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(Re)Pensando Direito - Nº 8

Published by comunicacao, 2015-04-29 21:41:32

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Jul./Dez. 2014 08 ISSN 2237-5953REVISTA DO CURSO DE DIREITO DA CNEC SANTO ÂNGELO - RS



(DREI) RPEENSIATNODO Ano 4, n. I8SS-Nju2lh2o3/7d-5ez9e5m3 bro 2014 Catalogação na Fonte(RE) Pensando Direito / Revista do Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo –RS. – Ano 4, n. 8. (jul/dez. 2014) – Uberaba: CNEC Edigraf, 2014. Semestral ISSN 2237-59531. Direito. 2. Direito – Periódico. I. Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo – RS CDU: 34(05)

(RE) PENSANDO DIREITO Revista do Curso de Direito da CNEC Santo Ângelo – RS Campanha Nacional de Escolas da ComunidadeDiretor Presidente: Deputado Alexandre José dos SantosDiretor Presidente em Exercício: Prof. Juarez de Magalhães RigonDiretora Secretária: Profª. Anita Ortiz CorrêaDiretor do IESA: Prof. Antônio Roberto Lausmann TernesCoordenação Editorial: Prof. Gilberto KerberDiretores da Revista: Prof. Doglas Cesar Lucas e Prof. José Lauri Bueno de Jesus eComissão Editorial: Gilberto Kerber, José Lauri Bueno de Jesus, Doglas Cesar Lucas, Salete Oro Boff, Clarisse Goulart Nunes.Conselho Editorial: Dr. Antonio Carlos Wolkmer (UFSC), Dr. Vicente de Paulo Barretto (Uerj), Drª. Jânia Saldanha (UFSM), Dr. Doglas Cesar Lucas (Iesa/ Unijuí), Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM), Dr. Sidney Guerra (UFRJ), Dr. Thiago Fabres de Carvalho (FDV/ES), Dr. Wagner Menezes (USP), Drª. Ângela Araújo da Silveira Espíndola (UFSM), Drª. Fabiana Marion Spengler (Unisc), Drª. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG), Drª. Salete Oro Boff (Iesa/Unisc), Dra. Nuria González Martín (Universidad Nacional Autónoma de México)Revisão: Prof. Artur Hamerski e Isabel Cristina Brettas Duarte.Capa: CNEC PropagandaClassificação B5 no Sistema Qualis Capes de PeriódicosEditada em 1981 com o título Revista da Faculdade de Direito de Santo Ângelo (nº 1), em1999 como Revista IESA (nº 2), de 2002 a 2004 como Revista Habeas Data (nº 3 a nº 5), eem 2011 como (Re)Pensando DireitoEndereço do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo:Rua: Dr. João Augusto Rodrigues, 471CEP: 98801-015 – Santo Ângelo-RSFone: 55 33131922 – fax 55 33131922e-mail: [email protected] disponível em:http://www.iesanet.com.brDireitos de Publicação, Capa, Programação Visual, Editoração Impressão:Editora e Gráfica Cenecista Dr. José FerreiraAv. Frei Paulino, 530 - Bairro AbadiaPABX: (34) 2103-0700 - FAX: (34) 3312-5133CEP: 38025-180 - Uberaba, MG - e-mail: [email protected]

SUMÁRIOAPRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 5MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOSFAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE�������������������������������������������������������������������� 11 Aline Damian Marques Denise Tatiane Girardon dos SantosA DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN ���������������� 29 Doglas Cesar Lucas Nadabe Manoel MachadoDESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL POR MEIO DA EXTRAFISCALIDADE�������������� 53 Paulo Valdemar da Silva Balbé Salete Oro BoffA REVISÃO CRIMINAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA ORESGATE DO STATUS DIGNITATIS DO CONDENADO������������������������������������������������ 73 Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth Tamyse de Christo MarquesO DIREITO AMBIENTAL E A INTERFACE COM A EDUCAÇÃO AMBIENTAL NASOCIEDADE ATUAL ����������������������������������������������������������������������������������������������������� 101 Juliane Colpo Roberto ColpoA IMPORTÂNCIA DA BIOÉTICA PARA O DIREITO: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA 145 Isabel Cristina Brettas DuarteFALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DA EMPRESA NA ÓPTICA DA LEI n. 11.101/05��������� 161 José Lauri Bueno de JesusA IMPORTÂNCIA DA CRIMINALÍSTICA COMO DISCIPLINA AUTÔNOMA NAFORMAÇÃO SUPERIOR DOS OPERADORES DO DIREITO�������������������������������������� 181 Clarissa Bohrer

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: LIMITES, CRITÉRIOS E PRESSUPOSTOSPARA A SUA APLICAÇÃO���������������������������������������������������������������������������������������������� 193 Adriana Liberalesso Bruna Escobar Carla Dóro de Oliveira Tainá Borges Vera Maria WerleA RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS À LUZ DA ATUAL LEI DE FALÊNCIAS���������� 217 Ana Lara Tondo José Lauri Bueno de JesusNORMAS PARA SUBMISSÃO E PUBLICAÇÃO����������������������������������������������������������� 235

APRESENTAÇÃO APRESENTAÇÃO Sempre na busca do aprimoramento de nossa Revista (RE)Pensando do Curso de Direito do Instituto Cenecista de EnsinoSuperior de Santo Ângelo (CNEC-IESA),nesta edição os leitores estãosendo abrilhantados com vários artigos, dentre os quais destacamos aprodução realizada por nossos alunos que se encontram no 8o períododo curso. Assim, ficamos felizes com a participação deles e esperamosque outros acadêmicos se juntem a eles na escrita de artigos. Para compor a 8a edição,como sempre temos feito, observamosvários critérios, dos quais os colaboradores e leitores têm o conhecimento,e porque são necessários para o Sistema Qualis Capes de Periódicos,almejando subir a classificação da Revista, pois essa é muito importantepara a instituição e para o Curso de Direito. Assim, o primeiro artigo constante é sobre a Mediação e conciliação:reflexões acerca dos conflitos familiares na contemporaneidade,em que as autoras realizam uma abordagem acerca dos benefícios damediação e da conciliação nos conflitos familiares, além de apontaras principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que aentidade familiar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família,dentro das mais diversas configurações da convivência humana,obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social.Logo, do histórico da evolução da entidade familiar, serão abordadasas aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativasbenéficas na resolução dos conflitos familiares, principalmente, noscasos de separação e de divórcios, nas quais essa resolução alternativaatinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panoramageral da sociedade ocidental e dos diversos conflitos, inerentes aoâmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação doslaços familiares e da judicialização da sociedade, tomando, comoparâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos. O texto seguinte trata sobre A desobediência civil na teoriajurídica de Ronald Dworkin, no qual os seus autores apresentam de formabastante rápida a compreensão da desobediência civil no pensamento (RE) PENSANDO DIREITO 5

jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano,a desobediência civil poderá ser invocada por aquele cidadão queconsiderar determinada lei de constitucionalidade duvidosa e decorredo direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãospossuem de interpretar moralmente o sistema jurídico, principalmentenos casos de possíveis exageros e equívocos da autoridade judicial.Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em tornoda validade da lei, questionando argumentos e interpretações oficiaise com isso proveriam a reafirmação ou correção dos instrumentoslegitimadores do sistema jurídico. Na continuidade, é apresentado o artigo sobre o Desenvolvimentosustentável por meio da extrafiscalidade, no qual os autoresabordam o tema do desenvolvimento sustentável, com destaque paraa aplicação da extrafiscalidade nas espécies tributárias. Inicialmenteé abordado o contexto histórico e mundial que deu origem ao tema“desenvolvimento sustentável”. Em um segundo momento, busca--se a compreensão da dimensão das liberdades fundamentais,condicionantes para a mudança de perfil do indivíduo, capacitando-oa atuar como agente dentro das estruturas da sociedade, com reflexosna construção de uma ética de responsabilidade. Após, realiza-seum estudo das competências tributárias na Constituição Federal de1988 com especial enfoque para as bases econômicas ou matrizestributárias previstas no texto constitucional e o questionamento sobrea possibilidade de instituição de tributação ambiental em um âmbitonormativo analítico, com pouca margem de liberdade. Por fim, realiza--se um estudo sobre o alcance do princípio da extrafiscalidade e apossibilidade de aplicação nas espéciestributárias com o propósito deresguardo ao meio ambiente. Na sequência dos artigos, no texto sobre A revisão criminal comocondição de possibilidade para o resgate do status dignitatis docondenado, os autores analisam a responsabilidade civil do empregadorpelos danos causados em razão do assédio moral no trabalho, tantopor atos praticados por ele próprio quanto por atos praticados por seusempregados ou prepostos. Examina-se, para tanto, o assédio moral6 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

APRESENTAÇÃOno trabalho, seu conceito, suas modalidades e danos causados. Emseguida, atenta-se para a teoria da responsabilidade civil, conceituando-ae analisando seus pressupostos. Por fim, analisa-se a responsabilidadecivil do empregador em face do assédio moral no trabalho. Outro artigo interessante é o texto sobre O direito ambiental e ainterface com a educação ambiental na sociedade atual, em queos autores analisam se a coletividade se apropriou ou não dos valoresinerentes ao direito ambiental como forma de prover a si mesmados elementos essenciais à sadia qualidade de vida, dissociando ouassociando a sustentabilidade do meio natural com os processos dedesenvolvimento, partindo-se da abordagem da sociedade atual navisão de Leonardo Boff e Gilles Lipovetzky. Em seguida, traçandointerface com o Código de Defesa do Consumidor, relacionam aposição das partes envolvidas na relação de consumo e seu papeltransformador daquela sociedade paradigma em novo modelosocial, com desenvolvimento econômico, porém nas dimensões dasustentabilidade, a partir da conscientização dos efeitos, danososou não, decorrentes da liberdade de consumir. Segue-se com aleitura da educação ambiental no direito positivo brasileiro, conceito,partícipes e objetivos, e a par da reflexão da sociedade atual naabordagem dos autores referenciados no trabalho, perquire-se acercada sustentabilidade nessa sociedade dita como de mercantilizaçãodos valores, bem como o papel da educação ambiental e se esta agecomo vetor de transformação social para a concretização do direitoa um meio ambiente equilibrado como garantia a sadia qualidade devida. A importância da bioética para o Direito: uma reflexãonecessária é um texto em que a autora faz uma análise sobre a formaem que o progresso da ciência tem causado mudanças na sociedademundial e enseja relações jurídicas cada vez mais complexas, alémde novos questionamentos, para os quais a legislação vigente nãotem uma resposta exata e imediata. Vive-se uma crise de paradigmasna dogmática jurídica mistificada na neutralidade da ciência, além dodescortinar de novas reflexões, assim como o surgimento de uma(RE) PENSANDO DIREITO 7

nova juridicidade, fundada nos princípios bioéticos, em especial nadignidade da pessoa humana e na responsabilidade, nos quais ébalizada a utilização das novas biotecnologias. Na sequência, no texto sobre a Falência e recuperação daempresa na óptica da lei n. 11.101/05, demonstra-se o longocaminho que as empresas têm percorrido, na história, para poderematingir o patamar de recuperação ao invés de ingressarem na falência,diretamente. Entretanto, é necessário observar alguns princípios, quedeverão ser analisados quando a empresa se encontrar em crise,a fim de verificar a viabilidade ou não da continuidade das suasatividades, preservando assim a empresa, inclusive, deve ser semprevoltado para o aspecto social, inserindo-se nessa situação a quitaçãodos débitos de todos os credores e a mantença do emprego dosfuncionários. Faz-se também uma breve retrospectiva histórica dasleis dos principais países, especialmente sobre os aspectos relativosà recuperação da empresa. Ainda temos o texto sobre A importância da criminalística comodisciplina autônoma na formação superior dos operadores doDireito, em que a Criminalística tem demonstrada a sua importância aolongo da evolução do estudo da Medicina Legal e do Processo Penal,cadeiras integrantes do curso superior de Ciências Jurídicas e Sociais. Oprofissional do Direito, entretanto, conclui a sua formação tendo apenasuma breve noção de conceitos que serão por ele utilizados sê membrodas carreiras do Judiciário, do Ministério Público, das Promotorias eDefensorias ou na qualidade de advogado. Entretanto, caso opte poruma das carreiras da Segurança Pública (Polícias civil e militar e Períciaoficial) terá uma abrangência de conhecimentos que lhes capacitarãoverdadeiramente para labutar na seara criminal. Assim, será propostaa inclusão da Criminalística como disciplina autonôma dos cursossuperiores de Direito, dada a sua importância para todos os operadoresdo Direito, sejam profissionais da Segurança Pública ou não. Por fim, os dois artigos dos acadêmicos do Curso de Direito daCNEC-IESA. O primeiro diz sobre a Dignidade da pessoa humana:limites, critérios e pressupostos para a sua aplicação, no qual é8 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

