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(Re)Pensando Direito - Nº 8

Published by comunicacao, 2015-04-29 21:41:32

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A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA A engenharia genética abriu a caixa de Pandora de nossos medos ancestrais. De repente, algumas das nossas seguranças mais íntimas tornaram-se inseguras, e fomos forçados a desenvolver respostas a perguntas complexas para as quais não estávamos preparados. Na confusão, buscamos referências claras e fomos forçados a legislar rapidamente e, por vezes desordenadamente, sobre questões duvidosas e de uma considerável dificuldade conceitual e tecnológica (HERNÁNDEZ, 2000, p. 12, Tradução nossa). A Bioética é justamente uma das facetas da ética, sendo que umadas suas principais atribuições é conter e impor limites, utilizando-se dosensinamentos e princípios bioéticos, já que este ramo da ética filosóficasurgiu recentemente para analisar teoricamente os valores, normase princípios que ordenam os avanços científicos e tecnológicos. Amagnitude alcançada pela Bioética na atualidade é revelada justamentepela diversidade de tópicos que florescem e evoluem desde a suagênese, descortinando o rol das complexas preocupações de ordemética: As condições de origem da Bioética nos revelam um forte sentimento de defesa e salvaguarda do homem, em sua singularidade, individualidade e na universalidade de sua humanidade. Isto ocorreu juntamente com uma inequívoca afirmação do respeito à condição humana e do valor incondicional do próprio homem. Há uma orientação aceita no sentido de impor limites ao vasto campo da investigação científica aplicada ao ser humano, na multiplicidade de seus modos de ser e de existir. A generalização das inquietudes sociais deve ser limitada a um plano da normatividade e de reflexão enquanto exigência de fundamentação do comportamento. Não basta, porém, estabelecer como se deve atuar (formular normas), mas, também, por que se deve agir dessa maneira (determinação dos princípios bioéticos) (SANTOS, 1998, p. 37). O avanço da biotecnologia demonstra o surgimento de complexase novas relações sociais e jurídicas, que envolvem valores religiosos,morais, culturais, políticos, econômicos. Diante da complexidadedessas relações, a Bioética não pode limitar-se à abstração teórica, jáque é constantemente chamada a dar uma solução ou uma resposta(RE) PENSANDO DIREITO 149

Isabel Cristina Brettas Duarteaos questionamentos práticos, uma justificativa racional e legítimadentro de um equilíbrio com o Direito. O termo “Bioética” foi empregado pela primeira vez por Potternum sentido ecológico, considerando-a a ciência da sobrevivência,com objetivo moral-pedagógico. Em sua concepção alargada,conforme Barreto, passou a designar os problemas éticos geradospelos avanços nas ciências biológicas e médicas, como algo degrande problemática, envolvendo o ser humano no que diz respeito àsua dignidade e à crescente interferência do homem no processo denascimento e morte. Então, “essa possibilidade de controle da vida,despertou na humanidade a necessidade de estabelecer limites parao atuar da ciência” (2000, p. 43). Porém, no início dos anos 1990, começaram a surgir críticasao principialismo e à universalidade dos seus princípios a partir,principalmente, da necessidade de que fossem respeitados osdiferentes contextos sociais e culturais existentes em um mundoglobalizado. Assim, no final do século XX, a Bioética passou aexpandir seu campo de estudo e ação, incluindo temas como o dosdireitos humanos e da cidadania, a preservação da biodiversidade, afinitude dos recursos naturais planetários, o equilíbrio do ecossistema,os alimentos transgênicos, o racismo, outras formas de discriminação,etc. Segundo Volnei Garrafa, até 1998, a epistemologia da Bioéticase restringia a caminhos que apontavam para temas e problemas/conflitos preferencialmente individuais em relação aos coletivos: “oeu deixou o nós em posição secundária, pois a teoria principialistase mostrava impotente para desvendar, entender, propor soluções eintervir nas gritantes questões coletivas [...]” (GARRAFA, 2006, p. 12-13). A Bioética, desde o princípio, impôs-se como uma reação àrealidade da pesquisa científica no campo da vida humana, que estavamergulhada em um “vazio ético”, já que se negava a existência dequalquer valor ético universal, surgindo como uma limitação a essaspesquisas. A discussão Bioética foi suscitada quando se percebeu que150 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIAo rumo dos acontecimentos, principalmente envolvendo a pesquisaem seres vivos, poderia levar a conseqüências graves e indesejadaspela falta de conscientização da responsabilidade ética, situação estaque exige o compasso entre a ciência e o Direito: A Bioética tem estimulado o Direito a se mover no compasso das ciências biológicas e da tecnologia, não com o atraso que o caracterizava até recentemente, abordando a interpretação jurídica das consequências de suas aplicações. Em instituições e regras internacionais em muitos países, as normas jurídicas e de direito têm acompanhado a comunidade científica, a atualização, sincronizando-se com os feitos científicos e tecnológicos quando estes se produzem e reclamam sua atenção, no futuro, a velocidade das descobertas científicas e avanços tecnológicos podem tornar difícil manter esse ritmo (PALACIOS, 2000, p. 17) (Tradução nossa). Assim, a Bioética é uma disciplina que amalgama conhecimentosteóricos de ética, se submete aos rigores do debate analítico, abre-separa o conhecimento empírico e o incorpora à medida que o requerpara avaliar as realidades, as projeções, os dilemas e as situaçõesproblemáticas que ocorrem no âmbito da reflexão. O discurso daBioética se submete a critérios de racionalidade, razoabilidade ouplausibilidade, prudência, coerência interna dos pronunciamentos ecoerência externa do que é asseverado em relação aos antecedenteshistóricos e à realidade social contemporânea (GARRAFA, 2006, p.35). E como o ser humano é um ser cultural, que se socializa, acultura--se, profissionaliza-se, politiza-se, enfim, estrutura-se dinamicamenteem contato com o meio em que vive, então se constrói a partir docontexto em que está inserido, de forma que é de suma importânciaconsiderar a temporalidade da Bioética ao tratar dos diferentes temasque ela enfrenta em diferentes épocas. Afinal, os valores não seencontram nos genes, nem são produtos espontâneos da genética,mas são culturais, frutos de uma longa experiência e tradição humana,pois(RE) PENSANDO DIREITO 151

Isabel Cristina Brettas Duarte o processo evolutivo não nos deu de saúde um código de valores éticos, mas deu-nos as condições e a capacidade de adquiri-los. [...] A ciência nunca descobrirá ou isolará um valor ético no laboratório: este pode nos revelar tudo o que somos do ponto de vista biofísico e bioquímico, mas nunca terá condições científicas para revelar o que seja uma pessoa, um valor, pois estes conceitos fundamentalmente foram construídos lentamente pela tradição filosófica, ética, religiosa, jurídica... (PALÁCIOS, 2001, p. 52). Sendo a ética a ordenação destinada a conduzir o homem deacordo com uma hierarquia de bens, uma tábua de valores, um sistemaaxiológico de referência, tornando-o cada vez mais homem, cada vezmais aquele ser que a natureza dotou de consciência e espiritualidade,então a reflexão Bioética nada mais é do que um antigo esforço emreconhecer o valor ético da vida humana e de agir conforme esse valor.DIREITO: NOVAS REALIDADES, NOVOS OLHARES O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento atravésdos tempos obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazemimplicações jurídicas. Assim, se mudam os tempos, mudam as vontades –e muda o Direito, que necessita amparar eficazmente as novas demandasque lhe são colocadas. Assim, entendemos que é na Bioética que a experiência ética adquireessa angústia existencial profunda. Já dizia o poeta que o caminho se fazcaminhando27. Porém, talvez o caminho seja à luz de velas. Talvez leve aum oásis, ou a um deserto. Talvez. Movemo-nos no campo das incertezas edas complexidades, as quais avultam a importância da responsabilidade aconduzir a conduta humana. Mas, como afirma Boff, o certo é que há umacrise ética que traz perplexidade e confusão, e que estamos entrando numnovo patamar de consciência (2003, p. 13).27 Dizia o poeta espanhol andaluz Antônio Machado, em “Provérbios y Cantares XXIX” (In: Poesías Completas. Editorial ESPASACALPE: Madrid, 1973, p. 158):Caminante, son tus huellas Caminhante tuas pegadasel camino y nada más; São caminho, nada maisCaminante, no hay camino, Caminhante não há caminhose hace camino al andar. Se faz caminho ao andarAl andar se hace el camino, Ao andar se faz caminhoy al volver la vista atrás E ao voltar a vista atrásse ve la senda que nunca Se vê a estrada que nuncase ha de volver a pisar. Se vai voltar a pisarCaminante no hay camino Caminhante não há caminhosino estelas en el mar. Só estrelas sobre o mar (tradução nossa).152 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tantopodem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocarconsequências imprevisíveis no futuro, verifica-se o temor expressadopor Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto podeindustrializar a vida como biologizar a indústria” (2000, p. 18). Essaideia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes dahistória humana, percebe-se que nunca houve nada que pudesserepresentar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética,que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de medoe insegurança (SANTOS, 1998). Porém, a principal preocupação hoje não é julgar a ciência, massim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobreos novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujosquestionamentos eram até pouco tempo inimagináveis. Vê-se, pois,que o fenômeno social é complexo e assim deve ser compreendido etratado, também pelos profissionais do Direito. Dessa forma, um dos aspectos da complexidade especialmenteanalisados por Morin diz respeito à ciência, a qual ocupa especialatenção do Direito em uma disciplina que se encontra no rol dos“novos” direitos – o Biodireito. Referida disciplina busca unir à culturajurídica, à letra fria da lei, a cultura humanista e a cultura científica,num elo de consciência e responsabilidade, pois a cultura humanista é uma cultura genérica que, via filosofia, afronta as grandes interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração pessoal dos conhecimentos. A cultura científica, de outra natureza, separa os campos do conhecimento; ela suscita admiráveis descobertas, teorias geniais, mas não a reflexão sobre o destino humano e sobre o vir-a-ser dela própria enquanto ciência. [...] A cultura científica, privada da reflexividade sobre os problemas gerais e globais, se torna incapaz de pensar a si própria e de pensar os problemas sociais e humanos que ela coloca28. A teoria jurídica formalista, instrumental e individualista vemsendo constantemente questionada, de forma que “os impasses e28 MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 9. Há uma ênfase no sentido de que a cultura científica é de outra natureza (em relação à cultura humanística) “porque se fundamenta cada vez mais sobre uma enorme quantidade de informações e de conhecimentos que nenhum espírito humano saberia nem poderia armazenar” (p. 30).(RE) PENSANDO DIREITO 153

