a fim de ratificar a contação como um gênero que pertence às práticas escolares. Na metodologia, utilizou-se as sequências didáticas sugeridas por Dolz e Schneuwly (2011), a fim de sistematizar as etapas de aplicação da pesquisa, além de orientações para contação de histórias, com base nos pressupostos expressos por Matos e Sorsy (2005). Pode-se afirmar que as atividades apresentaram resultados significativos, uma vez que pro- moveram uma maior integração entre os familiares, trabalharam o lúdico, entretiveram e geraram reflexões sobre gênero e raça, visto que, a atividade final culminou na contação do livro Dandara e a princesa perdida, de Maíra Suertegaray, que traz como temáticas questões de gênero e de raça. Palavras-chave: Leitura. Gêneros textuais orais. Contação de histórias. 152

COMENTÁRIOS INICIAIS A pandemia causada pelo novo coronavírus fez com que diversos estabe- lecimentos fechassem as portas de seus ambientes físicos e passassem a atender virtualmente, algo jamais visto, na história recente da humanidade. As escolas também atravessaram esse processo, fazendo com que os alunos permanecessem o dia inteiro em casa. Como grande parte da população encontra-se em trabalho remoto, houve uma enorme aproximação entre família, escola e alunos. Os pais/ responsáveis tiveram a possibilidade de acompanhar de perto a rotina escolar dos filhos/tutorados e em virtude da distância física das instituições de ensino, tiveram de auxiliar nas aulas, muitas vezes, sem formação alguma para isso. A fusão do ambiente doméstico em local de trabalho e sala de aula trans- formou a vida de muitos em uma tremenda confusão. Sendo a assistência com as atividades escolares a campeã de reclamações. Diante dos fatos elencados, como também na condição de pais, percebemos a necessidade de desenvolver atividades escolares que pudessem ser realizadas coletivamente e que não pa- recessem um fardo para os envolvidos. Assim, objetivo geral da presente pesquisa foi instrumentalizar os pais/ responsáveis com técnicas de contação de histórias para serem realizadas com os filhos, como objetivos específicos promover uma maior integração da família, contribuir no desenvolvimento cognitivo, criativo e emocional das crianças, como também despertar a reflexão sobre gênero e raça, questões latentes em nosso país, mas ainda pouco trabalhadas no ambiente escolar. Sob a ótica de Abramovich (1997), falamos sobre a origem e a relevância das narrativas orais para cultura da humanidade e como a contação de histórias contribui para a formação leitora das crianças, pois é a partir das audições que elas despertam o interesse por outras narrativas e encontram as fontes escritas. Norteamos a metodologia do presente trabalho com base no modelo de sequência didática sugerido por Dolz e Schneuwly (2011), divididas em: situação inicial, na qual apresentamos um formulário para observação sobre os conhecimentos de que os participantes dispunham acerca do gênero contação de histórias. Contação inicial, os pais/responsáveis contaram livremente uma história e, posteriormente, fizeram um relato sobre a experiência, sobre a narra- 153

tiva escolhida e sobre o local selecionado para esta primeira narração. Antes da produção final, introduzimos as questões de gênero e raça, apresentamos o livro da contação final Dandara e a princesa perdida, de Maíra Suertegaray. Por fim, os pais/responsáveis e os alunos fizeram uma avaliação e relataram a experiência de participar de uma atividade orientada, centrada na relação familiar, tendo a educação formal como mediadora. Os resultados obtidos foram satisfatórios,pois conforme demonstrado nos relatos dos pais, a sequência didática promoveu uma maior integração entre os membros da família em um momento de dificuldade emocional, desenvolveu o trabalho em grupo, resgatou as brincadeiras cooperativas lúdicas, além de gerar reflexões sobre gênero e raça. ORIGENS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIA Não faz muito tempo, até aproximadamente os anos 2000, nas pequenas cidades do Brasil,era muito comum haver pequenos apagões.Quando isso ocorria, à noite, as pessoas saíam de suas casas, sentavam nas calçadas em comunhão com os vizinhos para conversar, olhar as estrelas e contar uma infinidade de histórias que variavam desde engraçadas à histórias de terror, propiciadas pelos momentos de escuridão, mediadas pela luz de uma vela ou até mesmo um candeeiro. Apesar de relembrarmos um fato relativamente recente, as contações de histórias fazem parte da cultura desde os tempos mais remotos. Eram inicial- mente narrativas orais transmitidas de geração a geração que, pela fluidez da linguagem oral, eram constantemente recriadas para atender uma necessidade social ou estilística do contador. De acordo com Patrini (2005), O conto oral é uma das mais antigas formas de expressão. E a voz constitui o mais antigo meio de transmissão. Graças à voz, o conto é difundido no mundo inteiro,preenche diferentes funções,dando conselhos,estabelecendo normas e valores, atentando os desejos sonhados e imaginados, levando às regiões mais longínquas a sabedoria dos homens experimentados. (PATRINI, 2005, P. 118) 154

O contador, por sua vez, deveria dispor da habilidade de conseguir por meio da linguagem verbal e corporal selar um contrato de verossimilhança, além de despertar todos os sentidos do seu ouvinte. Para tal façanha, as narrativas deveriam ser carregadas de emoção e repletas de elementos sensoriais, como gestos, ritmo, entonação, expressão facial, silêncios. Esses recursos garantem uma interação direta com o público, mas exigem a capacidade de improvisação e interpretação de quem conta a história. Diante dessas habilidades, vale salientar que contar uma história e ler uma história são atividades diferentes, uma vez que o contador atua na recriação de um fato em interação com seu auditório, assim é possível que aconteçam alterações de uma história de acordo com as intervenções geradas pelo público. Por outro lado, na leitura de uma história, deve-se respeitar a estrutura da nar- rativa, a sequência dos acontecimentos e não há alteração dos fatos mediante a interação dos ouvintes. A contação de histórias é a porta de entrada para que a criança adquira o gosto pela leitura. Além disso, por meio do lúdico, auxilia no desenvolvimento cognitivo, no desenvolvimento oral, conscientiza através de seu caráter mora- lizador e propicia a sociabilidade tanto no ambiente familiar quanto escolar, conforme demonstraremos na metodologia do presente artigo. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018) considera de suma importância o trabalho com diversos gêneros da oralidade, a fim de despertar a autonomia, o gosto pela leitura, a fluência, a criticidade e a percepção dos elementos da narrativa. Abramovich (1997, p.16) afirma [...] como é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias... escutá-las é o início da aprendizagem para ser leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo [...]. São notórios os benefícios da contação de história para o desenvolvimento das crianças, no entanto o Brasil enfrenta algumas dificuldades para que esse gênero textual da oralidade seja efetivamente introduzido na vida dos infantes. Dentre eles, podemos citar a falta de acompanhamento dos responsáveis no 155

que diz respeito à contação ou leitura de narrativas em casa; as redes sociais digitais; os jogos eletrônicos; a falta de livros em casa e a falta de metodologias nas escolas que privilegiem as etapas da oralidade, da leitura e da escrita. Não só a BNCC apresenta propostas para o trabalho com a oralidade, como em dezembro de 2019, o Ministério da Educação lançou o projeto Conta Pra Mim, disciplinado pela portaria de número 421, de 2020, para integrar a Política Nacional de Alfabetização (PNA). O programa tem como objetivo a literacia familiar, ou seja, o desenvolvimento de práticas relacionadas à oralidade, à leitura e à escrita exercitadas em casa com os responsáveis de forma simples e divertida. Assim, por meio da interação verbal, da leitura dialogada, da con- tação de histórias e contato com a escrita em situações cotidianas, o programa sugere um conjunto de estratégias para aumentar a quantidade e a qualidade dos diálogos para que haja um maior desenvolvimento linguístico dos infantes. Desde seu lançamento, o programa enfrenta algumas dificuldades, uma delas causada pela alteração que o governo realizou em algumas histórias infantis e provocou protesto entre os autores que acusaram o governo de censura.Além disso, houve a saída do ministro idealizador do Conta Pra Mim e a falta de uma campa- nha publicitária que tornasse o programa conhecido para a maioria da população. Observamos que é crucial o acompanhamento dos responsáveis, para que haja um maior desenvolvimento das crianças.Tal fato ficou ainda mais evidente com a pandemia, ocorrida em virtude do novo coronavírus. As escolas fecharam e os responsáveis pelas crianças se encontraram com as demandas de gerenciar as atividades domésticas, o trabalho e os/as filhos/as, ou seja, trabalho, escola e família fundiram-se em um ambiente. Os relatos sobre a dificuldade de orientar os/as filhos/as nas atividades escolares passaram a ser frequentes. Em virtude disso, como também na condição de pais, resolvemos contribuir com técnicas de contação de histórias para que os/as responsáveis pudessem, por meio de uma sequência didática, realizar contações de histórias que possibilitassem uma maior integração entre os familiares, trabalhasse o lúdico, entretivesse e ainda gerasse uma reflexão sobre gênero e raça. A contação de história sugerida por nós para os/as responsáveis foi o livro Dandara e a princesa perdida, de Maíra Suertegaray, que traz como temáticas aspectos relacionados ao gênero e à raça, conforme será descrito na aplicação da sequência didática do presente artigo. 156