APRESENTAÇÃOrealizada a apresentação das noções principais acerca do princípioconstitucional da dignidade da pessoa humana, especialmente no quetange à delimitação de um conceito jurídico possível, bem como àdelimitação de conteúdos mínimos para a sua correta aplicação peloprofissional do direito. Também, buscar-se-á demonstrar de que formatem se dado a utilização desse princípio pela jurisprudência brasileirafrente ao caso concreto. Já o artigo sobre A responsabilidade dos sócios à luz daatual lei de falências, em que os autores demonstram como fica aresponsabilidade dos sócios de uma sociedade empresária quandoocorrer a decretação da falência da mesma. Para isso, serãoapresentados os tipos de sociedades empresárias e o procedimentona atual lei de falências e recuperação de empresas, bem como asituação dos sócios identificados em cada uma, como falidos. Alémdisso, também será analisada a desconsideração da personalidadejurídica quando da falência, em decorrência da confusão e o desvio dopatrimônio por parte dos seus sócios. Desejamos uma boa leitura a todos. Esperamos, enfim, queos artigos aqui apresentados possam contribuir com o crescimentointelectual e profissional de cada profissional do Direito, para que asluzes aqui lançadas alcancem novos horizontes do saber. Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas Prof. Ms. José Lauri Bueno de Jesus Diretores da Revista (RE) Pensando Direito CNEC-IESA(RE) PENSANDO DIREITO 9



D(REI)RPEENSIATNDOO MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE Mediation and reconciliation: reflections on conflicts offamilies in contemporary Aline Damian Marques1 Denise Tatiane Girardon dos Santos2ResumoO presente artigo tem por objetivo promover uma abordagem acerca dos benefícios da mediação e da conciliação nosconflitos familiares, além de apontar as principais causas desses conflitos, pontuando as mudanças que a entidadefamiliar vem sofrendo ao longo dos anos, eis que a família, dentro das mais diversas configurações da convivênciahumana, obteve, sempre, papel de destaque na organização do sistema social. Logo, do histórico da evolução daentidade familiar, serão abordadas as aplicações gerais da mediação e da conciliação como alternativas benéficas naresolução dos conflitos familiares, principalmente, nos casos de separação e de divórcios, nas quais essa resoluçãoalternativa atinge sua maior aplicabilidade e efetividade. Dentro desse panorama geral da sociedade ocidental e dosdiversos conflitos, inerentes ao âmbito familiar, será possível fazer um paralelo da transformação dos laços familiares eda judicialização da sociedade, tomando, como parâmetro, a mediação como viés da resolução de conflitos.Palavras-chave: Conflito. Conciliação. Mediação. Família.AbstractThe present article has the objective to promote an approach about the benefits of mediation and conciliation in familyconflicts, while pointing out the major causes of conflicts, highlighting the changes that the family unit has sufferedover the years, behold the family within the various configurations of human coexistence, got, always prominent rolein the organization of the social system. Therefore, the historical evolution of the family unit, will address the generalapplications of mediation and conciliation as beneficial in resolving family conflicts alternatives, especially in casesof separation and divorce, where this alternative resolution reaches its greatest applicability and effectiveness. Withinthis overall picture of Western society and the various conflicts inherent in the family context, you can draw a paralleltransformation of family ties and the judicialization of society, taking as parameter, mediation and conflict resolution bias.Keywords: Conflict. Conciliation. Mediation. Family.Sumário:1. Considerações iniciais; 2. O conflito: conceituações e aspectos gerais; 3. A conciliação e a mediaçãodentro dos conflitos familiares; 4. Considerações finais; 5. Referências1 Advogada, Especialista em Direito Tributário e Mestranda em Direitos Humanos pela UNIJUÍ, bolsista FAPERGS, pesquisadora na linha “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”. E-mail: [email protected] Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ). Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); vinculação à linha de pesquisa “Direitos Humanos, Relações Internacionais e Equidade”; bolsista Integral do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), especializanda em EducaçãoAmbiental pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).Advogada. E-mail: [email protected](RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 11-52

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos SantosCONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente estudo se dedica a analisar um tema que se encontraem voga, sendo, deveras, importante hodiernamente, qual seja, astransformações sofridas pelas famílias na contemporaneidade, comoa estrutura, a cultura e os hábitos, além de apontar as principais – enovéis - contendas e as formas de resolução dessas, destacando-sea mediação e a conciliação. O regime de hierarquia, que delegava à figura paterna umaposição de soberania e impunha aos filhos e à mãe a obediência,foi, há tempos, substituído pelo regime de igualdade e respeito entretodos, de modo que o pai não mais é o único responsável por provera família, pois tanto a mãe, quanto os filhos conquistaram espaçono que diz respeito às decisões familiares, uma vez que passaram aparticipar, ativamente, da geração de recursos. Assim, a figura materna também conquistou seu espaço na famíliacomo parte provedora desta e passou a ter autonomia em suas decisões.Nesse contexto, os filhos, de um modo em geral, possuem maior autonomiaem relação aos genitores e, como consequência, acabam por manter maiorcontato com muitos agentes externos, sejam eles de influência positiva ounegativa – esses, principalmente, são o alcoolismo, a dependência pordrogas, o materialismo, o consumismo, dentre outros agentes. E, paralelamente, como todas as instituições sociais passarampor radicais transformações na modernidade, não foi diferente como Direito, que é o responsável por ordenar as relações sociais eadministrar seus conflitos. Com a acentuação e a rapidez com queas relações sociais se alteram, o Direito necessitou – e necessita– se transformar e se adequar, moldando-se à sociedade, para tercapacidade de atender às demandas sociais com êxito. Dessa forma, o presente trabalho objetiva promover um debatesobre a noção do conceito de família, na contemporaneidade, partindoda premissa da transformação jurídica ocorrida, em decorrência dastransformações sociais, e como aquela pode se adequar a estas paratratar das novas demandas, oriundas da inédita organização familiarque está se formando e transformando constantemente.12 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE A família contemporânea tem sua base lastreada na liberdade,na igualdade e na afetividade, em cujo tripé de valores os membrosfamiliares mantêm constantes negociações, culminando em umsuprimento de necessidades, mútuo e do todo, uma vez que, na famíliaatual, não há papéis preestabelecidos, sendo o diálogo fundamentalpara a manutenção da harmonia. Nesse viés, nem sempre todosconseguem chegar a um consenso entre seus direitos e seus deveres,e é neste ponto que, muitas vezes, há a necessidade de um interventorimparcial, qual seja, o mediador. Por isso, a conciliação e a medição surgem como mecanismoseficazes na resolução de conflitos, tornando o Poder Judiciário maiságil, mais respeitado e menos oneroso, sobretudo, mais justo eadequado para resolver os novos conflitos familiares, apresentadospelas famílias contemporâneas. Destarte, este estudo faz-se relevantee interessante diante da repercussão jurídica e da implicação socialda temática tratada, podendo contribuir para a efetivação do métodoconciliatório, sobretudo, no contexto familiar.O CONFLITO: CONCEITUAÇÕES E ASPECTOS GERAIS A palavra conflito é originária do latim e possui inúmeras variantes,mas seu significado etimológico traz a ideia de choque, de discórdia, deantagonia, de oposição. Na lição de José Luis Bolzan de Morais e FabianaMarion Spengler (2012, p. 45), um conflito pode ser social, interno,externo, étnico, religioso, político, familiar ou um conflito de valores, ouseja, é “[...] um enfrentamento entre dois seres ou grupos da mesmaespécie que manifestam, uns a respeito dos outros, uma intenção hostil”. Como se trata de romper a resistência da outra parte nessa espéciede confronto de vontades, o conflito também implica a tentativa dedomínio por meio de violência – direta ou indireta –, ou ameaça – físicaou psicológica –, tendo em vista que a essência do poder é o domínio,na maioria das vezes, manifestado pela violência (ARENDT, 2004, p. 23).Assim, o conflito pode ser entendido como uma forma de se avocar, parasi, a razão, sem a necessidade de argumentos lógicos e racionais, excetoquando as partes litigiosas aceitam a mediação de um terceiro.(RE) PENSANDO DIREITO 13