Isabel Cristina Brettas Duarteas insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicionalentreabrem, lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e aconstrução de novos paradigmas, direcionados para uma perspectivapluralista, flexível e interdisciplinar” (WOLKER, 2003, p. 3).29 Essapreocupação aflorou em razão da existência de juristas com interessesfilosóficos e filósofos com interesses jurídicos, sendo que essa junçãode saberes muito tem agregado ao Direito, na medida em que o paradigma tradicional da ciência jurídica, da teoria do Direito (na esfera pública e privada) e do Direito Processual convencional vem sendo desafiado a cada dia em seus conceitos, institutos e procedimentos. Diante das profundas e aceleradas transformações por que passam as formas de vida e suas modalidades complexas de saber (genética, biotecnologia, biodiversidade, realidade virtual, etc), o Direito não consegue oferecer soluções corretas e compatíveis com os novos fenômenos, o Direito tem-se mostrado inerte, com seu equipamento conceitual defasado em relação aos avanços sociais impostos pelas ciências relacionadas com a Bioética, e com sua visão centrada preponderantemente na norma (2003, p. 21). Assim, o Direito precisa servir-se dos conhecimentos da Filosofia,da Antropologia, da Medicina, da Biologia, da Sociologia, enfim, dasmais variadas áreas do conhecimento, pois todas elas lhe dizemrespeito e se interligam, de uma ou de outra forma. Essa inter/multidisciplinariedade entre o Direito e as outras áreas do conhecimentoé importante, na medida em que não se pode negar que há um conflitoentre o imperativo do conhecimento e os imperativos éticos, que sãoobjeto das discussões bioéticas. Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque éinseparável de seu contexto histórico e social, e que a ciência não écientífica, pois sua realidade é multidimensional, ou seja, os efeitosda ciência envolvem riscos e não são simples nem para o melhor,nem para o pior; são profundamente ambivalentes. Isso tudo porque“a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa.29 Entende o autor que essa nova realidade está indissociavelmente atrelada às transformações tecno-científicas, às práticas de vida diferenciadas, à complexidade crescente de bens valorados e de necessidades básicas, à emergência de atores sociais, portadoras de novas subjetividades, individuais e coletivas.154 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIAA ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto aconsiderar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamentopara considerar sua própria complexidade e a complexidade dasquestões que ela levanta para a humanidade” (2000, p. 9). É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosae influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, hámuitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar eestabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensõesda vida: “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdaderacional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seuídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade– é sacrificado” (PELIZZOLI, 2007, p. 114). Porém, essa racionalidade tem uma faceta objetiva e outrasubjetiva, pois as teorias científicas são construções do espírito, nãosão reflexos do real, por mais que tentem aplicá-lo: são traduçõesdo real numa linguagem que é a nossa, ou seja, aquela de umadada cultura, num dado tempo. De um lado, as teorias científicassão produzidas pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas.De outro, estão fundamentadas em dados verificáveis e, portanto,objetivos (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 38). Segundo Morin, os cientistas formados segundo os modelosclássicos do pensamento se afastam dessa complexidade, maisprecisamente no que se refere ao dogma clássico da separação entreciência e filosofia, e não conseguem entender que todas as ciências avançadas deste século encontraram e reascenderam as questões filosóficas fundamentais: o que é o mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade? Os maiores cientistas desde Einsten, Boher e Heisenberg transformaram-se em filósofos selvagens. É de se esperar que as transformações que começaram a arruinar a concepção clássica de ciência vão continuar em verdadeira metamorfose. [...] Não haverá transformação sem reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio pensamento. O pensamento deve se tornar complexo30.30 MORIN, 2000, p. 9-10. Para o autor, “o progresso da ciência é ideia que comporta em si incerteza, conflito e jogo. Não se pode conceber absoluta ou alternativamente progresso e regressão, conhecimento e ignorância. E para que haja novo e decisivo progresso no conhecimento, temos de superar esse tipo de alternativa e conceber em complexidade as noções de progresso e de conhecimento” (p. 105).(RE) PENSANDO DIREITO 155

Isabel Cristina Brettas Duarte O desaparecimento das sociedades como sistemas integrados eportadores de um sentido geral, definido ao mesmo tempo em termosde produção, de significação e de interpretação, coloca os sereshumanos diante de um mundo objetivo, em que há uma “crise dosindivíduos sobrecarregados de problemas para cuja solução já nãoencontram nenhuma ajuda nas instituições nem civis nem jurídicasnem religiosas, redundando na inquietude, e mesmo angústia,que nascem da perda de nossos pontos de referência habituais”(TOURAINE, 2006, p. 60). É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, e comoafirmou Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas destrutivas,a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presenteséculo poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensoresdo progresso por meio da investigação científica desenfreada. Mas“a ciência pode – e deve – ser encarada como problemática nostermos de suas premissas” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 109).Dessa forma, uma das facetas da modernização – e, portanto, daglobalização e também do multiculturalismo – é o desenvolvimentocientífico e tecnológico, que aumenta a chamada complexidade. Segundo Morin, há que fazer um progresso da ideia de progresso,o qual deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversívelpara tornar-se complexa e problemática: “a noção de progresso devecomportar auto-crítica e reflexividade” (2000, p. 98). O dinamismodesse progresso do conhecimento científico sustenta uma curiosidadeinesgotável, pois um conhecimento, uma descoberta, a resolução deum enigma faz surgir novos enigmas, novos mistérios: “a aventura doconhecimento é non stop, porque, quanto mais se sabe, menos sesabe. Quanto mais sábio, mais ignorante. Essa aprendizagem da nossaignorância é positiva já que nos tornamos conscientes da ignorânciade que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo queestá no seu próprio movimento” (MORIN; LE MOIGNE, 2000, p. 76.). Portanto, é preciso despertar uma crescente consciência ética emrelação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e peloprogresso econômico e técnico, pois começou a se perceber que “nem156 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIAtoda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazemsempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade.Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interessesespúrios e de uma técnica limpa e benéfica” (JUNGES, 1999, p. 9),mesmo porque não há instante isolado, neutro ou indiferente para avida. Esta é sua essencial não-neutralidade, pois o ser humano é umser não-neutro por excelência.CONSIDERAÇÕES FINAIS As discussões bioéticas conduzem a compromissos provisórios e,por isso, segundo Morin (2000), deve-se estar ciente da arbitrariedade dasdecisões. Em razão dessa provisoriedade, que gera a alegada incerteza,o autor utiliza-se do termo “aposta” em uma decisão mais correta possívelquando se leva em consideração a complexidade da relação posta, jáque a certeza nessa área inexiste, ou se existe, ainda está longe doconhecimento humano, apesar de todas as pesquisas científicas. Na área jurídica, a incerteza e a provisoriedade das decisõestambém resta evidenciada, especialmente no que se refere aojulgamento de casos que envolvam os “novos” direitos. Isso porque nãose mostra viável a aplicação de um tipo específico de conhecimento,ou de um único critério para determinar a solução do conflito, ante apluridimensionalidade do objeto, bem como dos efeitos deste para aspartes e para a sociedade. Por tudo isso, é que se exige do julgadorum conhecimento que extravase o saber jurídico: o conhecimentoda realidade social onde aplica a lei, assim como um conhecimentomais aprofundado da complexidade das relações que ensejaram ademanda judicial que lhe cabe julgar. Utilizando-se das palavras de Von Hayeck, citado por Morin,é interessante referir e exemplificar que “ninguém será um grandeeconomista se for somente um economista”, pois “em economia tudodepende de tudo, tudo age sobre o todo” (MORIN; LE MOIGNE, 2000,p. 76). O mesmo ocorre com o profissional do Direito, pois este não seráum grande jurista se for somente jurista. Ele deve viver e compreender omeio no qual vive e no qual tem de aplicar e interpretar a lei.(RE) PENSANDO DIREITO 157

Isabel Cristina Brettas Duarte Como dito alhures, tudo que é humano deve ser compreendidoa partir de um jogo complexo, pois para conhecer melhor as partesdeve-se conhecer o todo e vice-versa, como em um movimentocircular ininterrupto. Nesse sentido, não se pode, também, entender ojulgador sem entender o objeto ou o ser julgado, de modo que se devecompreender também essa relação entre eles – o julgador e o julgado. Sabe-se que a ciência moderna, dentre elas o Direito, porvezes, está longe da ética que não seja a do conhecimento, o queé criado pelo cegamento causado pelo conhecimento objetivo, dahiperespecialização, que pode ser desastroso para a sociedade, jáque, partindo da premissa de Morin (2000), um pensamento cegoao global não pode captar aquilo que une os elementos separados.Quando se fala em conhecimento objetivo na seara jurídica, está afalar do conhecimento formal, teórico e da aplicação da letra fria da lei,apenas considerado em seu aspecto literal, desvinculado da realidadesocial e da função social que deve ser dada à norma. Nesse contexto, não se pode olvidar que a complexidade dosconflitos que são postos diariamente em juízo em busca da tutelajurisdicional é cada vez maior e decorrente dos avanços sociais.Estes, por sua vez, são decorrentes dos avanços tecnológicos, docrescimento populacional, da alteração de valores sociais, etc., emum processo contínuo, assim como a própria vida, cujos limites sãoincertos, o que confirma a teoria da incerteza trazida por Morin. Diantedessa realidade, surge a premência de nos libertarmos das amarrascartesianas e adentrarmos no estudo do pensamento complexo, capazde lidar satisfatoriamente com situações complexas. O Direito, até então determinador de regras fundadas no consenso,passa a ser gerador de propostas úteis aos debates democráticos.O estudo dos ‘novos’ direitos relacionados à Bioética, renunciandoà segurança das normas antigas, passa a indicar o caminho dainterrogação, da elucidação das finalidades e do estabelecimento dereferências provisórias para a ação. E é claro que isso gera importantesrepercussões no mundo jurídico, do que a Bioética é apenas umexemplo, assim como a propriedade intelectual e outros.158 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA Nesse novo paradigma, o Direito, até então pautado pelonormativo e pelo legal, passa a exercer uma função mais indicadorade condutas justas, bem como procedimentos apropriados para queas decisões e as opções tenham todas as chances de resolver osproblemas suscitados pelas novas tecnologias, o que é de sumaimportância num momento em que há a problematização de tantasquestões e situações não previstas. Portanto, é preciso encarar odesafio de aprofundar o estudo da Bioética e em especial dos novosdireitos encarando o fenômeno jurídico, assim como o fenômeno social,como uma desordem e/ou ordem com possibilidade de mudança eaperfeiçoamento. Agora, efetivamente, “há questões que nunca antes foram objetode legislação, caindo sob a alçada das leis com que a cidade globaltem de se dotar para que possa haver um mundo sustentável para asgerações humanas que ainda virão” (PELIZZOLI, 2007, p. 83). Diantedisso, finalizamos afirmando que essa breve contribuição é apenas umatentativa de reflexionar sobre a Bioética, principalmente quando inseridana realidade cada vez mais emergente dos “novos” direitos, desafioeste que certamente encontrou limitações inerentes à toda pesquisa. Assim, esperamos ter contribuído para aproximar o compassoentre a ciência e o Direito e também outras áreas do conhecimento,com vistas à constante construção de uma sociedade cujas leisestejam à altura das intensas transformações ocorridas no seio domulticulturalismo que permeia a era biotecnológica vivenciada pelasociedade brasileira. Portanto, cientes de que o modelo tradicional doDireito não é capaz de responder a todos os anseios dessa realidade,ousamos afirmar que nunca foi tão importante que novos olharessejam lançados à vastidão do mundo jurídico, somente comparávelà vastidão do mundo social e cultural que cerca os seres humanos.REFERÊNCIASBECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernizaçãoreflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad.Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997.(RE) PENSANDO DIREITO 159

Isabel Cristina Brettas DuarteBOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis:Vozes, 2003.GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Basesconceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Trad. LucianaMoreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006.HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. deTomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A,2005.HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería genética y derechoshumanos: legislación y ética ante el reto de los avancesbiotecnológicos. Barcelona, España: Icaria Antrazyt, 2000.JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. PortoAlegre: Ed. Unisinos, 1999.MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. de Maria D. Alexandree Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. Ainteligência da complexidade.Trad. de Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000.PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novomodelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007.SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo:Bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone, 1998.SGRECCIA, Elio. A bioética e o novo milênio. Trad. Claudio AntonioPedrini. Bauru: EDUSC, 2000.TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundode hoje. Trad. de Gentil Agelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2006.WOLKER, Antônio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.).Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo:Saraiva, 2003.Recebido: 10-7-2014Aprovado: 20-10-2014160 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

