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Linguagens em perspectiva

Published by Papel da palavra, 2021-11-03 13:09:40

Description: Linguagens em perspectiva

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Figura 2 (Fonte:https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/11/28/cacau-protasio- -sofre-ataques-racistas-apos-gravar-em-quartel-dos-bombeiros-no-rio.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2020.) O trecho da reportagem enfatiza o que foi citado anteriormente, a ne- cessidade de outras vozes trabalharem em prol do mesmo discurso, para ajudar determinados sujeitos esquecidos no meio social. Como diria Foucault, são os sujeitos infames, que por vezes apresentam discurso de verdade, como é o caso da atriz, e acabam sendo estereotipados, por causa da posição do outro sujeito, em relação à margem que se encontra a vítima de racismo, preconceito e agressão. Isso nos faz pensar como: É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caía no nada- rejeitada tão logo proferida; ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa, uma razão razoável do que a das pessoas razoáveis. De qualquer modo excluída ou secretamente investida pela razão, no sentido restrito, ela existia. Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar que aconteciam a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (FOUCAULT, 2014, P. 11) 49

Então, não podemos chegar ao ponto de dizer que hoje nossa sociedade mudou, e que estes discursos não existem mais; que todos são ouvidos e têm o direito de se expressar, como bem querem e do modo que querem. Dizer isso é ser hipócrita com os discursos alheios e com a sociedade. Ao partirmos desse posicio- namento,procuramos sentido para ambos os discursos,porque precisam de atenção, precisam ecoar em diferentes campos do saber.Pensemos nas redes de instituições que permitem alguém enunciar, em qualquer tipo de área que esteja inserido. Tomamos como exemplo os discursos religiosos, que ganham veracidade quando enunciados por padres, pastores, alguém que detenha poder religioso para efetivar tais discursos. Por que, no meio social, uma mulher não apresenta tais autonomias como os outros sujeitos? O caso se agrava ainda mais, quando a sociedade observa que além de mulher, é negra e gorda. Vejamos a indignação da atriz, em suas palavras, no recorte a seguir: Figura 3 (Fonte:https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/11/28/cacau-protasio- -sofre-ataques-racistas-apos-gravar-em-quartel-dos-bombeiros-no-rio.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2020.) À luz de Foucault (2014), tomamos o terceiro princípio da exclusão: a vontade de verdade. Tais discursos tendem a exercer sob outros discursos, em espécie de pressão e de coerção, como forma de excluir o outro: 50

É que se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder,não pode reconhecer a vontade de verdade, essa que se impõem a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. (FOUCAULT, 2014, P. 19) Análogo aos questionamentos do teórico,também provocamos: até quando vai existir este tipo de discurso, até onde vai o estereótipo do sujeito, em espe- cial da mulher? E ainda mais sendo mulher, negra e gorda? Este é o discurso permeado por preconceitos variados: racismo, etnia, gênero e gordofobia. Posto isto, em nossa realidade, ainda existe o desejo da sociedade de manipular, de estereotipar a imagem e, mais do que nunca, de controlar os pensamentos e os discursos dos sujeitos. Assim como afirma Foucault, a sociedade deseja corpos disciplinados, corpos dóceis, que sejam instruídos apenas para produzir, nunca para questionar, nem se posicionar no meio social. “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças dos corpos (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças.”(FOUCAULT, 1999, p. 165-166). Os dispositivos para Foucault se caracterizam como poder disciplinar constituído e carregado de sentidos. Isso faz com que o sujeito procure sempre buscar não sair do poder panóptico, definido e caracterizado por Jeremy Ben- tham[4], pelo objetivo principal não da soberania, mas das relações de disciplina. São princípios que, quando aplicados de forma adequada, possibilitam a constru- ção de um novo tipo de sociedade. Do contrário, continuamos com a sociedade que se enquadra nos padrões pré-estabelecidos por determinados sujeitos, que apresentam algum tipo de influência nela. Assim, no dispositivo midiático em que fora proferido, o discurso do bombeiro acabou ganhando repercussão tanto 4   Jeremy Bentham, descreve, em O Panóptico, como o projeto da construção carcerá- ria, baseado no “princípio da inspeção”, segundo o qual o bom comportamento dos presos seria garantido se eles se sentissem continuamente observados. 51

positiva como negativa. Isso nos permite identificar uma sociedade de apoio ao incentivo racista. Apesar da parcela preconceituosa, identificamos também outra parcela de sujeitos, que se veem na posição da atriz e repudiam qualquer discurso que desconstrua a identidade do sujeito social. O movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina da exceção ao de uma vigilância generalizada, repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar. (FOUCAULT, 2009, P. 184) Os domínios dos corpos são marcados por lutas de resistência, permeiam o campo do poder e do saber. Isso acontece porque “vivemos, portanto, um corpo que se adapta às moralidades de nosso tempo, necessidades que vem por meio de técnicas impostas pela sociedade no quadro de resistência empenha- das pelos sujeitos” (MILANEZ, 2009, p. 218). De um lado, o discurso racista e preconceituoso do bombeiro; do outro, o posicionamento da atriz vítima de preconceito, dizendo da necessidade de compaixão e empatia um com os outros, antes de sair julgando e acabando com as imagens do próximo.Todos nós temos o direito e o bem-estar de assumirmos a posição que desejamos, assim como o desejo de permanecer ou alterar qualquer parte de nosso corpo, considerando, é claro, os limites e a subjetividade de cada um. Assim, de maneira imposta, os sujeitos querem manter controle sobre a vida e o corpo dos outros, de forma que chega a influenciar outras pessoas, através do que comentam. O conceito de comentários, de acordo com Foucault, permite a construção infindável de novos discursos, sem considerar os de ori- gem. No entanto, eles acrescentam, adicionam novas ideias, falam o que estava silenciado nos discursos anteriores. O comentário tem o poder de transformar o que foi dito; em parte assume posição de retomar o que foi falado ou retratado. Os comentários surgem a partir de discursos primários, pela repetição. Vejamos os comentários presentes no site G1-Jornal Nacional: 52

Figura 4 (Fonte:https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/11/28/cacau-protasio- -sofre-ataques-racistas-apos-gravar-em-quartel-dos-bombeiros-no-rio.ghtml. Acesso em: 24 jan. 2020.) Neste momento, verificamos como tais discursos ainda estão presentes nas vozes de muitos sujeitos, bem como o quanto a sociedade ainda apresenta tais posturas frente ao racismo. Podemos observar, nos dados em foco, que esses discursos ganharam apoio, passando a concentrar e estimular tais tipos de ações. “Portanto, o comentário transforma o aleatório do que foi dito – aquilo que surge a partir do discurso e que não havia sido previsto ou pensado antecipadamente – em parte constituinte do próprio discurso”. (FERREIRA, TRAVERSINI, 2013, p. 214). Infelizmente o número cresce ainda mais quando se fala de mulheres e pessoas negras e gordas. Quanto mais conectados e antenados por dispositivos tecnológicos, maior a possibilidade de disseminar os discursos. Desse modo, é possível alcançar um maior número de sujeitos, influenciados positiva ou ne- gativamente. Logo, como existe uma verdade implícita instalada nos discursos digitais, que permeiam posições sociais, é preciso se preparar para estratégias argumentativas, como forma de sobrepor tais discursos. 53

CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalizamos este artigo com conceitos fundantes de Michael Foucault, com auxílio de Stuart Hall, à luz da sua aplicabilidade no meio social. Ressal- tamos a importância direcionada para o estudo do estereótipo do corpo e do quanto vivemos em uma sociedade punitiva e disciplinar para corpos dóceis. É intrigante se deparar com tais discursos na contemporaneidade, carregados de dispositivos, poder e normatizações. Como os estudos e conceitos de Foucault se apresentam demarcados, em nosso contexto e cenário social, são notórios os entraves discursivos para a tentativa de desconstruir imagens, embasadas sob o viés de padrões impostos por determinada classe social. Estudar Foucault é encontrar sempre novos questionamentos e descobrir novas interpretações para os discursos e sujeitos esquecidos; é colocar novos juízos de valor nos enunciados. Assim, a análise de dados se deu de modo heu- rístico, com subjetivações e questionamentos que levam o leitor a refletir sobre tais ações e discursos, na sociedade contemporânea. Para tanto, prezamos pela importância de questionar os discursos, sem a necessidade de deturpar a imagem social de qualquer sujeito. Assim enfatiza- mos como é necessário, ainda nos dias de hoje, avaliar, questionar e analisar os discursos racistas contra pessoas, independente do gênero e da etnia, para que cada vez mais esses discursos sejam anulados e substituídos por sua inclusão no contexto social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO,I.Foucaulteacríticadosujeito.2.ed.Curitiba:Editora UFPR,2008. BARACUHY,Regina; PEREIRA,Tânia Augusto.A biopolítica dos corpos na sociedade de controle. Gragoatá, v. 18, n. 34, 2013. COSTA, Aline; FONSECA-SILVA, Maria. Considerações iniciais sobre o controle dos discursos: breve leitura de A ordem do discurso, de Michel Fou- cault. Revista Espaço Acadêmico. Periódicos. UEM. v. 14 n. 161, 2014. Dis- ponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/ article/view/23889. Acesso: 19 maio 2019. 54

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. ed. São Paulo: Loyola, 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 36.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, [1999] 2009. FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. FOUCAULT,Michel.“A vida dos homens infames.”In:Estratégia,poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 203-222. FERREIRA, Mauricio dos Santos;TRAVERSINI, Clarice Salete. A análise Foucaultiana do discurso como ferramenta metodológica de pesquisa. Edu- cação & Realidade, v. 38, p. 207-226, 2013. G1-JORNAL NACIONAL.CacauProtásiosofreataquesracistasapósgravar em um quartel dos bombeiros,no Rio.2019.Disponível em: https://g1.globo. com/jornal-nacional/noticia/2019/11/28/cacau-protasio-sofre-ataques-racistas- -apos-gravar-em-quartel-dos-bombeiros-no-rio.ghtml.Acesso em:10 jan.2020. HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Apicuri, 2016. MILANEZ, Nilton. Corpo cheiroso, corpo gostoso: unidades corporais do sujeito no Discurso. Acta Scientiarum. Language and Culture. Maringá. v. 31, n. 2, 2009, p. 215-222. REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Ma- ria do Rosário Gregolin; Nilton Milanez e Carlos Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005. 55

