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Linguagens em perspectiva

Published by Papel da palavra, 2021-11-03 13:09:40

Description: Linguagens em perspectiva

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CONSELHO CIENTÍFICO linha editorial leveparaescola editor responsável Linaldo B. Nascimento Profa. Dra. Eliete Correia dos Santos (UEPB) Profa. Dra. Hélcia Macedo de Carvalho Diniz e Silva (UFPB-UNIPÊ) projeto gráfico Editora Leve Profa. Dra. Maria Verônica A. da Silveira Edmundson (IFPB) Profa. Dra. Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB) revisão Os autores Profa. Dra. Maria de Fátima Almeida (UFPB) Prof. Dr. Pedro Farias Francelino (UFPB) Direitos e Responsabilidades Reservados aos Organizadores Profa. Dra. Vera Lúcia Pires (UFMS-UFPB) Copyright © 2021 Janielly Santos de Vasconcelos Viana Campina Grande - Paraíba [email protected] Publicado por © Editora Leve Prefixo editorial 89402 / Agência Brasileira Campina Grande – Paraíba - Brasil editoraleve.com 1ª Edição [2021] _______________________________________________________________ L647 Linguagens em perspectivas: diálogos entre fronteiras /. Janielly Viana; Alixandra Oliveira; Ramísio Vieira de Souza; Maria de Fátima Almeida (Organizadores) - Campina Grande: Editora Leve, 2021. ISBN 978-65-89402-23-7 [Físico] ISBN 978-65-89402-24-4 [Digital] 1. Linguística 2. Diálogo e Sociedade 3. Educação e Linguagem I. Título CDU 80 CDD 800 | 1 Ed. _______________________________________________________________ Registrado conforme Lei nº 10.753/2003 POLÍTICA NACIONAL DO LIVRO

“Todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discur- sos de outrem que já falaram sobre ele. [...] O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social.” Mikhail Bakhtin



APRESENTAÇÃO A escrita proporciona um encontro em meio a um espaço discursivo e de relações de alteridades, em que se torna concreta a criação de um tecido social de relações que povoam a linguagem. Nesse construto identitário e, ao mesmo tempo,dialógico,singularidades e aproximações convivem,gerando tensões entre relações dialógicas e relações lógicas, mostrando que a existência da linguagem ganha vida e dinamicidade na comunicação humana. O processo de constituição dos indivíduos se dá a partir de um processo alteritário,consolidado socialmente,e das interações constituídas dialogicamente que, de acordo com a visão bakhtiniana, permitem a transformação de um eu em novos eus. (FARACO, 2001) “Eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim” (BAKHTIN, 2011, p. 342) Nossas pesquisas, in- vestigações, reflexões e produtos só adquirem conclusibilidade através do olhar do outro, esse outro que nos constitui e que nós o constituímos. Nesse sentido, Linguagens em perspectivas: diálogos entre fronteiras decorre das interações entre enunciados que possuem um objetivo em comum: reverberar e dar voz aos enunciados produzidos em diferentes investigações e suas finalidades. Dar asas ao texto que resulta do empenho investigativo que todo pesquisador detém, “[...] viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar.”(BAKHTIN,2011,p.348) O pesquisador participa do diálogo maior, representado pela sua ação investigativa e, simultaneamente, passa a ser, também, a parte a ser compreendida.Ao pesquisar ele revela seu tom e sua apreciação sobre determinados enunciados; ao ser compreendido, destaca o seu posicionamento axiológico, envolve-se, compreende e realiza confrontos e aproximações. Este livro reúne, em coletânea, nove artigos que apresentam diversas perspectivas relacionadas dialogicamente, a partir de um ponto em comum: a linguagem. Combinam-se, então, vozes representativas de uma multiplicidade 7

de discursos e de leituras, de análises, em um corredor que integra matizes, fronteiras, compreensões e valorações. Compreende Bakhtin (2011, p. 328) que os enunciados não se determinam, apenas, por suas relações com o objeto e como o sujeito-autor, “mas, imediatamente – e isso é o que mais importa para nós – com outros enunciados”, em um determinado campo da comunicação. “Dois enunciados distantes um do outro,tanto no tempo quanto no espaço, que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos sentidos revelam relações dialógicas se entre eles há ao menos alguma convergência de sentidos”. (BAKH- TIN, 2011, p. 331) Desse modo, são trazidos aqui, frutos de várias investigações que caracterizam relações entre a vida e a linguagem, entre o social e o cultural e que instigam, interrogam e conversam entre si, construindo assim, diálogos. As temáticas tratadas no desenvolvimento deste livro, as análises aqui descritas, revelam a diversidade e a riqueza da linguagem em seu acontecimento social, resultante dos debates teóricos e ações que visam dissipar as inquietações metodológicas e de pesquisa que rodeiam a linguagem e suas diversas realizações. Em vista disso, a variedade de textos, aqui veiculada, apresenta, em comum, a certeza do quão profícuo são os estudos discursivos, bem como, a relevância em se debruçar sobre as relações dialógico-discursivas com profundidade. Assim, a presente coletânea oferece uma amostra da profusão de questões, métodos e abordagens que circulam no âmbito dos estudos sobre a linguagem. No capítulo 1,A produção de subjetividade da personagem nômade Alice, em Quarenta Dias,de MariaValéria Rezende,Silvanna Kelly Gomes de Oliveira e Thalyta Costa Vidal analisam o modo como as experiências da personagem Alice são um contributo para a desconstrução do sujeito feminino, por meio do seu devir-nômade, na sociedade pós-moderna, sob a perspectiva da Literatura. No capítulo 2, Análise discursiva do estereótipo da mulher negra e gorda, Jéssica Roberta Araújo Ferreira e Rafael Venâncio, abordam os conceitos foucaultianos de poder,interdição,vontade de verdade,dentre outros,para refletir sobre os discursos constituintes de uma reportagem veiculada no site G1 – Jornal Nacional, que aponta para racismo e gordofobia sofridos pela mulher negra. No capítulo 3, As relações dialógicas no gênero charge: uma análise do enunciado“E daí?!”,nas charges de Régis Soares,Janielly Santos de Vasconcelos Viana e Ramísio Vieira de Souza analisam, a partir dos estudos bakhtinianos, o 8

percurso dialógico que constitui o gênero charge, mais especificamente, a partir das charges de Régis Soares que versam sobre o enunciado “E daí?”, discursi- vizado, em enunciados presidenciais, no contexto de produção dos discursos sobre o enfrentamento do novo coronavírus, na atual conjuntura pandêmica. No capítulo 4, Cartazes produzidos para a Marcha das Vadias: tom valorativo e alteridade na construção da identidade feminina, Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira investiga a constituição da alteridade feminina por meio dos tons valorativos materializados linguisticamente nos cartazes fabricados para as Marchas ocorridas na cidade do Recife, nos anos de 2017, 2018 e 2019, segundo a ótica dos estudos bakhtinianos. No capítulo 5, Discursos (indefensáveis): deslegitimação, verdade e poder, Rafael Venâncio e Jéssica Roberta Araújo Ferreira partem da Semió- tica Discursiva, de base greimasiana, do Direito e da Retórica aristotélica, para averiguar os sentidos constituintes do texto decisório do juiz Ricardo Lewandowski, bem como averiguar as estratégias argumentativas utilizadas, apresentadas como verdade. No capítulo 6, Filosofia e Cordel: perspectivas reflexivas quanto ao uso em sala de aula, Lucila Campos de Andrade e Sílvia Maria Lima Teodulino compreendem os aspectos da Filosofia, da Literatura de Cordel e da Educação através da introdução do Cordel em sala de aula, enquanto um instrumento de ensino nas aulas de Filosofia, no Ensino Médio. No capítulo 7, Multimodalidade em cena: as contribuições dos ges- tos emblemáticos para a inserção de crianças com Síndrome de Down em contextos de atendimento clínico, Ediclécia Sousa de Melo, Laís Cavalcanti de Almeida e Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante partem da perspectiva da Multimodalidade para mapear e analisar gestos emblemáticos produzidos por duas crianças com Síndrome de Down, em atendimento fonoaudiológico. No capítulo 8, Técnicas de contação de histórias para responsáveis durante a pandemia de Covid-19, Arilane Florentino Félix de Azevêdo e Edito Romão da Silva Júnior tem por objetivo geral instrumentalizar pais e responsáveis para o desenvolvimento da contação de histórias frente ao contexto pandêmico oriundo da Covid-19, produzindo reflexões sobre raça e gênero, por meio da contação do livro Dandara e a princesa perdida, de Maíra Suertegaray. 9

No capítulo 9,Tema e significação no processo de valoração e revaloração do “meme do caixão”: uma reflexão à luz da perspectiva da análise dialógica da linguagem, Cecília Noronha Braz Alves investiga os conceitos de tema e significação a partir dos ‘memes do caixão’, produzidos no primeiro semestre de 2020 e que circularam no ambiente virtual, em meio à pandemia da Covid-19. Os organizadores Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Março/2021 10