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos Fundamentalmente, os conflitos surgem de divergência de interessesde um ou mais indivíduos na defesa de seus direitos e, a partir dessa cizâniade interesses, abrolha a necessidade de se criar alternativas capazes deretomar a paz social. Na medida em que a sociedade foi evoluindo, os conflitostambém foram se modificando, obrigando, com isso, ao aprimoramentodas alternativas de soluções de conflitos, a fim de garantir, de manter oureestabelecer o direito (NASCIMENTO; EL SAYED, 2002, p. 49). Entretanto, como as sociedades, seus usos, costumes e leistransformam-se, constantemente, o conflito também acompanhouesse fenômeno, inclusive como meio para facultar essas mesmastransformações. Assim, o litígio voltou-se para a resolução de pontosde vista, socialmente divergentes, não sendo possível separá-lo dasrelações sociais, posto que esse tipo de comportamento humanosignifica mudanças e estimula inovações, favorecendo o combateordenado, ou seja, uma “[...] competição regrada pelo direito, fora detoda a violência” (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012, p. 67). Ocorre, entretanto, que, ao tomar o monopólio da violência para si, oEstado se volta, unicamente, para a vítima – e não para o autor do fato –,intencionando a suprir o sentimento de vingança; acontece que essa formade administração da justiça não é satisfativa, pois o conflito, em si, tenta ase iniciar, novamente, ou continuar. Esse comportamento se justifica pelatentativa de, ao sentimento de desforço ser aplacado, de ser afastado,evitando a vingança pessoal, pelo que o Estado, ao tomá-la para si, necessitaadotar os meios para supri-la (TAVARES DOS SANTOS, 1997, p. 161). A pacificação é a função fundamental da jurisdição, assim comode todo o sistema processual, incumbindo ao Estado promover asformas de realização, sobretudo de criar ou de adequar meios efetivospara a realização da Justiça. Nos ensinamentos de Fabiana MarionSpengler, é possível verificar que para tratar os conflitos nascidos da sociedade, o Estado, enquanto detentor do monopólio da força legítima, utiliza-se do Poder Judiciário. O juiz deve, então, decidir os litígios porque o sistema social não suportaria a perpetuação do conflito. A legitimidade estatal de decidir os conflitos nasce, assim, do contrato social no qual os homens outorgaram a um terceiro o direito de fazer a guerra em busca de paz (2012, p. 65).14 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE O complexo modelo social surgido na contemporaneidademanifestou a exigência de existir um terceiro, em tese, neutro edesinteressado, como instrumento pacificador de conflito, condiçãoesta que foi, paulatinamente, assumida pelo Estado, que passou aintervir como figura neutra na solução dos conflitos. Assim, a atuaçãoestatal, na função de árbitro, passou a visar à neutralização do conflitoou sua eliminação (PINHO; DURÇO, 2008, p. 35). Quanto à atividade estatal, cumpre ressaltar que a característicamais importante do ato jurisdicional é o desinteresse do juiz, ou seja,é a sua postura alheia ao litígio enquanto parte interessada, de modoque o Estado, portanto, deve ser imparcial nessa função, preenchendoa lacuna que se instaurou a partir da substituição da resolução dosconflitos na esfera privada. Destarte, no estado agonal ou no SistemaJudiciário, o Estado impera em uma condição hobbesiana, em que ocidadão, ao mesmo tempo em que recebe a tranquilidade de deter avingança e a violência, perde a possibilidade de tratar seus própriosconflitos de forma autônoma e não violenta. A questão problemática dessa condição é que a sociedadepermanece estática, pois todas as questões são delegadas à resoluçãopelo juiz, representando uma transferência de prerrogativas e oengessamento da solução, verificando-se a adoção de uma posturaque desconsidera as novas possibilidades inerentes a um tratamentomais democrático dos conflitos. É possível afirmar, inclusive, que essaestrutura fica mais atenta aos remédios em detrimento das causas dacontenda (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012). Essa atenção,que é cobrada do juiz, o coloca em uma posição superior de merointérprete das normas, indo para além, sendo a pessoa responsávelpor efetivar o direito à igualdade (propiciada pelo direito do acessoà Justiça) a partir do momento que efetiva os direitos humanos efundamentais que estão em voga, atingindo o fim e a responsabilidadesocial dessa prestação (CAPPELETTI, 1989). Ao adotar essa posição, o Poder Judiciário decide sobre relaçõessociais, mas não impede que outras tantas continuem surgindo,pois, afinal, a lei substitui a violência privada, mas condiciona que aspartes, em frente da decisão oriunda da lei, tenham-se por satisfeitas,(RE) PENSANDO DIREITO 15