AU“SMERADEALAGAÍN?ÊÇRÁN!Õ”ÉLEEGI,RSSINOSEADCDSSIHAOOCALAEHÓRRNAGGEURIESCNG:ACESISANDDOOE Janielly Santos de Vasconcelos Viana Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected] Ramísio Vieira de Souza Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected]

Arealidade da língua é constituída, conforme Bakhtin (2011), a partir da multiplicidade de vozes sociais que, em relações dialógi- cas, tornam-se singulares e concebem vozes plurais. Esta pesquisa tematiza o percurso dialógico que compreende a configuração do gênero discursivo charge e sua representação, a partir da diversidade social de lin- guagens organizadas artisticamente, por línguas e vozes individuais. A charge pode mesclar, inter-relacionar e pluralizar vozes, uma vez que a sua inerente dialogicidade possibilita reflexões sociais e que aproximam ao cotidiano da sociedade.Em vista disso,investigam-se as relações que organizam e integram as charges de Régis Soares, que compõem uma sequência dialógica a partir do enunciado “E daí?!”, de modo que o objetivo desta pesquisa é compreender como as relações dialógicas contribuem para formação e compreensão dos sentidos dos gênero charge e suas especificidades. Em função do objeto de estudo, desenvolve-se uma pesquisa de método descritivo-interpretativista de abordagem qualitativa, contudo, as análises tomam por base teórico- -metodológica, a Teoria Dialógica da Linguagem. Os pressupostos teóricos constituem-se da revisão literária das obras de Bakhtin (2011, 2014 e 2015) e Fiorin (2006). As charges de Soares (2020) representam renovações de sentidos, uma vez que configuram uma atividade de linguagem que traduz o real, resgatando elementos que acontecem cotidianamente, exaltando a importância dos discursos do cotidiano imaginário nordestino popular. Palavras-chave: Relações dialógicas. Charges. Régis Soares. 57

INTRODUÇÃO A concepção do dialogismo é basilar para compreensão da obra de Mikhail Bakhtin (1985-1975), teórico e estudioso da linguagem, que se afirmou no debate estético e literário que, em seu tempo, estabelecia-se, instituindo a sua trajetória nos estudos linguísticos e literários, sobressaindo-se aos estudos formalistas, propondo um novo olhar ante a materialidade do texto. O dialogis- mo permeia a concepção de linguagem e constrói a orientação dialógica que é, singularmente, condição de existência dos discursos, em termos de diversidade de sentidos, e de tal modo, o dialogismo determina as práticas discursivas, as relações de linguagem e a visão de mundo bakhtiniana. Esta pesquisa tematiza a formação dialógica da charge enquanto gênero discursivo que possibilita o estudo das relações dialógicas que o constituem. Compreender a charge sob a perspectiva dos gêneros discursivos, por meio da Teoria Dialógica da Linguagem,implica perceber a especificidade e singularidade do que vem a ser o movimento de leitura de um determinado gênero discursivo. Quando Bakhtin (2011) afirma que o enunciado é um dado primário, ele o toma como ponto de partida que constituiu diferentes campos das ciências humanas. Assim, o estudo do sujeito social e de sua linguagem só pode se realizar por meio dos enunciados concretos que ele criou. Ideias, posições e pontos de vista só se concretizam através de enunciados verbais e não verbais. A noção de enunciado não pode fugir ao movimento de compreensão. Assim, ressaltamos a importância de se investigar os sentidos instituídos, dialogicamente, entre enunciados considerados, sobretudo, como representativos da multiplicidade de vozes que interpelam um determinado discurso. Nesse sentido,uma investigação acerca de um determinado gênero discursivo não pode se resumir à elaboração de uma descrição literal de enunciados.Ao descrever apenas, apaga-se a dimensão social do enunciado e sua estabilidade. A descrição decorre em, apenas, uma interpretação de gêneros e não é esse o nosso objetivo. As charges selecionadas representam um arcabouço de traços ideológicos que compõem a noção de enunciados dialógicos, a partir da Teoria Dialógica da Linguagem. Soares (2020) leva o seu leitor/público a recuperar traços de enunciados anteriores, para este recorte, discursos presidenciais, assim como 58

suscita a criação de novos enunciados que retomam o “E daí?!”, configurando novas tonalidades e sentidos de acordo com cada contexto particular de produ- ção. Pretende-se analisar, como objeto de estudo, quatro charges que compõem uma sequência dialógica que partem do enunciado “E daí?!”, evidenciando as relações dialógicas que as constituem e as características que tornam esse tipo de gênero plural, popular, cultural e, ao mesmo tempo, singular, a partir do posicionamento dos sujeitos que constituem os atos discursivos.Tal enunciado foi proferido, em discursos presidenciais, no emergente e atual contexto da Pandemia do Covid-19, no Brasil. Régis Soares é um chargista da cidade de João Pessoa que ficou conhecido por retratar, com humor e crítica, a política paraibana, nacional e mundial. Esse autor iniciou seus trabalhos em 1986, quando criticou de forma humorada, um buraco que atormentava a ele e os moradores de sua rua, na época da campa- nha eleitoral. O artista colocou uma charge em um pequeno painel, no muro de sua residência, cobrando solução das autoridades. Após isso, a repercussão de seu trabalho levou ao surgimento do projeto “Charge na rua” que traduz as suas inquietações políticas e sociais de maneira humorada. Em 2014, recebeu a Medalha Cidade de João Pessoa pela relevância de seu trabalho na cidade. Esta investigação está classificada de acordo com o objetivo proposto e formas de abordagem. Com relação ao objetivo, classifica-se como descritiva e interpretativista, pois se preocupa em compreender e interpretar os sentidos produzidos a partir dos aspectos dialógicos e sociais da linguagem, concretizada no contexto dos discursos que se realizam no gênero discursivo em estudo (a charge). Conforme as formas de abordagem, podemos classificar esta proposta de investigação como qualitativa. Trata-se de um tipo de investigação que se adapta a nossa abordagem metodológica por demandar profundidade nas re- flexões e considerações sobre o objeto de estudo. Para o desenvolvimento desta pesquisa, primeiramente, realizamos o levantamento do arcabouço teórico contemplando as categorias que subsidiam as reflexões das charges escolhidas. Tomamos como base, principalmente, as reflexões de Bakhtin (2011, 2014 e 2015) e Fiorin (2006), tais categorias estão difundidas na constituição da linguagem como ponto de partida para os estudos dialógicos e discursivos. Posteriormente, refletimos sobre a formação do gênero 59

charge e as características que o singularizam pela dialogicidade e inacabamento enquanto gênero discursivo. E, por último, contemplamos as reflexões que cons- tituem o movimento de leitura e de compreensão das charges que relacionam dialogicamente o enunciado “E daí?!”, criadas por Régis Soares (2020). O movimento de leitura e compreensão desta pesquisa visa à construção de um caminho metodológico, que tome como base a perspectiva bakhtiniana e a Teoria Dialógica da Linguagem, através de um olhar de estranhamento frente ao que já conhecemos. Não pretendemos atestar a presença de categorias no decorrer dos nossos apontamentos, mas compreendê-las no conjunto de estudo do interior dos enunciados que formam o gênero. A PERSPECTIVA BAKHTINIANA: A ORIENTAÇÃO DIALÓGICA E O ESTUDO DOS GÊNEROS DO DISCURSO Em contrapartida ao estudo enunciativo sob a perspectiva monológica, a concepção de dialogismo veio para afirmar que em todo contexto enunciativo existem relações diferentes, reafirmando assim o que refletiu Fiorin (2006, p. 19) sobre a concepção de dialogismo, constituído e representado por “[...] relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados”. Pontuado como proprie- dade inseparável da língua, o dialogismo é visto como princípio consolidador das teorias e reflexões bakhtinianas. A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa. (BAKHTIN, 2014, P. 88) Reconhecendo o dialogismo como princípio constitutivo e indispensável da linguagem, privilegia-se a abordagem da interação e da dialogicidade, a partir do estudo dos gêneros discursivos, uma vez que o trabalho do escritor/artista da linguagem se concretiza mediante o uso da língua. No caso específico da 60

charge, o aprofundamento do diálogo reverbera compreensão e multiplicidade de sentidos, produz e significa relações dialógicas. O dialogismo representa o confronto de valores e diferentes visões sobre um determinado objeto. A palavra é compreendida como referência fundamen- tal para o entendimento do dinamismo que pressupõe o dialogismo. A palavra acumula sentidos sem, portanto, repeti-los. Não existe a primeira nem a última palavra,e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado,isto é,nascidos no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente,futuro do diálogo.[...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. (BAKHTIN, 2011, P. 410) Do mesmo modo que a palavra, o diálogo não é detentor de um começo exato ou de um preciso fim de sentidos. É no diálogo que se recriam os sen- tidos e que estão presentes as características de pluralidade e multiplicidade, isso porque, o diálogo é tido como inconcluso, infindável e os seus sentidos não se esgotam e nem se limitam. A colocação da palavra sem limites primeiros e últimos determina o conceito de dialogismo. O pensador russo Bakhtin foi reconhecido por sua capacidade e originali- dade em pensar a existência humana, já que elegeu como foco de sua investigação o estudo do discurso cotidiano, enfatizando os modos de produzir sentidos, a partir de enunciados reais. O termo discurso carrega consigo pluralidade, o que o faz representar posições diversas nos estudos linguísticos, literários e científicos, de um modo geral. Bakhtin (2011) concebe o discurso como complexo e multifacetado, no- tabilizado pela interação entre o eu e o outro, uma vez que linguagem e sujeito, em um processo de compreensão, são inseparáveis. O estudo do discurso decorre do conceito de dialogismo porque é, justamente, o dialogismo que se revela como a base na teoria bakhtiniana. O discurso é concebido e arquitetado nas relações sociais,mantendo-se na interação como discurso social.Por conseguinte, 61