D(REI)RPEENSIATNDOO FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 Bankruptcy and recovery company the perspective of law n.11.101/05 José Lauri Bueno de Jesus31ResumoNeste trabalho, pretende-se demonstrar o longo caminho que as empresas têm percorrido, na história, parapoderem atingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência, diretamente. Entretanto,é necessário observar alguns princípios, que deverão ser analisados quando a empresa se encontrar emcrise, a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suas atividades, inclusive, deve ser semprevoltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitação dos débitos de todos os credores ea mantença do emprego dos funcionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica das leis dosprincipais países, especialmente sobre os aspectos relativos à recuperação da empresa.Palavras-chave: Crises. Falência. Recuperação judicial. Princípios.AbstractIn this work, we intend to demonstrate the long way that companies have traversed, in history, in orderto reach the level of recovery rather than join the bankruptcy directly. However, it is necessary to observesome principles that should be examined when the company is in crisis in order to verify the feasibility orotherwise of the continuity of its operations, including, should always be focused on the social aspect,inserting themselves in this situation the discharge of the debts of all creditors and the maintenance ofemployment of employees. Also, a brief historical overview of the laws of major countries, a special way,those aspects of the company’s recovery.Keywords: Crises. Bankruptcy. Judicial recovery. Principles.Sumário:1. Introdução; 2. A insolvência e as crises empresariais; 3. A dissonância das relações e a insolvênciaempresarial; 4. Breve evolução histórica da falência e recuperação; 5. Princípios do regime de insolvênciado agente econômico; 6. Considerações finais; 7. Referências.INTRODUÇÃO O empresário ou sociedade empresária que exerce atividadede empresa, atualmente, protegido pela Teoria da Empresa, que épropugnada pelo Código Civil de 2002, pode, em algum momento,não ter condições de efetuar o pagamento de seus débitos, por uma31 Mestre em Direito pela Unisinos, Especialização em Segurança Pública pela PUC-RS e Especialização em Docência para o Ensino Superior pela CNEC-IESA. Graduado em Direito pela FADISA (hoje CNEC-IESA), professor no Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (CNEC-IESA), Tenente-coronel da Reserva Remunerada da Brigada Militar. E-mail: [email protected].(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 161-180

José Lauri Bueno de Jesussituação que se apresente de maneira insanável, à primeira análise,em virtude do acometimento de algum tipo de crise. Se for verificadono Decreto-Lei n. 7.661/45, as soluções eram bastante preocupantes,haja vista que levava a empresa a fechar as suas portas e, com isso,afetava a sociedade. Entretanto, com o advento da nova lei de falênciase recuperação de empresas (Lei n. 11.101/05), tal situação é vista deforma diferente, preocupando-se com a empresa que está diretamenteenvolvida na sua atividade e o mercado em que ela está inserida.A INSOLVÊNCIA E AS CRISES EMPRESARIAIS No momento em que se diz que uma empresa está em crise,isso pode significar muitas coisas. Pode estar em crise econômica,financeira e patrimonial. Tais patologias do organismo empresarial,muitas vezes, pode levar a empresa à morte e, isso ocorrendo, vaiprejudicar as pessoas que dependam dela, direta ou indiretamente.Além disso, é preciso que fique claro que “a raiz das crises por quepassa o organismo empresarial também é de matriz diversa. Não hálinearidade”, segundo afirma Waldo Fazzio Junior (2008, p. 5). Nesse diapasão, é importante a distinção entre elas, pois,normalmente, uma desencadeia a outra, devido à complexidade daeconomia e das relações jurídicas, mesmo que não sejam vistas deforma lineares. Então, por crise econômica (COELHO, 2010, p. 231), entende--se como uma “retração considerável nos negócios desenvolvidospela sociedade empresária” ou pelo empresário. Por exemplo, se osconsumidores não mais adquirem igual quantidade dos produtos ouserviços oferecidos, o empresário ou sociedade empresária pode sofrerqueda de faturamento. Esta crise pode ser generalizada, segmentadaou atingir especificamente uma empresa. O empreendedor deveavaliar o que está ocorrendo, visto que é necessário diagnosticar omotivo dessa retração, pois pode, inclusive, ser um atraso tecnológicodo seu estabelecimento ou incapacidade de sua empresa competir, ouainda, o produto que está sendo comercializado não é mais do agradodas pessoas.162 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 Por outro lado, segundo Fábio Ulhoa Coelho, a crise financeira revela-se quando a sociedade empresária ou empresário não tem caixa para honrar seus compromissos. É a chamada crise de liquidez. As vendas podem estar crescendo e o faturamento satisfatório, mas a empresa tem dificuldades de pagar as suas obrigações. A forma de exteriorização jurídica da crise financeira se apresenta através da impontualidade (2010, p. 231-232). A outra crise é a patrimonial, isto é, a insolvência. Esta ocorreno momento em que os bens existentes no ativo forem insuficientespara atender à satisfação do passivo. É uma crise estática, pois aempresa tem menos bens em seu patrimônio que o total de suasdívidas, parecendo apresentar uma condição temerária e indicativa degrande risco para os credores. Entretanto, é comum acontecer que opatrimônio líquido negativo pode significar apenas que a empresa estápassando por uma fase de expressivos investimentos na ampliaçãode suas atividades e/ou tecnologia (COELHO, 2010, p. 232). Esses índices de crise, às vezes, acabam sendo relativos, poisnão se revelaram úteis à análise de mercado em algumas situações.Por exemplo, no fim do séc. XX, com o início da difusão do comércioeletrônico via internet, muitas empresas que realizavam aindaincipientes negócios por intermédio da rede mundial de computadores,registravam prejuízos consideráveis e ostentavam patrimônio líquidoacentuadamente negativo. Mesmo assim, foram negociados pormilhões de dólares. Tudo dependerá do lucro que a empresa tiver(COELHO, 2010). Ainda com Fábio Ulhoa Coelho (2010, p. 233), apoiando-se nessalinha de pensamento, pode-se afirmar que “em geral, cabe dizer, quedeterminada empresa está em crise após a manifestação das trêsformas pela qual se manifesta. A queda das vendas acarreta faltade liquidez e, em seguida, insolvência: este é o quadro crítico quepreocupa os credores, trabalhadores, investidores, etc.”. A crise fatal de uma empresa significa o fim de postos detrabalho, desabastecimento de produtos ou serviços, diminuição de(RE) PENSANDO DIREITO 163

José Lauri Bueno de Jesusarrecadação de impostos, paralisação de atividades satélites e muitosoutros problemas. Por isso, muitas vezes, o Direito se ocupa em criarmecanismos jurídicos e judiciais de recuperação de empresa. Como se pode observar, tais crises não são lineares, elasocorrem por motivos diversos, inclusive, geralmente, são causadospor vícios de origem, como por exemplo, a escolha do tipo societárioinadequado, estruturação administrativa insuficiente, a estimaçãoimprópria do capital social, a obsolescência do objeto social eleito,restrições de crédito bancário, política econômica nacional, elevaçãoda taxa de juros, crise de abastecimento, etc. (COELHO, 2010). Assim, não se pode esquecer que o mesmo mercado que ajudoua empresa a promover suas atividades agora encurta sua sobrevida,considerando-a um organismo em coma.A DISSONÂNCIA DAS RELAÇÕES E A INSOLVÊNCIAEMPRESARIAL Existia no sistema jurídico brasileiro uma dissonância muito grandenas relações emergentes da insolvência empresarial com o modernoperfil da empresa e as características da economia globalizada.Devido a isso, o alvo não era a atividade econômica organizada, masa pessoa do empresário paciente de concordatas e da falência. Dessa forma, surgiu o Decreto-lei n. 7.66l/45 logo após a SegundaGuerra Mundial. Esse decreto-lei concebia um modelo de empresapróprio da economia nacional, que se encontrava muito defasada erefletia as coordenadas da ordem capitalista, instaurada em 1944, naConferência de Bretton Woods (FAZZIO JUNIOR, 2008). Com a antiga legislação falimentar, o crédito era concebidocomo, simplesmente, mais uma espécie de relação obrigacional,pois desconsiderava a repercussão da insolvência no mercado econcentrava-se no ajustamento das relações entre os credores e oativo devedor. A falência e concordata, então regulada pelo Dec.-Lein. 7.661/45, não dava conta dos intrincados problemas gerados pelosprocessos de concordata e de falência, cada vez mais complexos,burocratizados e inócuos.164 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 Foi grande o impacto dos projetos sobre o regime de insolvênciaeditados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundialem países como Espanha, Portugal, Itália, França, México, Argentina.No Brasil, iniciou com a edição da LFC (DL 7.661/45), mas desde1990 começou a implementação dos andaimes da nova normação dainsolvência empresarial. Nessa época, os juízes, por meio de suassentenças judiciais, começaram a implantação da Teoria da Empresaem substituição à Teoria dos Atos de Comércio, então vigente (FAZZIOJUNIOR, 2008). Rápidas transformações econômicas e hesitações políticasocorreram até a entrada em vigor da Lei n. 11.101, de 9 fevereiro de2005 (nova lei de recuperação de empresa e falência) que surgiu paradilatar os tímidos e frustrados horizontes, consagrando justificávelpreferência por outras estratégias legais predispostas a assegurarsobrevida útil às empresas viáveis em crise econômico-financeira. Oobjetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da situação decrise do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social eo estímulo à atividade econômica, conforme dispõe em seu art. 47. Essa nova lei (11.101/05) traz como divisa a reestruturaçãoempresarial como meio de proporcionar maiores possibilidades desatisfazer aos credores, minimizar o desemprego, fortalecer e facilitar ocrédito e, em consequência, poupar o mercado dos reflexos perversosda insuficiência dos agentes econômicos. A nova lei de falência e recuperação de empresa não é perfeita,pois como diz Waldo Fazzio Junior (2008, p. 3), contém “imprecisões,interrogações e, provavelmente, nem sempre vai oferecer as melhoresalternativas para os vários problemas oriundos das crises que hojeassolam as empresas brasileiras”. Vai ocorrer, e já ocorreram,resistências do empresariado mais conservador. Entretanto, deve ficarbem claro, que é impossível ajustar, sem rupturas, ordens econômicasdiferentes.(RE) PENSANDO DIREITO 165

José Lauri Bueno de Jesus É sabido que “o Direito das Concordatas e Falências era uminstrumento do atávico princípio romano, ou seja, quem deve tem quepagar”. Com essa lei, “os credores eram amparados, garantiam-seos haveres públicos, incriminavam-se os empresários malsucedidos,menosprezavam-se o desemprego e aniquilavam-se as empresas emcrise” (FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 4). Assim, o Direito Positivo brasileiro “alterou a natureza de suainstrumentalidade, optando pela despersonalização da empresa”, quandonecessário, “e pela composição de interesses de credores e devedores. Ainda na fala de Fazzio Junior, o Direito Concursal é, hoje, o Direito da empresa em crise, por que superou a fase da vindita dos credores, ultrapassando os estreitos limites da liquidação falitária, haja vista que se apresenta como solução jurídica mais pragmática e mais sintonizada com o Direito Econômico, deixou de ser um mero complexo regulador de relações estritamente privadas para encampar o interesse público e as repercussões sociais das isquemias das empresas (2008, p.4). Foi, portanto, alterada a via de solução. Isso ocorreu porque, “areestruturação da empresa passou a integrar o elenco de objetivosdas modernas legislações concursais, tendo como finalidade atenderos direitos dos credores e direcionar a atividade empresarial para nãocomprometer a segurança do mercado e sua periferia social” (FAZZIOJUNIOR, 2008, p. 4). Dessa forma, o Direito da empresa em crise é, na realidade, “umconjunto de medidas de natureza econômico-administrativa, acordadasentre o agente econômico devedor e seus credores, supervisionadospelo Estado-juiz, como expediente preventivo da liquidação” queobjetiva “o soerguimento da empresa em crise, para que os credorestenham melhores perspectivas de realização de seus haveres, osfornecedores não perdem o cliente, os empregados mantêm seusempregos, o mercado sofre menos os impactos e as repercussões dainsolvência empresarial” (FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 4-5). Então, quando verificada a história das empresas em crise,percebe-se, claramente, como diz Waldo Fazzio Junior (2008, p. 7),166 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05que elas podem ser vistas “necessariamente pelo reconhecimentode quatro fases: o Direito Concursal como regulador da execuçãodos bens do devedor; b) a judicialização da execução concursal; c)prevenção do estado de liquidação; e d) a recuperação da empresa”. Nessa mesma linha de pensamento, percebe-se na fala de AndréLuiz Santa Cruz Ramos, que o direito falimentar não tem como característica a preocupação preponderante de punir o devedor insolvente, criminalizando sua conduta e excluindo-o do mercado a todo custo. A grande preocupação do direito falimentar atual é a preservação da empresa, razão pela qual a legislação tenta fornecer ao devedor em crise todos os instrumentos necessários à sua recuperação, reservando a falência apenas para os devedores realmente irrecuperáveis (2013, p. 616). As soluções para as crises empresariais dependem muito daperspectiva segundo a qual essas crises são abordadas. Agora sãovistas sob a óptica do empresário e dos credores, o que vai ser, emprincípio, menos danosa a todos.BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FALÊNCIA ERECUPERAÇÃO Para facilitar a compreensão da falência e recuperação da empresanos dias atuais, é imperioso que se busque na história, mesmo quebrevemente, os seus fundamentos e problemas que antecederam alegislação em vigor, para que não se incorra nas mesmas situaçõesdo pretérito e, inclusive, em países e estrangeiros. Assim, é possível verificar que no Direito Romano a execuçãoincidia sobre a pessoa do devedor, autorizava ao credor manter odevedor em cárcere privado ou escravizá-lo. Ou seja, houve um período em que o devedor respondia por suas obrigações com a própria liberdade e às vezes até mesmo com a própria vida. A garantia do credor era, pois, a pessoa do devedor. Assim, este poderia [...] tornar-se escravo do credor por certo tempo, bem como entregar-lhe em pagamento da dívida uma parte do seu corpo (RAMOS, 2013, p. 614).(RE) PENSANDO DIREITO 167