SUMÁRIO A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE DA PERSONAGEM NÔMADE ALICE, EM QUARENTA DIAS, DE MARIA VALÉRIA REZENDE | 15 Silvanna Kelly Gomes de Oliveira Thalyta Costa Vidal ANÁLISE DISCURSIVA DO ESTEREÓTIPO DA MULHER NEGRA E GORDA | 35 Jéssica Roberta Araújo Ferreira Rafael Venâncio AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NO GÊNERO CHARGE: UMA ANÁLISE DO ENUNCIADO “E DAÍ?!”, NAS CHARGES DE RÉGIS SOARES | 56 Janielly Santos de Vasconcelos Viana Ramísio Vieira de Souza CARTAZES PRODUZIDOS PARA A MARCHA DAS VADIAS: TOM VALORATIVO E ALTERIDADE NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA | 77 Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira DISCURSOS (IN)DEFENSÁVEIS: DESLEGITIMAÇÃO, VERDADE E PODER | 94 Rafael Venâncio Jéssica Roberta Araújo Ferreira FILOSOFIA E CORDEL: PERSPECTIVAS REFLEXIVAS QUANTO AO USO EM SALA DE AULA | 110 Lucila Campos de Andrade Sílvia Maria Lima Teodulino

MULTIMODALIDADE EM CENA: AS CONTRIBUIÇÕES DOS GESTOS EMBLEMÁTICOS PARA A INSERÇÃO DE CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN EM CONTEXTOS DE ATENDIMENTO CLÍNICO | 133 Ediclécia Sousa de Melo Laís Cavalcanti de Almeida Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante TÉCNICAS DE CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS PARA RESPONSÁVEIS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19 | 151 Arilane Florentino Félix de Azevêdo Edito Romão da Silva Júnior TEMA E SIGNIFICAÇÃO NO PROCESSO DE VALORAÇÃO E REVALORAÇÃO DO “MEME DO CAIXÃO”: UMA REFLEXÃO À LUZ DA PERSPECTIVA DA ANÁLISE DIALÓGICA DA LINGUAGEM | 169 Cecília Noronha Braz Alves SOBRE OS AUTORES | 189





DADELAIMCPEAAES,RRUPEISBRAMOJONVEQDAATUULIGAÇVÉERÃIRMDEOIAANNDDTRÔEEAEMZDAEIDANESD,E Silvanna Kelly Gomes de Oliveira Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande – Paraíba [email protected] Thalyta Costa Vidal Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande – Paraíba [email protected]

Dentro do panorama literário,quando comparada a outras personagens mulheres, Alice, protagonista do romance Quarenta Dias (2014), de Maria Valéria Rezende, apresenta certa singularidade, uma vez que produz várias subjetividades, ao invés de se apegar ao capitalismo material. Nesse sentido, propomos uma nova abordagem crítica do estudo da referida personagem, considerada neste trabalho como nômade, uma vez que se des- loca geográfica e subjetivamente, trazendo consigo experiências de trocas, de impressões, de diálogos interculturais.Tais experiências dificilmente são lidas para além dos estigmas identitários, sobretudo, aqueles construídos para a mulher como personagem na literatura. Nesse artigo, no entanto, buscaremos analisar como as vivências subjetivas e espaciais de Alice contribuem para a desconstrução do sujeito feminino como aquele dotado de uma identidade fixa, apresentando seu devir-nômade como uma nova configuração imaterial. A produção de subjetividade é, portanto, aqui vista como o ponto de partida para a desmanche dessa identidade fixa, considerando que a literatura reflete as novas configurações do sujeito pós-moderno, influenciado pela mudança das relações entre tempo e espaço oriundas da globalização. Logo, é a partir das identidades fragmentárias que essas novas configurações passam a ser uma recorrência na contemporaneidade literária. Para tanto, nos ancoraremos nos conceitos de globalização, proposto por Hall (2019) e de nomadismo a partir da visão do sociólogo Mafessoli (2001). Além disso, faz-se também necessário considerarmos o conceito de “rizoma”, proposto por Deleuze e Guattari (1995), bem como nos embasamos nas concepções acerca do traba- lho imaterial propostas por Lazzarato (2014), Cocco (2012) e Negri (2003). Palavras-chave: Identidade. Personagem nômade. Trabalho imaterial. Subjetividade. 16

INTRODUÇÃO Dentro do contexto efervescente da desconstrução da literatura, surge um fenômeno ainda pouco investigado nas obras literárias, cuja consolidação se dá através da produção de subjetividade: o trabalho imaterial. Este trabalho é considerado mais produtivo do que o material, pois escapa ao maquinário capi- talista e às categorias fixas – de gênero, de etnia, de espaços, de linguagem etc –, fazendo-se uma mola propulsora do capitalismo cognitivo da contemporaneidade. Ao tratarmos do trabalho imaterial como ponto de partida para os estudos lite- rários, nos referimos também à crescente perda da autonomia desses estudos, os quais determinaram o termo “literatura”, vinculado às teorias e críticas clássicas das obras literárias, há cerca de dois séculos, com o advento do Romantismo. Percebe-se, no entanto, na literatura contemporânea, o desenraizamento dos métodos literários e a sua pós-autonomia, desembocando na descentraliza- ção das identidades fixas, não apenas em relação aos personagens, mas também no que concerne às estruturas das obras literárias. Nesse sentido, o nomadismo surge como um fenômeno literário, sobre o qual as geografias se dissolvem, as fronteiras entre a identidade e a alteridade são desfeitas, o universal e o regio- nal se intercruzam, reforçando a ideia de que a ficção encontra-se no limiar da realidade. Dessa forma, as discussões acerca das novas geografias literárias fazem-se relevantes perante as novas reverberações do pós-moderno. Nesse cenário, os sujeitos imersos no âmbito ficcional são vistos como rasuras de um mundo globalizado, onde o encontro com a alteridade revela não somente um mundo à parte, como também as subjetividades presentes no mais íntimo de cada um. Desse modo, a análise literária necessita de novas abordagens que abarquem as múltiplas possibilidades de viagem – concretas ou mentais – a fim de aprofundar a leitura dos personagens das obras mais recentes. Para tanto, a escolha do corpus se pauta na autora, radicada na Paraíba, Maria Valéria Rezende cuja obra Quarenta dias (2014) tem o objetivo de promover uma leitura imaterial, verticalizando a discussão proposta. Sobre a autora, vale ressaltar que, apesar de Maria Valéria Rezende ser bastante lida e estudada no Brasil nos últimos anos, já que ganhou o prêmio Jabuti duas vezes, ela não participa do cânone literário brasileiro, pois ainda é 17

uma produção recente historicamente. Além de tudo, trata-se de uma mulher, o que implica no destaque à marginalização histórica das produções literárias de autoria feminina.É válido frisar,por outro lado,que Quarenta dias (2014) ganhou 1° lugar do Prêmio Jabuti 2015, romance; e Outros Cantos (2016) – Prêmio Jabuti 2017, 3º lugar, na categoria romance. Por esta razão, a ideia defendida neste artigo está na afirmação de uma nova crítica sobre sua personagem,“xará” daquela do país das maravilhas[1]. Diante deste quadro, o trabalho proposto singulariza-se no sentido de propor a produção de subjetividade como uma desconstrução da identidade fixa da mulher na literatura contemporânea. Para isso, a análise do corpus abordará os aspectos imateriais da personagem Alice,que se perfaz pelo nomadismo enquanto nova forma de estar no mundo, cuja mobilidade reflete desenraizamentos e atra- vessamentos para a multiplicidade. Ou seja, apresenta-se um sujeito inundado por experiências subjetivas – imateriais – que dificilmente são lidas para além dos estigmas identitários, sobretudo, aqueles construídos para a mulher como personagem na literatura, tanto a mais clássica, quanto a mais contemporânea. Por fim, utilizaremos, a fim de sustentar nossa ideia, o conceito de globa- lização atrelado à desconstrução das identidades fixas proposto por Hall (2019); já a nossa discussão acerca do nomadismo será embasada pelas proposições do sociólogo Michell Mafessoli (2001), relacionando-se à concepção de errân- cia. Além disso, utilizaremos o conceito de “rizoma” proposto por Deleuze e Guattari (1995), para analisarmos as descentralizações existentes na sociedade contemporânea, assim como também nos ancoraremos nas concepções acerca do trabalho imaterial, nos embasando em Lazzarato (2014), Cocco (2012) e Negri (2003); entre outros. TRABALHO IMATERIAL NA LITERATURA É necessário tecer uma reflexão acerca dos tipos de linguagens que percorrem as narrativas, entre as quais estão presentes as contemporâneas, 1   H á uma alusão recorrente na obra Quarenta dias (2014) à Alice no país das mara- vilhas (1865), de Lewis Carroll, sobretudo, quando a personagem Alice se refere à personagem do clássico como “xará”. 18