APLICAÇÃO DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA No que concerne às atividades, estas foram realizadas com base nas sequências didáticas recomendadas por Dolz e Schneuwly (2011), sugerimos aos responsáveis um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno do gênero textual/discursivo contação de histórias. A seguir apresentamos o modelo de sequência didática sugerido por Dolz e Schneuwly (2011, p 83), adotado por nós com algumas adaptações na elaboração das atividades propostas, na presente pesquisa: Figura 1 - Sequência Didática Fonte: Dolz e Schneuwly (2011, P. 83) Sendo assim, ela foi composta das seguintes etapas: Apresentação da situação; Contação inicial; A questão racial nas contações de história: Dandara e a princesa perdida e Produção final. Para a aplicação da SD tivemos três en- contros on-line, através da plataforma Google Meet, que ocorreram no período de 24 de setembro à 8 de outubro de 2020. Os encontros foram realizados com os/as responsáveis das crianças, com as professoras das turmas do Infantil V, dos turnos manhã e tarde e com a es- tagiária[10] do turno da manhã de uma escola pública da rede federal, localizada na cidade de João Pessoa/PB. 10   E sta profissional é estudante do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Paraíba, aprovada em um processo de seleção aberto pelo Centro de Educação que consta das etapas de inscrição, entrevista e a nota do Coeficiente de Rendimento Acadêmico (CRA), ou seja, apesar de ainda está em formação é uma pessoa que acompanha e contribui nos processos de ensino-aprendizagem das crianças. 157

As duas turmas juntas apresentam um quantitativo de 30 crianças, mas participaram do encontro on-line 13 responsáveis, incluindo a professora do turno da tarde que também era mãe de uma das crianças. Não estamos conta- bilizando a professora e a estagiária do turno da manhã[11], apesar delas estarem em todos os encontros, mas como elas não desenvolveram as atividades com as crianças, optamos por não considerá-las sujeitos da pesquisa. Nossa pesquisa fez parte do “Circuito Literário em Movimento”, projeto desenvolvido pela escola no período da pandemia, causada pelo novo coronaví- rus. Então, incluímos como programação do evento, possibilitando um maior acesso aos familiares, pois eles já estavam acompanhando as crianças na atividade desenvolvida pela escola e, logo após o término da atividade, as crianças saiam da sala e os/as responsáveis permaneciam para o processo de pesquisa. APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO Este primeiro encontro teve a duração de vinte minutos. Conforme já afirmado anteriormente, a reunião ocorreu através da plataforma Google Meet e contou com a presença de 13 participantes. Para este momento selecionamos como objetivo a apresentação da estrutura da pesquisa: calendário de encontros, termo de consentimento livre e esclarecido, matéria do governo federal sobre a importância da leitura por adultos para as crianças e formulário de apresentação da situação. O formulário foi disponibilizado através do link gerado pelo Google Formulários. Neste primeiro instrumento, foram abordadas seis questões: você já tinha ouvido falar sobre contação de histórias? Você já havia participado de alguma contação? Só como ouvinte ou como ouvinte e como contador (a)? Qual história escolhida? Em qual local da casa você fez a contação e por que esse local? Relate como foi a experiência. Para primeira pergunta, você já tinha ouvido falar sobre contação de histórias?, todos/as os/as participantes responderam que sim. Para a segunda pergunta,Você já havia participado de alguma contação?,tivemos um/a responsável 11   E ssa informação é para constar que mesmo estando presente, nos encontros, elas não estarão inclusas no número de participantes. 158

que nunca participou de nenhum momento de contação de histórias, seja como ouvinte ou como contador/a[12]. Para a terceira pergunta, só como ouvinte ou como ouvinte e como contador(a)?, apenas 5 responderam que participaram nas duas situações, como ouvinte e como contador. A partir do formulário, percebemos que existe uma participação impor- tante dos/as responsáveis na prática de contação de história para suas crianças, cabe também inferir, por meio da leitura das respostas, que 7 dos/as partici- pantes podem não ter compreendido que alguma prática de leitura com suas crianças estivesse inserida em um processo de contação de história, ampliando o percentual de “contador(a)”. Isso fica evidente, pois mesmo os/as que respon- deram terem participado apenas como ouvintes, continuaram respondendo as próximas perguntas, tanto a pergunta “qual história escolhida”, quanto para “o local da casa selecionado para a contação”, por fim, ainda fizeram o relato de como foi a experiência. Ainda sobre o formulário de apresentação da situação, outro dado impor- tante foi o local em que acontecia a contação da história. Só um/a participante indicou um local diferente do quarto. Inferimos com as respostas dadas que os/ as responsáveis elegem como momento de contação de história o horário de colocar as crianças para dormir. Por isso, elas já devem estar deitadas na cama. Consequentemente, acreditamos que as histórias apresentadas devem ter sido lidas com uma entonação tranquila para que ao término da história ou próximo deste momento, a criança já esteja dormindo. Esse momento de leitura para as crianças é importante, mas não pode- mos fazê-lo de forma exclusiva no horário de dormir. O processo de contação de histórias, principalmente, neste momento de pandemia, precisa ganhar os outros cômodos da casa, as histórias precisam de mais dinâmica, personagens devem saltar dos livros e fazer parte do enredo que será instalado a partir da boa e velha frase “Era uma vez…”. 12   É importante esclarecer que como um/a participante nunca participou de algum momento de contação de histórias, as demais perguntas só foram respondidas por 12 participantes dos 13 que fazem parte da pesquisa. 159

Encerramos o nosso primeiro encontro, sugerindo que os/as responsáveis fizessem uma contação de história para suas crianças de forma livre, eles/as escolheriam a história e o local para realização da prática. CONTAÇÃO INICIAL Esta etapa teve a duração de 59’17’’ e contou com a participação de dez pessoas. Selecionamos como objetivo: perceber a importância dos aspectos cêni- cos para a contação de história. Este segundo encontro on-line foi dividido em dois momentos. O primeiro foi de escuta para que os/as responsáveis pudessem relatar como foi a experiência de contação de história e, no segundo momento, o pesquisador e a pesquisadora fizeram a apresentação de algumas estratégias de leitura para contação de história. No momento dos relatos, constatamos algumas inferências que fomos construindo a partir da leitura das respostas dadas no formulário, uma delas é que os/as responsáveis elegem a hora de dormir como o momento para a contação de histórias, isso fica evidente na fala da Responsável 4[13] quando ela diz: “Eu sempre tenho o hábito de ler para ela dormir […][14] Desde pequenininha ela tem o hábito de historinha para dormir”[15]. Ainda nos relatos, podemos perceber que esta atividade proporcionou um momento familiar de diversão e partilha. Isto fica claro na fala da Responsável 1 quando ela diz: “Foi bem legal, a história era curta, ela gostou bastante e a gente também pôde brincar em família” e na fala da Responsável 3 quando ela diz: “Inclusive a irmã leu para ela”. Acreditamos que, no meio de uma pandemia, na qual estamos isolados/as, muitas vezes imersos em trabalhos remotos, esse 13   O nome dos/as participantes será indicado pela palavra Responsável e o número que obedeceu a ordem de fala no segundo encontro on-line (momento em que iniciou-se os relatos). A partir daí a identificação ficou fixa, por exemplo, o/a Res- ponsável 1 pode ter falado por último no próximo encontro, mas ele/ela continuará sendo Responsável 1. 14   U saremos esse sinal para identificar que o/a Responsável falou outras coisas entre uma frase e outra, mas selecionamos o que era potente para análise. 15   T odas as transcrições foram feitas de forma livre, sem a obediência às normas de transcrição. 160