a língua tem sua manifestação efetiva no discurso, assim, o discurso se assume como enunciação, o que possibilita considerar o seu enunciador, também, no contexto social no qual é enunciado. Em outras palavras, não é possível analisar efetivamente um discurso fora do contexto em que é realizado, uma vez que: Não há nenhum objeto que não apareça cercado, envolto, embebido em discursos. Por isso, todo discurso que fale de qualquer objeto não está voltado para a realidade em si, mas para os discursos que a circundam. Por conseguinte, toda palavra dialoga com outras palavras, constitui-se a partir de outras palavras, está rodeada de outras palavras. (FIORIN, 2006, P. 19) Em vista disso, é possível afirmar que a constituição de um discurso é resultado do conflito entre as fronteiras da instabilidade e estabilidade, tornan- do assim cada enunciado único. Não se pode distanciar o sistema linguístico e os movimentos discursivos que constituem o diálogo envolvendo a história, o social e a língua. É importante determinar uma passagem do linguístico para o que é discursivo sem, portanto, ignorar a natureza da língua como alicerce para atividade e ações dos sujeitos que é, consequentemente, caminho para o caráter histórico. Se a palavra é caracterizada pela sua dialogicidade, uma vez que, em si mesma, ela não significa, a sua relação face ao conjunto, ou seja, ao todo do enunciado, surge como condição da comunicação discursiva, pois segun- do Bakhtin (2011, p. 292), “o significado neutro da palavra referida a uma determinada realidade concreta em determinada condições reais de comu- nicação discursiva gera a centelha da expressão”. Desse modo, a construção do discurso retoma o todo da enunciação, e o discurso é a palavra concreta e utilizada pelo sujeito histórico. Bakhtin (2014) reflete sobre a orientação externa e o estudo individual do discurso: O discurso vive fora de si mesmo, na sua orientação viva sobre seu objeto: se nos desviamos completamente desta orientação, então, sobrará em nossos braços seu cadáver nu a partir do qual nada saberemos, nem de sua posição social, nem seu destino. Estudar o discurso em si mesmo, ignorar 62

a sua orientação externa é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado. (BAKHTIN, 2014, P. 99) Como exposto, compreende-se que é na relação entre discurso e exterior que o sentido assume um lugar, e que este não está estritamente arraigado a um único discurso. Bakhtin (2014, p. 100) ao afirmar que “a palavra da língua é uma palavra semi-alheia”, entende que o discurso está no conflito entre contextos e, desse modo, quando a palavra é dominada pelo falante através de seu discurso, de seu acento e povoada por sua intenção, ele a torna própria, expressiva, fa- miliar e semântica. Quando o discurso se orienta através das enunciações e linguagens alheias, ele adquire, conforme Bakhtin (2014), uma significação real, configurando “a influência da realidade extratextual sobre a formação da visão artística e do pensamento artístico do escritor (e de outros criadores de cultura).” (BAKH- TIN, 2011, p. 402) O discurso do pensamento estilístico tradicional,marcado pela neutralidade, não é caracterizado pela dialogicidade, uma vez que, no encontro ao seu objeto ele não encontra outro discurso. O discurso também pode se individualizar estilisticamente, na medida em que encontra meios flexíveis que não permitem a penetração de outros discursos. Mas o que se destaca nesta reflexão, é o fato de que, apesar do discurso não permitir penetração de discursos outros, o objeto permite. O discurso sempre está voltado para seu objeto e, portanto, penetra dialogicamente esse meio, se formando substancialmente e estilisticamente. Sobre a natureza social do discurso, é necessário reiterar a afirmação de que o discurso não pode ser analisado fora de seu contexto social, do mesmo modo em que para Bakhtin (2015), numa perspectiva enunciativa, o discurso, ou seja, a linguagem em sua totalidade concreta e viva, penetra na vida “através de enunciados concretos que a realizam.” (BAKHTIN, 2011, p. 265) Configurando o enunciado como uma relação imediata com a realidade e como um conjunto de sentidos, afirma Bakhtin (2011, p. 289) que, “todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. É a posição ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sentido”. O enunciado se 63

configura nos sentidos produzidos entre sujeitos. São concretos, únicos, irre- petíveis, e vistos como unidade da comunicação discursiva, diferentemente das formas linguísticas estruturais, eles não estão presos e restritos à frase. Tal como o discurso, o enunciado não pode ser compreendido fora do aspecto dialógico. Admitindo que o enunciado seja pressuposto por uma enunciação, Bakhtin (2011) afirma serem participantes desta enunciação: um autor (o primeiro) e um destinatário (o segundo). Enfatiza-se que o enunciado é pleno de um sistema dialógico e sempre é dirigido a alguém que já é previa- mente pensado pelo autor, ou seja, “cuja compreensão responsiva o autor da obra procura e antecipa”. (BAKHTIN, 2011, p. 333) Retomamos, então, reflexões sobre o enunciado para a compreensão da categoria das relações dialógicas. Bakhtin (2011, p. 313) afirma que,“o enunciado em sua plenitude é enformado como tal pelos elementos extralinguísticos (dialó- gicos), está ligado a outros enunciados.”É impossível compreender o sentido de um enunciado sem, contudo, entendê-lo através de suas propriedades dialógicas. As relações dialógicas, desse modo, se diferem das relações linguísticas em um enunciado isolado. O próprio Bakhtin admitiu que o estudo dessas relações necessita de atenção especial. As relações dialógicas são de índole específica: não podem ser reduzidas a relações meramente lógicas (ainda que dialéticas) nem meramente linguísticas (sintático-composicionais). [...] As relações dialógicas são relações (semânticas) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2011, P. 323, grifo do autor) É através das relações dialógicas que a enunciação sustenta as relações e organiza o meio social de um sujeito, marcando no campo enunciativo e dis- cursivo todos os componentes da interação verbal. Muito mais do que priorizar apenas signos, a enunciação contextualizada dialogicamente suscita relações dialógicas. Através da compreensão do conceito de diálogo, discurso, enunciação e interação verbal definem e constroem essas relações. As relações dialógicas se determinam pela posição interpretativa e pelo contexto discursivo,conduzindo,portanto,para compreensão de uma determinada 64

materialidade discursiva. Os sentidos atribuídos aos enunciados constitutivos de um gênero engendram-se por possibilidades reais da enunciação e através de vozes que povoam o tecido da linguagem, sendo assim, as relações dialógicas são responsáveis pela ligação dialógica entre esses sentidos nos enunciados. O estudo das relações dialógicas é condição indispensável para compreensão dos sentidos que determinam a discursividade de um gênero. As relações sociais norteiam todos os tipos de atividade e ações huma- nas. Constitutivamente, os enunciados, assim como os diálogos sociais, são reiteráveis, irrepetíveis e retomam marcas características do social, do cultural e do histórico. Evidenciando a diversidade dialógica dos enunciados, Bakhtin (2011), ao conceber a noção de gênero discursivo, situa-o como fenômeno que acontece na esfera de interlocução, de forma ininterrupta. Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas de enunciações e justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas.Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas). Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas).(BAKHTIN,2003,P.283) Fiorin (2006, p. 61), explicita que \"o gênero estabelece uma interconexão da linguagem com a vida social\", pois se relaciona com as esferas de realização comunicativa. Assim como Bakhtin (2011) afirma que a língua opera e se de- senvolve por meio de enunciados concretos, compreende-se, do mesmo modo, que ela se realiza pelos gêneros discursivos. De natureza social e ideológica, os gêneros discursivos consideram a situa- ção social e respondem a diferentes condições de produção, tendo como base os enunciados que refletem as esferas sociais e consequentemente suas condições estilísticas,estruturais e temáticas.Afirma Bakhtin (2011,p.262) que “o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados 65

no todo do enunciado, e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação.” O conteúdo temático diz respeito aos conteúdos que se tornam dizíveis pelo gênero, não se relaciona apenas ao assunto e estritamente ao sentido, in- clui, sobretudo, a situação social representada pela intenção comunicativa do falante. O estilo liga-se ao conteúdo temático e a estrutura composicional sendo responsável pelo sentido e pela formalidade e pelo uso da língua. E por último, a estrutura composicional diz respeito à organização e estruturação da fala de acordo com as esferas sociais em que os gêneros se situam. Os gêneros mobilizam nossas interações e enunciações na e pela linguagem, os sujeitos são capazes de produzir autonomamente enunciados que se materia- lizam em textos orais e escritos, caracterizados por suas faces históricas, sociais e ideológicas. Referente não só a forma de estruturação dos nossos enunciados, é possível afirmar que todos os nossos discursos são norteados e construídos por meio dos gêneros discursivos. Atualmente, o estudo dos gêneros discursivos revela-se como sendo uma das temáticas mais importantes e investigadas no campo científico em se tratando de questões de língua/linguagem. O GÊNERO DISCURSIVO CHARGE Caracterizada como uma forma de humor gráfico, a charge é uma forma de narratividade que compreende as transformações e acontecimentos sociais, bem como acompanha o desenvolvimento da imprensa e busca representar a realidade, pela ótica da ironia, do humor e da ambiguidade. Fonseca (1999) aponta a origem da charge para o contexto francês, uma vez que o termo charge, do francês charger, significa, em sua essência, carregar e exagerar. Por isso, ao lado da caricatura, a charge se caracteriza como uma representação imagética caricatural, comumente burlesca que trata de temas do cotidiano, satirizando e ironizando, na maioria das vezes, assuntos que remetem à política ou algo de conhecimento público. Em relação aos elementos dos gêneros discutidos por Bakhtin (2011), a charge em sua relativa estabilidade é formada por conteúdos temáticos,estruturas composicionais e um estilo singular. Em relação ao primeiro, respectivamente, 66

aborda temas que circulam socialmente e foram reverberados pela mídia, pelas rodas de conversa e pelas mais diversas instituições, são eles: política, esportes, educação, relacionamentos, entre outros. Todos os temas representam uma construção crítica da realidade. Sobre a estrutura composicional de uma charge,geralmente,configura-se de forma simples, quando comparada a outros gêneros imagéticos, tendo em vista a incorporação de elementos dos quadrinhos, como cenas, diálogos, onomato- peias e balões. Contudo, em um ambiente, a charge pode apresentar imagens, palavras, símbolos e caricaturas, tudo isso arquitetado de acordo com o tom que o autor deseja expressar. Por último, a construção estilística deste gênero não é convencionada e não se relaciona, apenas, a uma única unidade, ou seja, é múltipla e, ao mesmo tempo, singular, pois reflete o lugar de criação e vivência dos autores. O estilo, nas charges, traduz uma forma própria de composição, marcada por elementos que singularizam sua materialidade: cores, formas, traços, fontes, entre lin- guagens verbais e não verbais, flexíveis e que permitem que se estabeleça uma discursividade com elementos do cotidiano, resultando em humor e ironia, na maioria das vezes. A MATERIALIZAÇÃO DO ENUNCIADO “E daí?!”, NAS CHARGES DE RÉGIS SOARES O enunciado “E daí?!” viralizou na internet a partir do momento em que o atual presidente do Brasil enunciou, em entrevista, no dia 28 de março de abril de 2020. Durante a entrevista, uma jornalista disse ao presidente que o Brasil havia ultrapassado o número de mortes da China por Covid-19. Então, o presidente afirmou: “E daí?! Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre\". Esse enunciado reverberou na mídia e passou a existir em outros campos do discurso e, inclusive, estabelecer relações dialógicas com outras artes,ultrapassando o limite da metalinguística.Neste trabalho,não iremos analisar o enunciado completo, mas o recuperamos na íntegra para verificar as condições de produção de surgimento da expressão “E daí?!” e entendermos seus deslocamentos discursivos para outros campos de atividade humana, como 67