aquelas que fundamentam a “sujeição social”, implicando em uma identidade fixa, um sexo, um corpo, uma profissão, etc. Dessa forma, fabricam-se sujeitos individuados, sua consciência, representações e comportamento, de acordo com Lazzarato (2014). Nesse sentido, é importante compreender que a produção de subjetividade capitalista atribui aos sujeitos papéis sociais, distribuindo os seus lugares e hierarquizando os estratos de valor da cultura, através da própria linguagem literária. Pelbert (2011, p. 29) ratifica que: O trabalho dito imaterial, a produção pós-fordista, o capitalismo cogni- tivo, todos eles são fruto da emergência do comum: eles todos requisitam faculdades vinculadas ao que nos é mais comum, a saber a linguagem, e seu feixe correlato, a inteligência, os saberes, a cognição, a memória, a imaginação, e por conseguinte a inventividade comum. Mas também requisitos subjetivos vinculados à linguagem, tais como a capacidade de se comunicar, de relacionar-se, de associar, de cooperar, de compartilhar memória, de forjar novas conexões e fazer proliferar as redes. Nessa perspectiva, é necessário problematizar dois vieses: os muitos agenciamentos do capitalismo, bem como a própria literatura como lugar politicamente estratégico para questionar a produção de subjetividade na contemporaneidade. Félix Guattari afirma que esta produção “permanece hoje massivamente controlada por dispositivos de poder e de saber que colocam as inovações técnicas, científicas e artísticas a serviço das mais retrógradas figuras da socialidade” (GUATARI, 1999, p. 190). Ou seja, os dispositivos de poder ainda controlam a produção intelectual, mas cabe a nós buscar a “rasura” desses modos de ler, alheios às subjetividades dos sujeitos-personagens. Nesse sentido, o trabalho imaterial aparece como forma de burlar esse sistema que a tudo controla,fazendo com que,dentro do campo literário,a própria crítica redirecione seu olhar sobre a obra. Nesse sentido, Negri (2003) afirma que o trabalho imaterial é compreendido como o conjunto de atividades intelectuais, comunicativas, afetivas, as quais são realizadas pelos sujeitos, bem como pelos movimentos sociais, o que, segundo a linha marxista, em algum momento da história, sobretudo do século XIX, ficou relegado às energias inessenciais. 19

Assim dizendo, seu estudo nunca foi tão pertinente à atualidade, em que tudo conflui para uma virtualidade do tempo, transcendendo o trabalho material. O saber vivo, o capital cognitivo não possui mais os mesmos critérios de medidas monetários inerentes aos valores da mão-de-obra material. Em sua ponderação sobre o capital humano, Giuseppe Cocco (2012) aponta para o saber vivo – experiência, capacidade de organização e de comunicação etc – como distante da lógica do capitalismo de mercado. Ele afirma também que: O novo modo de ser da riqueza contemporânea não se deve a uma guinada antiprodutiva do capital, mas é o único meio que lhe resta para tentar retomar o controle sobre um trabalho cujas dimensões produtivas independem, cada vez mais, de sua submissão ao capital produtivo e ao seu chão fabril (COCCO, 2012, P. 34). Dessa maneira,é possível perceber que ao mesmo tempo em que o trabalho imaterial parece ir além, ele também pode produzir valor econômico, o que pode ser confirmado no momento em que “materializa as necessidades, o imaginário e os gostos do consumidor”(LAZZARATO; NEGRI, 2013, p. 66). Assim, vê- -se que nem sempre o lado subjetivo da vida escapa ao maquinário capitalista, o qual devolve aos sujeitos-consumidores produtos de seu trabalho imaterial, estendendo-se desde os seus afetos até o campo das artes – como a literatura –, sobretudo, quando esses produtos são atravessados pela indústria cultural. A partir das considerações tecidas de modo embrionário acerca do trabalho imaterial, precisamos ter em mente que a ação política não deve se concentrar apenas na economia,no social ou no linguístico,mas na produção de subjetividade do indivíduo coletivo,buscando realizar uma reconfiguração discursiva e existencial. Somente essa ruptura permitirá vislumbrar a construção de outras realidades,o que, por sua vez, abririam novas possibilidades e demandariam o desenvolvimento de novas linguagens e novas formas de vida. Nesse sentido, Negri (2003) afirma que: [...] será um indivíduo social e coletivo que determinará o valor da produção, pois, sendo o trabalho organizado em formas comunicativas e linguísticas, e o saber sendo algo cooperativo,a produção dependerá sempre mais da unidade de 20

conexões e de relações que constituem o trabalho intelectual e linguístico,isto é, dependerá,então,desse indivíduo coletivo (NEGRI,2003,P.93,grifos do autor). Em outras palavras,a linguagem como produtora de uma nova subjetividade pode ser lida na perspectiva alargada das obras literárias, que, dentro do cânone, ficaram bastante restritas às leituras estruturalistas – tal como a constante refe- rência aos elementos da narrativa –, sendo desconsideradas por muito tempo a produção intelectual de seus personagens,bem como a emergência de um indivíduo coletivo repleto de riqueza imaterial. Dessa vez, a proposta é adentrar o universo literário, determinando o valor da produção a partir das formas comunicativas e linguísticas, que passam ao largo da construção aurática e “intocável” – frutos do maquinário capitalista – da literatura ao longos dos dois últimos séculos. Como aponta Oliveira (2017), torna-se imprescindível dessacralizar a arte literária, fazendo com que ela possa ter seu espaço de multiplicidade, des-hierarquizado e mais democrático: [...] o elo entre o direito à cidadania cultural na contemporaneidade, numa perspectiva democrática, e o direito à literatura como produção de subje- tividade tem influenciado diretamente na problematização da perspectiva social, econômica, política e cultural, molas propulsoras de visões elitizadas de todos estes aspectos. Vale salientar, por outro lado, que a literatura conquistou seu espaço de multiplicidade [...], o qual “dessacralizou” a literatura e seus lugares e valores instituídos. (OLIVEIRA, 2017, P. 65) No caso da obra Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende, o devir-nômade que será apresentado pela personagem Alice, atravessada por afetos, sentimentos, experiências na rua, trocas de solidariedade, horizontaliza a leitura e amplia a metodologia literária, uma vez que o olhar lançado não estará mais pautado no debate sobre o estereótipo de mulher idosa, mas estará recorrendo às potências subjetivas que são invisibilizadas pela crítica literária. Alice produz trabalho imaterial através da linguagem, pois o seu indivíduo coletivo reforça o saber vivo dentro do espaço ficcional, geográfico e intimista. 21

IDENTIDADE, NOMADISMO E LITERATURA Torna-se inconcebível, na pós-modernidade, considerarmos a ideia de sujeito cartesiano, proposta por Descartes, ou de sujeito iluminista, problema- tizada por Hall (2019), passando este, portanto, a ser substituído pelo sujeito pós-moderno, aquele cuja identidade, segundo o sociólogo, é determinada interna e externamente a partir das relações que são estabelecidas em sociedade. O in- divíduo pós-moderno encontra-se, dessa forma, não apenas deslocado de uma concepção arraigada de identidade, mas também imerso em um dilema que é criado pela fantasia psicanalítica de uma fixação da própria imagem. Além disso, está articulado ao rizoma[2] que lhe confere uma identidade múltipla, formada por meio das virtualidades. Essa nova configuração traz ao homem uma identidade nômade, seja no espaço de suas vivências ou no universo ficcional.De acordo com Mafessoli (2001), o conceito desse arcaísmo apresentaria uma ligação direta com a definição que ele nos apresenta como “errância”. Seriam esses nomadismos – relacionados às identidades múltiplas e transitórias – os responsáveis pelo sujeito estar impreg- nado de errâncias, isto é, de desejos de mudança, de descobertas. Para o autor: A errância, finalmente, é apenas um modus operandi que permite abordar o pluralismo estrutural dado pela pluralidade de facetas do \"eu\" e do con- junto social. E também um modo de vivê-lo. Em seu sentido mais estrito é um \"êxtase\" que permite escapar simultaneamente ao fechamento de um tempo individual, ao princípio de identidade e à obrigação de uma residência social e profissional (MAFESSOLI, 2001, P. 113). Observa-se, nesse sentido, que identidades, cuja estabilidade se deu durante muito tempo, encontram-se em declínio no que concerne ao ser hu- mano fragmentado e plural pertencente à contemporaneidade. Esse processo de mudança, de descentralização, de desterritorialização proporciona uma crise 2   É um modelo que não cessa de se erguer e de desmoronar, e do processo enquan- to tal, que não cessa de se prolongar, de se romper, e de recomeçar (DELEUZE; GUATARI, 1995). 22