momento de parar e fazer uma atividade coletiva contribuiu para a saúde física e emocional das pessoas envolvidas. Por essa primeira prática ter sido livre, as famílias escolheram diversas formas de fazer a contação. Aquelas que, por algum motivo, saíram do “quarto” e ocuparam outros lugares da casa para vivenciar esse momento, trouxeram questões importantes para serem refletidas, dentre elas, o desenvolvimento da criatividade e do raciocínio lógico que a contação de história desperta na criança, o que fica evidente nas falas das seguintes responsáveis: Responsável 1 ao narrar que fez a leitura do livro Um gato marinheiro, de Roseana Murray. Ela diz: “Podemos brincar como na história, já que na história os personagens constroem um barco, usando materiais que a gente tem em casa, almofadas, vassoura e um lençol. Além de contar a história, pudemos vivenciar a história”. Responsável 2 relatou: “Ele se coloca na condição de Pokemón, ele é um Pokemón, ele é um caçador de Pokemón, ele se veste de caçador, ele entra na história”. A mãe relatou que em virtude do aniversário temático da criança, o garoto passou a semana imerso no mundo Pokemón, ou seja, a contação foi feita pela criança e não veio de nenhum livro, mas do imaginário construído através das pesquisas para realização da festa. Responsável 3 relata: “Ela que foi reconstruindo a história toda, e aí, eu fiz poucas intervenções. E aí, ela conseguiu construir dando sentido, né? Tendo uma construção de sentido bacana. E aí, eu fui percebendo essa questão da com- preensão da história, da construção de sentido a partir desse livro não verbal”. A história contada pela mãe refere-se ao livro O Lenço, de Patricia Auerbach. Nos relatos, percebemos que a contação de história proporcionou um momento de rica conexão familiar, de criatividade e de raciocínio lógico, com importante atuação no desenvolvimento cognitivo da criança, fazendo-a en- tender que a história segmenta-se em começo, meio e fim. Iniciamos o segundo momento com a apresentação de algumas contri- buições da contação de histórias na Educação Infantil, dentre elas: ampliação do vocabulário, desenvolvimento da criatividade e da imaginação, do raciocínio lógico, etc (figura 2). 161

Figura 2 - Contribuições da Contação de Histórias na Educação Infantil Fonte: arquivo d@s pesquisador@s Outra questão apresentada foi relacionada ao tipo de texto, ilustrações e materiais que devem ser selecionados a partir da faixa etária da criança (figura 3). Figura 3 – Tipos de texto, ilustrações e materiais Fonte: arquivo d@s pesquisador@s 162

Feitas essas primeiras considerações,apresentamos sete questões importan- tes para a prática de contação de histórias, são elas: escolha da história; conhecer para narrar; espaço; voz, gestos e expressões; dialogar; envolvimento do grupo e contar e recontar. Cada um desses momentos foram apresentados trazendo características e exemplificações de como conduzir a contação de histórias. Encerramos o nosso segundo momento sugerindo para os/as responsáveis a contação de histórias do livro Dandara e a princesa perdida, de Maíra Suer- tegaray, pois é a partir dessa história que pretendíamos trazer para superfície o debate em torno de gênero e raça. A QUESTÃO RACIAL NAS CONTAÇÕES DE HISTÓRIA: “DANDARA E A PRINCESA PERDIDA” Esta etapa teve a duração de 42’33’’ e contou com a participação de sete pessoas. Iniciamos o encontro com a exibição do filme Vista sua pele como disparador das reflexões que estavam por vir, a partir da contação de história. Sobre o livro que indicamos ele foi escrito por Maíra Suertegaray e ilustrado por Carla Pilla. Escolhemos um livro elaborado por mulheres que conta a história de uma menina negra, para que a questão gênero e raça viessem a superfície e fossem contadas,recontadas,elaboradas,problematizadas,enfim,que trouxessem todos os elementos presentes do texto em um processo de contação. Porém, a questão de gênero foi quase que totalmente silenciada e a questão racial ficou marcada tanto para os/as responsáveis quanto para as crianças. A questão de gênero veio à superfície em poucos momentos, apenas na fala da Responsável 2 quando ela fala de duas outras mulheres negras, Josefina Bakhita[16] e Dandara[17] e seleciona o enunciado “guerreira” para se referir a essas personagens da história. Já a questão racial esteve presente em todos os relatos feitos, as crianças tiveram curiosidade sobre a temática, fizeram novas elaborações, associaram a outros momentos já vivenciados, se identificaram. Enfim, vários aspectos que fazem parte de um processo de contação de histórias. 16   Josefina Bakhita por Responsável 2: “Ela era de família de posses na África, foi raptada aos 7 anos, foi canonizada em 1992, ela foi uma sobrevivente escrava”. 17   D andara por Responsável 2: Esposa de Zumbi do Quilombo dos Palmares, guerreira”. 163

Nos relatos, fomos percebendo que os/as responsáveis buscaram seguir as estratégias de contação apresentadas pelo pesquisador e pela pesquisadora no encontro anterior. A primeira delas é a de fazer a leitura prévia antes da contação, por mais que alguns/algumas responsáveis tenham feito a leita com as crianças,mas deixaram evidente que aquele era o momento de leitura e que depois aconteceu o momento de contação, isso fica evidente na fala das seguintes participantes: Responsável 1 relatou: “A princípio a gente contou a história como ela era […] a gente fez uma contação com brinquedos”. Já a Responsável 3 relatou: \"Eu li antes para quando fosse ler para ela fazer uma leitura com mais qualidade”. Outra estratégia que ficou presente no momento da contação foi o pro- cesso de dialogar. Percebemos esse momento em algumas falas. Responsável 3 relatou “A cada momento da história ela parava e questionava […] ela conseguia interagir com a história”. Responsável 1 relatou: “Até Criança 1 achou triste, depois a gente conversou um pouco”. É importante que os/as responsáveis tenham utilizado estratégias de contação de história, mas o que gostaríamos de evidenciar é a potência que uma contação de história ou um processo de leitura apresentado para uma criança tem, pois mesmo muito pequenas elas conseguem fazer associações e compreender aquela temática que está sendo abordada. Isso fica evidente na fala das seguintes responsáveis: Responsável 1 relatou: “Eu disse até assim pra ela: Criança 1, eu acho que você também é uma princesa perdida. E aí, ela foi se identificando pela cor, ela também tem o dragão. […] Foi interessante e levou a gente a refletir um pouco sobre a questão da escravidão, a questão do preconceito, das crianças perceberem …de não se identificarem nas histórias de princesas,pelas princesas terem cabelo loiro, liso. Até outro dia a Criança 1 tava querendo alisar o cabelo, ela tem cabelo cacheado. […] Com a história ela percebeu que não precisa alisar o cabelo para querer parecer com ninguém, que cabelo cacheado também é bonito”. Responsável 2 relatou: “Essa questão do cabelo que a Responsável 1 falou … teve isso o ano passado na escola, alguém disse que ele tinha que cortar o cabelo […] que o cabelo dele tava muito grande, muito feio. […] Com as con- versas ele disse: eu posso escolher como usar meu cabelo ou curtinho ou dread”. 164