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santosou que as raízes do conflito tenham sido eliminadas. Bom exemploé o produto, enquanto resultado, das separações e dos divórcios: oprocesso acaba, mas o conflito, muitas vezes, não. Além do estado agonal, há formas não jurisdicionais de tratamentode conflitos, nas quais se atribui legalidade à voz de um conciliador,de um mediador, que auxilia os conflitantes em determinada questão.Esse sistema, com base no direito fraterno, é centrado na criaçãodas regras de compartilhamento e de convivência, significando maisresponsabilidades ao cidadão por suas próprias decisões (BOLZANDE MORAIS; SPENGLER, 2012). A sociedade moderna, vista sob o âmbito dos conflitos familiares,surgiu no final da Idade Média e início do Renascimento, perpassando desociedade tradicional para industrial, momento em que ocorreram rupturasque demarcaram essas mudanças. A partir de então, foram inúmeras astransformações em todo âmbito social, e os indivíduos transformaram,praticamente, toda a sua forma de ação e a óptica sobre a percepção darealidade, alterando, completamente, suas narrativas de vida, de modoque, hodiernamente, vive-se em uma época de constante transformaçãodos âmbitos da vida social e institucional. Zygmunt Bauman analisa a questão da intimidade e dorelacionamento humano dentro da modernidade de forma radicalizada,ponderando que os graus de parentesco se sentem ameaçados diantede uma ordem social que carece de pontes estáveis, pois suas fronteiras se tornaram embaçadas e contestadas, e as redes se dissolveram num terreno sem titulo de posse nem propriedade hereditárias. [...] Às vezes um campo de batalha, outras vezes o objeto de pendengas judiciais não menos amargas. As redes de parentesco não podem estar seguras de suas chances de sobrevivência, muito menos calcular suas expectativas de vida. Sua fragilidade as torna ainda mais preciosas (2007, p. 47). O autor, ao abordar a sociedade contemporânea, conceitua-acomo líquido-moderna, diante das incertezas “[...] em que as condiçõessob as quais agem seus membros, mudam em um tempo mais curto doque o necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formasde agir”. (op. cit., p. 7). Nesse novo modelo de sociedade as relações16 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADEsociais se confundem com as relações de consumo, pois a sociedadese transformou, ao mesmo tempo, em mercadoria e em consumidora,desimportando o meio onde se vive, desde que a constância daatratividade e do desejo se mantenha – como mercadoria –, seja paraconseguir um emprego, seja para um reconhecimento social. As realizações pessoais dos indivíduos são, a todo momento,passíveis de transformação. Os relacionamentos são como umaespécie de relação de consumo, na qual o indivíduo busca o prazerimediato que possa ser descartado quando o relacionamento nãomais for conveniente à nova realidade. Muitas vezes essas questõesse problematizam, chegando ao cunho do Poder Judiciário. Na atualidade, diante do acentuado crescimento de demandasjudiciais, verifica-se o fenômeno denominado por Kazuo Watanabe de [...] cultura da sentença. Os juízes preferem proferir sentença ao invés de tentar conciliar as partes para a obtenção da solução amigável dos conflitos. Sentenciar, em muitos casos, é mais fácil e mais cômodo do que pacificar os litigantes e obter, por via de consequência, a solução dos conflitos (2007, p. 7). Todas essas transformações nas relações humanas e,consequentemente, no âmbito familiar, acabam modificando asrelações sociais, o que afeta, diretamente, o mundo jurídico, pode-semencionar, igualmente, a relação familiar em relação aos gêneros, “[...]a subordinação legal de um sexo a outro” (MILL, 2006, p. 15), comoum fator que gera conflitualidades, mormente pela nova posição socialque a mulher passou a assumir. Em razão disso, o direito de família,constantemente, é alvo de investigações no meio acadêmico, diantedas várias nuanças que apresenta, sendo importante a questão dasituação familiar no Poder Judiciário e as formas de acesso à Justiça. Destarte, o objetivo jurisdicional tem suas normas elaboradas parabuscar a pacificação social, de modo que a conciliação e a mediaçãosão meios de garantir o convívio social mais justo, sendo imprescindível,para tanto, a análise das práticas da Justiça Restaurativa, na qual osmétodos da conciliação e da mediação são relevantes par a se obtera pacificação positiva dos conflitos e a busca por uma cultura de paz.(RE) PENSANDO DIREITO 17

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos SantosA CONCILIAÇÃO E A MEDIAÇÃO DENTRO DOSCONFLITOS FAMILIARES Os litígios familiares são relatados desde o surgimento dasprimeiras concepções dos institutos familiares. De acordo com Rodrigoda Cunha Pereira (2004, pp. 32-36), as mudanças na formação dafamília demonstram que a instituição familiar é o reflexo de cadageração, pelo que existiam e existem conflitos entre casais, disputaspela guarda dos filhos, pelo direito à paternidade, entre outros. O quevem se alterando, juridicamente, são as maneiras de resolver essesembates, buscando uma solução mais justa e apropriada para cadacaso com a efetivação dos direitos fundamentais. Os conflitos de natureza familiar são mais complexos ecomplicados de ser solucionados em comparação com os demais,pois as dificuldades estão, justamente, na supervalorização dessesconflitos, eis que a intensidade das emoções envolvidas, ossentimentos egoístas e de orgulho têm uma dimensão mais alargadado que em outros relacionamentos, exigindo que a pacificação sejamais concreta, mais eficaz (FONKERT, 1998, p. 02). Nesse passo, Myléne Jaccoud (2005) destaca que a JustiçaRestaurativa significa uma forma de aproximar as pessoas, de fazer comque interações sociais ocorram, mas também de resolver pendênciasnegativas advindas dessas relações, corrigindo infrações cometidas,resolvendo conflitos e, novamente, transigindo as pessoas. Issodemonstra que, muito mais que a forma tradicional de aplicação do Direitoe de solução de conflituosidades, a partir do momento em que se dáatenção para as várias conexões sociais que envolvem – e muitas vezesgeraram – a demanda problematizada, a permanência da decisão quepõe termo a uma situação de litígio é mais duradoura, mais proveitosa,eis que exige comprometimento de todos os envolvidos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a conciliação e amediação são instrumentos legais de solução de disputa, na qual umaterceira pessoa orienta os envolvidos a comporem o litígio (BRASIL,2006, p. 3). Nas palavras de Bolzan de Morais e Spengler,18 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE mais do que um meio de acesso a justiça fortalecedor da participação social do cidadão, a mediação e a conciliação são politicas publicas que vem ganhando destaque e fomento do ministério da justica, da secretaria de reforma do judiciário e do Conselho Nacional de Justica, uma vez que resta comprovada impiricamente sua eficiência no tratamento de conflitos (2012, p. 167). O Brasil, constituindo-se em um Estado Democrático de Direito,tem, dentre seus princípios fundamentais, a cidadania e a dignidadeda pessoa humana. A conciliação está prevista no Código de ProcessoCivil, especialmente nos arts. 125, 277, 331, 448 e 449 (BRASIL, 2013);além disso, está elencado, constitucionalmente, que o juiz deve contribuirna construção de uma sociedade justa e igualitária. Dessa forma, aconciliação exerce um papel importante na solução de litígios, sendoprevista e aplicada no sistema processual brasileiro, pois “[...] a efetivaçãoda conciliação como meio de satisfação social com a resolução de litígiosé um ato de cidadania [...]”. Sendo assim, a conciliação apresenta umasignificativa possibilidade na construção de uma sociedade mais humana,mais digna e mais harmoniosa (VAL JÚNIOR, 2006, p. 140). A conciliação, como meio alternativo de solução de conflitos, emborajá amplamente utilizada pelo sistema processual, ainda encontra muitosentraves, uma vez que, via de regra, as partes envolvidas em conflitos decunho familiar tentam evitar as sessões destinadas à conciliação, em queo diálogo é incentivado, o que dificulta ou até mesmo impede a tentativade se chegar a um consenso, a um acordo. Por outro lado, existe, ainda,um culto ao litígio, em que as partes acreditam ser necessária a presençade um terceiro para decidir, prevalecendo sua vontade sobre a vontadedos diretamente envolvidos (LENZI, 2010, p. 80). A questão financeira, igualmente, se torna uma adversidade nosconflitos familiares, eis que, dificilmente, as pessoas aceitam a perda,a abdicação de algo, bem como a questão emocional também geraempecilhos, pois não há como evitar que sentimentos e ressentimentosdas partes envolvidas interfiram na composição. Outro aspectodiz respeito ao empecilho, muitas vezes, imposto pelos própriosadvogados que, por vezes, disseminam o litígio em vez de priorizar acomposição pela via menos gravosa, qual seja, a conciliação.(RE) PENSANDO DIREITO 19