de identidade do indivíduo consigo mesmo e com o outro, o que resulta no questionamento da sua identidade pública, desorganizando a sua identidade privada e vice e versa. Para além do âmbito individual, o homem globalizado, ao realizar a passagem do individual para o social, se configurará como um ser conflituoso por situar-se em um mundo em que a tradição, a memória e a herança cultural encontram-se descontinuadas e fragmentadas na dinâmica que envolve o novo ser coletivo. Assim, a sua identidade cultural, que, para Hall (2019), significa estar em contato com um núcleo imutável, é rompida, colocando esse ser em condição de deslocamento. Logo, a literatura aparece como um espaço passível dessas novas reverberações, tendo em vista a apresentação de um campo ficcio- nal repleto de personagens “contaminados” pelo fenômeno da desconstrução. Pode-se inferir, a partir das elucidações supramencionadas, que o con- ceito de literatura não está associado apenas à verossimilhança tão discutida por Aristóteles (2014), mas também à criação de uma linguagem literária que ressignifica, no cenário contemporâneo, as possibilidades de uso da língua. Sendo assim, a linguagem, enquanto dispositivo de poder – como analisa Foucault (1987) em relação aos dispositivos carcerários –, molda os espaços possíveis para a abordagem de sujeitos literários, limitando-os e, algumas vezes, descon- siderando as demandas contemporâneas que estão inseridos nos nomadismos. No entanto, é preciso trazer à baila essas demandas, apresentando uma nova perspectiva literária. Como podemos observar na obra da autora Maria Valéria Rezende, cuja obra está situada em trânsitos concretos e subjetivos de espaços desterritorializados, [...] sob uma perspectiva menos autocentrada, é possível vislumbrar, [...], uma infinidade de estratégias de resistência e de deslocamentos, ou tenta- tivas de deslocamento, no espaço social. As implicações dessas estratégias na existência das personagens e na economia da narrativa, tornam-se uma questão crucial para o entendimento de suas possibilidades. Já o modo como elas são vistas e descritas não deixa de refletir o julgamento que é feito, por vezes, de forma inconsciente, dos integrantes desses grupos (DALCASTAGNÈ, 2012, P. 49). 23

O sujeito nômade, em consonância com essa literatura de possibilidades, confirma a hipótese de que “os acontecimentos são reais, mas não possuem a reali- dade dos corpos físicos,pois emergem do encontro desses como efeitos de relações” (DELEUZE; GUATARI, 1991). Os acontecimentos são impalpáveis, portanto, resultam do encontro do corpo do não-lugar com as forças subjetivas que o incluem nas vivências reais. Dessa forma, é necessário analisar para além do concreto e su- perficial que estão no enredo de uma obra literária, o que não impede a análise de uma possível língua nômade, tal como afirmam Lessa e Maciel Jr (2016, p. 161): “a língua nômade dos conceitos diz os acontecimentos que exprimem a vocação para- doxal de uma filosofia que cria as condições revolucionárias de afirmação da vida”. Cabe ressaltarmos, ainda, que essas obras, cujas identidades das personagens estão em constante transformação, fazem com que o marginal constitua o centro, e não mais os espaços periféricos da escrita,por meio dos seus diversos enraizamentos dinâmicos.Tal característica faz com que a literatura contemporânea esteja rompendo com um modelo canônico em que os estereótipos são firmados em um único sentido, os quais apresentam como consequência características bipartidas (homem/mulher, bom/mau, rico/pobre), o que resulta na incessante exclusão de alguns grupos. Além disso,não se trata apenas dos personagens das obras que se encontram nesse nomadismo, mas a própria escrita pós-moderna e seus encandeamentos com os autores. Maria Valéria Rezende, por exemplo, possui vieses autoficcio- nais em sua obra, tendo em vista que seus narradores e personagens passam por experiências próprias de sua vida. Nesse contexto, o texto é permeado por uma dinâmica bastante nômade entre o eu que escreve, o eu que narra e ainda o eu narrado. Sem se fundirem ou se excluírem totalmente, tais instâncias revelam- -se vertiginosas frente ao leitor, evidenciando uma espécie de porosidade nas fronteiras do jogo ficcional (ALONSO, 2016, p. 10). Diante do exposto, esse jogo ficcional, ao qual se refere o autor, reitera o fato da existência de uma movência entre o texto e a obra, entre o vivido e o imaginado, entre o que foi experimentado através do olhar de um observador ou da experiência corporificada. Defrontamo-nos, por consequência, com um texto literário também nômade, que reinventa a tradição, atribuindo-lhe novas configurações identitárias das personagens e da autora Maria Valéria Rezende enquanto sujeito social. 24

UMA LEITURA DE QUARENTA DIAS, DE MARIA VALÉRIA REZENDE - A PROPÓSITO DA OBRA A obra Quarenta dias (2014), de Maria Valéria Rezende é uma narrativa autoficcional que se refere a um protagonismo feminino – de uma mulher idosa, chamada Alice – que passa por uma grande ruptura no momento em que sua filha Norinha a induz a morar com ela em Porto Alegre. Alice resiste, mas tanto sua filha, como sua amiga Elizete consideram sua vontade de ficar sozinha em João Pessoa uma tolice. Por isso, ela acaba cedendo e viajando para o Sul do país. Seu estranhamento ao espaço novo é refletido pela relação construída com a Barbie, presente na capa do caderno, a qual vira sua \"amiga confidente\". Isso porque sua filha muda abruptamente os planos e mais uma vez a abandona, deixando- -a sozinha. A boneca é sua única confidente, embora sua imagem seja próxima demais a um padrão estético de beleza que incomode Alice algumas vezes. Nesse ínterim, Alice sai em busca de sua própria identidade no momento em que vai à busca de Cícero, paraibano, que havia viajado a Porto Alegre a tra- balho, no entanto, desaparece e para de dar notícias à família. É a partir daí que as referências ao clássico Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, surgem como uma forte referência, uma vez que o nome da personagem é o mesmo e toda caminhada em busca de respostas também aparece no romance, com a diferença do contexto – não mais seres caricaturais –, mas pessoas reais, ruas da cidade, lugares subalternizados pelos grandes centros. Nas narrativas brasileiras contemporâneas, o espaço citadino tem aparecido como agente determinante da significação da narrativa como um todo. “A cidade surge, assim, enquanto personagem” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 110). Tal caminhada em busca de si mesma faz com Alice conheça pessoas do subúrbio,converse com várias delas,recolha anúncios na rua,observe os meandros da cidade, comportando-se como uma flanêur no intuito de descobrir-se e de desdobrar-se. O flâneur, de acordo com Walter Benjamin (1994), é uma figura marcada pela ambiguidade e pelo deslocamento. A procura de Cícero é apenas um pretexto para que a idosa Alice se depare consigo mesma. Vale ressaltar, também, que a alusão a esses dias passados nas calçadas, praças, rodoviárias, comunidades, como uma pessoa em situação de rua, advém de traços biográficos, 25

já que a própria autora Maria Valéria Rezende se aventurou durante quinze dias pela cidade de Porto Alegre para conhecer aqueles espaços hostilizados e invisibilizados. Essa experiência foi contada pela autora em entrevista[3]. Além disso, a configuração do romance contemporâneo possui bastante influência dos movimentos ininterruptos da cidade, repleta de brechas, becos, vilas, favelas, lugares despercebidos pelos moradores, onde se encontram bilhetes, propagandas dos mais diversos serviços, contas de restaurantes, anúncios de cachorro desaparecido e de cartomantes prometendo um futuro revelado etc. No início de seus capítulos, Maria Valéria investe na inserção de imagens retiradas dos quarenta dias em que Alice passou transitando por diversos lugares. Essa presença de discursos e referências de passagens de outros autores mostra um hibridismo de linguagens que percorrem as narrativas contemporâneas, cuja formatação vem se ressignificando como um espaço passível de interdiscursos. Nesse sentido, Essa literatura não é passível de emolduramento ou padronização,tendo em vista a multiplicidade e heterogeneidade dos textos produzidos,abarcando, sobretudo, temáticas sociais e existencialistas, problematizando a existên- cia do próprio indivíduo tanto no âmbito das relações sociais quanto no âmbito da sua subjetividade, apontando, assim, para sua descentralização e fragmentação, refletidas por meio de escritos também fragmentados e descentralizados (NEVES; MELO, 2018, P. 125). Portanto, a literatura de Maria Valéria Rezende nos transporta para um universo fragmentado e desterritorializado, relacionando-se ao conceito de nomadismo da protagonista e da própria obra, bem como à imaterialidade de suas experiências. A fim de consolidar essa discussão, nos deteremos na análise crítico-interpretativa das vivências de Alice à luz da produção de subjetividade, concretizada através do seu trânsito pelo espaço citadino. 3    Entrevista cedida ao Paraíba já – Compromisso com a verdade, sobre sua obra Qua- renta dias (2014), com o repórter Sandro Alves de França. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=YAMjIBw5mgw. Acesso em: 20 de nov. 2020. 26