também analisarmos as relações dialógicas assumidas a partir desse ato enun- ciativo. Para isso, selecionamos quatro charges do paraibano Régis Soares para a realização deste trabalho. A escolha do gênero discursivo charge se justifica por ser um veículo de transmissão de fatos da atualidade de maneira crítica, irônica e humorística. Encontra-se no campo jornalístico e bebe da notícia que também faz parte desse campo. Retrata a atualidade, principalmente, relacionada aos fatos sociais ou políticos de relevância, reflete a imagem ou posicionamento editorial do veículo e se utiliza também do texto visual para a veiculação do humor e crítica. As informações levantadas acerca do autor Régis Soares e gênero charge são relevantes às análises do enunciado “E daí?!” e suas relações dialógicas, para compreendermos seu estilo, temas geralmente abordados e escolha da charge, porque aqui não se trata de um estudo meramente linguístico, como criticava Bakhtin (2011), mas a língua na sua integridade viva e concreta. Com relação ao tema das charges selecionadas para este estudo, prioriza- mos, principalmente, aquelas que abordam o enfrentamento pelo presidente à pandemia do coronavírus, bem como as que tratam do enunciado escolhido. Essa escolha temática, já faz parte da construção estilística do autor que fortemente concentra suas produções acerca de ações sociais, futebolísticas e políticas, locais, nacionais e mundiais. Além disso, a forma de produzir manualmente os rabiscos da construção e a forma de caracterizar os personagens de maneira caricata, humorada e extrovertida em fundo geralmente branco, com personagens que sempre apresentam coloração amarelada, compõe o seu estilo e determina a sua forma composicional de produzir a charge que o difere de outros artistas. Régis Soares é conhecido, pelos pessoenses, como o artista das ruas. Vejamos: 68

Figura 1 – Sobre as mortes pelo novo coronavírus Fonte: Instagram @regischarges[5] Na primeira charge, O “E daí?!”é retomado na íntegra pelo chargista que o coloca no próprio ato da entrevista. Nesse evento, a ênfase é dada ao enunciado discursivo completo do presidente.O enunciador preserva a pergunta e apresenta a réplica dela aos interlocutores. Logo, o “E daí?!” representa uma réplica de negação do presidente em relação às mortes pelo coronavírus. Nesse discurso, o autor-criador se concretiza na figura do presidente que expressa sua posição valorativa em relação à pergunta feita pela repórter, isto é, relação dialógica de negação, proporcionado pelo confronto de vozes enunciativas entre o sujeito (presidente) e o sujeito (repórter). Na matéria da língua pura possivelmente não conseguiríamos recuperar as relações dialógicas desses sujeitos, porque elas se constituem a partir dos elementos extralinguísticos que constroem e tornam o diálogo vivo, nas situações comunicativas e nas práticas sociais da linguagem nos diversos contextos de usos. 5   Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_kDPKsJDp8. Publicada em 29 de abril de 2020. Acesso em 29 de outubro de 2020. 69

Na materialização do ato discursivo da charge como um todo enuncia- tivo, verificamos o posicionamento valorativo do sujeito criador, por meio das escolhas enunciativas e a tonalidade proporcionada ao discurso. Percebe-se que o braço da repórter se encontra estirado, indicando a distância travada entre o presidente e os jornalistas, isto é, medo da agressividade do enunciador que ataca publicamente aqueles que o contraria. A presença de onças, representante da coragem, da liberação de instintos, do poder, agilidade e conquista de espaço, no lado direito, também é valorativa, pois representa seus fiéis seguidores que mantêm uma relação dialógica de concordância com o discurso do presidente e também atacam ferozmente os discursos divergentes aos seus. Ao mesmo tempo em que percebemos o humor na caracterização dos personagens, à direita onças que o protegem, zombam e acompanham o pre- sidente, à esquerda uma mão acuada, mas que enuncia, também identificamos a crítica e posicionamento valorativo do autor criador da charge, isto é, relação dialógica de humor- crítico. Ele consegue refletir o seu posicionamento crítico à negação proferida pelo presidente diante da quantidade de vidas que foram ceifadas pelo vírus no país. O chargista apresenta a relação dialógica de dis- cordância à postura negacionista do presidente em relação ao enfrentamento da pandemia no país. Esse posicionamento se concretiza também em outros enunciados criativamente publicados em seu perfil do instagram. Na próxima charge, percebemos que o “E daí?!”assume um tom valorativo crítico em relação aos outros enunciados. A mesma expressão linguística que reaparece em outros discursos, deslocado pelo autor-criador, com a finalidade de alcançar o efeito desejado. Esses deslocamentos proporcionam o acúmu- lo de sentido da expressão veiculada e expressão do caráter vivo da língua, ideologicamente preenchida. 70

Figura 2- Resumos de enunciados presidenciais Fonte: Instagram @regischarges[6] O autor criador da charge desloca, ironicamente, o “E daí?!”para produzir relações dialógicas e confronto de vozes com outros enunciados produzidos pelo próprio presidente nas suas entrevistas aos jornalistas.Nessa charge,outros enun- ciados são deslocados para a construção dos efeitos de sentidos pretendidos pelo autor-criador, “Bolsonarista!”, “Petralha!”, “Miliciano”, “Comunista!”, “Bostas!”, “E daí?!”. Esses enunciados produzem uma relação dialógica de confronto de vozes que, nesse caso, o autor- criador desloca para construir o seu enunciado. A expressão“E daí?!”é deslocada para o estilo da charge de maneira irônica,com a finalidade de expressar a negação do presidente em relação às vítimas do coronavírus, como também que,enquanto todos discutem outras questões menos importantes de interesse de seus grupos, o Brasil continua a sofrer as consequências da pandemia do coronavírus. A posição social do sujeito chargista faz réplica ao dito, confronta posi- ções, acolhe fervorosamente a palavra do outro, rejeitando-a e amplia o seu sentido, estabelece relações de sentidos a partir do posicionamento responsivo do encontro de posições avaliativas acerca da política, como também do coronavírus no país. 6   Disponível em:https://www.instagram.com/p/CAsc3gxJNsd/. Publicada em 27 de maio de 2020. Acesso em 29 de outubro de 2020. 71

No material discursivo da charge,constatamos que o autor-criador apresenta seu tom valorativo, isto é, posicionamento em relação aos enunciados deslocados desses diferentes sujeitos.São relações dialógicas de humor-crítico que produzem os efeitos de sentidos da charge e exige do interlocutor um conhecimento prévio acerca dos enunciados que entram em confronto na dinamicidade da língua.O “E daí?!” só tem sentido porque sabemos quem, como e qual o motivo da produção. A ausência dessas informações e a análise puramente linguística não consegue extrair os efeitos de sentidos produzidos por esse enunciado nas charges analisadas. O “E daí?!” dialoga com a imagem do Brasil triste, ferido, hospitalizado e rodeado de coronavírus. Isso mostra que as relações dialógicas não acontecem somente com a materialidade verbal da língua, mas também com o verbo-visual, ultrapassando, nesse sentido, inclusive, os limites da metalinguística. Na charge abaixo os enunciados, valorados no contexto midiático, são confrontados com o “E daí?!” e novos sentidos são construídos por meio do confronto dialógico enunciativo no contexto da charge. O sujeito criador imprime a sua posição social avaliativa frente ao combate ao coronavírus no país. A expressão surge no confronto de vozes do enunciado da charge seguinte: Figura 3 – Enunciados e a imprensa Fonte: Instagram @regischarges[7] 7   Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_2RBdaJ8Uc/. Publicada em 06 de maio de 2020. Acesso em 29 de outubro de 2020. 72

Nesse ato discursivo, o cenário é formado pelos meios de comunicação questionando diretamente o presidente sobre os temas que circulavam a sua imagem na atualidade. Essa atitude provoca o descontrole discursivo dele que enuncia expressões agressivas e autoritárias (“E daí?! “Quem manda aqui sou eu!” “Cale a boca”) , como também emocional e físico (boca aberta e mão estendida para os meios comunicativos). Os sujeitos do ato discursivo são for- mados por vozes sociais que se opõem. Então, a compreensão responsiva do presidente provoca a resposta negativa, isto é, relações dialógicas de negação aos questionamentos que partem da esfera comunicativa revestidas, não mais como repórteres, mas como televisão, rádio e jornal que são mecanismos de comunicação atacados pelo governo. Estrategicamente na charge não aparece as redes sociais porque são seu lugar de promoção e propagação de seus discursos autoritários, negacionistas, preconceituosos entre outros. Neste evento,percebe-se a inviabilidade de somente considerar o enunciado “E daí?!” que compõe o tecido dialógico que forma a charge. As escolhas das vozes que constroem o gênero charge partem das notícias veiculadas nos canais de comunicação. O autor-criador as selecionou estrategicamente, confortando-as e produzindo relações dialógicas também de humor-crítico que são recursos que formam o estilo do gênero e indica o seu posicionamento valorativo diante dos fatos. O enunciado “E daí?!” é utilizado ironicamente para tecer críticas às vozes que o presidente tenta silenciar principalmente em relação à pandemia. Ele também aparece na próxima charge: 73