Com esses relatos, podemos perceber que o racismo está presente em nossa sociedade e atravessa nossas vidas desde muito cedo. Possibilitar contações de histórias com essas temáticas contribui para que as crianças relatem algum preconceito que já vivenciaram ou presenciaram, possibilita que elas façam novas elaborações e iniciem um processo de desconstrução de discriminação e construam um processo de identificação, empoderamento e empatia. Ao término do nosso encontro, sugerimos aos responsáveis que fizessem um novo processo de contação da história indicada e que registrassem[18] uma produção das crianças a partir da história Dandara e a princesa perdida. PRODUÇÃO FINAL Neste momento, recebemos as produções das crianças enviadas pelo aplicativo de WhatsApp. Podemos perceber que uma das contribuições da contação de histórias é o desenvolvimento da criatividade. Figura 4– O poder do dread Fonte: Arquivo pessoal da Responsável 2 18   D eixamos o registro livre, eles/elas poderiam escolher a produção de um desenho, de um vídeo, de um áudio. Enfim, a forma que a criança tivesse mais afinidade. 165

Podemos inferir,em uma rápida leitura da imagem,que a criança está se sen- tindo feliz e reconhece no dread um estilo de cabelo como qualquer um outro.E que ninguém deve sofrer preconceito devido ao seu estilo de cabelo ou cor de sua pele. Figura 5 – As princesas perdidas Fonte: Arquivo pessoal da Responsável 1 Já nesta imagem podemos perceber a felicidade da criança em ter várias princesas perdidas e que a história contada agora poderá ser recontada tantas outras vezes com a participação de novos personagens. 166

Figura 6 – Uma outra personagem na capa de Dandara e a princesa perdida Fonte: arquivo pessoal da Responsável 3 A capa do livro de Dandara é a ilustração de Dandara de cabeça para baixo. A criança escolheu ressignificar essa capa e se tornar a personagem que estava ali representada fazendo a mesma posição de Dandara na capa de sua história. COMENTÁRIOS FINAIS Constatamos que, a partir das sequências didáticas, houve resultados significativos nas atividades de leitura familiar. Nesses processos, tivemos efe- tivamente o caráter dialógico e interacional materializado através do gênero textual/discursivo proposto para a atividade de leitura. O gênero foi de suma importância para o sucesso da pesquisa, pois conquistou os envolvidos com as atividades.Supomos que isso ocorreu por ser um gênero extremamente dinâmico e por fazer parte da oralidade. Outra questão que pudemos observar é que a contação de história pode ser atravessada por temáticas pertinentes ao universo da criança.Trazer a questão de gênero e raça para ser contada para as crianças desaguou em um universo de possibilidades e de construção e reconstrução de significados potentes para 167

refletirmos preconceito, racismo, discriminação, igualdade, diferença, direitos, entre outras. As crianças são sensíveis e percebem várias questões que muitas vezes ficam sutis e suspensas e vão elaborando pensamentos e comportamentos a partir das questões que são postas no seu dia a dia. Porém, em vários momen- tos não conseguem trazer essa elaboração para o/a responsável. A contação de história contribui para que as crianças expressem essas elaborações e construam e reconstruam novas elaborações no lugar da elaboração anterior. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1997. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular – Educação é a base. Brasília: MEC, 2018 DOLZ,Joaquim; SCHNEUWLY,Bernard.Gêneros orais e escritos na escola. 3.ed. São Paulo: Mercado das Letras, 2011. MATOS, G. A; SORSY, I. O ofício do contador de histórias: perguntas e respostas, exercícios práticos e um repertório para encantar. São Paulo: Martins Fontes, 2005. PATRINI, Maria de Lourdes. A renovação do conto: emergência de uma pratica oral. São Paulo: Cortez, 2005. ROSSATO, Maíra S. Dandara e a princesa perdida; Ilustrações de Carla Pilla. Porto Alegre: Compasso Lugar -Cultura: Impressa Livre, 2012. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. 168

DEPTODERRAÀMCOEAVCALAIAEUNXESLZÁÃOSSLLDOROIIIA”GSAND:NEÇGPEUIÃUEDFMVROAIIACASGADLALPEORÓOÇEMEGRCÓFIATOMCLIÇAVEENÃXMAODOÃEAO Cecília Noronha Braz Alves Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected]

Esse artigo busca apresentar e discutir os conceitos de tema e signifi- cação a partir de sua compreensão na análise dialógica da linguagem. Para isso, utilizaremos como corpus diferentes aplicações do “meme do caixão”, que circularam e viralizaram no ambiente virtual nacional, du- rante a pandemia da Covid-19, especificamente, no primeiro semestre de 2020. O campo teórico escolhido para as nossas reflexões é o da Análise Dialógica do Discurso (ADD), tomando como aporte teórico as ideias de Mikhail Bakhtin e o Círculo, com sua prima filosofia. Entendemos que o processo de valoração e revaloração dos signos ideológicos estão em cons- tante transformação, a cada evento singular, situado em diferentes tempo e espaço, conforme podemos perceber nos enunciados concretos dos memes, analisados neste trabalho. Palavras-chave: Teoria Dialógica da Linguagem. Tema. Significação. Meme do caixão. 170

APONTAMENTOS INICIAIS A proposta deste artigo é discutir os conceitos de tema e significação sob a perspectiva teórico-metodológica da Análise Dialógica do Discurso, levando em consideração os estudos de Mikhail Bakhtin e da doutrina do Círculo sobre a linguagem. Para melhor entendimento da proposta, escolhemos como corpus diferentes aplicações do “meme do caixão”, que circularam e viralizaram no ambiente virtual, durante o início da pandemia da Covid-19 no Brasil, ou seja, no primeiro semestre de 2020. Vamos lançar um olhar especial sobre o processo de valoração e revalo- ração dos signos ideológicos, cujo valor axiológico está em constante mutação durante a prática da linguagem, que é “viva”. Para isso, vamos considerar o gênero “meme” como um evento singular, situado em determinado tempo e espaço. O trabalho aqui desenvolvido pode ser classificado como descritivo-inter- pretativista. Afinal, o movimento que fazemos é de compreender e interpretar os valores axiológicos produzidos no uso da linguagem, em especial no gênero discursivo mimético, aplicando os conceitos de tema e significação como ponto central durante as análises. De uma maneira geral, o objetivo é investigar de que forma as relações dialógicas podem contribuir para a melhor compreensão das concepções de tema e significação durante a análise do nosso corpus. A partir desse olhar, traçamos os seguintes objetivos: 1) Entender como devem ser pensadas as dimensões de tema e significação enquanto horizonte teórico para a compreensão do gê- nero “meme”; 2) Investigar a articulação entre enunciado, relações dialógicas, gênero discursivo, interação discursiva, tema e significação na produção de valores axiológicos. A problemática que inspira a discussão é entender como os enunciados replicam o “já dito” em contextos comunicativos diversificados e, ao mesmo tempo, atualizam o tema. Esse, por sua vez, sempre é único, individual e irre- petível, de acordo com a situação histórica concreta. 171

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Antes mesmo de percorrermos os principais conceitos bakhtinianos mobilizados, neste presente artigo, é preciso fazermos uma abordagem geral sobre o princípio filosófico da linguagem proposto por Mikhail Bakhtin e o Círculo – a chamada prima filosofia. Isso se faz necessário para entendermos a simbiose e interdependência das noções aqui apresentadas. Ao se debruçar sobre os estudos discursivos, o filósofo da linguagem, teó- rico e professor russo Mikhail Bakhtin não se prendeu a abordagens meramente linguísticas, ou a aspectos exclusivamente estruturais da língua. Ele lançou um olhar bem mais profundo, conseguindo enxergar a diversidade do discurso no funcionamento concreto da linguagem. Graças a esse aspecto, Bakhtin alargou os horizontes estruturais da Lin- guística e suas abordagens ampliaram suas fronteiras, ao lançar a proposta de uma Metalinguística. Sua filosofia primeira da linguagem é justamente uma arquitetura do ato responsivo e responsável. A prima filosofia considera o “ser” como acontecimento inacabado e, ao mesmo tempo, único e irrepetível a cada ato. Ou seja, o “ser” (e não o indivíduo cartesiano acabado, das generalizações teóricas) está sempre em processo contínuo de construção e reconstrução. Ele é apreendido como evento único em dado instante, no tempo e no espaço. E esse mundo do ser singular é o mundo da historicidade viva. Em sua bússola filosófica, o pensador russo desenvolveu seus postulados levando em consideração tanto o aspecto ético da vida como estético da arte. Para isso, ele aborda diferentes assuntos, mas todos ligados por um projeto comum: a reflexão sobre o uso da linguagem. No desenvolvimento das propostas de Mikhail Bakhtin e o Círculo, a lin- guagem é concebida como interacionista (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV,1999). Ela será pensada em duas esferas,ou dimensões inseparáveis: da atividade humana; e do uso da língua,ou da comunicação (em forma de enunciados orais ou escritos). Dentro de um universo variado de uso da língua, essa vai ser valorizada em seu funcionamento a partir de formas típicas,que são os tipos relativamente estáveis de enunciados,chamados por Bakhtin (2011) de gêneros do discurso.Esses,por sua 172