José Lauri Bueno de Jesus Depois, passou para o sistema de constrição patrimonial (leiPaetelia Papiria, 428 a.C.), que admitia a execução forçada dascondenações em dinheiro, “proibindo o encarceramento, a vendacomo escravo e a morte do devedor. [...] passou-se a entender que osbens do devedor, e não a sua pessoa, deveriam servir de garantia docredores” (RAMOS, 2013, p. 614). Por exemplo, o credor munido da sentença, procurava o magistradoe este o autorizava por decreto para que entrasse na posse de todos osbens do devedor, procedendo depois a venda mediante determinadasformalidades. Não despia o devedor da propriedade dos bens e nemda posse jurídica, privava-o apenas da administração. O patrimôniodo devedor constituía um penhor em benefício dos credores (FAZZIOJUNIOR, 2008). No final dessa época surgiu a administração da massa, aassembleia de credores, a classificação dos créditos e a revogaçãodos atos fraudulentos do devedor. O procedimento concursal doDireito Romano aplicava-se a qualquer espécie de devedor, até porqueinexistia legislação específica regente da atividade empresária. Walfo Fazzio Junior (2008), refere que foi no Direito Medieval,por intermédio dos estatutos corporativos das cidades, especialmentenas italianas, que surgiu o instituto da falência, restringindo o caráterprivado da execução, embora isso não significasse a emancipaçãofísica do devedor. No séc. XIII, surgiram as primeiras regras queconstituíram o instituto da falência como típica execução criminal.São bastantes utilizados os usos e costumes e aplicado ao insolventesanções cruéis, tanto física como moral. Um pressuposto da épocaera que, quando o devedor fugisse em decorrência de sua insolvência,automaticamente passava para o estado de falência. Nessa época, também foi isolada a insolvência em seuselementos conceituais e era relevada no aspecto formal pelosequestro, inventário, apreensão e o encerramento dos inscritos. Ocaráter penal incidia muito forte na pessoa do devedor. Já no séc. XV,surgiu uma espécie de concordata mediada pela autoridade públicaque a homologava. E foi estabelecido o salvo-conduto que permitia ao168 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05devedor fugitivo retornar para a conclusão da concordata. Entretanto,o concurso creditício italiano não era exclusivo dos mercadores, tinhafeição predominantemente penal, que se transformou lentamente deexecução pessoal em patrimonial. Também trouxe à luz as primeirasacordanças tendentes a evitar a liquidação (FAZZIO JUNIOR, 2008). Corroborando com tal posição, André Luiz Santa Cruz Ramos(2013, p. 614-615), menciona que apesar de terem sido identificadas“regras especiais para a execução dos devedores insolventes,[...] ainda se tratava de regras que se aplicavam indistintamente aqualquer espécie de devedor, comerciante ou não, e que mantinhamseu caráter extremamente repressivo” No Direito Moderno, o Estado surgiu como entidade política e jurídica, com sensível interferência na disciplina das relações de crédito, inclusive na regência dos casos de insolvência. Os Estados arrogaram-se à exclusividade da imposição de sanções e judicializaram o deslinde de situações jurídicas criadas pela insatisfação obrigacional. A liquidação do patrimônio do devedor passou a ser assegurada pelos organismos judiciais encarregados de aplicar a lei (FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 9). Ainda no “séc. XVII, as Ordenanças Filipinas trataram das quebrasdos mercadores. Sendo que no Alvará Real de 1756, em Lisboa,estabeleceu-se um processo peculiar para os negociantes falidos”(FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 9). Por exemplo, o homem de negócioque faltasse ao crédito deveria se apresentar perante uma Junta deComércio para explicitar as causas das quebras e entregar as chavesde seu estabelecimento, oferecer a relação dos bens e apresentar oslivros e papéis de seu comércio (FERREIRA apud FAZZIO JUNIOR,2008). Na França, no ano de 1673, a Codificação Savary, regulamentouo regime de insolvência sem particularizar os comerciantes. Somenteocorreu após, com Napoleão Bonaparte, quando no início do séc.XIX promoveu a cisão legislativa das normas mercantis. Editou umCódigo Civil em 1804 e um Código Comercial em 1808. Nesse CódigoComercial de 1808, imperava a Teoria dos Atos de Comércio (o Brasil,(RE) PENSANDO DIREITO 169

José Lauri Bueno de Jesusem 1850, também adotou a mesma teoria, mas que foi alterada paraa Teoria da Empresa, em 2002, com o advento do novo Código Civilbrasileiro). Independentemente de qualquer outro motivo, a mudança que o Code de Commerce de Napoleão trouxe para o direito comercial atingiu, consequentemente, o direito falimentar, que passou a constituir um conjunto de regras especiais, aplicáveis restritamente aos devedores insolventes que revestiam a qualidade de comerciantes. Para o devedor insolvente de natureza civil, não se aplicavam as regras do direito falimentar, mas disposições constantes do regime jurídico geral, qual seja, o direito civil (RAMOS, 2013, p. 615). Mesmo com o codificação napoleônica não foi alterada umacaracterística do direito falimentar desde os seus primórdios, ou seja,“o caráter repressivo e punitivo do devedor” (RAMOS, 2013, p. 615). Assim, o Direito Concursal ingressou na Idade Contemporâneacomo sendo a liquidação do ativo do devedor insolvente, sob aégide do Poder Judiciário. Entretanto, com o transcurso do tempo, asociedade evoluiu e a economia avançou em uma velocidade muitorápida e o direito falimentar necessitou acompanhar esse processo demudanças para adaptar-se aos novos paradigmas (RAMOS, 2013). A partir da Revolução Industrial ocorreu um acentuado eprogressivo desenvolvimento econômico por meio do chamado“processo de globalização, o qual trouxe relevantes alterações naconjuntura socioeconômica, que exigiram do operador de direito umacompleta reformulação dos princípios e institutos falimentares dodireito falimentar” (RAMOS, 2013, p. 615). Consoante Waldo Fazzio Junior (2008), no Direito Contemporâneo,ocorreram duas guerras mundiais até a metade do século passado.Viveu-se uma fase de valorização das concordatas como expedientespreventivos ou suspensivos do estado de liquidação. Muitas criseseconômicas, desastres financeiros e flagrante favorecimento doscredores majoritários. O entendimento na época era que o empresáriohonesto e infeliz nos negócios deveria desfrutar de favor legal, comconcordatas dilatórias e remissórias.170 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 Era preciso mudar, superando o caráter de conflito particularinerente às falências e concordatas com a presença mais efetivado Estado nas crises econômicas sobre as empresas públicas,sociedades estatais e instituições financeiras. Ganhou realce o ladosocial da empresa. Nessa época, segundo Fazzio Junior (2008, p. 10), “a crescenteunificação do Direito Privado e a interpenetração do Direito Público e doDireito Privado, a valorização do Direito Fiscal, do Direito do Consumidor,do Direito Previdenciário e do Direito Financeiro, obrigou a procura dedesfechos mais construtivos e menos radicais para as crises”. É possível verificar tais situações em alguns países que seapresentavam preocupados com as falências que pudessem ocorrer,mas queriam a recuperação como norte. Dessa forma, com uma novaconcepção do direito falimentar, contraposta à antiga concepção queconsagrava regaras extremamente punitivas ao devedor, influencioua reformulação da legislação em diversos países, como afirma AndréLuiz S. C. Ramos (2013) ao manifestar-se sobre o assunto. Assim, segundo Waldo Fazzio Junior (2008), em 1867, nosEstados Unidos, surgiu o primeiro procedimento de recuperaçãojudicial, sob o nome de Lei da Companhia Ferroviária. Em 1898, esseprocedimento ampliou-se para atingir outras pessoas jurídicas. Foiaprimorado em 1938 e consolidado em 1994. Entretanto, para FábioUlhoa Coelho (2010, p. 233), “o primeiro diploma de direito estatutário,dispondo sobre recuperação judicial de empresas surgiu em 1934,visando atenuar os efeitos da crise provocada pela Bolsa de Valoresde Nova York em 1929”. Mas isso não faz muito diferença de qualdata foi anterior ou não, o que importa é que a preocupação com arecuperação das empresas em crise era um assunto em questão eque também era preocupação dos governantes. No Japão, em 1952, foi aprovada uma lei de reorganização dasSociedades por Ações e, em 1992, foi substituída por uma nova leimarcadamente recuperatória. Na França, em 1984, é aprovada uma lei reguladora da prevençãoe composição amigável das dificuldades da empresa. Em 1985,(RE) PENSANDO DIREITO 171

José Lauri Bueno de Jesusfoi criada uma lei para saneamento e reorganização da empresaem crise. Em 1994, uma lei reforçando os meios preventivos dainsolvência, simplificando os procedimentos, moralizando os planosde recuperação e trazendo medidas mais eficazes para assegurar osdireitos dos credores. Na Itália, em 1991, é aprovada uma lei com as mesmascaracterísticas de salvaguarda da empresa da França. Em Portugal, o critério é a viabilidade da empresa desde que criouem 1976 a declaração da empresa economicamente difícil, que serviude embrião para o Código dos Processos Especiais de Recuperaçãoda Empresa e de Falência de 1993, o qual instituiu o procedimentojudicial de recuperação da empresa. Na Espanha, em 2003, a lei aprovada, além de superar adiversidade de instituições concursais para comerciantes, flexibilizao procedimento calcado na insolvência e institui o convênio entrecredores e o devedor, tudo assentado num plano de viabilidade. Como se pode perceber até aqui, a recuperação judicial, namaioria dos países ocidentais, reconhece a importância social daempresa, passando a exigir do devedor a apresentação de um plano,o qual estabelecerá os meios, dentre os mais diversos, que pretendeutilizar para reerguimento da atividade empresarial. Pela lei brasileira,além disso, a concessão da recuperação, que substitui a concordata,prevista na lei n.11.101/05, passa a depender da anuência doscredores, reunidos em assembleia. Assim, a tendência dos atuais sistemas jurídicos regentesda insolvência, é a realização dos direitos dos credores mediantea recuperação da empresa devedora, ficando a falência comoantídoto residual, de cunho liquidatório, dirigida exclusivamente aosempreendimentos inviáveis.PRINCÍPIOS DO REGIME DE INSOLVÊNCIA DOAGENTE ECONÔMICO Dentre alguns dos princípios que regem a insolvência e arecuperação da empresa, é possível destacar os principais, os quais172 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05deverão ser analisados, criteriosamente e em conjunto, antes de sertomada qualquer tipo de decisão. São eles: a) Viabilidade da empresa,como critério distintivo básico entre a recuperação e a falência; b)Predominância do interesse imediato dos credores; c) Publicidade dosprocedimentos; d) Par conditio creditorum (equidade); e) Conservaçãoe maximização dos ativos do agente econômico devedor; e f)Preservação da atividade empresarial. Estes princípios não devem ser considerados comocompartimentos isolados e autossuficientes, pois mantêm entre si umnexo de complementaridade e equilíbrio. Para facilitar, sucintamente,será feita uma breve análise de cada princípio, a fim de tentaresclarecer o significado de cada um deles. Para o Princípio da Viabilidade da Empresa, existe uma dicotomiaentre as empresas economicamente viáveis e inviáveis. A recuperaçãopode ser judicial (art. 47) e extrajudicial (art.161), mas somente éindicada para as empresas viáveis. A aferição dessa viabilidade estáligada a fatores endógenos e exógenos. Os endógenos referem-se aoativo e passivo, ao faturamento anual, ao nível de endividamento e aotempo de constituição. Já os exógenos dizem respeito à relevânciasocioeconômica da atividade. Para possibilitar a formulação de um diagnóstico, segundo FazzioJunior (2008, p. 16), devem ser feitas as seguintes perguntas, nomínimo: “1) Existe um plano de recuperação? 2) Que critérios devemser eleitos para sua avaliação? 3) Essa avaliação autoriza a expectativade êxito do plano? 4) Como custodiar sua concretização?”. Além de tais questionamentos, também, devem ser observadosos meios de recuperação judicial previstos, principalmente, no art. 50(LRE), como por exemplo, a concessão de prazos e condições especiaispara pagamento das obrigações vencidas ou vincendas, alteração docontrole societário, substituição total ou parcial dos administradoresdo devedor ou modificação de seus órgãos administrativos, aumentodo capital social, trespasse ou arrendamento do estabelecimento,redução salarial, constituição de sociedades de credores, venda parcialde bens, equalização de encargos financeiros, usufruto da empresa,(RE) PENSANDO DIREITO 173