UMA LEITURA IMATERIAL DO NOMADISMO DE ALICE As reflexões levantadas por Hall (2019) acerca da globalização na moder- nidade passam a ter um profundo envolvimento com a forma como a identidade é representada na arte, sobretudo, na literatura. As identidades, antes fixas – a exemplo de personagens mulheres,“mulher anjo”,“mulher sedutora”,dentre outras estereotipias – passam a constituir um caráter limitante, sendo, assim, transmu- tado mediante as personagens rizomáticas, conceito desenvolvido por Deleuze e Guatari (1995), em Mil platôs, e que se aplica também ao universo literário. Em se tratando dessas identidades que se dissolvem, a personagem Ali- ce é construída para se desconstruir, uma vez que ela transita geográfica – de João Pessoa a Porto Alegre – e subjetivamente, no momento em que se deixa perpassar por experiências, pessoas, sentimentos, ruas e pensamentos. Ela primeiramente se apresenta como uma professora, Póli, que se aposenta, na Paraíba, assumindo, em um dado momento, o papel da “avó” de um possível neto, cujo cuidado ficaria a cargo dela. Por consequência, ela é obrigada a se desfazer dos seus pertences – exceto o caderno da Barbie – para ir morar com a filha Norinha no sul do país: Eu,pasmada,sentada lá no mesmo canto,ouvindo,misturado ao chiado de papel celofane amassado, claques de portas se abrindo e fechando, aquele falatório dela, com a toada paraibana de volta. Autêntica ou forçada para me domesticar melhor? E por aí foi, Norinha perguntando e responden- do por mim, até esvaziar a última sacola, bater pela última vez todas as portas e gavetas dos armários, das geladeiras. O almoço é só esquentar no micro-ondas, viu, Mãínha? (REZENDE, 2014, P. 49) Essa domesticação pela qual Alice se submete é totalmente contrária à rique- za subjetiva intrínseca ao seu âmago, uma vez que, mesmo ela se colocando como passiva, a resistência vai aparecer quando ela escapa a essa servidão imposta por Norinha. No seu interior, ela não concorda com as imposições da filha e por isso se reinventa,para além da identidade fixa que lhe é atribuída,quando decide ir às ruas atrás de Cícero Araújo: “Ganhei a rua e saí a esmo, querendo dar o fora dali o mais 27

depressa possível, como se alguém me vigiasse ou me perseguisse, mas saí andando decidida, como se soubesse perfeitamente aonde ia, pisando duro, como nunca tinha pisado em parte alguma da minha antiga terra” (REZENDE, 2014, p. 95). Esse desmonte de identidade é observado em outro momento, quando Alice está na rodoviária e decide tomar banho por lá mesmo, levando consigo as calcinhas que havia comprado e as meias sujas. Em diálogo com a Barbie, a personagem ouvinte, que, apesar de inanimada, representa sua válvula de escape para essas rupturas e decisões inesperadas em relação à sua vida, ela afirma: “Que luxo!, imagine que luxo era aquilo pra mim, naquela hora, Barbie. Não, você não imagina, você não tem dente pra escovar, você não come, você não precisa ir ao banheiro, você só toma banho de brincadeira, bom, enfim, quem sabe assim mesmo você entende” (REZENDE, 2014, p. 188). A concepção de luxo geralmente está associada à materialidade, mas para Alice ela se ressignifica, pois ela mesma completa que “[...] era a primeira vez que eu fechava uma porta atrás de mim com tranquilidade, desde que tinha posto o pé na rua, há séculos” (REZENDE, 2014, p. 187) e “Saí do chuveiro renascida [...]” (REZENDE, 2014, p. 191), o que implica na sua subjetividade enquanto motor da sua autodescoberta, aparentemente mais valiosa do que qualquer conforto material que Norinha tentaria falhamente lhe proporcionar. Além disso,há outra passagem na obra que retrata uma crítica ao maquinário capitalista – representado pelo celular – que se encontra totalmente interligado aos sujeitos, de forma intercambiável, tal como a própria servidão maquínica atua ao dessubjetivar os gostos, vontades, afetos, invadindo abstrações inimagináveis. Chegando a um restaurante barato, Alice se depara com uma mulher paraibana, no balcão, próximo a ela, atendendo uma ligação, o que, inicialmente, lhe traz o conforto de encontrar uma igual, mas também lhe traz certo incômodo: Esperei, acho que nunca esperei tão gostosamente que alguém acabasse uma longa conversa no celular, coisa que sempre me irritou. Não aguento gente que, até mesmo sentada num restaurante com quem lhe fez um convite pra almoçar, se essa coisa tocar, larga você peitosamente, a presença eletrônica mais forte e exigente do que a presença de uma mera criatura de carne e osso (REZENDE, 2014, P. 193). 28

Por outro lado, as memórias, impressões do espaço e confabulações pro- movidas pelas paisagens também são efeitos do nomadismo de Alice pelas ruas, cuja experiência transcende qualquer viés concreto e materialista. Exemplo disso se encontra quando ela para, em uma das praças de Porto Alegre e começa a conjecturar seu passado em João Pessoa, desfazendo os limites geográficos e misturando o presente com o pretérito: Já passava bem das quatro da tarde e eu ainda na praça, lendo uma página aqui, outra ali, os olhos escapando delas pra acompanhar ao acaso algum passante, notando que aumentava o número e a zoada dos passarinhos, pássaros migrarem aqui também, partindo no rumo do Sul, da Patagônia?, chegando?,de volta do Nordeste?,em João Pessoa as praças do Centro ficam uma festa no mês de junho, bandos de aves migrantes traçando desenhos no céu [...], eu ia ao Centro às vezes só pra apreciar aquilo e sonhava Um dia hei de ir com elas até lá. [...] Eu estava ali, perdida e sentimental, no meio desta cidade de Porto Alegre, mas não creio que enfeitasse nada” (REZENDE, 2014, P. 176). Toda essa produção do sujeito nômade percebida em Alice representa a cooperação “subjetiva”, tornando-se a principal força produtiva, já que as ações do trabalho mostram uma pronunciada índole linguístico-comunicativa, impli- cando a exposição perante os demais. Ou seja, diminui-se o caráter monológico do trabalho e a relação com os outros aparece como um elemento originário, básico, de modo algum acessório (VIRNO, 2013). Em se tratando dessa rela- ção com o Outro, isto é, com a alteridade, ressalta-se a riqueza das relações de solidariedade, de compartilhamentos, para a constituição de uma nova Alice a partir do outro. Esse ponto é observado, no momento em que ela se referência explicitamente à personagem de Lewis Carroll: “Emburaquei pela viela, Alice em novo buraco dentro de outro buraco, de outro buraco, de outro buraco…” (REZENDE, 2014, p. 216). Ainda nesse sentido, ela continua sua busca por Cícero e, como ela mesma afirma, “de volta aos becos de Maria Degolada, despejando, de porta em porta, a versão enriquecida e mais dramática da história de Cícero Araújo recriada 29

na terra da santa [...]” e “Tentaram me ajudar, levaram-me e contaram eles mesmos a lenda até o fim do longo beco espremido entre grandes prédios [...]” (REZENDE, 2014, p. 206). A riqueza imaterial é confirmada pela personagem, pois se encontra com moradores dessa zona suburbana de Porto Alegre, onde é atravessada não apenas pelas trocas linguísticas, mas também culturais.Tal troca intercultural é feita quando ela se depara com uma comunidade quilombola, na Área Federal, do Quilombo Família Silva: Eu já estava mesmo disposta a tudo, segui um pedacinho pelo mato e logo dei num mínimo vilarejo de poucas casas plantadas ao acaso, mulheres e crianças à sombra de árvores enormes, o inevitável chimarrão passando de mão em mão, mas podiam ser, sim, remanescentes de um quilombo, encastelados naquela bolinha de mata no alto de um bairro de luxo, eu a me perguntar que ouro espanto maior ainda me esperava nas dobras desta cidade, elas me olhando, silêncio” (REZENDE, 2014, P, 207). Por fim, Alice, em seu devir-nômade, é trazida por Maria Valéria Re- zende como uma personagem dotada da riqueza das experiências vividas, em consonância como seu enriquecimento imaterial, a partir das subjetividades produzidas de transitar nas ruas marginalizadas da grande Porto Alegre: Continuei por semanas minha romaria pelo avesso da cidade, explorando livremente todas as brechas, quase invisíveis pra quem vive na superfície, pra cá e pra lá, às vezes à tona e de novo pro fundo, rodoviária, vilas, sebos e briques, alojamentos, pronto- socorro, portas de igrejas, de terreiros de candomblé, procurando meus iguais, por baixo dos viadutos, das pontes do arroio Dilúvio, nas madrugadas, sobrevivente, sesteando nas praças e jardins, debaixo dos arcos e marquises, sob as cobertas das paradas de ônibus desertas, vendo o mundo de baixo pra cima, dos passantes, apenas os pés (REZENDE, 2014, P. 235). Ela confirma: “Eu teria continuado, talvez indefinidamente, naquela vida transitória que já nem me lembrava direito por onde começar nem por 30