vez, estão sempre ligados a padrões específicos, distribuídos dentro da vasta esfera das atividades humanas, exercendo assim funções comunicativas determinadas. Ao buscar a origem da produção do sentido na linguagem, como já disse- mos, Bakhtin considera o sentido do ser, único e irrepetível, em uma perspectiva histórico-filosófica e no aspecto ontológico (ser como inacabado, único em cada evento,sempre em construção).A alteridade,levando em consideração o “outro”nos momentos constituintes desse ser, será uma marca da arquitetônica bakhtiniana. Outro aspecto importante que vale destacar na filosofia primeira da linguagem de Bakhtin é o caráter do acontecimento do ser na linguagem; isto é,o pensamento e a linguagem, que estariam ligados ao ato. Para Bakhtin, o ato é pensado a partir do “ser-evento-único”, cogitando a categoria da responsabilidade, em relação ao mundo da experiência vivida. A partir desse lugar é que se pensa as formas de conhecimento humano,não podendo assim generalizá-lo como único e autônomo, sem levar em consideração o caráter histórico e social em dado tempo e espaço. Na filosofia da linguagem bakhtiniana, o diálogo é um objeto de interesse, o que pode ser entendido amplamente como todo tipo de comunicação. Assim, levando em consideração a alteridade, o enunciado sempre gera e precede uma resposta, que se dá na maneira de compreensão responsiva ativa e na de atitude responsiva ativa. Isso vai definir suas fronteiras. Portanto, para tratar o enunciado (unidade da comunicação), é preciso levar em conta a interação entre locutor e interlocutor, que tem papel ativo na produção de sentidos. A partir desses princípios relatados (ser como evento único e singular; interação; diálogo; a produção dos sentidos na linguagem), Bakhtin e o Círculo formulam conceitos/categorias que contribuem com uma Teoria Dialógica da Linguagem. As três coordenadas bases da concepção dialógica são a unicida- de do ser, a relação eu/outro (com singularidade dessa relação) e a dimensão axiológica. Seguindo por esse caminho, Bakhtin mostra em sua prima filosofia a importância de trazer a filosofia para o real/cotidiano em busca da origem da produção do sentido na linguagem. A partir das necessidades implicadas pelo objeto de estudo em nossa proposta de pesquisa neste artigo, elegemos alguns conceitos mobilizados pela Teoria Dialógica da Linguagem para discutirmos brevemente. São eles: interação verbal, dialogismo, gêneros do discurso, tema e significação. 173

A SIMBIOSE ENTRE DIALOGISMO E INTERAÇÃO VERBAL Dentre as concepções da linguagem, uma delas a considera como um processo de interação. É nessa visão em que o diálogo é determinante para a mesma, não podendo se resumir apenas à estrutura da língua, mas a tudo que vai completá-la e comunicar uma posição diante do mundo. A linguagem com essa ênfase na interação faz parte dos pressupostos do russo Mikhail Bakhtin e o Círculo. A mesma é um produto vivo da interação social, portanto, o fato marcante da língua é seu aspecto dialógico. Sobre o princípio dialógico da linguagem, considera-se que: A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua-orientação dia- lógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencionalmente é que pode dela se afastar (BAKHTIN, 2002a, P.88). Considerando esse pensamento bakhtiniano, Fiorin (2006) ressaltou que todos os enunciados são dialógicos. A respeito disso, ele afirmou: Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face,que é apenas uma forma composicional,em que elas ocorrem.Ao contrário, todos os enunciados, no processo de comunicação, independentemente de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevi- tavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, 174

atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados (FIORIN, 2006, P. 18-19, grifos nossos). Outro aspecto que deve ser destacado é a tensão, inerente ao dialogismo, durante o processo de construção de sentidos na interação da comunicação, entre os interlocutores. A alteridade é a marca na enunciação, pois o “eu” ao enunciar já está marcado por um “tu”, independente de ser ou não face a face, pois é uma relação de discursos impregnada de valores axiológicos. Tanto recuperamos fatos passados em nossos discursos como também projetamos possibilidades do devir. Daí a percepção da linguagem como diálogo. Assim, o dialogismo, explicado como um mecanismo de interação textual, é um diálogo entre discursos. Esse discurso é um efeito de sentido entre os locutores e deve ser entendido como sendo: O ato da língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração ab- solutamente necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela linguística, os que têm a importância primordial para os nossos fins (BAKHTIN, 2002b, P. 181). A linguagem se constrói dentro de relações de interação. De acordo com Fiorin (2006), o conceito de dialogismo (atualmente, o termo mais utilizado é “relações dialógicas”) é empregado de três maneiras ao longo da obra de Bakh- tin. Em um momento, como um princípio inerente à linguagem, que torna os enunciados determinantemente dialógicos. Também se refere ao enunciado monológico, oposto aos outros. Além disso, é tido ainda como uma visão do mundo postulado e da “verdade”. Extrapolando a lógica da linguagem no aspecto estritamente linguístico, que se apega à análise interna da língua, Bakhtin propõe uma translinguística (em algumas traduções, o termo é metalinguística). Essa vai poder dar conta das relações dialógicas do discurso, ou seja, das relações extralinguísticas. Afinal, a palavra para ele vive no encontro com outra palavra. Nem do ponto de vista 175

ético, nem do ponto de vista estético, podem ser construídos e reconstruídos sentidos centralizando apenas o “eu”, sem levar em conta o “outro”. Essa interação é decisiva para teoria dialógica, porque \"ser significa ser para o outro e, através dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro\" (BAKHTIN,2011,p.341,grifos do autor). Ao falar sobre a interação, Bakhtin/ Volochínov (1999) a entendem como as relações entre os interlocutores. Além de não se referir apenas ao diálogo face a face, elas não têm um esgotamento imediato ao momento da enunciação. Há, portanto, uma cadeia constante de interação, que nos remonta a um passado de significados (diversos momentos sociais e históricos) e à potencialidade de um por vir, em um processo criativo e perpétuo de produção de sentidos. Sobral (2009) lembra que interação é um conceito do Círculo que envolve vários níveis relativos ao grau de amplitude: [...] vai do contato, direto ou não, entre os sujeitos, do tipo particular de relação entre consciências individuais (que, insistimos, não são entendidas em termos cognitivos mecânicos) ao chamado “espírito de época”, pas- sando pelas instituições sociais e pelos elementos conjunturais presentes à interação (SOBRAL, 2009, P. 41). Ao pensar essa produção de sentidos como fruto da interação, o tema tem um caráter de primazia, quando colocado em relação aos significados cristaliza- dos, no pensamento de Bakhtin/Volochínov (1999). Portanto, os sentidos estão estritamente ligados ao contexto, o que implica em constante ir e vir. Para entender melhor essa primazia do tema, precisamos ir para o que Bakhtin/ Volochínov (1999) escrevem em Marxismo e filosofia da linguagem. No texto, destaca-se que o problema da significação é bem polêmico na Linguística. Cada enunciação como um todo tem como propriedade o seu sentido único, o que ele chama de significação unitária. Enquanto isso, o sentido da enunciação completa será chamado tema, que deve ser único. Esse último depende da si- tuação histórica microscópica e concreta. 176