José Lauri Bueno de Jesusadministração compartilhada, emissão de valores mobiliários, etc.Depois disso, e devidamente estruturado num plano de recuperação,é que se oferecerá à consideração judicial. Caso verificada, desde logo, a impossibilidade de cumprimentodo plano proposto, é de rigor, o indeferimento da pretensão pelo juiz.A constatação posterior de que a continuidade da empresa é inviável,implica a conversão (convolação), ou seja, decretação da falência doprocesso de recuperação em solução liquidatória, conforme prevê oart. 73, nas seguintes hipóteses: a) por deliberação da assembleiageral, isto é, quando a proposta obtiver votos favoráveis de credoresque representem mais da metade do valor total dos créditospresentes à assembleia geral; b) quando houver sido rejeitado oplano de recuperação judicial pela assembleia de credores; e c)por descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano derecuperação judicial. A reorganização da empresa deve ser tanto administrativa comofinanceira e isso pressupõe um mínimo de condições e a presença depressupostos legais. A recuperação empresarial não pode almejar aplena recriação da empresa, mas atender aos objetivos inicialmentepropostos de viabilidade. Pelo Princípio da Relevância do Interesse dos Credores, dizWaldo Fazzio Junior que [...] qualquer regime de insolvência visa satisfazer, equitativamente, pretensões creditícias legítimas [...]. A reestruturação da empresa em dificuldades é instrumental da satisfação dos credores, desde que observados níveis mínimos de paridade. Percebe-se que desde a sua origem a insolvência [...]é uma postura jurídica estabelecida para atender os direitos dos credores. Tais direitos predominam e, no mínimo, [...] constituem o estopim para a deflagração processual da conjuntura universal de insolvência (2008, p. 17). A prevalência do interesse dos credores deve ser entendidaem sentido genérico, abrangente da coletividade dos detentoresde créditos e não em razão deste ou daquele credor. Também, nãopode ser identificado como a realização de pronto de seus haveres.O processo de insolvência não pode se protrair indefinidamente,174 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05pois deve ocorrer uma satisfação célere dos créditos, observando osparâmetros adequados e de pagamentos satisfatórios. A predominância do interesse dos credores deve identificar-secom o interesse público inerente à empresa. É lícito, e possível, afirmarque a manutenção da empresa pode ser a chave para o atendimentoadequado das pretensões creditícias, pois nenhum credor é movidopelo ânimo liquidatório, haja vista que empresa liquidada não pagaseus débitos na totalidade. Por sua vez, o Princípio da Publicidade dos Procedimentos,conforme Fazzio Junior traz à baila que a [...] transparência é a palavra que abre as portas de um processo de insolvência, ou seja, transparência em sentido estrito de todos os atos processuais e também a clareza e objetividade na definição dos diversos atos que os integram. Deve haver uma previsão bem clara da estipulação de requisitos, fundamentos e prazos para impedir a adoção de manobras procedimentais e expedientes protelatórios (2008, p. 18-19). Nesse contexto, uma fiscalização permanente e zelosa do juiz, doadministrador judicial e do Ministério Público, certamente, vai facilitarmuito o andamento das atividades da empresa. Também, “é desejávela ampla participação dos credores e dos segmentos integrantesda empresa insolvente”, pois a adoção de soluções que atendamà maioria dos envolvidos, ampliarão as possibilidades de êxito dasmedidas eleitas. No que diz respeito ao Princípio do Par Conditio Creditorum(equidade), vislumbra-se a existência de um tratamento dos credoresem igualdade de condições, pois [...] a equidade é um princípio geral de Direito que, aqui, se manifesta em toda a sua intensidade. O tratamento equitativo dos créditos é a máxima regente de todos os processos concursais, considerando o mérito das pretensões antes que a celeridade na sua dedução (FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 19). Nesse diapasão, quando se fala em equidade, deve-se “observaro sítio em que cada crédito a lei lhe reserva na classificação geral nosart. 83 e 84 da Lei n. 11.101/05, assegurando-se, de modo decisivo,(RE) PENSANDO DIREITO 175

José Lauri Bueno de Jesusque a índole preferencial de alguns seja respeitada” ”(FAZZIO JUNIOR,2008, p. 19). A regra diz respeito à proporcionalidade na consideraçãodos créditos, ou seja, deve-se respeitar as peculiaridades da lei.É inegável a posição de paridade dos credores, o que não traduz,necessariamente, nivelamento. Assim, a ordem dos créditos a serem pagos, prevista em taisartigos, deve ser, inicialmente, os créditos extraconcursais (art. 84), oscréditos trabalhistas limitados a 150 salários mínimos, os decorrentesde acidentes de trabalho, os créditos com garantia real até o limite dovalor do bem gravado, os créditos tributários, os créditos com privilégioespecial, os créditos com privilégio geral, os créditos quirografários eos créditos subordinados. Essa é a ordem que, obrigatoriamente, deveser seguida e observada no momento dos pagamentos dos créditosaos credores. O Princípio da Conservação e Maximização dos Ativos diz oseguinte: “para que se cumpram as finalidades do processo deinsolvência, os ativos (bens) da empresa precisam ser preservadose, se possível, maximizados”, isto é, se necessário aliená-los, devemser feitos com os valores mais altos possíveis. É comum a dissipaçãodos ativos pela ação de credores mais “ligeiros”, em prejuízo dacoletividade dos credores e da observância do mérito que assiste acada pretensão. Sobretudo na falência, em que os titulares da empresa devedoraperdem sua capacidade de gestão para um administrador judicial,a fiscalização da massa de bens é atitude indispensável parasalvaguardar a garantia comum dos credores e assegurar que seja,se não suficiente, ao menos apta a resolver a maior faixa possívelde créditos. A preservação dos ativos “deve ser meta anelada com ointuito de satisfazer à solução dos débitos e dos encargos sociais”.Não é tutelar os ativos para a fruição e gozo do empresário, pois “oque deve ser recuperado é a empresa” (FAZZIO JUNIOR, 2008, p.20). Por fim, o Princípio da Preservação da Empresa diz que “aempresa é uma unidade econômica que interage no mercado”, seja176 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05insolvente ou não, pois é “uma unidade de distribuição de bens e/ou serviços. É um ponto de alocação de trabalho”, por ser um “elona imensa corrente do mercado e, por isso, não pode desaparecer,simplesmente, sem causar sequela”, como afirma Fazzio Junior (2008,p. 20). De certa forma, “a atividade empresarial desborda dos limitesestritamente singulares para alcançar dimensão socioeconômicabem mais ampla, pois afeta o mercado e a sociedade e isso é maisque singela conotação pessoal” (2008, p. 20). Daí, por que bastaa presunção de insolvência para justificar a busca de uma soluçãojurisdicional. A preservação da atividade empresarial “é o ponto mais delicadodo regime jurídico de insolvência. Ao contrário da concepção cirúrgicaadotada pela extinta Lei de Falências e Concordata (DL 7.661/45),pretende-se com a nova Lei de Recuperação de Empresas (Lei n.11.101/05), na medida do possível, priorizar a recuperação sobre afalência” (2008, p. 20). Assim, “somente deve ser liquidada a empresainviável, [...] aquela que não comporta uma reorganização eficiente ounão justifica o desejável resgate” (FAZZIO JUNIOR, 2008, p.21). Frise-se que “apreservação da empresa não significa apreservaçãodo empresário ou dos administradores da empresa”. Implica apartaros reais interesses envolvidos na empresa dos interesses dos seusmentores. Como diz Lobo (apud FAZZIO JUNIOR, 2008, p. 21) aomanifestar-se sobre o princípio em estudo, pois ele representa “umvalor objetivo de organização que deve ser preservado, pois toda criseda empresa causa um prejuízo à comunidade”. O objetivo econômico da preservação da empresa previsto no art.47 da Lei n. 11.101/05, deve preponderar, em regra, sobre o objetivojurídico da satisfação do título executivo, se este for consideradoapenas como a realização de pretensão singular. Assim, o regimejurídico de insolvência não deve ficar preso ao maniqueísmo que serevela no embate entre a pretensão dos credores e o interesse dodevedor. A empresa não é mero elemento da propriedade privada,pois nas crises, sofrem o próprio devedor, os credores e a sociedade.(RE) PENSANDO DIREITO 177

José Lauri Bueno de Jesus Decorrentemente desses princípios elencados, surge o princípiogeral da solvabilidade jurídica, no qual as obrigações (legais ouconvencionais) devem ser voluntariamente cumpridas, ou o Estadodeverá aplicar as consequências jurídicas previstas para o seudescumprimento, exercendo (o Estado), para tanto, o seu poder decoerção. Claro está o art. 91, do Código Civil de 2002, em que afirmaser uma universalidade de direito o complexo das relações jurídicas,de uma pessoa, dotadas de valor econômico. Também, o art. 391,do Código Civil, confirma que pelo inadimplemento das obrigaçõesrespondem todos os bens do devedor. Obviamente, o princípio geral da solvabilidade jurídica pressupõeque o patrimônio ativo (positivo) da pessoa tenha capacidadeeconômica de suportar as obrigações constantes no seu patrimôniopassivo (negativo). Por outro lado, entretanto, deve ficar claro que ainsolvência civil e insolvência do empresário ou sociedade empresáriasão regimes jurídicos diversos, pois o primeiro é raro, e o segundo émuito comum. Assim, a empresa é bem jurídico cuja proteção se justifica nãoapenas em função dos interesses de seus sócios, mas de seusempregados, fornecedores, consumidores, investidores, do Estadoe, enfim, da sociedade, que, mesmo indiretamente, se beneficia desuas atividades. E, sendo assim, o regime alternativo à falência é arecuperação de empresa.CONSIDERAÇÕES FINAIS Em uma breve análise, percebe-se que a antiga legislaçãofalimentar (Decreto-lei n. 7661/45), padecia de diversas incoerênciascom a realidade brasileira, desprestigiando a importância social daempresa, em virtude da existência de muitas dissonâncias queaconteciam na época. Com o intuito de sanar tais deficiências, dentreoutras, foi criado o instituto da recuperação judicial e extrajudicial,por meio da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, cujo principalobjetivo é viabilizar a preservação da empresa, a sua função social eo estímulo à atividade econômica, para minimizar o desemprego.178 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05 Assim, esse novo e moderno instituto jurídico se compatibilizacom as tendências internacionais, ao atender as peculiaridadese necessidades da empresa em crise, em um esforço criativo paraviabilizar a sua continuidade, como ocorre na maioria dos paísesdesenvolvidos, a exemplo dos Estados Unidos, Itália, Portugal, Japão,Espanha e França. Contudo, é imperioso ressaltar que a nova lei de falência erecuperação de empresa também foi, e ainda é, alvo de severascríticas, especialmente ao outorgar aos credores o poder de decisãoquanto ao plano de recuperação apresentado pelo devedor, limitando,dessa forma, as atribuições da autoridade judiciária. Com isso, oscredores irão aprovar ou rejeitar a recuperação judicial, segundo assuas conveniências, evitando dar margem a fraudes e conluios, alémde não privilegiar os interesses dos grandes credores, em detrimentodo previsto na legislação. Além disso, alguns juristas e empresários conservadores tecemcríticas à nova sistemática legal por não retirar do Poder Judiciário osprocedimentos mais demorados, quais sejam, a verificação do créditoe a habilitação dos credores, uma vez que cada impugnação aindaprecisará de parecer do Ministério Público e sentença judicial. Nãohouve, portanto, qualquer avanço quanto à morosidade da justiça. Contudo, apesar da lei nova ter trazido uma inovação importante edigna de aplausos pelos juristas ao ampliar o rol de créditos submetidosà recuperação, exigir a apresentação e cumprimento de um plano derecuperação e ao disponibilizar meios variados para tanto, não sepode olvidar que o instituto restou fragilizado por ter outorgado vultosopoder aos credores. Concluindo, embora ainda apresente imperfeições, a nova Lei deFalências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/05) é fundamentalpara a economia brasileira e representa, inequivocadamente, umenorme avanço no tratamento dado às empresas em dificuldades, aopreservar empregos, privilegiar a recuperação financeira e viabilizarcréditos, nos moldes dos países mais avançados.(RE) PENSANDO DIREITO 179