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos O papel da mediação não diverge, eis que também se configuracomo um meio de pacificação de natureza autocompositiva e voluntária,no qual um terceiro, imparcial, atua, de forma ativa ou passiva, comofacilitador do processo de retomada do diálogo entre as partes(AZEVEDO, 2004, p. 15). Especificamente, em relação à mediação– que é um dos institutos em voga da Justiça Restaurativa – é ummeio consensual em que as partes, acompanhadas por uma terceirapessoa, imparcial e habilitada para viabilizar/facilitar a conversação,chamada de mediador, debatem, pacificamente, na busca comumpela solução da questão que os aflige, sendo responsáveis quanto àdecisão a ser tomada (NORTHFLEET, 1994). Em apoio ao aprimoramento da prestação jurisdicional, foiassinado o Pacto Republicano do Estado Brasileiro que visa a um sistemajudicial mais acessível, ágil e efetivo e, para conseguir atingir os objetivos,um de seus compromissos é “[...] fortalecer a mediação e a conciliação,estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos,voltados à maior pacificação social e menor judicialização” (STF, 2013). As constantes transformações sociais refletem no sistemajudiciário que busca, incessantemente, suportes para realização dajurisdição por meio de alternativas, como a arbitragem, a mediação, aconciliação e a negociação, todas no intuito de favorecer a celeridade,a informalização e a pragmaticidade, de modo a se adequar aosmoldes sociais contemporâneos. Atualmente, o sistema judiciário enfrenta uma crise, diante dacrescente judicialização dos conflitos, não conseguindo atender,satisfatoriamente, às demandas sociais, e essa impossibilidade dotratamento adequado às questões acabam por ocasionar uma perdade poder do Estado e consequente desprestígio e deslegitimação dopróprio Poder Judiciário como Poder Público Estatal (PINHO, 2010, p.63). A última ratio – o Poder Judiciário -, até meados do século passado,manteve-se como, realmente, o espaço para a solução de conflitosavultados, tendo uma capacidade de resposta satisfatória; entretanto,nas últimas décadas, instaurou-se um número de litigiosidades nunca20 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADEvisto, com um crescimento geométrico de demandas judiciais, muitassingelas, mas que atarefam a máquina judicial de tal forma que JoséRenato Nalini (2008, p. 107) chegou a classificar como “demandismo”. Sendo assim, é necessária a superação dessa visão de queum sistema somente é eficiente quando, para cada conflito, háuma intervenção jurisdicional, resgatando-se a ideia de que aconversação e o tratamento dos conflitos, de forma alternativa, devemser incentivados com instituições e procedimentos que previnam eresolvam controvérsias a partir das necessidades dos interesses daspartes (BOLZAN DE MORAIS; SPENGLER, 2012). A mediação, a arbitragem, a negociação e a conciliação objetivamnão a exclusão ou a superação do sistema tradicional, mas, sim, a suacomplementação para melhor efetivação de resultados, uma vez que, aolado do tradicional processo judicial, se apresentam como uma opçãoque visa descongestionar os tribunais e reduzir o custo e a demora dosprocedimentos, bem como estimular a participação da comunidade naresolução dos conflitos e facilitar o acesso ao seu tratamento. São inúmeras as vantagens dos mecanismos alternativos comoauxiliadores do sistema jurisdicional, dentre elas, destacam-se aforma preventiva (pois formam um resultado antes que o processoinicie ou avance), são confidenciais (os procedimentos são secretos),são informais (há escassez de procedimentos), são flexíveis(as opções não se encontram predispostas às leis, podendo seradequadas), representam economia (custos reduzidos), justeza dasdecisões (porque o tratamento do problema é adaptado ao que aspartes desejam), são promissores (tendo em vista as experiênciassatisfatórias nos países que já os implementaram). Nesse sentido, a mediação e a conciliação são caminhosalternativos que visam à solucão de conflitos no futuro do Judiciário,buscando construir outra mentalidade nos juristas brasileiros, cujoobjetivo principal seja a pacificação social e o abandono do litígio. Sobre o tema, assim lecionam Lilia Maia de Moraes Sales eMônica Carvalho Vasconcelos:(RE) PENSANDO DIREITO 21