Figura 4 - Indiferença Fonte: Instagram @regischarges[8] No evento chargístico, é evidente o acúmulo de sentido ao enunciado “E daí?!”, assim como sua escolha estratégica para compor o tecido dialógico que forma a charge. Esse enunciado responde ao grito da enfermeira (SOCOR- RO!!!!), representante da saúde, que diante do presidente expressa seu desespero ao enfrentamento da pandemia. Essa escolha enunciativa também revela uma relação dialógica de negação à saúde que enfrenta a pandemia do coronavírus. A imagem grande do presidente em relação à enfermeira revela o seu poder autoritário frente às instituições, como também o ficar de costas mostra que sua preocupação não está direcionada à saúde e enfrentamento da pandemia, mas para a possibilidade de interferência da Polícia Federal do Rio de Janeiro, quando indica o amigo da família, Ramagem, para ocupar o cargo com a fina- lidade de proteger a sua família. Essas informações circularam nos noticiários e são resgatadas no ato da leitura por meio dos fios dialógicos entre o discurso verbal e o visual proporcionado pelas imagens da charge, assim como se faz necessário recorrer ao momento em que a informação circulou para construir 8   Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_mpSkypwn1/. Publicada em 30 de abril de 2020. Acesso em 29 de outubro de 2020 74

o sentido da charge. O “E daí?!”, mais uma vez, aparece como uma resposta aos enunciados selecionados pelo chargista para compor o tecido de seu evento discursivo, proporcionando, por meio de confronto de vozes, relação dialógica de negação aos discursos da saúde em relação ao enfrentamento da pandemia. O autor-criador também apresenta seu posicionamento valorativo nas imagens representadas na charge e na escolha dos discursos que formam as falas dos personagens. O próprio ato de seleção dos recursos linguísticos já é valo- rativo, porque afirma sua criticidade em relação aos enunciados materializados nas esferas comunicativas, seja relacionados à saúde ou à política. Há uma relação dialógica de humor-crítico entre o ato do presidente regar a planta trepadeira que, naturalmente forma uma ramagem, no vaso e o galho do ramo que entra pela janela da casa, possivelmente, da família do Presidente, como também dos seus filhos, indicados pela enumeração, estarem com o cartaz escrito ramagem e outro em um celular,e uma provável publicação nas redes sociais.Essas marcas linguísticas e visuais indicam a presença de um posicionamento crítico do chargista em relação aos discursos que formam a teia dialógica do evento charge. CONSIDERAÇÕES FINAIS As charges analisadas são constituídas por enunciados sociais, materiali- zados pelos usos nas esferas de comunicação, isto é, a língua em sua integridade concreta, viva e dinâmica, como apresenta as pesquisas com foco nos estudos bakhtinianos recentemente. Neste estudo, verificamos a presença das relações dialógicas que constituem os enunciados, revelando as posições dos sujeitos nas situações de uso da língua. Compreendemos que o gênero charge é formado por enunciados concretos que surgem das relações sociais, por meio das escolhas enunciativas do autor- criador que apresenta o seu tom e constrói o seu estilo. Ademais, ressaltamos que as relações dialógicas ocorrem na relação com outras linguagens, como as imagens das charges e as relações com o signo verbal, ultrapassando os limites da metalinguística. Elas são marcadas pelas posições assumidas pelo sujeito em relação ao outro que exige do leitor o conhecimento acerca de suas condições de produção (gênero discursivo, autor, meio de circu- lação e tempo de publicação). 75

Para tanto, nas charges de Régis, o enunciado “E daí?!”revela a vivacidade da língua nas situações comunicativas, pois apresenta a valoração do discurso de origem, posicionamento valorativo do enunciador, isto é, do presidente da república, e do autor-criador da charge que provoca a réplica ao discurso original. Esse coro de vozes enunciativas são valoradas na charge para a satirização do discurso original de forma humorística e crítica. Ao verificar os posicionamentos dos sujeitos, constatamos as relações dialógicas que constroem os discursos tanto do presidente, originados dos noticiários que circulam na esfera jornalística, quanto do autor-criador da charge que imprime o seu posicionamento valorativo na charge. O enunciado “E daí?!”, pronunciado pelo presidente, nas entrevistas midiatizadas, estabelece relação de negação, aversão e indiferença aos questionamentos dos jornalistas. Essas relações dialógicas são valoradas na charge pelo autor- criador por meio de outras relações: humor-crítico, ironia e sarcasmos ao discurso do presidente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHIZZOTTI, A. A pesquisa qualitativa e seus fundamentos filosóficos. In: ______. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis – RJ: Vozes, 2006, p. 33-61. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. BAKHTIN,M.Estética da criação verbal. 5.ed.São Paulo: Martins Fontes,2011. ______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 2014. ______. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. FIORIN: José Luiz de. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. FONSECA, J. Caricatura. A Imagem Gráfica do Humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. 76

CAAVMRATALIANDORZAERCENAHSCTTAIOIPDVDNRAOASODSTEDERUVAFUZALEÇIDTDMÃEIOAOIRNSSIDDI:PNAATAADOREMA Alixandra Guedes Rodrigues de Medeiros e Oliveira Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected]

Afigura feminina existe,no decorrer da história da humanidade,como submissa ao gênero masculino e vítima de violência física, sexual e psicológica, prova disso foi o episódio de repercussão mundial, acontecido no Canadá, no qual um policial justificou que as mulheres são estupradas devido às vestimentas que optam por usar. Em resposta ao acon- tecimento, surgiu o Movimento da Marcha das vadias, em 2011, no qual jovens militantes do movimento feminista se manifestaram politicamente, por meio de cartazes, questionando a ordem patriarcal e machista, visando o engajamento político para visibilizar o combate às múltiplas formas de violência sofridas pela mulher. Debruçamo-nos sobre os cartazes – vistos como enunciados concretos – produzidos durante as várias Marchas ocorridas no país, nos anos de 2017, 2018 e 2019, para analisarmos como a alteridade constitui-se em valoração na luta contra a repressão patriarcal. Para tanto, buscamos apoio nas reflexões produzidas pelo Círculo de Bakhtin (2010, 2011, 2013), bem como nas contribuições sobre alteridade, valoração e enunciado concreto (SOBRAL, 2009; FIORIN, 2016; BRAIT, 2010). Acerca do resultado da análise, constatamos a evidência do tom valorativo como instrumento de fortalecimento das relações de alteridade que visam à resistência ao preconceito histórico e socialmente cristalizado na sociedade. Palavras-chave: Alteridade. Valoração. Marcha das Vadias. 78

INTRODUÇÃO No transcorrer das atividades diárias, percebemos as mais diversas situa- ções conflituosas que se estabelecem entre os sujeitos no processo de interação, resultantes não apenas da linguagem, mas de forças exteriores ao discurso, fortemente demarcadas por posições sociais e ideológicas instauradas no curso da interação verbal configurando uma verdadeira arena onde a oposição e a contestação dos diferentes discursos são consolidadas. Nesse sentido, Bakhtin (2011) vê a enunciação como fato social e não apenas como ato individual de uso linguístico. Para compreendê-la se faz ne- cessário compreender sua realização entre os sujeitos sociais. A linguagem é um fenômeno sócio-histórico e, por isso, ideológico, empregado para reafirmar e estabelecer poderes. É através da interação verbal atrelada à situação social, ampla e imediata que se constitui a realidade da língua, a produção da lingua- gem e a constituição dos sujeitos, por meio das marcas discursivas instala-se a heterogeneidade linguística. Logo, torna-se inviável pensar as relações humanas fora do âmbito das relações sociais, visto que a vida é, essencialmente, dialógica, polissêmica e polifônica. Desse modo, as práticas sociais estão ligadas às práticas discursivas, que compreendem a produção, distribuição e consumo de textos; a língua e o texto assumem o lugar da materialidade discursiva através dos gêneros. Inserido nesse contexto dialógico, e sob a perspectiva da Análise Dialógica do Discurso, representada pelo Círculo de Bakhtin (BAKHTIN, 2010, 2011, 2015), nos apropriamos de cartazes, produzidos para as diversas Marchas das Vadias rea- lizadas durante os anos de 2017, 2018 e 2019, coletados no ambiente virtual, com o objetivo de analisarmos como a alteridade constitui-se em valoração na luta contra a repressão patriarcal. Nosso trabalho está organizado em quatro proposições: na primeira, tra- zemos uma breve discussão teórica sobre dialogismo e enunciado concreto; na segunda, discorremos sobre os conceitos de alteridade e valoração segundo os estudos do Círculo (BAKHTIN, 2015, 2010, 2011; VOLOCHÍNOV, 2013); na terceira, apresentamos um sucinto histórico sobre a Marcha da Vadias e, por 79

fim, apresentamos a análise por nós empreendida relativa à presença da alteri- dade e do tom valorativo nos cartazes produzidos para as Marchas das Vadias. DIALOGISMO E ENUNCIADO CONCRETO PARA O CÍRCULO DE BAKHTIN A partir da década de 1920, o Círculo de Bakhtin buscava formular uma teoria de base materialista e sócio-histórica a respeito da linguagem. Os integrantes do Círculo procuravam compreender como os discursos, materia- lizados através de enunciados, sejam eles das esferas da vida, sejam eles das esferas institucionalizadas, são saturados e refratados pela ideologia. Observa-se o postulado da não neutralidade dos discursos, uma vez que estes são sempre marcados pela valoração de uma dada ideologia. Nesse contexto, a linguagem sob a perspectiva da Análise Dialógica do Discurso (doravante ADD) requer o entendimento da língua enquanto resultado, não acabado, da vida verbal em contextos específicos de comunicação e de inte- ração. Sobral (2009, p. 35-37) aponta três planos distintos para se compreender o conceito de dialogismo: o primeiro é o de que ele designa a condição de ser e agir dos sujeitos, ou seja, o sujeito é considerado para além de seu aspecto biológico e só existe na interação com o outro. No segundo plano, o dialogismo configura-se como condição de possi- bilidade do dizer, o que significa pensar que os sentidos surgem no interior das interações que já foram produzidas e daquelas que virão a se materializar. Por fim, o terceiro plano evidencia que ele é a base para composição de enunciados e discursos, visto que, até mesmo quando há um nível baixo de interação (mo- nólogo) ocorre dialogicidade, pois a simples menção a uma verdade anterior já é fonte de um dizer posterior. Compreendendo que “a língua passa a integrar a vida através dos enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” (BAKHTIN, 2011, p. 265). No curso da interação dialógica, o enunciado apresenta como partes integrantes um projeto (a intenção do dizer), um autor (o sujeito) e a execução (a realização por parte do sujeito de sua própria intenção). Por possuir natureza ativamente 80