José Lauri Bueno de JesusREFERÊNCIASCOELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. Direito deempresa. 10. ed., São Paulo: Saraiva, 2010. Vol. 3.FAZZIO JUNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas.4. ed., São Paulo: Atlas, 2009.MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro. Falência erecuperação de empresa. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009. Vol. 4.OLIVEIRA, Celso Marcelo. Comentários à nova lei de falências.São Paulo: IOB Thomson, 2005.RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial sistematizado.Recebido: 11-7-2014Aprovado: 10-10-2014180 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

D(REI)RPEENSIATNDOO A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITO The importance of criminology as an independent disciplinein higher education law of operators Clarissa Bohrer32ResumoA Criminalística tem demonstrada a sua importância ao longo da evolução do estudo da Medicina Legal edo Processo Penal, cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. O profissional doDireito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenas uma breve noção de conceitos que serão por eleutilizados sê membro das carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias e Defensorias ouna qualidade de advogado. Entretanto, caso opte por uma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civile militar e Perícia oficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarão verdadeiramentepara labutar na seara criminal. Assim, será proposta a inclusão da Criminalística como disciplina autonômados cursos superiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadores do Direito, sejamprofissionais da Segurança Pública ou não.Palavras-chave: Criminalística. Autonomia. Educação superior.AbstractThe Criminalistics has demonstrated its importance during the evolution of the study of Forensic Medicineand Criminal Procedure, members of chairs degree in Law and Social Sciences. The professional law,however, concluded his training with only a brief notion of concepts that will be used by him a member ofthe careers of the Judiciary, the Public Ministry, the Prosecutors and Defenders or as a lawyer. However, ifyou opt for a career in Public Safety (civil and military official and Expertise Police) will have a breadth ofknowledge that will enable them truly to toil in the criminal realm. Thus, the inclusion of Criminology will beproposed as an autonomous discipline of higher education in law, given its importance to all operators ofLaw, Public Safety are professionals or not.Keywords: Criminalistics. Top autonomia. Educação.Sumário:1. Introdução; 2. Revisão de literatura; 2.1. Histórico da criminalística; 2.2 A criminalística como disciplinaautônoma; 3. A criminalística como disciplina autônoma nos cursos de formação para profissionais dasegurança pública; 3.1. A crise na educação e os novos paradigmas; 4. Considerações finais; 5. Referências32 Docente do Instituto Cenecista de Santo Ângelo (IESA) na Faculdade de Direito e leciona a disciplina de Medicina Legal. Perita Criminal do Instituto – Geral de Perícias (IGP) lotada no Posto de Criminalística de Santo Ângelo. Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal (ESMAFE) e em Docência para o Ensino Superior pelo IESA. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Email: [email protected](RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 181-192

Clarissa BohrerINTRODUÇÃO O mais antigo tratado de medicina forense conhecido é o livrochinês Hsi Yuan Lu (O desaparecer dos erros), datado do século XIII.Acima de tudo, esse trabalho já sublinhava a importância de examinara cena de um crime, afirmando que “a diferença de um cabelo é adiferença de mil li”33 (BENFICA, 2003). No final do século XVIII, a Medicina Legal obteve o reconhecimentode sua condição como disciplina autônoma vinculada ao Direito.Podem-se citar como obras de fundamental importância a publicadapor Johannes Bohn, de Liipzig, Lesões Corporais – Lesões em vidae post-mortem, e o primeiro tratado espanhol de Medicina Legal, deautoria de Juan Fernandez de Valles. A partir do século XIX, nos primórdios da fase técnico-científica,cabia à Medicina Legal, além dos exames de integridade física do corpohumano, toda a pesquisa, busca e demonstração de outros elementosrelacionados com a materialidade do fato penal, como o exame dosinstrumentos do crime e de mais evidências extrínsecas ao corpo humano. Assim, pode-se afirmar que a perícia médica precedeu, emmuitos séculos, à perícia criminalística, e que essa disciplina é umdesdobramento da medicina legal. Com o advento de novos conhecimentos e o desenvolvimentodas áreas técnicas, como a física, a química, a biologia, a matemática,a toxicologia e outras, tornou-se necessária a criação de uma novadisciplina de pesquisa, análise e interpretação dos vestígios materiaisencontrados em locais de crime. Isso se tornaria fonte imperiosa deapoio à Polícia e à Justiça, para o fiel cumprimento de sua missão, nointuito de esclarecer e provar fatos. Assim, tem-se o surgimento da Criminalística como disciplinaautônoma, auxiliar e informativa do Direito Judiciário Penal. É autônomapor não estar inserida dentro de outra cadeira material ou processualdas Ciências Jurídicas ou Sociais, ou mesmo, da Medicina; por outrolado, é considerada auxiliar do Direito Penal e do Processo Penal,disciplinas que se ocupam da descoberta e verificação científica do33 Um “li” representa uma milha chinesa.182 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITOdelito e do delinquente, e servem de auxílio aos órgãos encarregadosda administração da Justiça.REVISÃO DE LITERATURAHistórico da Criminalística Criminalística é a disciplina que tem por objetivo o reconhecimentoe a interpretação dos indícios materiais extrínsecos, relativos ao crimeou à identidade do criminoso. Os exames, nos vestígios intrínsecos ena pessoa, seriam da alçada da Medicina Legal (disciplina integranteda Perícia Criminal). Ou seja, é a parte das ciências criminais que,ao lado da Medicina Legal, tem por finalidade os estudos técnicos ecientíficos dos indícios materiais do delito e da possível identificaçãodo seu autor, auxiliando, desse modo, os outros campos do Direitoque dela necessitem. O perito criminal José Lopes Zarzuela (1996), profissional commais de trinta anos de atuação na área da Perícia Oficial e conhecedorde que a criminalística é, eminentemente, dinâmica e sua evoluçãodoutrinária acompanha o desenvolvimento da química, da física,da biologia, da medicina, da engenharia, dentre outras disciplinas,formulou conceito que se ajusta à revolução de idéias que o mundocontemporâneo atravessa:[...] a criminalística constitui o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos,artísticos, etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escritas doselementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento de crimee na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em umevento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ouevidente interesse judiciário. Entre os principais postulados que visam a esclarecer o significadoda criminalística é possível destacar aquele que diz: “o conteúdo deum laudo pericial é invariante com relação ao perito que o produziu”,ou seja, os resultados são, invariavelmente, baseados em métodoscientíficos, por meio de teorias e experiências já consagradas, sendoque qualquer perito que recorra às leis, para analisar um fenômenocriminalístico, obterá um resultado que independerá dele como pessoa.(RE) PENSANDO DIREITO 183

Clarissa Bohrer Também há aquele que refere que “as conclusões de uma períciacriminalística não dependem dos meios utilizados para alcançá-las”.Significa que é preciso o uso de meios adequados para se concluira respeito do fenômeno criminalístico; essa conclusão, ao seremreproduzidos os exames, seja para confirmação do resultado, sejapara contraprova da defesa em um crime doloso contra a vida, seráconstante, independentemente de terem sido utilizados meios maisrápidos, mais precisos, mais modernos ou não. Por fim, “a perícia criminalística é independente do fator temporal”,pois é do conhecimento de todos os operadores do direito que averdade é imutável em relação ao tempo decorrido. Além dos postulados criminalísticos, há os princípios consideradosfundamentais a respeito da perícia criminalística que se referem àobservação, análise, interpretação, descrição e documentação daprova. No tocante ao postulado da observação, é possível aludir quetodo o contato deixa uma marca. Isso se comprova quando, no localdo crime, ocorre a pesquisa e a busca por vestígios, missão que, nemsempre, é fácil em razão dos vestígios deixados no local, seja pelavítima, seja pelo autor. Ao falar do princípio da análise pericial, é preciso apontar que eladeve sempre seguir o método científico, uma vez que a perícia científicavisa a definir como o fato ocorreu por meio de uma análise criteriosa,seguida de uma coleta de dados, as quais permitam estabelecer comoocorreu o fato e formular, inclusive, hipóteses coerentes sobre ele. Àsvezes, é possível o desenvolvimento desse método ainda no local docrime, quando não for preciso auxílio de algum aparelho ou examecomplementar. A respeito do princípio da interpretação, há o entendimento de quedois objetos podem ser semelhantes, mas nunca idênticos. É precisoindividualizá-los sendo que, para tal, ocorre a identificação genérica, aespecífica e a individual. Os exames periciais devem alcançar sempreeste último grau em suas coletas.184 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITO O princípio da descrição aponta, sempre, para o resultado de umexame pericial que é constante em relação ao tempo, e sua exposiçãodeve ser feita em linguagem ética e juridicamente perfeita. Por fim, há o princípio da documentação que refere que toda aamostra deve ser documentada, desde o seu nascimento, no localdo crime, até sua análise e descrição final, com o objetivo único deestabelecer um histórico fiel e completo de sua origem. Assim, háproteção e fidelidade da prova, evitando considerações sobre provasforjadas para incriminar ou inocentar alguém (DOREA, QUINTELA;STUMVOLL, 2005).A Criminalística como disciplina autônoma A criação da disciplina de Criminalística é atribuída ao ProfessorHans Gross, eminente catedrático de Direito Penal, na Universidade deGraz, na Áustria, e ex-juiz instrutor, em livro publicado em 1886, Manualdo Juiz de Instrução – Todos os sistemas de criminalística (Systemder Kriminalistik)34. A obra abrange a gama de conhecimentoscientíficos e práticos, úteis e necessários ao Juiz instrutor do processopenal, estando incluídas as diversas disciplinas da perícia forense:a Medicina Legal, a Antropologia Criminal, a Psicologia Criminal, aPsicologia do Testemunho, a Psiquiatria e a Psicopatologia Forense.Para Hans Gross, Criminalística seria o estudo da fenomenologia docrime e dos métodos práticos de sua investigação. O juiz, entretanto, na maior parte das vezes, havia de se socorrerdas diversas categorias de peritos leigos, ou seja, profissionaisde respectivas áreas do conhecimento, todavia carentes depreparo intelectual capaz de habilitá-los a articularem respostasnecessariamente precisas e claras aos questionamentos formuladosa serem esclarecidos. Assim, o elo natural entre o jurista e os peritos leigos, esses carentesde preparo intelectual, aquele com formação intelectual superior, ocorreuentre o juiz e o médico, este detentor de cultura geral e formaçãoespecífica equivalente ao do magistrado (RABELLO, 1996).34 Originalmente, Handbuch fürUntersuchungsrichter als System der Kriminalistik(RE) PENSANDO DIREITO 185