que tinha começado” (REZENDE, 2014, p. 241). Ou seja, a indefinição do sujeito nômade, que não mais possui identidade nem lugar fixos, representa um recorte da literatura contemporânea, produzida no “caos-mundo” e imersa nas trocas interculturais, nos espaços citadinos repletos de riqueza imaterial e de desconstrução de individuações antes programadas como unívocas. Em outras palavras, Quarenta dias (2014) se configura como um panorama de vivências intersubjetivas da personagem Alice, bem como da estrutura não-linear e frag- mentada inerente à própria obra. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista todas as discussões tecidas, percebe-se que o trabalho imaterial, bem como a desconstrução da identidade fixa de Alice e da própria obra de Maria Valéria Rezende revelam sintomas da pós-modernidade, trazendo a obra em análise como um recorte repleto de riquezas imateriais.Tais sintomas são evidenciados a partir do momento em que a personagem caminha pelos espaços desterritorializados de Porto Alegre; em que questiona sua própria identidade e se reconfigura, enquanto conversa com a sua confidente, a Barbie; em que se deixa atravessar pelas conversas e experiências de pessoas que co- nhece nas zonas periféricas da cidade; em que se deixa imergir pelas reflexões, digressões e lembranças de seu antigo posto de professora Póli. Ainda sobre a relação da personagem com a Barbie, percebe-se que o fato de a boneca ser uma imagem tão conhecida e tão padronizada de beleza revela uma crítica à máquina capitalista, uma vez que essa se constitui como um arquétipo do consumismo. A protagonista, no entanto, simboliza aqueles que são marginalizados – as pessoas em situação de rua, principalmente – por esse consumo exacerbado oriundo da sociedade capitalista, considerando que suas subjetividades construídas em suas viagens são, ao final da obra, mais pre- ponderantes que todos os bens materiais que deixou para trás.  Já o ambiente externo é internalizado pela protagonista e apresentado ao leitor a partir da lente de sua xará Alice, do país das maravilhas, pela qual enxerga os espaços, como se ocupasse o seu lugar, em busca do “coelho branco”– Cícero Araújo. Suas subjetividades e ressignificações são sentidas pelos leitores, 31

que, através dela, podem olhar para os espaços subalternos e para aqueles que neles habitam. Além disso, a ficção ser narrada em primeira pessoa faz com que o interlocutor da obra de Rezende desconstrua linearidades, a partir da expe- riência nômade da obra, recheada de avanços (prolepses) e recuos (analepses), concebida junto à identidade desmoronada de Alice.  Dessa forma, podemos afirmar que o sujeito, repleto de rasuras do pós e internalizado na obra de Maria Valéria Rezende, estaria, portanto, rompendo com a fixação voltada para identidade única, no momento em que ultrapassa o ser determinado por uma profissão, gênero, papel social, idade e nas ações concretas, enriquecendo-se na sociedade pós-moderna e, para além disso, sendo movido pelas pulsões originárias do capital intelectual. Tal sujeito encontra-se, dessa maneira, em um constante movimento que lhe permite realizar rupturas entre um eu que foi, que é e que pode vir a ser, como um devir, a exemplo da personagem Alice, analisada no corpus. Por fim, são as trocas interculturais, os sentimentos, as impressões de espaço, ou seja, as imaterialidades que fazem de Alice uma personagem nôma- de. Os trânsitos que realiza, o saudosismo que lhe acomete ao lembrar-se das suas vivências em João Pessoa, bem como suas viagens espaciais ou emocionais fazem da protagonista de Maria Valéria Rezende, uma personagem rizomática. Tal caráter nos permite inferir que a desconstrução do papel identitário fixo da mulher, concebido por muitos autores na história da literatura, se constitui como um fenômeno da contemporaneidade na literatura. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, M. Ficções narcisistas e configurações nômades na narrativa mo- derna. Revista do SELL, Uberaba, v. 5, n. 2, p. 1-17, 2016. ARISTÓTELES.Arte Poética.In: _____; HORÁCIO; LONGINO.A poética clássica. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 2014. BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: _____. Magia, técnica, arte e política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 165-196. 32

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da Paraíba. 2017. Dissertação de mestrado. Disponível em: http://tede.bc.uepb. edu.br/jspui/handle/tede/2805. Acesso em: 25 de nov. 2020. PELBERT,P.P.Vida capital: ensaios de biopolítica.São Paulo: Iluminuras,2011. REZENDE, M. V. Quarenta Dias. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. 34

EASNTÁELRNISEEÓEGTRDIAPISOECDUGAROSRMIDVUAALHDEOR Jéssica Roberta Araújo Ferreira Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected] Rafael Venâncio Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected]

Devido ao fato corriqueiro de encontrarmos, ainda no século XXI, discursos que deturpam a imagem dos sujeitos e criam, no meio social,discursos como verdades absolutas,destacamos a importância de se trabalhar com teorias da análise do discurso voltadas para o estereótipo da mulher negra na sociedade. Nossa problemática investigativa se situa entre os discursos sociais contra os sujeitos que se encontram à margem, assim como fora caracterizado por Foucault. Ancorados na teoria discursiva deste autor e na natureza heurística de investigação dos fatos, trabalhamos os conceitos de poder, sujeito, interdição, separação e vontade de verdade. Questionamos como tais discursos (neste caso específico, materializados também em comentários) ainda hoje têm o poder de influenciar as ações e os pensamentos dos sujeitos sociais? Objetivamos analisar uma reportagem presente no site G1− Jornal Nacional, assim como a fala da atriz vítima de racismo. Os resultados alcançados prezam pela importância de se questionar os discursos, sem a necessidade de deturpar a imagem social de qualquer sujeito. Desse modo, convidamos nossos leitores a refletirem a partir de nossas indagações, levantamentos dos fatos e discussões teórico-analíticas. Palavras-chave: Discurso. Sujeito. Racismo. 36

INTRODUÇÃO Neste trabalho, discutimos a normatização do corpo inserido na sociedade disciplinar e de controle, em diálogo com as obras de Michael Foucault, entre outros autores citados. Sob o olhar de analista do discurso, não procuramos uma verdade absoluta para os fatos, mas sim nos baseamos em uma natureza heurística de investigação. Nessa discussão, abordamos os seguintes conceitos: poder, interdição, separação, vontade da verdade, sujeito e discurso. Em especial, partimos do conceito de comentários de Foucault e organi- zamos esta discussão à luz da questão: como discursos que deturpam a imagem de sujeitos e criam outros discursos como verdades absolutas, materializados em comentários, ainda hoje têm o poder de influenciar as ações e os pensamentos dos sujeitos sociais? Objetivamos analisar: 1) uma reportagem do G1− Jornal Nacional, sobre o caso da atriz Cacau Protásio, que sofreu ataques racistas, após gravação do filme Juntos e enrolados, no quartel do corpo de bombeiros; 2) a fala da atriz, vítima de racismo; 3) alguns comentários presentes no mesmo site. Para cumprirmos com os objetivos elaborados e encontrarmos respostas para o problema investigativo, organizamos este artigo em três seções. No pri- meiro momento, percorremos o contexto teórico-metodológico, baseado em Foucault; no segundo momento, analisamos nossos dados, à luz da teoria em foco; no terceiro momento, tecemos nossas considerações finais a respeito das análises feitas, em concomitância com a teoria norteadora. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Ao sabermos das diferentes posições assumidas pelo sujeito em variados discursos e lugares sociais, e como tais falas e ações podem reverberar de modo negativo, seguimos este embasamento teórico, na busca pela resposta do que o próprio Foucault (2014) questiona: o que estamos fazendo de nós hoje? A partir dessa questão, afirmamos que a fala de sujeito, caso ocorra apenas pelo seu desejo de dizer o que pensa, em qualquer lugar, não só pode ecoar de modo negativo contra outros, quanto contra si próprio, ocasionando uma punição para si. 37

Para os estudos da Análise do Discurso, os sentidos podem ir além das evidências discursivas, isso porque são produzidos por sujeitos, que assumem diferentes posições nos acontecimentos. Todo sentido produzido através dos discursos apresenta relação com a posição assumida pelo sujeito, naquele de- terminado momento, ou seja, o indivíduo assume responsabilidades no ato da enunciação. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT, 1999, p. 195). Esse hoje, questionado acima, segue implicitamente marcado em nossa contemporaneidade; é reflexo de uma sociedade escondida de marcas impostas pelo outro,de como devem ser nossos comportamentos,vestimentas,alimentação e relacionamentos, sempre com a preocupação sobre as marcas que deixamos na sociedade. Tais ações hoje são apenas reflexo da sociedade anterior: “se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção nor- malizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame”. (FOUCAULT, 1999, p. 195). Desse modo, a hierarquia social é constituída pelo poder que se encontra no nosso meio, em todos os lugares. Não existe um ponto específico em que ele esteja concentrado; o poder passa, flui, acaba se perpetuando de sociedade em sociedade. Nessa relação de poder, as marcas sociais são construídas de maneira dis- ciplinar e controlada. De acordo com Foucault (2014, p. 34), “a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanentemente das regras”. De modo estratégico, são feitos a organização e o mecanismo de persuasão, através dos e pelos discursos. São impostos nos indivíduos o modo para se pronunciarem e se expressarem, ou seja, é necessário seguir as ordens, dado que alguém entra na ordem do discurso ao cumprir determinadas exigências. Como forma de funcionar parcialmente distinta há as “sociedades de discurso”, cuja função é conservar ou produzir discursos, mas para fazê-los circular em um espaço fechado, distribuí-los somente segundo regras res- tritas, sem que seus detentores sejam despossuídos por essa distribuição. (FOUCAULT, 2014, P. 37). 38