O tema, portanto, está ligado a um posicionamento axiológico do sujeito. Em outras palavras, podemos dizer que a significação é a leitura primeira que fazemos do objeto; o tema está ligado ao “sentido do significado”,quando estamos em um contexto histórico determinado. A distinção entre significação e tema é importante para entender a sua inter-relação, como vemos na reflexão a seguir: A maneira mais correta de formular a inter-relação do tema e da significação é a seguinte: o tema constitui o estágio superior real da capacidade linguística de significar. De fato, apenas o tema significa de maneira determinada. A significação é o estágio inferior da capacidade de significar. A significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma pos- sibilidade de significar no interior de um tema concreto (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 1999, P. 131, grifos dos autores). Isso quer dizer que só a compreensão ativa pode cooperar com a apreen- são do tema e a compreensão na enunciação, em constante evolução. Para isso é preciso encontrar o lugar em um contexto ativo e responsivo correspondente, em um movimento de diálogo, pois a significação é um traço que une os inter- locutores, em uma comunicação verbal; e o tema é acessível a partir do ato de compreensão. Isso porque além do tema e da significação, a palavra da fala real possui um acento apreciativo, ou valor, constituindo um suporte de entoação. É a partir dessa entoação que o tema se realiza. Bakhtin/ Volochínov (1999, p. 135) chamam a atenção para o fato de ser preciso levar em conside- ração o horizonte apreciativo de um grupo social para “compreender a evolução histórica do tema e das significações que o compõem”. OS GÊNEROS DO DISCURSO Como já falamos superficialmente nesse artigo,a linguagem é abordada por Bakhtin (2011) na relação inviolável entre as várias esferas da atividade humana e do uso da língua.Essa última corresponde à dimensão da comunicação e se efetua na forma de enunciados, tanto orais como escritos. Há modos variados do uso da língua, que se agrupam em formas típicas, ou tipos relativamente estáveis de 177

enunciados, o que Bakhtin denomina de gêneros do discurso. Esses se formam à medida que também são estruturados padrões específicos de atividades humanas. Sobre essa ligação entre os diversos campos da atividade humana e o uso da linguagem Bakhtin diz o seguinte: O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem [...] mas acima de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2011, P. 262). Outro aspecto destacado no pensamento de Bakhtin e o Círculo é que à medida que cada campo da atividade humana se desenvolve e fica mais com- plexo, ele também produz inesgotáveis gêneros do discurso. Esse é um aspecto que mostra a sua heterogeneidade e seu caráter não estático, mas vivo. As noções de discurso e enunciado, centrais na Teoria Dialógica da Linguagem, reverberam posições culturais, históricas, sociais, ideológicas, possibilitando a comunicação entre sujeitos. Os discursos assumem, portanto, sua marca social e dialógica. O vasto campo das atividades e ações humanas é orientado por essas relações sociais. Os enunciados, portanto, dentro das atividades humanas, são constituti- vamente irrepetíveis em sua singularidade, à medida que retomam marcas do social, cultural e histórico em cada ato dito efetivamente. Assim, a noção de gênero discursivo está situada na dimensão da interlocução e do diálogo. TEMA E SIGNIFICAÇÃO: DISTINTOS MAS INDISSOCIÁVEIS De acordo com o que ressalta Cereja (2018), há a preocupação dos teó- ricos do Círculo em pensar o sentido do signo ideológico no discurso, ou seja, pensar para além do sentido do signo no domínio da língua enquanto sistema. Dentro dessa perspectiva, é construída a formulação da distinção entre signi- ficação e tema. 178

No caso da significação, esta pode ser entendida como a potencial capa- cidade de significar do signo. Cereja (2018) assim a define: A significação existe como capacidade potencial de construir sentido, própria dos signos linguísticos e das formas gramaticais da língua. É o sentido que esses elementos historicamente assumem, em virtude de seus usos reiterados. É, portanto, um estágio mais estável dos signos e dos enunciados, já que seus elementos, como frutos de uma convenção, podem ser utilizados em diferentes enunciações com as mesmas indicações de sentido (CEREJA, 2018, P. 202) Podemos afirmar,então,que a significação apesar de participar da construção do sentido de um enunciado como um todo, é um estágio inferior ao entendi- mento do sentido como um todo. Ela tem, assim, uma natureza mais estável. Enquanto isso, o tema é individual, sendo resultado de uma situação de uso concreto da língua. Não é definido pelo aspecto formal da língua e sim pelos elementos extraverbais. Isso oferece a ele um caráter instável. Sobre essas propriedades, Brait (2018) também explica o seguinte: O tema é indissociável da enunciação, pois, assim como esta, é a expressão de uma situação histórica concreta. Como decorrência, é único e irrepetí- vel. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação. Desta forma, o instável e o inusitado de cada enunciação se somam à significação, dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construção de sentido (BRAIT, 2018, P.202). Com vistas a essas explicações de Cereja (2018), baseadas nos diversos escritos de Bakhtin e do Círculo, podemos afirmar que o tema e a significação são inseparáveis, ou seja, ao mesmo tempo se distinguem e se completam. Assim, o instável se agarra sempre ao elemento estável da língua para construir sentidos. 179

O “AGOURO” DA MORTE Diante do que já foi exposto e considerando o tema de um enunciado como único e irrepetível, mas inseparável de sua significação, vamos levar em consideração a situação histórica concreta imbricada no exemplo do nosso corpus. Assim, podemos analisá-lo e compreendê-lo em um sentido mais geral. Primeiramente, vamos fazer um passeio pelo sentido etimológico das palavras “dança”, “caixa” e “caixão”, conforme o quadro abaixo: Quadro 1 PERCURSO PELA ETIMOLOGIA DAS PALAVRAS DANÇA E CAIXÃO: DANÇA - Deriva do vocábulo francês danse; - Essa palavra francesa procede supostamente do germânico \"dintjan\" (movimento de um lado ao outro); - A origem alemã desta palavra está ligada à reintrodução de danças após proibições do cristianismo. (FONTE: site etimologia.com) CAIXÃO -Derivado de caixa + ão (FONTE: site origemdapalavra.com.br) CAIXA -Veio do Italiano cassa, do Latim capsa, que era o nome dado às caixas cilíndricas onde os cidadãos de Roma guardavam os seus livros (na verdade, rolos de papiro ou material semelhante). E capsa vem do verbo capere, em sua acepção de “conter”. (FONTE: site dicio.com.br) Em seguida, façamos agora um breve percurso pelo dicionário para ve- rificarmos a significação dada por eles em usos recorrentes, própria dos signos linguísticos e das formas gramaticais da língua, no quadro a seguir: 180

Quadro 2 PERCURSO POR DICIONÁRIOS (DANÇA - CAIXÃO) DANÇA 1. Arte de dançar. 2. Passos cadenciados, geralmente ao som e compasso de música. 3. Baile. 4. O que se dança. 5. Pessoas que dançam. 6. [Figurado] Movimento incessante. 7. Idas e vindas. 8. Trapalhada. 9. Negócio difícil ou arriscado. (FONTE: site etimologia.com) CAIXÃO 10. Tipo de caixa de madeira com a qual é possível enterrar e transportar pessoas mortas; urna funerária; ataúde, esquife. 11. Qualquer caixa de madeira ou outro material usada para transportar ou carregar coisas diversas; caixote. 12. [Construção] Parte presa à parede em portas e janelas; marco. 13. [Regionalismo: Norte e Nordeste] Parte mais funda num rio ou curso de água fechado; álveo, talvegue. 14. Mesa ou balcão usado pelo ourives para fazer seus trabalhos de ourivesaria. 15. [Botânica] Grande árvore brasileira,da família das lecitidáceas,gênero Cariniana legalis, com tronco de aproximadamente 1 metro de largura, cuja madeira de excelente qualidade e casca são largamente usadas na indústria; jequitibá-rosa. 16. [Gramática] Aumentativo de caixa; caixa grande. 17. [Portugal] Espécie de armadilha para caça. (FONTE: site dicio.com) Tomando como base as formas gramaticais da língua e considerando, apenas, a materialidade da construção relativamente estável da significação, há 181