Clarissa Bohrer Paralelamente à criação da criminalística, na Argentina, JuanVucentich, funcionário do Departamento de Polícia da Província deLa Plata, encarregado da Oficina de Identificação, criava, em 1891,e colocava em funcionamento, em 1892, na repartição em quetrabalhava, o Sistema Datiloscópico, considerado, até hoje, o maisperfeito sistema prático de identificação datiloscópica. O Sistema foi, pela primeira vez, utilizado, com êxito, no famosocaso Teresa Rojas de Necochea, o homicídio de duas crianças deforma brutal em que a mãe atribuía a autoria a determinado homem.Entretanto, de acordo com as impressões papilares deixadas no cabodo instrumento do crime, foi constatado que a autoria do delito forada própria mãe das crianças. Com isso, resolveu-se, em definitivo,o problema de determinação científica da identidade física do serhumano, proporcionando à Justiça a prova irrefutável da identidadeda autoria do delito. A partir do desenvolvimento da Medicina Legal, da Criminalísticae da Papiloscopia, foi a Polícia quem primeiro fez uso da PeríciaCriminal, durante a persecução penal. A Polícia, no setor de investigação criminal, já possuía, em seuquadro funcional, o médico legista, que resolvia, em definitivo, oproblema da verificação e da prova da identidade física do indivíduo,inclusive pelos vestígios materiais deixados no local do crime e nosobjetos vinculados ao fato. A evolução da Perícia Criminal ocorreu, basicamente, no interiordas instituições policiais, o que ensejou as incorretas denominaçõesde Polícia Técnica, Polícia Científica e, até, Policiologia. Via de regra, é da Polícia a incumbência das primeiras providênciasna ocorrência de significado jurídico penal. Quando toma conhecimentodo fato, é dela a missão de investigá-lo, de apurar, devidamente, asua natureza e suas circunstâncias de possível interesse para o juízocriminal, cumprindo, dentro das regras de Direito, valer-se de todos osrecursos disponíveis. Ocorre que o investigador criminal é um profissional desprovidode conhecimentos técnicos, podendo, até mesmo, concorrer para186 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITOa destruição ou perda de elementos indiciários valiosos que, sedevidamente preservados por ele e adequadamente examinados porum especialista, podem conduzir a investigação penal com brevidadee certeza à completa elucidação do fato investigado. Tem-se, então, a criação da figura do perito criminal, agente queconcorre com seus conhecimentos e recursos de ordem técnico--científica, na investigação, para o esclarecimento e a prova dequestões de fato, cujo exame estiver compreendido no seu setorparticular de especialização. Ao policial, portanto, há a incumbência de solicitar ou requisitaro atendimento especializado dos peritos criminais que não atuam deofício, mas tão somente em atendimento à solicitação da autoridade −quer policial, quer judiciária.A CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINAAUTÔNOMA NOS CURSOS DE FORMAÇÃO PARAPROFISSIONAIS DA SEGURANÇA PÚBLICA Os ramos da perícia criminal são quatro, a saber: a Medicina Legal,a Criminalística, a Papiloscopia e o Laboratório de Perícias, sendoque a Criminalística abrange todas as demais análises técnicas, comoas perícias de: Documentoscopia, Grafoscopia, Balística, ImpressõesPapilares, Computação Forense, Engenharia Legal, Meio Ambiente,Audiovisual, Acidentes de Tráfego, Mortes Violentas, Crimes contrao Patrimônio, Identificação de Veículos, Reprodução Simulada deFatos, dentre outras. No Rio Grande do Sul, existem quatro orgãos que compõem aSegurança Pública (Polícia Civil, Brigada Militar, Instituto Geral dePerícias - IGP e Superintendencia de Serviços Penintenciários –SUSEPE). Após o ingresso por meio de concurso público de provas e/ou títulos, os membros desses orgãos – seja na qualidade de agente,seja na de autoridade – deverão obrigatoriamente frequentar umcurso de formação, que será parte integrante do processo seletivo. Namatriz curricular desses cursos de formação, cada um em sua áreaespecífica, deverá ser ministrada a disciplina de Criminalística. Essa(RE) PENSANDO DIREITO 187

Clarissa Bohrerdisciplina é, preponderantemente, ofertada por peritos oficiais, dentreeles, peritos criminais, papiloscopistas e médicos-legistas. Inconteste a necessidade da oferta dessa disciplina nos cursosde formação, pois os profissionais da segurança pública irãoverdadeiramente lidar com os conceitos necessários e fornecidos pelaCriminalística para buscar preservar o trabalho, principalmente, dosperitos na busca da verdade real.A Crise na Educação e os Novos Paradigmas Nas IES (Instituição de Ensino Superior) do Brasil, não existea cadeira da Criminalística como disciplina autônoma nos cursossuperiores de Direito. Em algumas, como, em especial, no Rio Grandedo Sul, existe o conteúdo programático da Criminalistica inserido nadisciplina de Medicina Legal e na disciplina de Processo Penal. Em decorrência da formação acadêmica que, na quase totalidadedas Faculdades de Direito não contempla a Criminalística nagrade curricular, muitos profissionais da área jurídica − advogados,promotores, defensores, juízes − encontram dificuldades para elaborar,corretamente, os quesitos ao perito, apresentar questionamentos emaudiência, solicitar o adequado exame pericial, construir uma tese dedefesa ou de acusação com base no laudo pericial. As IES, atualmente, devem, segundo Dias Sobrinho(2002),responder a desafios ou ao menos ajudar na solução de problemas,tais como na formação de mão-de-obra de alto nível para oatendimento de demandas imediatas no mundo do trabalho, formaçãoqualificada para novas ocupações, além da formação para a inovação,preservação e desenvolvimento da alta cultura. Importante, ainda,na visão desse pensador, a capacitação de professores de todos osníveis e a formação de novos pesquisadores. O que as IES devem pretender, na atualidade das diversas “crisesde paradigmas” é a melhoria do processo-ensino aprendizagem noseio da universidade. O novo paradigma científico requer novasperspectivas para a apreensão e compreensão dos fenômenoseducacionais. Tal perspectiva é necessária do processo educacional188 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITOdesenvolvido nas universidades, pois é a partir de sua formaçãoacadêmica que os profissionais das IES, terão a capacidade deatribuirem sentido aos dados e fatos apresentados pela realidade,numa tentativa de compreendê-los e convertê-los em discurso, o queé fundamental para a renovação da prática pedagógica (WERLE,2011). Primeiramente deve-se tratar o que é a crise de paradigmas. Sabe--se que é uma questão limitada a um pequeno círculo intelectual, poisa grande parte da população sequer sabe o que significa “paradigma”.Com relação à Educação, o modelo então vigente é colocado em xeque,gerando verdadeira “orfandade ideológica” (GARCIA, 1994, p.58). Numa primeira visão, “paradigma” refere-se à teoria (leis,conceitos, modelos, analogias, regras) mas, também, implica emvalores em visões e compreensões de mundo. Ainda se refere aquadros de referência teórico-metodológicos. Para Mendonça (1994), a crise sentida no campo da educação éjustificada pelo isolamento do campo – de ensino – e a inconsistênciateórica, ou seja, a delimitação de fronteiras de outros camposenquanto que a natureza da Educação, enquanto objeto de estudo – énecessariamente interdisciplinar O mercado exige e a universidade deve atender aos anseios dele.O mercado necessita do conhecimento produzido no meio acadêmico.Isso porque o aluno que está na universidade é aquele que irá parao mercado, então, já deve ir preparado para ter as reais condiçõesde competitividade. A universidade não se transformará em simplesmarca, mas, sim, em responsável pelo futuro empreendedor, no futuroempregado e empregador. E esse é o seu papel, o de responsávelsocial pela formação de seus alunos. Com base nisso, os futuros operadores do Direito têm anecessidade de se equipararem no estudo da ciência da Criminalística,enquanto servidores públicos dos diversos órgãos da AdministraçãoDireta, do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensorias, ou naqualidade de advogados, pois iram labutar em condições de igualdadeno embate criminal dos servidores da Segurança Pública.(RE) PENSANDO DIREITO 189

Clarissa BohrerCONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo apresentou a importância do estudo da Criminalísticapara os futuros operadores do Direito. Em que pese a ciência estarsendo tratada como conteúdo programático das disciplinas de MedicinaLegal e de Processo Penal, faz-se necessária a sua transcendênciapara o patamar de disciplina autônoma dos cursos de Direito, hajavista já estar assim sendo tratada nos cursos de formação para osprofissionais de Segurança Pública. Hoje, juízes, promotores, defensores e advogados não sabeminterpretar um laudo oficial, pura e simplesmente, por falta de formaçãoacadêmica. Não é apenas o profissional da Segurança Pública quedeve deter esse conhecimento: são todos os envolvidos na persecuçãopenal. Todavia, para que isso ocorra, é necessário haver alterações naestrutura curricular, a fim de que, finalmente, os futuros bacharéis emCiências Jurídicas e Sociais possam se equiparar em conhecimentoscom os agentes da Segurança Pública. Com a transformação e as reflexões advindas das instituições deensino superior (IES), conforme demonstrado ao longo deste trabalho,o momento é propício para se inserir nas matrizes curriculares oestudo da metodologia científica da investigação criminal, no mundoda ciência Criminalística, com o intuito da emancipação profissionaldos operadores do Direito. Importante frisar que o relacionamento entre as disciplinaspermite, além de descobrir o entendimento específico de cada umaquanto ao seu objeto, mas motivar a autorreflexão sobre os própriosolhares restritos que delimitam seus questionamentos. (FLICKINGER,2007). Pode-se inferir, por fim, que os conhecimentos oferecidos pelaperícia criminal são imprescindíveis para todos os profissionais quelidam com o processo penal, desde os agentes públicos da SegurançaPública, até advogados, defensores públicos, promotores e juízescriminais. E esse conhecimento deve ser ofertado nas Instituições deEnsino Superior (IES), nos Cursos de Direito.190 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NA FORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITOREFERÊNCIASAUDY, Jorge L. N.; MOROSINI, Marília C. (Org). Inovação einterdisciplinaridade na Universidade. Porto Alegre: EdiPucrs,2007.BENFICA, Francisco Silveira; VAZ, Márcia. Medicina legal aplicadaao Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2003.DIAS SOBRINHO, José. Universidade e avaliação. Entre a ética e omercado. Florianópolis: Insular, 2002.DOREA, Luiz Eduardo Carvalho; QUINTELA, Victor; STUMVOLL,Victor Paulo. Tratado de perícias criminais. 3. ed. Campinas:Millennium, 2006.GARCIA, Pedro Benjamin. Paradigmas em crise e a educação. In:BRANDÃO, Taia (Org.). A Crise dos Paradigmas em Educação. SãoPaulo: Cortez, 1994.MENDONÇA, Ana Waleska Pollo Campos. A história da educaçãoface à “crise dos paradigmas”. In: BRANDÃO, Zaia (Org.). A crisedos paradigmas em educação. São Paulo: Cortez, 1994.RABELLO, Eraldo. Curso de criminalística: sugestão de programapara as faculdades de direito. Porto Alegre: Sagra DC Luzzatto, 1996.WERLE, Vera Maria. Pesquisa em educação. Uma reflexãoparadigmática. Santo Ângelo: [s.n.], 2011. Apostila.ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística.Porto Alegre: Sagra DC Luzzatto, 1996.OBRAS CONSULTADASBRASIL. Constituição Federal de 1988. 44. ed. São Paulo: Saraiva,2010.FINCATO, Denise Pires. Estágio de docência, prática jurídica edistribuição de justiça. Revista Direito GV, São Paulo, v. 6, n. 1, p.29-37, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v6n1/02.pdf >. Acesso em: 15 mar. 2011.(RE) PENSANDO DIREITO 191

Clarissa BohrerLUDWIG, Artulino. A perícia em local de crime. Canoas: Ulbra, 1996.MACHADO, Cláudio; MACHADO, Solange. Estudos periciais: teoria,prática e legislação. Porto Alegre: Alcance, 1997.REIS, Albani Borges dos. Metodologia científica e perícia criminal.Campinas: Millenium, 2006.ROSISTOLATO, Rodrigo. Significados da cultura entre estudantesde direito. Revista Avaliação, Campinas, v. 15, n. 2, p. 73-92, 2010.Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/aval/v15n2/a04v15n2.pdf >.Acesso em: 15 mar. 2011.Recebido: 5-8-2014Aprovado: 17-10-2014192 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