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos Santos É nas questões de família que a mediação encontra sua mais adequada aplicação. Há muito, as tensas relações familiares careciam de recursos adequados, para situações de conflitos, distintos da negociação direta, da terapia e da resolução judicial. A mediação vem-se destacando como uma eficiente técnica que valoriza a coparticipação e a co-autoria (2005, p.166). Conforme, oportunamente, frisado, os conflitos familiaresapresentam grande complexidade em razão dos sentimentos daspartes envolvidas. Nesse contexto, a mediação se destacou dentreos tradicionais mecanismos de solução de conflito, dada sua naturezahumanitária, cujo objetivo é evitar maiores desgastes emocionais,causados por processos que, muitas vezes, custam lapso de tempoconsiderável de angústia aos litigantes e que, provavelmente, nãoresultarão em decisão satisfatória para ambos. A mediação atua nas crises familiares por intermédio daconscientização dos envolvidos de modo a mostrar-lhes que há meiosde resolver seus conflitos sem provocar mais desgastes emocionais asi mesmos e aos demais membros da família atingidos pelo conflito.Assim, os litigantes passam a perceber a importância do diálogo, que,por vezes, é esquecida diante do conflito. Doglas Cesar Lucas e Fabiana Marion Spengler lembram que na mediação se resolve ou se transforma o conflito recorrendo a sua reconstrução simbólica. Quando se decide judicialmente se consideram normativamente os efeitos; desse modo, o conflito pode ficar hibernando, tornando-se mais grave em qualquer momento futuro. Solucionar um conflito equivale dizer a que as partes implicadas criaram a solução e ninguém lhes impôs. Em um procedimento litigioso o juiz decide, um vez que as partes apresentaram as provas e os argumentos de suas pretensões. Tudo dentro de um ritual inflexível, no qual se esquecer algum dado é quase impossível corrigir esse esquecimento. Nas mediações os “os esquecimentos” não resultam tão fatais quanto na cultura tradicional do litígio. Isso é devido a que as partes tem a possibilidade de resolver o conflito, podendo empregar todos os mecanismos que considerem necessários para poder elaborar, transformar ou resolver suas desavenças com o outro (2011, p. 239).22 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADE Corroborando com esse entendimento, Sales e Vasconcelos(2005, p. 168) afirmam que “[...] a mediação busca a valorização doser humano e a igualdade entre as partes”. Portanto, nos conflitosfamiliares, que, muitas vezes, são marcados pela desigualdade entrehomens e mulheres, a mediação promove o equilíbrio entre os gênerosna medida em que ambos possuem as mesmas oportunidades dentrodo procedimento. A mediação atinge grande importância nos conflitos familiaresem que permeiam sentimentos de raiva, de rancor, de vingança, dedepressão, de hostilidade, que podem transformar-se em disputasintermináveis e perdurar por gerações, atingindo vários membrosda família. A par disso, os autores (op. cit., p. 165) complementamque “os conflitos familiares, antes de serem conflitos de direito, sãoessencialmente afetivos, psicológicos, relacionais, antecedidos desofrimento”. Em consonância com o Movimento pela Conciliação, propostopelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), alguns Estados já vêmutilizando sessões de conciliação, nas quais se busca, por meio deum esforço concentrado, solucionar, com mais rapidez, as questõespassíveis de acordo e que já estejam sub judice, e, por conseguinte,diminuir o estoque de processos pendentes nas varas, otimizando asatividades jurisdicionais. Em regra, uma equipe jurídica compostapela juíza coordenadora, por uma promotora, analistas, conciliadorese estagiários, bem como por uma equipe interprofissional que prestaapoio psicológico e social às partes, trabalham de forma a objetivar asolução do litígio, quando as partes assim consentirem. Dessa forma, várias vantagens são evidenciadas com a utilizaçãoda mediação e da conciliação na solução de conflitos familiares,sendo que as partes restam satisfeitas ao chegarem a um acordo,em que elas mesmas constroem uma solução para resolver o conflito,na qual não há uma sentença imposta pelo juiz. Além disso, essesinstrumentos alternativos também são meios mais céleres de seresolver um conflito, constituindo um atalho para uma decisão maisrápida e causando menos desgaste aos envolvidos.(RE) PENSANDO DIREITO 23

Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos SantosCONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo buscou demonstrar a importância da conciliaçãoe da mediação como mecanismos coadjuvantes na solução deconflitos, sobretudo em questões envolvendo o Direito de Família.As intensas transformações sociais que ocorreram, em especialnas últimas décadas, tiveram grande impacto na transformação daentidade familiar e, em consequência disso, essas transformações,e dos conflitos delas decorrentes, surgiu a necessidade de buscar atutela mais adequada e humanitária para resolver essas espécies deconflito. Nessa senda, a conciliação e a mediação são mecanismos quetêm se destacado, pois, além de céleres, se mostram adequadospara resolver diversos tipos de conflitos, muitos já em litígio judicial.Em relação ao âmbito familiar, a conciliação e a mediação surgemcomo meios mais humanitários e, por isso, também mais adequadosa solucionar questões tão complexas, em que estão envolvidossentimentos como orgulho e rancor. As pesquisas que analisaram vários aspectos referentes à aplicaçãodesses mecanismos como forma alternativa de solucionar os conflitosda família moderna comprovaram inúmeros benefícios em relação aosmétodos da justiça tradicional. Dentre eles, seguem as principais vantagensenumeradas: valorização do cidadão no seu poder de resolução, eis queas próprias partes, por meio do diálogo, chegam a compor o conflito; asatisfação das partes; o maior cumprimento dos acordos realizados. Alémdisso, imprescindível mencionar que esses meios são mais céleres doque os demais mecanismos judiciais e com menor custo. Por outro lado, restaram evidenciadas as inúmeras dificuldades deimplementação desses mecanismos no sistema processual, mormentepela crença que se criou de que somente as decisões impostas porum terceiro, são legítimas. Em questões de âmbito familiar, as partesenvolvidas, por vezes, evitam o diálogo, o que impede a simplestentativa de se chegar a um acordo. Observou-se, ainda, que a falta de estrutura e de espaçofísico adequados também dificultam o conciliador e o mediador24 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