pouca oscilação entre os sentidos dos signos, aqui analisados isoladamente e fora de um contexto. A significação potencializa vários sentidos, possibilitando entendimentos como “tristeza” e “perda” (no caso do caixão) e até “alegrias” e “risco” (no caso da dança). Mas, quando essas palavras são colocadas (ou até mesmo subentendidas) dentro de uma situação concreta e historicamente mar- cada, elas se transformam em enunciados instáveis e irrepetíveis. Vejamos como exemplo a Figura 1, abaixo. As palavras “caixão”e “morte” não são explicitadas. Mas são reforçadas pela presença dos dançarinos africa- nos, identificados por seus trajes. O enunciado concreto só pode ser entendido dentro de uma situação historicamente marcada. Figura 1- Dançarinos do caixão em outdoor Fonte: Jornal Correio 24 horas (2020) Para que o tema seja compreendido, uma das coisas que precisamos saber é que a origem do “meme do caixão” está nos rituais de funerais que são tradição em Gana, país localizado no continente africano. Para outros povos, a celebração pode até parecer bizarra, mas faz parte da cultura local daquele país. Nesse ritual, homens com trajes formais aparecem segurando o caixão do morto, fazendo coreografia única. Enquanto é realizado o translado do corpo por esses personagens, a dança e o ritmo convocam à comemoração e não ao luto. A celebração foi criada por um agente funerário chamado Benjamin Aidoo.Trata-se 182

de uma despedida em clima de festa que a família escolhe para fazer a despedida do ente querido.Mas,em nenhum momento é tratado como chacota.Tudo isso começou a ser divulgado a partir de uma matéria da BBC que está reproduzida logo abaixo. Quadro 3 - Matéria BBC transcrita Matéria da BBC em 2017 Os carregadores de caixão dançarinos que alegram funerais em Gana 26 julho 2017 Em Gana, funerais são eventos sociais muito importantes. E recentemente eles têm ganhado um ar mais animado com a popularização dos serviços de carregadores de caixão nada convencionais. Esses profissionais se especializaram em fazer performances de dança durante o evento. “Quando o cliente vem até nós, perguntamos: ‘Você quer algo solene ou um pouco mais de teatro? Ou talvez uma coreografia?’”, diz Benjamin Aidoo, chefe dos carregadores de caixão. “É só pedir que nós fazemos.” Aidoo diz ter criado mais de cem empregos para homens e mulheres jovens. Segundo ele, essa é a sua forma de ajudar a diminuir as taxas de desemprego em Gana. “Decidi dar à minha mãe uma viagem dançante até seu criador”, afirma Elizabeth Annan, uma das contratantes do serviço. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40734577 Toda essa comemoração fúnebre, usando os mesmos personagens, foi “revestida”pelo contexto histórico relativo à pandemia do novo coronavírus em 2020. O enunciado, em sua forma viva e contínua, passou a ser envolvido por um outro tempo e espaço. A significação da “dança” e do “caixão”, então, foi revestida pelo extraverbal. E, dependendo do momento único, passou a evocar vários temas em todo o mundo. No Brasil, a viralização do “meme do caixão”trouxe aspectos específicos do nosso contexto histórico,usados em diferentes esferas da comunicação.Na imagem da Figura 1, o outdoor, utilizado como plataforma física de rua, passou a circular também na internet,especialmente nas redes sociais,como um dos memes do caixão. Na imagem,a tão aclamada hashtag “#fiqueemcasa”,entendida no contexto brasileiro como um apelo ao isolamento como forma de evitar a contaminação do novo coronavírus, é colocada ao lado dos personagens dançarinos do funeral 183

de Gana. O conceito de tema bakhtiniano vai se ligar, portanto, às significações das palavras para anunciar um perigo eminente de morte, em forma de “agouro”, para aqueles que não tomarem as devidas precauções de isolamento social. A valoração é um anúncio aos brasileiros, tão resistentes à quarentena. Outro exemplo é a Figura 2 abaixo, que também remete aos dançarinos africanos, porém agora não é para recomendar que as pessoas fiquem em casa durante a pandemia. Trata-se de uma crítica à fala do presidente da República, Jair Bolsonaro, que minimizou as consequências clínicas da Covid-19 para as pessoas infectadas. Figura 2: Dançarinos do caixão em 2020 (Fonte: Hashtag on Twitter, 2020) Percebemos acima que o meme que viralizou na internet está em outro contexto situacional, mostrando a dinâmica da linguagem em seu processo de revaloração. A charge acima, também transformada em mais um “meme do caixão”, pois passou a circular nas redes sociais, a política negacionista do presidente da República do Brasil Jair Messias Bolsonaro é colocada em xeque. O chefe de estado havia chamado o novo coronavírus de “gripezinha”, durante um pronunciamento à nação. E agora os dançarinos do caixão aparecem como “agouro” para um funeral animado de quem minimiza o risco de morte. 184

Ou seja, na Figura 2, não basta apenas conhecermos sobre a existência de uma pandemia. Locutor e interlocutor precisam estar inseridos em um mesmo contexto situacional que remeta às declarações do chefe de estado brasileiro. A potencialidade da significação do “meme do caixão”, revestida da historicidade externa ao enunciado concreto, nos lança o tema e os valores axiológicos nele impregnados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Levando em consideração tudo que apresentamos até agora, inclusive as análises do “meme do caixão”, percebemos a potencialidade da linguagem viva do signo ideológico e a importância do tema e da significação na construção do sentido. De um lado, o tema com seu aspecto singular e não reiterável, único e irrepetível. Do outro, a significação de característica mais estável devido ao seu uso reiterado. Mesmo distintos, eles são inseparáveis e se completam, po- tencializando valores axiológicos. O tema é fruto de uma situação concreta do uso da linguagem e assim constrói o sentido do “meme do caixão” e não está ligado ao mero conteúdo formal do signo propriamente dito. Ele ainda evoca os elementos extraverbais e extravisuais que estão além do enunciado. Essa é a proposta de Bakhtin e do Círculo: a de observar a linguagem com um olhar mais profundo, em especial para a diversidade do discurso no funcionamento da linguagem.Tal visão nos permite evocar contextos e revalorar temas na interação locutor-interlocutor e dentro da esfera de circulação do signo. Ao seguirmos em busca dos objetivos específicos traçados para este artigo, percebemos que as dimensões de tema e significação devem ser pensadas a partir da materialização dos enunciados concretos,porém não podem ser limitados apenas à análise da forma. Ou seja, a potencialidade do valor axiológico do rito africano precisou ser atualizado pela historicidade na qual o “meme” está inserido. Vimos ainda que os enunciados replicam o “já dito” em diferentes con- textos comunicativos e, com isso, atualizaram o tema. Esse, por sua vez, sempre apareceu único, individual e irrepetível em sua situação histórica concreta apresentada nas duas figuras analisadas. 185

Assim,ao levarmos em consideração as relações dialógicas entre enunciados concretos singulares e a retomada de outros enunciados alheios, no passado e no presente, referentes aos “memes”, consideramos os aspectos extralinguísti- cos. Consequentemente, alcançamos nosso objetivo geral ao compreendermos a amplitude que o conceito tema, imbuído nas ideias de Bakhtin e o Círculo, confere para o gesto de interpretação dos sentidos dinâmicos, que são consti- tuídos na linguagem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, V.V. Marxismo e filosofia da lin- guagem. Tradução: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. ______. Questões de literatura e de estética – A teoria do romance.Tradução: Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Goes Júnior, Helena Apryndis Nazario e Homero Freitas de Andrade. 5. ed. São Paulo: Hucitec, Annablume, 2002a. ______. Problemas da poética de Dostoiévsk.Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002b. ______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CEREJA, William. Significação e tema. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p. 201-220. FIORIN,José Luiz.IntroduçãoaopensamentodeBakhtin.São Paulo:Ática,2006. SOBRAL. Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado das Letras, 2009. Série ideias sobre linguagem. VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem – Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2017. 186