responsiva, toda compreensão é desejante de resposta e é essa condição que constitui cada enunciado como um elo na corrente complexamente organi- zada de outros enunciados (BAKHTIN, 2011, p. 272). Nesse sentido, o enunciado configura-se como a real unidade da co- municação discursiva, pois o discurso está sempre materializado em forma de enunciado pertencente a um sujeito social ativo e fora do escopo sócio- -cultural fica impedido de existir. A concretude do enunciado pressupõe dois critérios: a alternância dos sujeitos, que definem seus contornos, já que “num dado momento, todo enunciado chega ao fim, e dá então lugar à compreen- são responsiva ativo do leitor” (SOBRAL, 2009, p. 92) e o acabamento do enunciado, que indica que o sujeito conclui seu projeto enunciativo dando espaço para a enunciação do outro. Em ambos os aspectos, a presença do Outro é inevitável. O enunciado abrange três elementos inter-relacionados: 1. a conclusibilidade, visto que a réplica, mesmo a mais breve, aponta para uma conclusão suscitada pela posição do falante; 2. o projeto enunciativo do su- jeito, isto é o empreendimento em conceber (intencionalidade) e executar (enunciação) um objeto de sentido, liga-se ao tema e a forma; por fim, 3. as formas típicas dos enunciados, que são os gêneros do discurso propriamente ditos, escolhido pelo sujeito a partir de seu projeto enunciativo (SOBRAL, 2009. p. 93). O enunciado é, portanto, uma unidade de interação, com objetivo específico, materializado de acordo com a necessidade situacional e que atinge significação apenas na ação da vida real, da qual os participantes tenham conhecimento. SOBRE A ALTERIDADE E O TOM VALORATIVO Após reconhecermos a essência dialógica da linguagem, situamos dois dos conceitos mais caros à teoria dialógica do discurso, neste trabalho, o de alteridade e o de valoração. É em Para uma filosofia do Ato Responsável (2010) que Bakhtin nos apresenta o conceito de alteridade ao abordar o princípio da responsividade inerente a todas as relações dialógicas. Ao reconhecermos o Outro, a alteridade se estabelece numa relação de não indiferença com a vida 81

do outro, como o nosso contemporâneo, num jogo instável, com a singularidade. Nesse processo, o Eu coloca-se na interação, não como um construtor e sim como um constructo, assim é um Eu que é pensado pelo Outro. É na relação de alteridade que os sujeitos se arvoram em um processo que não emerge de suas próprias consciências, mas das diversas relações sócio- -históricas situadas. A alteridade é inerente ao próprio ser, está contida no ser antes de tudo, porque o próprio ser é constituído por ela, e evidencia-se por meio da experiência discursiva que “se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros” (BAKHTIN, 2011, p. 294). Emana desta relação eu-Outro-Outros, em espaços discursivos sócio-histórico-culturais,a possibilidade de ampliação dos horizontes dos sujeitos, que ocorre no desdobramento dos lugares enunciativos, na multiplicidade das vozes, entre o que é dito e como se diz. Nessa perspectiva, é impossível pensar o homem destituído das relações que o ligam ao Outro. Nesse movimento dialógico, o Outro não é somente o interlocutor ime- diato ou virtual. É muito mais. O outro se projeta a partir de discursos variados (passados, atuais, presumidos). São as outras vozes discursivas - posições sociais, opiniões - que vêm habitar de diferentes formas o discurso em construção. Com isso, o Outro se apresenta em diferentes graus de presença no enunciado, às vezes é visível, às vezes está escondido, mas sempre está lá; constituindo um princípio de alteridade. Há em Bakhtin (2011) uma passagem sobre o vivenciamento ativo do Eu que, ao nosso ver, sintetiza bem o conceito de valoração deste autor, servindo de referência para a nossa explanação neste tópico. Tendo da minha vivência uma lembrança axiologicamente ativa não da parte do seu conteúdo presente, tomado isoladamente, mas da parte do seu sentido antedado e do objeto,isto é,da parte do que assimilou o surgimento dele em mim, e assim torno a renovar o antedado de cada vivência minha, reúno todas as minhas vivências, reúno a mim todo não no passado, mas no futuro eternamente vindouro. (BAKHTIN, 2011, P. 114-115) 82

Depreendemos o quanto esta passagem de Estética da criação verbal ex- plica o sentido de valoração e o faz tomando como referência a própria noção de dialogismo. O fragmento nos permite compreender que as axiologias, os pontos de vista ou os valores estão intimamente ligados ao histórico e ao seu evoluir. Em outras palavras, o vivenciamento ativo do eu é sempre uma atividade axiológica; valorar significa, portanto, dar o seu “aroma” às formas de interação verbal, “uma vez que não se trata do valor da vida para mim, mas do meu pró- prio valor para mim mesmo […], eu suponho esse valor no futuro eivado de sentidos” (BAKHTIN, 2011, p. 112). Sob essa ótica, o vivenciamento torna-se lembrança axiológica quando se refere ao caráter dialógico da linguagem. O substantivo lembrança usado por Bakhtin (2011) cumpre com o papel de afirmar que há “rastros”de sentidos atra- vessando as experiências de linguagens dos sujeitos sociais. Esses “rastros”podem ser apreendidos por meio da entonação, do estilo e do gênero escolhido para compor o ato enunciativo. Nos termos do autor, “a relação valorativa do falante com o objeto (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado”(BAKHTIN, 2011, p. 289). Importa-nos destacar duas assertivas a respeito: a lembrança é uma forma de axiologia e a axiologia é ideológica. Na primeira, é preciso reconhecer que as valorações são vinculadas ao tempo e ao espaço, cronotopia. Daí a observa- ção bakhtiniana na expressão “lembrança axiologicamente ativa”. Os sujeitos estão sempre implicados, ativos, nestas lembranças axiológicas/valorativas e elas mobilizam tons/apreciações diante dos eventos de interação social, con- vocando, para tanto, compreensões responsivas que vão ao encontro, ou não, das lembranças axiológicas. Já na segunda assertiva – a axiologia é ideológica – as valorações possuem uma filiação ideológica historicamente situada e editada pelas pressões sociais a que tais ideologias se relacionam. Logo, a valoração tem o “aroma” e o “sabor” das instituições que determinam as possibilidades de produção de enunciados no circuito das atividades de linguagem. Assim, o enunciado é sempre resul- tante de uma ideologia e esta, por sua vez, sempre será social e histórica e, por isso, não pode ser compendiada à sua face empírica nem tão pouco fechada no mundo individual do sujeito (FARACO, 2009, p. 48). 83

Para Bakhtin (2015, p. 66), toda atividade de linguagem como, por exemplo, a manifestação verbal socialmente significativa é determinada por tons axiológicos e “cada dia tem sua conjuntura socioideológica, semântica, seu vocabulário, seu sistema de acento, seus lemas, seu desaforo e seu elogio”. A nossa relação com o mundo que nos cerca ocorre de maneira oblíqua, tendo em vista que nossas palavras adentram as camadas dos discursos sociais que recobrem as coisas. Desse modo, “nossa relação com o mundo é sempre atravessada por valores” (FARACO, 2009, p. 49). A MARCHA DAS VADIAS As Slut Walkrs[9] surgiram em janeiro de 2011, na cidade de Toronto, no Canadá, período no qual ocorreram diversos casos de abuso sexual em mulheres na Universidade de Toronto, fato que levou o policial Michael Sanguinetti, ao falar sobre os abusos, declarar que “as mulheres deviam evitar se vestir como vadias para não serem vítimas”. A primeira marcha levou mais de três mil pessoas às ruas de Toronto. A marcha aconteceu em vários lugares ao redor do mundo, como Los Angeles, Chicago, Buenos Aires e Amsterdã. No Brasil foi realizada pela primeira vez em São Paulo, em junho de 2011. Trinta e cinco cidades já tiveram pelo menos uma edição da Marcha das Vadias, segundo Helene (2008), e em algumas cidades as marchas tomaram proporções maiores, a exemplo da Marcha das Vadias de Campinas – a terceira maior marcha do estado de São Paulo – que alcançou um significado expressivo devido aos numerosos casos de estupro no distrito de Barão Geraldo, onde fica a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Um dos objetivos da Marcha é adotar o conceito de “vadia” opondo-se ao estereótipo de culpa que recai sobre as mulheres agredidas em função da exposição de seus corpos, defendendo o direito de autonomia das mesmas. As 9   . A tradução de Slut Walkrs se deu de diferentes formas em decorrência das palavras utilizadas para designar slut. Em Portugal, foi denominada Marcha das Ordinárias e Marcha das Galdérias. Na maioria dos países de língua espanhola a tradução rea- lizada foi Marcha de las Putas. No Brasil, a maioria das cidades participantes utiliza Marcha das Vadias, no Ceará optou-se por Marcha das Vagabundas (Informações retiradas da Internet). 84

Marchas são organizadas de modo descentralizado, utilizando a internet como principal ferramenta para organização e propagação do movimento, através de blogs e redes sociais, como o Facebook. Algumas Marchas estabelecem um comitê para organizar os protestos que agregam diversos coletivos, tais como assistência jurídica popular, rádios livres, anarquistas, cyberfeminismo e mili- tantes organizadas em partidos políticos. Como uma das características da manifestação, as mulheres costumam se vestir de modo irreverente. Com saltos altos, minisaias, lingeries ou, até mes- mo, seminuas, as participantes criam um impacto em torno do propósito da manifestação: denunciar a violência machista. Ao pontuar as características da Marcha das Vadias, Silva Júnior (2013, p. 128) elenca “a irreverência, as cores, os corpos pintados, os cartazes com slogans irônicos e provocativos, além dos discursos e gritos de guerra que discutem abertamente temas tabus”. Na Marcha das Vadias as mulheres lutam contra a violência sexual, mar- cham com seus corpos e escrevem sobre ele, no sentido de quem escreve em sua superfície e a respeito dele. Um “corpo mensagem”, palavra colada ao corpo que veicula e é veiculado. Unidos e misturados, enunciado e corpo se imbricam numa coisa só: a resistência na pele. O discurso luta e resiste materializando-se na linguagem e no corpo, o que nos leva a considerar o corpo como um lugar de inscrição do sujeito. A autonomia sobre o corpo feminino é um dos principais itens da pauta desse movimento. “Meu corpo, minhas regras” é o slogan mais visto nos corpos e nos cartazes durante as Marchas, bem como nas redes sociais. Esse emblema sempre esteve presente nas discussões dos movimentos feministas – principalmen- te, a chamada Segunda Onda do Feminismo, na década de 1970 – nos quais as questões relativas à mulher e à autonomia do seu corpo visam estabelecer a ruptura entre o biológico e o cultural,desconstruindo o ideário de “mulher é o sexo frágil”. A bandeira “Nosso corpo nos pertence”, cunhada nos anos 1970, pode ser interpretada sob duas perspectivas: seja pela mercantilização dos corpos femininos, seja pelo tratamento das mulheres enquanto objetos de violência. A mercanti- lização é resultante da ordem patriarcal, na qual a mulher é tida como inferior e em muitos casos tratada/colocada como objeto, mercadoria, visão cristalizada pelo discurso biológico de inferiorização e solidificada pelos meios midiáticos. 85