Para além da disciplina dos indivíduos e discursos, os corpos são marca- dos por técnicas e instrumentos de poder. Por meio da disciplina, obrigam-se e aplicam-se técnicas estratégicas, para induzir efeitos subliminares de poder, sob sujeitos e sociedade. Foucault (1999) afirma que as técnicas permitem ver a condução e indução de efeitos do poder, pois se tornam visíveis sobre aqueles a quem se aplica. Sendo assim, o corpo é revestido de poder e dominação, ao se tornar útil e submisso, quando encoberto de domínio. Tais ações e sujeições do corpo, nesta perspectiva, podem acontecer de modo direto, físico, com uso de força sobre a força e ação contra elementos materiais, sem que sejam violentas; podem também ser calculadas, tecnicamente pensadas, sutis, desprovidas de armas ou terror e, mesmo assim, serem de ordem física. Nesse sentido: Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças [...].Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança. (FOUCAULT, 1999, P. 30). Caracterizada pelo poder, a modernidade trouxe arcabouço discursivo e institucional do corpo. Nas inúmeras entrevistas concedidas, Michael Foucault afirmou, em uma delas, que apesar de se preocupar com a construção histórica do sujeito moderno, expôs também o questionamento e o posicionamento a respeito do corpo enquanto algo objetificado. Segundo Foucault (1999), o corpo é a peça central sem a qual o poder não tem condições de ser exercido. Assim, tanto a modernidade desvendou o funcionamento de uma série de dispositivos, quanto são utilizadas estratégias pela sociedade, baseadas no corpo. Logo, este 39

é definido como uma superfície propícia para utilização de poderes diversos por sujeitos, entidades e ações diversas. Por conseguinte, o teórico nos convida aos questionamentos: como os discursos produzem as verdades em certo momento histórico? Quais tipos de verdades foram constituídos para formular o que somos nós hoje? As reflexões demandadas nos permitem apreender o discurso como uma categoria fundante, em que podemos nos adentrar em suas leituras e suas possíveis considerações a respeito dos seus conceitos. Entendemos “que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redis- tribuída por procedimentos que tem a função de conjurar poderes e perigos”. (FOUCAULT, 2014, p. 8). Desse modo, torna-se difícil proferir o discurso através dele mesmo, para que ainda assim ele tenha valor de verdade entre a sociedade. Isso porque o discurso se enquadra na ordem e é a partir desta ordem do discurso que os enunciados podem ecoar, com sentido de verdade: imposta por determinados sujeitos e exigida pela sociedade detentora do poder. Tomemos como norte o exemplo proferido, em que Foucault (2014) inicia sua aula inaugural, afirmando que deseja ser envolvido pela palavra, isso porque era e ainda hoje é notória a dificuldade de se fazer o discurso como verdade absoluta: Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo- -se, por um instante, suspensa. Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o ponto de seu desaparecimento possível. (FOUCAULT, 2014, P. 5-6). Como o discurso passa por controle de enunciados, quem pode proferir tal enunciado? Quem tem o poder e a palavra para tal? Quem são os sujeitos 40

que têm voz na sociedade? De acordo com as ideias de Foucault (2014), existem os sujeitos infames para sociedade, são aqueles que não possuem credibilidade, não há honra nem aceitação. Todo seu discurso é marcado por censura e re- pulsa. “Mais do que qualquer outra forma de linguagem, permanece o discurso da “infâmia”: cabe a ela dizer o mais indizível − o pior, o mais secreto, o mais intolerável, o descarado.” (FOUCAULT, 2003, p. 222). Dessa maneira, os dis- cursos desses sujeitos que se encontram à margem são silenciados e ocultados perante toda sociedade, como que venham a eclodir em forma de punição sob os corpos dóceis, adestrados e domados. Não se tem autonomia de dizer/ enunciar tudo em qualquer circunstância, em qualquer lugar. Este tipo de mecanismo se encontra na ordem da interdi- ção, princípio da exclusão. Neste mesmo princípio, apresentam-se mais dois: a separação e a vontade de verdade. O primeiro consiste em que não podemos enunciar tudo que pensamos, porque podemos ser interditados, além de punidos, dependendo da enunciação. De modo imbricado, o segundo, da separação, consiste no princípio da rejeição, em quem diz e quem tem o poder deste ato. Por exemplo, os loucos não apresentam credibilidade em nenhum ato de fala, dado seu pensamento entre razão e loucura. O terceiro, da vontade de verdade, funciona como se- paração entre o verdadeiro e o falso: “o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele pelo qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito”. (FOUCAULT, 2014, p. 11). No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições ver- dadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se crê [...]. Em resumo uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder declarar verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no “verdadeiro”. (FOUCAULT, 2014, P. 31-32). Assim como nem acessam os mais diversos discursos, de acordo com Foucault (2014), ninguém entra na ordem do discurso se não satisfizer a certas 41

exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. O discurso se insere em uma cadeia de época, em que proposições são ditadas como verdadeiras ou falsas, no contexto social. Ao reunir críticas sobre o discurso, poder e sujeito, o autor nos faz refletir sobre como nos constituímos, seja a partir de sujeitos morais em nossas ações, seja se sofremos relações de poder. Em suma, isso diz respeito à busca pelo entendimento de como o sujeito pode dizer algo como verdade de si e sobre quais os reflexos que estes discursos podem ocasionar. O principal ponto em que se deve atentar aqui é o modo pelo qual discurso, representação, conhecimento e verdade são radicalmente historicizados por Foucault, em contraste com uma tendência bastante a-histórica da semiótica. As coisas tinham sentido e eram “verdadeiras”, ele argumen- tou, apenas em um contexto histórico específico. Foucault não acreditou que os mesmos fenômenos seriam observados em momentos históricos diferentes. Ao revés, ele defendeu que, em cada período, o discurso produz formas de conhecimento, objetos, sujeitos e práticas de conhecimento que são radicalmente diferentes de uma época para outra, sem a necessária continuidade entre elas. (HALL, 2016, P. 84) Foucault acreditava nas rupturas das épocas, em que novas formações discursivas surgiam em períodos diferentes,com sujeitos específicos e consequen- temente olhares de investigação também variados, até porque, do mesmo modo que a sociedade evoluía/ evolui, a linguagem e seus estudos também evoluem, mesmo que de forma simbólica. Foucault afirma que o sujeito foi sendo consti- tuído com o passar da história, por longos e árduos acontecimentos discursivos. O sujeito não é o dono do discurso e por isso,nesse nível,não importa saber quem é o autor da formulação, mas se alguém enunciou algo ele só pode fazê-lo mediante condições estritas que aparecem no regime regulador dos enunciados de uma época. A relação do sujeito com que ele enuncia varia. Na linguagem cotidiana, em um texto científico, em um romance, essa relação muda,pois muda a função do sujeito.(ARAÚJO,2008,P.105). 42

O sujeito assume várias posições, independentemente do seu discurso. Ao observarmos o sujeito do enunciado e suas marcas no discurso, analisamos como este se encarrega de ocupar o lugar vazio dos sujeitos, dentro dos enunciados. Enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limi- te, desqualificam e invalidam. De qualquer modo, no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle e fazem funcionar as assimetrias de seu poder, elas efetuam uma suspensão, nunca total, mas também nunca anulada, do direito. (FOUCAULT, 1999, P. 246). Em um sistema, destinam-se as relações de poder e as punições sob os sujeitos, a partir de diversos dispositivos. “O que generaliza então o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos”. (FOUCAULT, 1999, p. 247). Uma interpretação e um olhar já se enquadram no aspecto punitivo, principalmente se considerar este olhar direcionado a ações e estereótipos do corpo humano. O reflexo destes, na contemporaneidade, é a busca pela perfeição, para encaixar-se nos padrões impostos por sujeitos sociais, que especificam, para cada século, o que é visto como beleza. Nesse meio estereotipado, é notório observar a incansável busca da mulher por padrões de beleza. A imagem de um corpo visto como perfeito reside no desejo de a mulher ser notada pela sociedade; isto é, como forma de se sentir privilegiada com os olhares sobre um corpo construído ou modificado. Assim, tendências exibicionistas alimentam as novas modalidades de construção do corpo, em cenários de espetacularização e estereotipização do sujeito, como desenvolvemos no tópico seguinte. 43