D(REI)RPEENSIATNDOODIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E PRESSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO Dignity of the human person: limits, criteria and assumptionsfor your application Adriana Liberalesso35 Bruna Escobar36 Carla Dóro de Oliveira37 Tainá Borges38 Vera Maria Werle39ResumoO presente trabalho tem por objetivo a apresentação das noções principais acerca do princípioconstitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no que tange à delimitação de um conceitojurídico possível, bem como da delimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação pelooperador do direito. Por fim, buscar-se-á demonstrar de que forma tem se dado a utilização desse princípiopela jurisprudência brasileira frente ao caso concreto.Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Princípio da ponderação. Conteúdos mínimos. Mínimoexistencial.AbstractThe present work aims at presenting the main notions of the constitutional principle of human dignity,especially with regard to the delimitation of a possible legal concept, as well as the delimitation of minimumcontent for their correct application by the operator on the right. Finally, we will seek to demonstrate is thatform has been given the use of this principle by the Brazilian jurisprudence opposite case.Keywords: Dignity of the human person. Principle of weighting. Minimum contents. Existential minimum.Sumário:Introdução; 1. Evolução histórica; 2. Natureza jurídica; 3. A aplicação do princípio da dignidade da pessoahumana tendo como parâmetro o princípio da ponderação, a delimitação de conteúdos e o mínimoexistencial; 4. A utilização do princípio da dignidade da pessoa humana pela jurisprudência atual; 5.Conclusão; 6. Referências.35 Acadêmica do 8º período do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected] Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: [email protected] Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: [email protected] Acadêmica do 8º período do curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo. E-mail: [email protected] Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania. Orientadora. Professora do Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Santo Ângelo.E-mail: [email protected].(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 193-216

Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria WerleINTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo a busca por uma melhorcompreensão da dignidade da pessoa humana. Vê-se que,hodiernamente, os operadores do Direito têm dificuldade naconceituação da dignidade humana, vendo nessa um instituto, muitasvezes, vazio de significado. O principal escopo desse trabalho é evitarque a dignidade da pessoa humana seja vista, conforme destaca LuisRoberto Barroso, como um espelho “no qual cada um projeta suaprópria imagem de dignidade” (2010, p. 3). Para tanto, far-se-á umaanálise da evolução história desse princípio, buscando-se entenderde que forma ele alcançou tamanha importância nos diversosordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Ademais, examinar-se-áa natureza jurídica da dignidade humana, expondo-se conceitos efazendo-se alusão à atual jurisprudência brasileira, e a forma como adignidade humana vem sendo aplicada.EVOLUÇÃO HISTÓRICA A dignidade da pessoa humana, na forma como é tratadaatualmente, tem origem religiosa. Foi com o cristianismo que adignidade humana teve traçados seus primeiros contornos, a partirdo reconhecimento do homem como imagem e semelhança de Deus.Cabe destacar que esse reconhecimento se dava muito mais no planoespiritual, uma vez que, mesmo durante o cristianismo, homens eramescravizados e transformados em objetos a serviço de um fim. É esse o entendimento de Luís Roberto Barroso, para quem adignidade da pessoa humana tem origem bíblica, já tendo passadopela filosofia, para posteriormente se tornar um objetivo político e, porfim, ingressar no mundo jurídico. O autor ainda explica que somentecom o Iluminismo, com o advento da visão antropológica de mundo, adignidade da pessoa humana passa para o campo da Filosofia, tendo porfundamento a razão e a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Immanuel Kant, importante filósofo do Iluminismo, é o principalresponsável pela ideia contemporânea da dignidade da pessoahumana. Barroso expõe que, segundo Kant, “tudo tem um preço ou194 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E PRESSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃOuma dignidade. As coisas que não têm preço podem ser substituídaspor outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todoo preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela temdignidade” (2010, p. 17). O autor ainda afirma que, segundo talpensamento, [...] todo homem é um fim em si mesmo, não devendo ser funcionalizado a projetos alheios; as pessoas humanas não têm preço nem podem ser substituídas, possuindo um valor absoluto, a qual se dá o nome de dignidade (2010, p. 18). De acordo com Rafael Diogo Diógenes Lemos, o conceito dedignidade da pessoa humana proposto por Kant assumiu especialrelevância, principalmente porque conseguiu “consolidar a laicidadedo conceito, permitindo sua adoção por toda a humanidade,independentemente de religião” (2008, p. 44). Desse modo, foi graçasa Kant que o conceito de dignidade da pessoa humana foi finalmenteapartado do conceito religioso de dignidade. Luís Roberto Barroso explica que, ao longo do século XX, noentanto, foi que a dignidade humana ganhou uma denotação política,de forma a se tornar um objetivo a ser buscado pelo Estado e por todaa sociedade (2010, p. 4). Somente após a 2ª Guerra Mundial, a ideia de dignidade migroupara o mundo jurídico. Tal fenômeno ocorreu, especialmente, emrazão das atrocidades produzidas nas duas grandes guerras mundiais,crueldades essas autorizadas pela lei, fundadas no Direito. É nessecontexto que surge um novo modelo ético-jurídico, pautado pelapreocupação com a construção de uma sociedade justa e igualitária,baseada no respeito à liberdade individual e na consagração dorespeito à pessoa humana. A inserção da dignidade da pessoa humana no plano jurídico se dágraças a dois movimentos, conforme explica Barroso. Primeiramente,“pelo surgimento de uma cultura pós-positivista, que reaproximou odireito da filosofia moral e da filosofia política”, e, em outro plano, pela“inclusão da pessoa humana em diferentes documentos internacionaise constituições de Estados Democráticos” (2010, p. 4).(RE) PENSANDO DIREITO 195

Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werle Foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quepossibilitou a maior valoração da dignidade da pessoa humana, umavez que, em seu art. 1º, preconiza que “Todas as pessoas nascem livrese iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciênciae devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Conforme explicam Paulo Gomes de Lima Júnior e CleideAparecida Gomes Rodrigues Fermentão, com a Declaração dosDireitos Humanos, diversos países passaram a adotar, em suas cartasconstitucionais, o princípio da dignidade da pessoa humana: Após a segunda guerra mundial, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, vários países adotaram o princípio da dignidade da pessoa humana em suas constituições.AAlemanha (art. 1º, inciso I), a Espanha (preâmbulo e art. 10.1), a Grécia (art.2º, inc. I), a Irlanda (preâmbulo) e Portugal (art. 1º). A Constituição da Itália (art. 3º) refere-se à “dignidade social” de todos os cidadãos, embora não mencione expressamente a expressão “dignidade da pessoa humana”. A Constituição da Bélgica (art. 23) assegura “aos belgas e estrangeiros que se encontram em território belga o direito de levar uma vida de acordo com a dignidade humana”. Na América Latina o princípio encontra-se positivado expressamente nos seguintes textos constitucionais: Constituição do Brasil (art.1º, inciso III), Paraguai (preâmbulo), Cuba (art. 8º), Venezuela (preâmbulo), Peru (art. 4º), Bolívia (art. 6, inciso II), Chile (art. 1), Guatemala (art. 4). Constituição da Rússia aprovada em 1993 (art.12-1) (2012, p. 323). Tais transformações demonstram uma mudança de paradigma.O homem passa não mais a ser visto na condição de súdito, mas decidadão, passa à condição de sujeito de direito. Ou seja, é o Estadoagora que deve servir ao homem, que deve possibilitar a concretizaçãode seus direitos básicos e zelar pela sua dignidade. Isso se torna aindamais evidente nas cartas magnas dos países que inspiraram a atualconstituição brasileira. É o que ocorre com as Constituições alemã,portuguesa, espanhola e italiana. Segundo Agenor Casaril, a lei fundamental alemã, promulgadano ano de 1949, “consagrou a dignidade da pessoa humana em seutexto, de modo expresso e solene, erigindo-a em direito fundamental,estabelecido em seu art. 1º” (2009, p. 96).196 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E PRESSUPOSTOS PARA A SUA APLICAÇÃO O citado autor faz referência a José Afonso da Silva para explicarque a positivação deste princípio tem por fundamento as crueldadesproduzidas pelo Estado nazista, o qual atacou a dignidade humanasob a égide da lei (2009). Frisa-se que a Constituição de Portugal,de 1976, em seu art. 1º e a Constituição italiana, de 1947, tambémconsagraram a dignidade da pessoa humana em seus textos. Em nossa Constituição, a dignidade da pessoa humana veiodisposta logo no art. 1º, inciso III, servindo como fundamento daRepública e ocupando posição de destaque, antes mesmo dos direitosfundamentais.NATUREZA JURÍDICA A determinação da natureza jurídica da dignidade humana,segundo Roberto Barroso, faz-se importante para que seja definido oseu conteúdo, modo de aplicação, bem como sua eficácia no âmbitojurídico (2010, p. 12). Em princípio, a dignidade humana era observada apenas peloramo da Filosofia, sendo por isso considerada como valor, ou seja,referindo-se apenas à ideia de justiça e de bondade. Contudo, a partirda Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, a dignidadehumana passou a ser incluída nos textos constitucionais de diversospaíses, passando pelo fenômeno da positivação no sistema jurídico.Consequentemente, a dignidade da pessoa humana começou a serconsiderada não apenas no seu sentido axiológico, mas, também,como uma norma jurídica. Para melhor entendimento acerca da identificação da naturezajurídica da dignidade humana, torna-se necessária a definição de normajurídica. O ordenamento jurídico é formado por um sistema de normasque são caracterizadas pela sua imperatividade e coercibilidade, ouseja, a norma jurídica define um dever-ser do sujeito, englobandoatividades positivas (um agir) ou negativas (não agir), determinandocomo deve ser a conduta do indivíduo. Além disso, a norma jurídicapode fixar enunciados sobre a organização da sociedade e doEstado. Ademais, conforme Humberto Ávila, citado por Lima Júnior(RE) PENSANDO DIREITO 197

Adriana Liberalesso - Bruna Escobar - Carla Dóro de Oliveira - Tainá Borges - Vera Maria Werlee Fermentão, as normas jurídicas dividem-se em princípios, regras epostulados normativos, cujas diferenças e conceitos serão exploradosa seguir (2012, p. 317). Na fase positivista, os princípios eram utilizados apenas como fontenormativa subsidiária dos textos legais, isto é, eram usados apenascomo instrumento para preencher lacunas da lei. Foi na escola pós-positivista que os princípios transformaram-se em normas vinculantes,não sendo mais utilizados apenas para preencher lacunas. Conformeconceituação apresentada por J. J. Gomes Canotilho, princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de ‘tudo ou nada’; impõem a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a ‘reserva do possível’, fáctica ou jurídica (2003, p. 1255). Conforme se pode inferir do conceito de princípio apresentado porSidney Guerra e Lilian Márcia Balmant Emerique, os princípios transmitem a ideia de condão do núcleo do próprio ordenamento jurídico. Como vigas mestras de um dado sistema, funcionam como bússolas para as normas jurídicas, de modo que se estas apresentarem preceitos que se desviam do rumo indicado, imediatamente esses seus preceitos tornar-se-ão inválidos (2006, p. 7). Os princípios servem de fundamento para as regras jurídicas,além disso, servem de guia, de orientação, de critério para a melhorcompreensão do restante do ordenamento jurídico. Os referidos não seconfundem nem com as regras jurídicas e nem com valores jurídicos.Os valores jurídicos são, de acordo com explicações de Rizzato Nunes,citado por Lima Júnior e Fermentão, relativos, enquanto os princípiosse “impõem como um absoluto, como algo que não comporta qualquerespécie de relativização” (2012, p. 316). Ademais, as regras possuem conteúdo mais objetivo que osprincípios, sendo aplicadas quando o caso concreto coincide com assituações específicas apresentadas pelo seu texto. Em contrapartida,os princípios apresentam teor mais subjetivo, incidindo sobre várias198 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


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