SOBRE OS AUTORES Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística na Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB - Em andamento). Mestra em Linguagem e Ensino pelo Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal de Campina Grande (POSLE/UFCG - 2011).Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual da Paraíba (CELIP/UEPB - 2009). Graduada em Letras, habilitação Língua Portuguesa na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB - 2007). Atuou no Ensino Básico como professora (2008 - 2017) e como coordenadora pedagógica (2016-2017).Tem experiência na área de Linguística e desenvolve pesquisas no campo da Análise do Discurso e da Análise Dialógica do Discurso, que contemplem a produção e a circulação dos diferentes discursos e suas influências no âmbito escolar. Arilane Florentino Félix de Azevêdo Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE),Pedagoga (UFPB), especialista em Supervisão e Orientação Educacional (CINTEP), mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores (UEPB). Atuou de 2010 a 2014 na Rede Municipal de Ensino de João Pessoa, exercendo o cargo de supervisora escolar e professora do Ensino Fundamental I. Atuou em 2015-2016 no cargo de Professora Substituta do IFPB. Atuou em 2019 como professora substituta da Escola de Educação Básica da UFPB. Atualmente é professora substituta da Universidade Estadual da Paraíba, Professora Efetiva da Prefeitura Municipal de João Pessoa e colaboradora do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos (UFPB). 189

Cecília Noronha Braz Alves Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística (Proling) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pela mesma instituição e programa, obteve a titularidade de Mestre em Linguística, em 2017. É graduada em Co- municação – Habilitação Jornalismo, também, pela UFPB. Desde 1999, tem exercido as funções de repórter, chefe de reportagem e editora em vários meios de comunicação e de assessora de imprensa em órgãos e autarquias paraibanas. Ediclécia Sousa de Melo Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística na Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB), desenvolvendo pesquisa cujo enfoque é multimodalidade e cultura. Graduada em Letras português pela Universidade Federal da Paraíba (2014). Especialista em Ensino de Língua Portuguesa como L2 para surdos pelo Instituto Federal da Paraíba (2020) e Mestre em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (2017). Partici- pou, durante três anos, como bolsista das Pesquisas: Hologestos: a relação entre os gestos e as holófrases na aquisição da linguagem e Contínuo gesto-vocal: aprofundando a matriz multimodal em Aquisição da linguagem. Edito Romão da Silva Júnior Mestre em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba. Pós-Graduado em Linguística Aplicada ao Ensino de Português pelas Faculdades Integradas de Patos. Graduado em Letras pela Universidade Estadual da Paraíba e Professor de Educação Básica do Estado da Paraíba. 190

Janielly Santos de Vasconcelos Viana Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística na Universidade Federal da Paraíba (PROLING/UFPB).Mestre em Linguística pelo PROLING (UFPB). Participa como pesquisadora integrante do Grupo de Estudos em Linguagem, Enunciação e Interação (GPLEI). Possui Graduação em Letras Português (UFPB- 2010-2014), Curso de Libras Básico e Avançado (IFPB-2013). Foi estudante de Iniciação Científica (PIBIC) e do Programa de Licenciaturas da UFPB (PROLINCEN). Pesquisadora na área de Análise Dialógica do Discurso, tem como foco o estudo das relações dialógicas e leituras do discurso literário, desenvolvendo estudos na área da Linguística e Cultura Popular. Atua como parecerista ad hoc em periódicos nacionais. Jéssica Roberta Araújo Ferreira Mestranda em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, pelo programa PROLING. Graduada em Letras-Português pela Universidade Es- tadual da Paraíba - UEPB. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa. Professora de Língua Portuguesa, Redação e Literatura em turmas do Ensino Básico pela rede estadual do estado da Paraíba. Desenvolve pesquisa a partir da teoria Semiótica greimasiana. Como também estudos na área da Análise do Discurso. Laís Cavalcanti de Almeida Graduada em Letras Português pela Universidade Federal da Paraíba (2013). Especialista em LIBRAS pela FACEN (2017). Mestre em Linguística pelo PROLING/UFPB (2018).Doutoranda em Linguística pelo PROLING/UFPB. Experiência na área de pesquisa em Linguística, com ênfase em Aquisição da Linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: multimodalidade, expressão facial,negação,gestos e interacionismo.Experiência no ensino superior nas áreas: LIBRAS, Língua Portuguesa, Comunicação e Expressão. 191

Lucila Campos de Andrade Graduada em Pedagogia pela Universidade Vale do Acaraú - UVA. Especia- lista em Educação Profissional Integrada à Educação Básica, na Modalidade de Jovens e Adultos, pela Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Atualmente é professora de Artes, na rede estadual de ensino da cidade de Campina Grande, atuando na EEEFM CAIC José Joffily. Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (1989), mestrado em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (1994) e doutorado em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (1999). Atualmente é professora titular da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Aquisição da Linguagem, atuando principalmente nos seguintes temas: aquisição da lin- guagem, interação mãe-bebê, prosódia, multimodalidade, letramento. É bolsista de produtividade em pesquisa pelo CNPq. Ramísio Vieira de Souza Doutorando em Linguística-Proling-UFPB, Mestre em Linguística-Proling- UFPB, graduado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, habilitação em Língua Portuguesa pelo Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV-UFPB) e especialista em Ciência da Linguagem com ênfase no ensino de Língua Portuguesa / Pós- Graduação lato sensu a Distância UAB/ CAPES/UFPBVirtual. Participou de grupos de estudos e pesquisas na área de leitura e interação na sala de aula, quando Pesquisador Bolsista/PIBIC-CNPq. Membro da Comissão Própria de Avaliação dos Curso da UFPB-CPA-AVALIES, Portaria R/GR/N° 928 e estagiário do projeto Apoio Pedagógico às Atividades de Leitura, Escrita e Matemática, desenvolvidas por alunos do Ensino Funda- mental, da Secretaria de Educação e Cultura do Município de João Pessoa. É membro do grupo de pesquisa Linguagem, Enunciação e Interação - GPLEI. 192

Rafael Venâncio É mestrando em Linguística e graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.Também é graduado em Letras Português pela Universidade Federal da Paraíba (2018).Problematiza as significações que recobrem o discurso jurídico decisório, a partir da teoria Semiótica de base greimasiana. Além disso, efetua crítica literária com fundamento nos estudos psicanalíticos (pós)freudianos, examinando as configurações subjetivas e culturais que revestem a arte em seus múltiplos gêneros discursivos. Silvanna Kelly Gomes de Oliveira Professora substituta do Departamento de Letras e Artes (UEPB/Campus I), com experiência anterior como professora substituta de Literatura Brasileira, na UFRN (CERES – Campus Currais Novos). Além disso, atuou como professora do ensino básico, em escolas particulares (Colégio Alfredo Dantas/CAD e Colégio Panorama – Campina Grande). Doutoranda pelo Programa de Pós- -graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB – 2018 até o momento) e mestra também pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB – 2015-2017). Graduada em Letras - Língua Portuguesa (UFCG – 2010-2014). Pesquisa com ênfase em literatura contemporânea,literatura de multidão,personagens mulheres e trabalho imaterial na ficção. Faz parte da diretoria de Literatura da Fundação artístico-cultural Manuel Bandeira (FACMA), em Campina Grande. Sílvia Maria Lima Teodulino Professora do Ensino Básico efetiva da Rede Municipal de Ensino da cidade de Queimadas-PB. Graduada em Pedagogia, pela Universidade Vale do Acaraú - UVA e graduada em Filosofia pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB. É especialista em Educação Infantil e Filosofia da Educação, pela Faculdade Integrada de Patos. Campinense e cordelista, desenvolve estudos nas Áreas de Cultura Popular, Educação e Filosofia. 193

Thalyta Costa Vidal Professora do Ensino Básico, em escolas particulares em Campina Grande- PB e Ingá-PB. Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB) e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Linguagem e ensino, com área de concentração em Literatura e ensino (POSLE/UFCG – 2015-2017). Graduada em Letras - Língua Portuguesa (UFCG – 2010-2014). Realiza estudos voltados para o ensino de literatura, literatura popular e a literatura produzida por mulheres. Faz parte da diretoria de Literatura da Fundação artístico-cultural Manuel Bandeira (FACMA), em Campina Grande. 194





“Desse modo, toda palavra, falada ou pensada, torna-se um certo ponto de vista para algum fenômeno da realidade, para alguma situação. [...] É justamente por isso, que uma mesma palavra, quando dita por pessoas de diferentes classes, refletirá também diferentes olhares, expressará diferentes pontos de vista, mostrará diferentes relações com a mesma realidade, com o mesmo fragmento de existência, que é o tema dessa palavra” Valentin Volóchinov


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