Enquanto objeto de violência, a mulher é vítima da falta de autossufi- ciência sobre o próprio corpo, sendo impedida de decidir sobre a reprodução e/ou interrupção de gravidez. Casos ainda mais graves de violência são confi- gurados pelas distintas formas de violência: física (como o estupro), psicológica (relação abusiva), patrimonial (menores salários), além das inúmeras formas de violência simbólica. Subjaz aos questionamentos mobilizados pelas militantes o fato de que o Estado e a Igreja decidem pela mulher, isto é, ela é subjugada às instituições, que em sua maioria são compostas por homens. ALTERIDADE E VALORAÇÃO NOS CARTAZES DAS MARCHAS DAS VADIAS Partimos do pressuposto que os cartazes produzidos para as diversas Marchas das Vadias configuram-se como enunciados concretos, pois a ma- terialização discursiva neles presente são enunciações que revelam uma dada posição dos sujeitos, bem como a mobilização da alteridade para a construção do tom valorativo que acompanha toda palavra proferida no seio de uma rela- ção dialógica. Dentre a vasta gama de cartazes produzidos desde que a Marcha das Vadias instaurou-se no país, selecionamos três cartazes, retirados de fontes on-line,publicados nos anos de 2017,2018 e 2019,para empreender nossa análise. Antes de passarmos às análises dos cartazes é preciso compreender a situação de produção que os engendra. A palavra “feminismo” foi criada em 1837, pelo filósofo francês, Charles Fourie. Desde lá, as formas de assimilar o feminismo mudaram entre ondas, vertentes e períodos. A episteme, o conjunto de valores e verdades acerca do que é bom ou mau, não fora alterado significativamente, mas as transições temporais contribuíram para o foco do feminismo durante a história, conforme é possível constatar através de reportagens, livros, filmes e pesquisas sobre o assunto. Assim, o cartaz figura na sociedade como um instrumento para a expo- sição e protesto de opiniões e desejos diante de outros sujeitos, com vistas a sua adesão ou convencimento. Vejamos: 86

Figura 1 Fonte: http://www.bemparana.com.br/fotos/664/marcha-das-vadias Acesso em 25 agosto 2017 A Figura 1 é composta pelas imagens de várias mulheres durante a Marcha que aconteceu em janeiro de 2017, em Curitiba, PR; intitulada “Nem uma a menos” em resposta à chacina registrada em Campinas, SP, durante a virada do ano, motivada por ódio às mulheres que fez treze vítimas. No centro da Figura, temos uma jovem vestida de preto, com cabelos soltos e o símbolo do feminino na lateral direita do rosto, segurando um cartaz que tem o enunciado concreto “Machismo Mata!”. A escolha por este cartaz se deu por acreditarmos que enquanto enunciado concreto, que encontra e produz ecos na vida real, sua materialidade linguística encerra o cerne da violência contra a mulher. O substantivo “Machismo” traz em si uma gama de sentidos produzidos, valorados e reproduzidos ao longo dos séculos. Entendemos, assim, que as palavras “podem abastecer qualquer falante e os juízos de valor mais diversos e diametralmente opostos dos falan- tes” (BAKHTIN, 2016, p. 48) e que, por isso, “viver uma experiência, pensar um pensamento, ou seja, não estar, de modo algum, indiferente a ele, significa antes afirmá-lo de uma maneira emotivo-volitiva” (BAKHTIN, 2010, p. 87), isto é, a escolha pelo sujeito, produtor do cartaz, da palavra “Machismo” se dá 87

como forma de valorar o horizonte social existente e nele, através da alteridade, afirma-se enquanto mulher. Na continuação do enunciado que constitui o primeiro cartaz, encon- tramos o verbo “mata!”, seguido pelo sinal de pontuação de exclamação, que revela para o leitor a entonação expressiva do ato enunciativo materializado. Mesmo que não se trate de um enunciado oral – no qual ocorre naturalmente a entonação expressiva – compreendemos que devido às condições político- -sociais este enunciado adquiriu um peso específico, tornando-se, desse modo, um enunciado exclamativo expressivo (BAKHTIN, 2016, p. 49). Para nós, a construção exclamativa-imperativa, novamente, ressalta a relação de alteridade às avessas: sou mulher, vítima do machismo, me construo na resistência a essa conduta social. Passemos à análise do segundo cartaz. Figura 2 Fonte:https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2018/06/ marcha-das-vadias-do-recife-chega-em-sua-oitava-edicao-protestando-pel.html Acesso em 14 novembro de 2020 O cartaz em análise (Figura 2) foi produzido por ocasião da Marcha das Vadias ocorrida em Recife, no ano de 2018, e caracteriza-se como enunciado concreto pleno, pois reverbera em sua materialidade linguística ecos de enun- ciados anteriores, bem como suscita respostas ao discurso materializado. Nos 88

termos de Bakhtin (2011, p. 275), “Todo enunciado […] tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes de seu início, os enunciados de outros; depois de seu término, os enunciados responsivos de outros [...]”. No cartaz temos uma jovem, trajando um top preto, com os cabelos par- cialmente presos e colocados sobre o ombro direito. Usa óculos-escuros e seu semblante está sério com a cabeça levemente virada para a esquerda. Ela segura um cartaz no qual está escrito “Aumenta tudo, menos o respeito”, expressão esta que, a priori, remete ao discurso do machismo hegemônico inserido numa história de misógina secular, em que as demandas sociais, a carga mental e a violência financeira e psicológicas são cada vez maiores sobre as mulheres. O ano de produção do cartaz – 2018 – foi marcado por um cenário político e econômico caótico, de maneira que a primeira metade da expressão “Aumenta tudo” encontra-se valorada pelo índice de desemprego elevado, pela crescente informalidade trabalhista e pelo aumento nos preços da gasolina e do diesel, consequentemente pelo alto custo com os transportes, fatores que geraram insatisfação populacional e acabaram por motivar a greve dos caminhoneiros, paralisando o país por onze dias. O fragmento “Aumenta tudo” exige do seu leitor a retomada de enunciados proferidos numa outra esfera enunciativa – a esfera econômica – para que ocorra o seu entendimento. A segunda metade da sentença estabelece uma relação de alteridade às avessas ao passo que denuncia a contínua falta de respeito ao sujeito mulher. O enunciado “menos o respeito” evidencia, além da postura preconceituosa e ultrajante contra a mulher, um discurso de falta de ética e desonestidade para com o povo brasileiro, uma vez que “só o enunciado tem uma relação imediata com a realidade e com a pessoa viva falante (sujeito)” (BAKHTIN, 2016, p. 98. Grifo do autor)”. Vejamos o último cartaz. 89

Figura 3 Fonte: https://www.leiaja.com/noticias/2019/08/24/marcha-das-vadias-ocupa- -centro-por-diretos-das-mulheres/ Acesso em 20 novembro de 2020 A Figura 3 é composta pela imagem de várias mulheres durante a marcha que aconteceu em 2019, na cidade do Recife.Vemos dentre as participantes uma bandeira LGBTQIA+ e em primeiro plano uma faixa com o título da marcha e acima dele o enunciado “Dias Mulheres Virão”. Pelo enquadramento da foto, podemos perceber que a faixa é segurada por quatro pessoas, no entanto apenas uma delas não aparece.Vemos no canto esquerdo da figura, uma jovem vestindo de camiseta branca e short jeans, com cabelos cacheados soltos, mais ao centro temos uma jovem loira que traja tênis rosa e ao seu lado uma jovem morena, de franja, calçando tênis preto; não é possível ver seus corpos. O enunciado materializado no cartaz – “Dias Mulheres Virão” – convoca o leitor a refletir sobre o histórico de violência sofrido pelas mulheres e refrata a indignação das participantes da Marcha ao expor que, ao contrário do que está cristalizado na sociedade, a violência sofrida pelas mulheres não reside em suas vestimentas, posturas, opiniões, e sim no comportamento da parcela masculina da sociedade, resguardada pela formação machista, conservadora e preconceituosa sobre o ser feminino. 90

A construção do enunciado remete à expressão “dias melhores virão” muito popular e utilizada frente a contextos de adversidade. Assim, por meio da troca do adjetivo “melhores” pelo substantivo “Mulheres”, o enunciado “Dias Mulheres Virão” manifesta e atualiza os sentidos de ser mulher, visto que a construção alteritária do enunciado reside na “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido de seu enunciado” (BAKHTIN, 2016, P. 47), refratada pela construção frasal afirmativa, e que encontra apoio moral existente na valoração positiva já existente na sociedade para o discurso ressignificado. Compreendemos, assim, que os enunciados materializados nos cartazes produzidos para as Marchas das Vadias, realizadas na cidade do Recife e Rio de Janeiro, nos últimos três anos, apontam para resistência da mulher frente à sociedade machista e misógina. O tom valorativo e as relações alteritárias presentes nos enunciados revelam a luta das mulheres pelo direito à vida, às decisões sobre o próprio corpo e ao respeito enquanto ser humano. UM ENCERRAMENTO PROVISÓRIO… A partir das reflexões realizadas durante nossa análise,nos foi possibilitado vislumbrar que o enunciado é resultado de relações dialógicas, que acontecem em situações sócio-históricas de produção. Compreendemos, dessa forma, que o sujeito mulher constitui-se na sociedade através de relações de alteridade direta com seus pares – outras mulheres que também são vítimas da misoginia – ou por meio da alteridade às avessas, pela total rejeição à postura do homem machista e violento. Entendemos que a Marcha das Vadias figura na sociedade como um movimento que permite explorar as relações de continuidade e mudança, por intermédio da retomada de sentidos, já que todos os enunciados são elos na corrente da comunicação discursiva. De modo geral, a questão do movimento é a reivindicação da autonomia feminina, em especial, no que se refere às dispo- sições corporais. Este anseio fica evidente na entonação expressiva presente na materialização discursiva dos cartazes produzidos para as Marchas. Desse modo, intuímos que o processo de valoração não é um ato individual e sim coletivo, 91