ESTEREÓTIPO DO CORPO FEMININO DA MULHER NEGRA NA SOCIEDADE As exigências e os exibicionismos sociais permeiam o campo da análise do discurso, bem como possibilitam uma visão crítica ancorada nas teorias de Foucault. Ao se interessar pela análise discursiva das classes desfavorecidas, o teórico se preocupou com os sujeitos infames, que estavam à margem da sociedade; os esquecidos, silenciados, por vezes estereotipados e questionados, em diferentes ordens do poder, pela sociedade. Ao pensarmos acerca desses padrões, desenvolvemos uma análise que questione, não apenas o que estamos fazendo do nosso corpo, como também até onde somos capazes de chegar para satisfazer uma sociedade que impõem as regras de um corpo, das ações e dos discursos a serem seguidos. Ressaltamos que os cuidados do corpo não envolvem apenas a parte física, mas também, o cuidado da alma, do emocional; de modo que ter equilíbrio é dominar e conciliar a saúde física com a saúde emocional. Vivemos em uma sociedade de poder e controle, em que muitas ações passam a controlar o emocional dos sujeitos, deturpando tais imagens, em prol de promover determinado objetivo. A indústria e os meios de propagandas, por exemplo, usam da massificação global para o consumo de bens industrializados, que prometem resultados milagrosos para se chegar ao corpo magro, esbelto e perfeito; além das dietas milagrosas, dos procedimentos estéticos e cirúrgicos, com essa finalidade do corpo estereotipado. No embate entre a necessidade de se atentar para o que se é prometido pelas propagandas de cosméticos ou de remédios destinados ao emagrecimento, ou até mesmo desaparecimento de celulites, estrias e qualquer outra lamentação advinda do sujeito preocupado na mudança do corpo, urge o entendimento do que possa prejudicar a saúde dos sujeitos. Saber o que consumir é discernir promessas de produtos que apresentem resultados milagrosos; é buscar ajuda e acompanhamento médico especializado. Desse modo, estuda-se qual seria o melhor método para cada sujeito, já que cada pessoa apresenta metabolismo diferenciado e objetivos físicos específicos. 44

Nesse sentido, o discurso do corpo ideal abriga sujeitos pressionados por mudanças físicas, em decorrência de julgamentos advindos da sociedade. A resistência a tal discurso sucede na tomada de consciência das necessidades do bem-estar emocional e físico, antes de qualquer medida que comprometa a si próprio e acabe refletindo de forma negativa. Desse discurso, construímos uma análise a partir da seguinte reportagem: FIGURA 1 Fonte:(https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/11/28/cacau-protasio- -sofre-ataques-racistas-apos-gravar-em-quartel-dos-bombeiros-no-rio.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2020.) A reportagem narra como Cacau Protásio sofreu ato de racismo, ao ser alvo de um grupo de homens do corpo de bombeiros, que divulgou um áudio em um grupo de WhatsApp, discriminando a atitude do tenente de ter liberado o espaço do quartel da incorporação, para a gravação do filme Juntos e enrolados. O texto é seguido de comentários preconceituosos, como: “aquela preta e gorda colocou a farda nos dançarinos viados”. Os tipos de preconceitos se estenderam do racismo à gordofobia e homofobia. Nesse emaranhado discursivo, ficam claras algumas das definições mencionadas por Foucault, de como a sociedade interpreta e pune diversos sujeitos, independentes da posição social; de como tais discursos se tornam ofensivos, a ponto de denegrir a imagem social do sujeito. Nesse entendimento de análise do discurso, proferimos e identificamos a posição social do sujeito que praticou o racismo. Ao sabermos que o discurso é 45

carregado de significantes,o sujeito é o detentor do poder de enunciar para a socie- dade,porque está naquele momento assumindo a posição de sujeito social: sargento do corpo de bombeiro,no discurso em análise.Desse modo,o discurso deste não apenas é proferido como verdadeiro,bem como desprivilegia qualquer questionamento ou argumento advindo da atriz,que sofreu tal ato,já que esta é enquadrada na posição dos sujeitos infames, de quem se encontra à margem da sociedade. Esse enquadramento se situa nos princípios da exclusão, em que se encaixa o princípio da interdição, como parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo. Quem tem o poder de enunciar o que quer tanto angaria a dualida- de de julgamentos divergentes, quanto o apoio ao seu dito. Assim, enquanto uma parte da sociedade se incube de adestrar o sujeito que proferiu o discurso preconceituoso, outra parcela apoia tal sujeito, justamente pela afinidade com tal discurso. Ambas as ações são caracterizadas e observadas nos princípios da Análise do Discurso, cujo objetivo principal não é encontrar a verdade absoluta, mas investigá-la de maneira heurística, de modo a complementar os demais estudos embasados nos mesmos conceitos/ assuntos. Nesse campo, entendemos que o sujeito assume diferentes posições na sociedade, assim como ocorreu com o sargento do corpo de bombeiro, que ora estava como sujeito social, ora como sujeito comum, na posição masculina: A polícia é o conjunto das intervenções e dos meios que garantem que viver, melhor que viver, coexistir, será efetivamente útil à constituição, ao aumento das forças do Estado.Temos, portanto, com a polícia um círculo que, partindo do Estado como poder de intervenção racional e calculado sobre os indivíduos, vai retomar ao Estado, como conjunto de forças crescentes ou a se fazer crescer − mas que vai passar pelo quê? Ora, pela vida dos indivíduos, que vai agora, como simples vida, ser preciosa para o Estado. (FOUCAULT, 2008, P. 438) Ao ser representado por uma figura pública nacional, os discursos passam a ser legitimados, de modo que pouco se é questionado pelos sujeitos no contexto social,porque as posições assumidas ganham repercussão.Por isso,a importância de se procurar reverberar discursos verdadeiros,como forma de promover a equidade 46

no contexto social e disseminar estereótipos idealizados por distintos sujeitos. O Estado não pode ser dissociado do conjunto de práticas governamentais, já que a arte de governamentar não está diretamente relacionada apenas à manipulação e distribuição de poderes entre sujeitos selecionados, mas também apresenta modalidades sistematizadas, que permitem estratégias de análise de poder. Ainda de acordo com os princípios da exclusão, seguindo Foucault, identificamos, na reportagem supracitada, o princípio da separação, a rejeição: “penso na oposição razão e loucura”, porque os discursos do louco nunca têm sentido, são sempre interditados pela sociedade, pelos sujeitos de poder, no meio social. São discursos sem importância e credibilidade, assim como o discurso das mulheres, de modo específico, da atriz Cacau Protásio. Neste particular,foi preciso que outras vozes se reverberassem para enfatizar o discurso dela. Isso ocorre porque a sociedade não aceita, não tem como verdade o discurso da mulher, menos ainda de uma mulher negra e gorda. É interessante observar tal presença marcante na contemporaneidade,porque as novas formas de subjetividade em relação ao corpo idealizam padrões de beleza ainda não alcançados. Nesse ínterim e embasados no conceito foucaultiano, a interdição se divide em três partes: A interdição pode ser identificada sob três formatos. A primeira é o “tabu do objeto” e ocorre quando um determinado saber é colocado à parte daqueles que podem ser compartilhados socialmente, de modo que ele se torna sombreado pelos demais e seu debate se torna proibido; a segunda é o “ritual da circunstância”, quando o contexto é desfavorável ao posicio- namentos ou contestação e a terceira é o “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala”, relativo ao lugar que o sujeito está autorizado a ocupar por uma instituição social e, portanto, a apropriar-se de um discurso. O segundo princípio de exclusão se refere à separação e rejeição, as quais são exemplificadas pelo binômio razão e loucura. A palavra do louco desconhece autocensura. Deve, portanto, ser ceifada do meio social, ou, quando ainda presente nele, ser deslegitimada e rejeitada[...]. O terceiro princípio de exclusão é também aquele a que Foucault mais dedica atenção, denominando-o vontade de verdade. Esta se coloca no âmago de uma separação entre verdadeiro e falso, entre o que tem caráter de real e o que deve ficar à margem da razão. (COSTA; FONSECA-SILVA,2014,P.51). 47

O autor correlaciona os três conceitos, baseados na exclusão. Estes andam juntos, ou seja, reforçam os discursos e debates, de modo que os coloquem em evidência. Assim, a vontade da verdade é um sistema da exclusão, funciona por deslocamentos de verdade. Os discursos assumem distintas relações de valor em diversas ocasiões, podendo um mesmo discurso reverberar com sentido positivo em um determinado momento, porém o mesmo discurso passa ou ganha outra ressignificação, em outro contexto. Assim, identificamos e correlacionamos com o caso reportado, em que são manifestados os princípios da interdição, da exclusão e da vontade de verdade. No caso em análise, a atriz expõe, em uma de suas falas, a tristeza por ainda se deparar com tais discursos. É notório identificar o desejo de liberdade e escolha por um corpo autêntico, além de liberto das idealizações e construções da sociedade, que promove estereótipo da relação sujeito e construção social. Os dispositivos disciplinares contemporâneos utilizam a vigilância fundada em saberes racionais e normativos.Estes “saberes”sempre visam uma maior eficiência do corpo, mais saúde, bem-estar, longevidade etc. Isso torna a vigilância algo desejado e não desprezado. Esta é uma grande astúcia da sociedade de controle: o poder controlador passa a ser desejado como algo positivo e prazeroso. (BARACUHY; PEREIRA, 2013, P. 6). Enquadra-se, pois, o conceito de adestramento dos corpos dóceis e úteis, como afirma Foucault, acerca do poder disciplinar. “Foucault nunca trata do poder como uma entidade coerente, unitária e estável, mas de ‘relações de po- der’”. (REVEL, 2005, p. 69). Assim, é possível identificar nos comentários tais relações, em concomitância ao discurso do bombeiro. Ainda mais, por ganhar apoio, através dos comentários expostos por outros sujeitos. 48


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