apoiado na ideologia de uma determinada comunidade discursiva, e é a sua compreensão que viabiliza a alteridade entre as partes envolvidas – mulheres que reivindicam o direito à escolha. Com isso, reafirmamos que os enunciados analisados constituem-se como enunciados concretos, pois o projeto enunciativo dos sujeitos produtores foi alcan- çado, ao se ligarem a um tema de relevância social e terem sido materializados na forma do gênero cartaz, conforme demandava a necessidade situacional, tendo, portanto, sua conclusibilidade alcançada ao serem lidos durante a manifestação. Somam-se a estes aspectos o tom valorativo dos sujeitos envolvidos na situação comunicativa e o princípio da alteridade sob o qual todos nós nos constituímos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. . Para uma filosofia do Ato Responsável. Trad. Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. . Teoria do romance I: a estilística.Tradução, posfácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2015. . Os gêneros do discurso. Tradução, posfácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: 34, 2016. FARACO, C.A. Linguagens e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. HELENE, Diana. Se cuida seu machista, a América latina vai ser toda femi- nista. Disponível em: http://mstrio.casadomato.org/se-cuida-seu-machista-a- -america-latina-vai-ser -toda-feminista Acesso em: 05 de jul. 2014. VOLOCHÍNOV.V.N. [1926]. A palavra na vida e a palavra na poesia: introdu- ção ao problema da poética sociológica. . A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas de João Wanderlei Geraldi. Edição e supervisão da tradução de Valdemir Miotello. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2013. 92

SILVA JR, José Geraldo. Conexão e ação: a utilização estratégica da internet pela Marcha das Vadias para mobilização social e ação coletiva no espaço virtual e no território urbano. In: PANKE, Luciana; MACEDO, Roberto Gondo; RO- CHA, Daniela (Orgs) A mobilização social no contexto político e eleitoral. Capivari,SP: Nova Consciência, 2013, p. 125-146. SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas - SP: Mercado de Letras, 2009. 93

DDISECSULRESGOITSIME(IAPNÇO)DÃDEOEFR,EVNESRÁDVAEDISE: Rafael Venâncio Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected] Jéssica Roberta Araújo Ferreira Universidade Federal da Paraíba, PROLING - João Pessoa-PB [email protected]

Para o materialismo histórico-dialético, o Estado é aquele que serve à burguesia e é nesse sentido que Althusser (1980) toma a Justiça enquanto um aparelho repressor. Entretanto, no caso da Reclamação 32.035/PR, de relatoria do ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, vislumbra-se algo que foge à regra das acepções feitas acima. É que o magistrado derruba a liminar concedida por Luiz Fux ao Partido Novo em que se mandava que a entrevista com o ex-presidente Lula ao Jornal Folha de São Paulo não fosse realizada. Em síntese, o ministro Lewandowski busca a total e completa deslegitimação do ethos discursivo do autor da decisão anterior, levando o enunciatário a inferir que o pronunciamento emitido por Fux é indefensável juridicamente. Ex positis, nossa pesquisa, numa conexão entre a Semiótica Discursiva de base greimasiana e o Direito, junto às con- tribuições da Retórica aristotélica, pretende investigar, no corpus em cena, utilizando o método quali-interpretativista, o percurso gerativo de sentido do texto decisório do ministro Lewandowski a partir do qual se depreende as significações que lhe são subjacentes, desmitificando, na oportunidade, as estratégias argumentativas usadas pelo enunciador para fazer com que o interlocutor creia que a decisão do ministro Fux não é digna a receber o status de verdade. Palavras-chave: Discurso. Ethos. Decisão. Lula. 95

INTRODUÇÃO Faltando poucos dias para a realização do primeiro turno das eleições gerais de 2018, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandows- ki, acata a reclamação do jornal Folha de S. Paulo contra a decisão da 12ª Vara Federal de Curitiba que negou pedido formulado pelo veículo de imprensa para entrevistar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a fim de que cumprisse a pena de 12 anos e 1 mês de prisão dada em grau de apelação. Entretanto, na madrugada desse mesmo dia, o então vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, na qualidade de Presidente em Exercí- cio do Tribunal, suspende a decisão de seu par, aceitando os argumentos do Partido Novo para que tal entrevista fosse proibida. Apesar disso, o ministro Lewandowski volta a emitir nova decisão em que reafirma a ordem dada na reclamação e critica a atitude do colega que havia suspendido o decidido em favor da Folha de S. Paulo. Feitas as considerações preliminares, cabe dizer que se escolheu a decisão judicial como corpus desta pesquisa em virtude do fato dela evidenciar certa carga de subjetividade no ato de sua enunciação, em outras palavras, de se notar que um sujeito que fala, apesar de se alardear, nos meios jurídicos, que o discurso jurídico é um discurso neutro. (Re)afirmamos, nesse sentido, que a decisão judicial é um objeto capaz de ser estudado à luz das ciências da linguagem, e, mais especificamente, dos estudos relacionados ao discurso. Nesse sentido,esclareça-se que este trabalho toma como referencial teórico a Semiótica Discursiva francesa para a obtenção da enunciação subjacente ao discurso decisório, bem como as contribuições da Retórica aristotélica, cum- prindo dizer, por fim, que este artigo tem como objeto de estudo a Reclamação 32.035/PR, a qual já foi mencionada no início deste trabalho. Por uma questão metodológica, optamos por dividir este trabalho em três momentos: em um primeiro momento, faremos um breve percurso histórico sobre a construção da Justiça enquanto aparelho repressor e, ao mesmo tempo, garantidor das li- berdades individuais ao longo da evolução do Estado Moderno; num segundo momento, exporemos as bases teóricas que norteiam esta pesquisa científica, a 96

saber, a Semiótica Discursiva de linha francesa e alguns conceitos da Retórica aristotélica. Para encerrar, num terceiro momento, debruçar-nos-emos sobre o objeto de estudo e efetuaremos uma análise coerente do corpus em cena. JUSTIÇA: DO ESTADO ABSOLUTISTA AO ESTADO LIBERAL A história da evolução do Estado Moderno é de fundamental impor- tância para que se compreenda a constituição do poder da Justiça. Na verdade, é certo dizer que, sendo a Justiça um instrumento do poder coercitivo do Es- tado, a história de ambos se confunde e se complementa na medida em que as diferentes concepções de Estado modificaram as ações da Justiça para com os jurisdicionados. Nesse sentido,consideramos que a definição de Maluf (2013) tem o condão de resumir em si mesma o propósito segundo o qual o Estado foi constituído, independentemente da configuração que teve ao longo dos séculos: “O Estado é uma organização destinada a manter, pela aplicação do Direito, as condições universais de ordem social” (MALUF, 2013, p. 15). Com a ascensão do Renascimento em toda a Europa, no séc. XIV, o poder da Igreja foi diminuído significativamente e, dessa forma, os reis foram tidos como soberanos em suas monarquias. Nesse contexto, a Justiça era, tão somente, sintoma da vontade do soberano. As punições, portanto, seguiam o rito necessário para que jamais o povo cogitasse a insurreição ou qualquer forma de transgressão ao que ordenava Sua Majestade, o Rei (Cf. FADEL, 2012, p. 63). O monarca, no Estado Absolutista, era tido como um ser incapaz de errar, ou seja, ainda que se cogitasse a possibilidade de o rei errar em seu julgamento ou em suas decisões, ele não estaria sujeito a qualquer tipo de responsabili- zação, não podendo, dessa forma, ser submetido ao escrutínio dos Tribunais (ALEXANDRE; DEUS, 2017, p. 33). Em tais circunstâncias, a transgressão à lei estabelecida era como um atentado ao próprio rei, razão pela qual a punição devia ser da forma mais exemplar possível. Em tal situação, não havia que se falar em qualquer tipo de autonomia da Justiça em relação ao seu monarca, “pois ele [o rei] pode suspender o curso da 97

justiça, modificar suas decisões, cassar seus magistrados, revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juízes, por comissão real” (FOUCAULT, 2014, p. 79). Diante de tamanho poder estatal, no séc. XVIII, tanto na França quanto nos Estados Unidos, a burguesia, juntamente com os súditos que viviam em condições deploráveis, em comparação à aristocracia decadente, decidiu exe- cutar uma revolução que atingia em cheio os últimos fundamentos do Antigo Regime, a saber, o poder absoluto do soberano, bem como a pouca influência que a Igreja exercia sobre o Estado, aprovando documentos que, fundamentados nas teorias revolucionárias de Voltarie [1694-1778], representavam o anseio por parte das classes excluídas do poder de decisão de terem a liberdade para autogerirem as suas próprias vidas (Cf. BOBIO, 2004, p. 18-19). Com isso, nasce o Estado burguês em que a lei passa a ser o limite da intervenção estatal e, consequentemente, da Justiça, de sorte que não mais se poderia condenar alguém por algum crime sem que a prática criminosa estivesse, em tese, prevista no ordenamento jurídico vigente. Surge, portanto, de uma nova concepção de Estado, uma nova sociedade que, como bem frisamos acima, concentra seus interesses nas liberdades individuais. É o que se pode notar no corpus em cena: o ministro Ricardo Lewan- dowski busca, em tese, reestabelecer o que decidira quando do deferimento do pedido da Folha de S. Paulo para entrevistar o ex-presidente Lula, permitindo ao condenado a chance de poder se expressar ainda que preso. SEMIÓTICA: NÍVEL FUNDAMENTAL, NARRATIVO, DISCURSIVO E ETHOS DISCURSIVO Inicialmente formulada a partir das contribuições do estruturalismo eu- ropeu, a semiótica, “Em linhas gerais, [...] explica a geração do sentido a partir de três níveis no plano do conteúdo”(FULANETI, 2010, p. 7). São esses níveis (também chamados de patamares sucessivos de sentido) que orientam a construção do significado subjacente ao texto e é a partir deles que a análise semiótica é feita. Nessa continuidade, Bittar (2017), quando da definição da semiótica greimasiana, estende a conceituação para não só “um saber-fazer voltado para a compreensão da significação, [mas também] dos sistemas de significação e dos 98


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