MEDIAÇÃO E CONCILIAÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DOS CONFLITOS FAMILIARES NA CONTEMPORANEIDADEde desempenharem suas funções, eis que, muitas vezes, sãonecessários trabalhos, juntamente com uma equipe multidisciplinar,para possibilitar a composição dos conflitos de maior complexidade. Dessa forma, em que pese existirem vários obstáculos a seremsuperados, a conciliação e a mediação são de extrema importânciapara a resolução de conflitos familiares. Os dados, obtidos por meiodas pesquisas mencionadas, têm se mostrado muito satisfatórios,na medida em que as composições, obtidas por esses mecanismos,perfazem uma quantidade substanciosa de conflitos resolvidos, o que,evidentemente, vem contribuindo para a realização do Direito por meioda efetivação da justiça. Ressalta-se, ainda, que um consenso, fruto da composiçãoamigável, viabiliza um índice maior de ser cumprido pelas partes doque uma decisão judicial imposta. Isto porque, no acordo construídopelas partes, cada um tem consciência e aceita sua parcela deresponsabilidade legitimamente. Não há perdedor e vencedor, pois alitigiosidade foi desfeita por meio do diálogo e cooperação, da açãocomunicativa, restaurada pela mediação. Por fim, diante deste estudo, foi possível observar como seestabelecem, hoje, as relações sociais e jurídicas na família e comoo Direito tem se posicionado em relação a essa problemática, e qualseria a abordagem mais adequada para solução dos conflitos defamiliares.REFERÊNCIASARENDT, Hannah. Da violência. Disponível em: http://www.libertarianismo.org/ livros/harendtdv.pdf. Acesso em: 27 set. 2013.AZEVEDO, André Gomma de. Perspectivas deontológicas do exercícioprofissional da magistratura: apontamentos sobre a administraçãode processos autocompositivos. Revista CEJ, 2004. pp. 13-22.Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/ revcej/article/viewArticle/592. Acesso em 26 set. 2013.BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.(RE) PENSANDO DIREITO 25

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Aline Damian Marques - Denise Tatiane Girardon dos SantosVAL JÚNIOR, Lídio. A conciliação como forma de pacificação emudança social. Marília: UNIMAR, 2006. Dissertação (Mestrado emDireito), Faculdade de Direito, Universidade de Marília, 2006.WATANABE, Kazuo. A mentalidade e os meios de solução de conflitosno Brasil. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo;LAGRASTA NETO, Caetano (Coord.). Mediação e gerenciamentodo processo. São Paulo: Atlas, 2007.Recebido: 20-4-2014Aprovado: 20-8-201428 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

D(REI)RPEENSIATNDOO A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN3 The civil desobedience in Ronald’s Dworkin legal theory Doglas Cesar Lucas4 Nadabe Manoel Machado5ResumoO presente texto tem a pretensão de apresentar de forma bastante rápida a compreensão da desobediênciacivil no pensamento jurídico de Ronald Dworkin. Segundo o jusfilósofo norte-americano, a desobediênciacivil poderá ser invocada por aquele cidadão que considerar determinada lei de constitucionalidadeduvidosa e decorre do direito (de baixa intensidade) de liberdade que todos os cidadãos possuem deinterpretar moralmente o sistema jurídico, principalmente nos casos de possíveis exageros e equívocos daautoridade judicial. Nesses casos, os desobedientes civis fomentariam o debate em torno da validade dalei, questionando argumentos e interpretações oficiais e com isso proveriam a reafirmação ou correção dosinstrumentos legitimadores do sistema jurídico.Palavras-chave: Desobediência civil. Ronald Dworkin. Legitimidade.AbstractThe present text purports to present in a very quick way the comprehension of the civil desobedience throughthe juridic thoughts of Ronald Dworkin. According to the north american jus-philosopher, the civil desobediencecan be invoqued by the citizen that considers a certain law of doubtful constitutionality and follows the right (ofvery low intensity) of liberty that every citizen has to moralize the legal system, mainly on cases of possibleexaggeration and mistakes of the judicial authority. In these cases, the civil desobedients would promote thedebate about the validity of the law, questioning arguments and official interpretations and with that promoting thereassurance or corrections of the legitimating instruments of the legal system.Keywords: Civil desobedience. Ronald Dworkin. Legitimacy.Sumário:Considerações iniciais; 1. Aspectos históricos e conceituais da desobediência civil; 2. Elementosespecíficos da desobediência civil; 3. A desobediência civil no pensamento de Dworkin como teste deconstitucionalidade e de validade das normas jurídicas; 4. Resposta à desobediência civil: o que o Estadodeve fazer com os desobedientes?; 5. Considerações finais; 6. Referências.3 Artigo produzido no âmbito do projeto de pesquisa Desobediência civil: entre legalidade e legitimidade, vinculado à linha de pesquisa Fundamentos e concretização dos direitos humanos, do mestrado em direitos humanos da Unijuí.4 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi Roma Tre, Itália. Doutor em Direito pela UNISINOS e Mestre em Direito pela UFSC. Professor nos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da UNIJUÍ. Professor no Curso de Graduação em Direito do Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA. Professor visitante do Mestrado em Direito da URI-Santo Ângelo. Líder do grupo de pesquisa no CNPQ Fundamentos e concretização dos direitos humanos. Avaliador do MEC/INEP. E-mail: [email protected] Acadêmica do 8o semestre do Curso de Graduação em Direito da Unijuí. Bolsista de Iniciação científica do CNPQ.(RE) PENSANDO DIREITO • CNECEdigraf • Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014 • p. 29-52

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel MachadoCONSIDERAÇÕES INICIAIS Os protestos e manifestações públicas marcaram o Brasil em 2013.O povo saiu às ruas para demonstrar sua insatisfação contra todo tipode injustiças e problemas sociais de nosso país. É como se os gritosdas ruas afrontassem os silêncios que caracterizam o Brasil desde a suaformação; um país forjado pela segregação, coronelismo e por ditadurastem certa dificuldade de se acostumar com as modalidades ativas decidadania popular e não raramente as vê com certa desconfiança, medoe até mesmo como ações contra a lei e a ordem estatais. A Repúblicaformal teve que abrir os olhos para um país real e admitir a crise derepresentatividade de suas instituições políticas. Mesmo que a força dos protestos já tenha arrefecido e poucastransformações reais promovidas, as movimentações recolocaramem debate, sobretudo para os jovens, o tema da democracia e suasformas substanciais de vivência. A democracia promovida pelas ruas,pela ação ativa da população brasileira reclama respostas e novasagendas públicas através de protestos, ocupações de prédios públicose de passeatas, estratégias que geram muita repercussão social eque desafiam a ideia de “ordem” ao menos em termos jurídicostradicionais. Qual a leitura jurídico-política que podemos fazer dessese outros tipos de protestos? Desafiam ou promovem a democracia?São autorizados ou proibidos pelo direito? O debate sobre a legalidade e a legitimidade política dos atosde resistência democrática ou de desobediência às leis injustas seconfunde com a história das obrigações políticas e das teorias da justiçae de validade do direito. Na desobediência de Antígona a Creonte,no tiranicídio medieval, no direito de resistência defendida pelosautores contratualistas, na recusa de se obedecer à lei que mandavaentregar escravos fugidios, na campanha de desobediência às leisJim Crow liderada por Luther King, no movimento de não cooperaçãoao império Britânico firmado por Gandhi na Índia, nos protestoscontra a participação americana na guerra do Vietnã e contra aenergia nuclear na Europa, nos movimentos que eclodem diariamentenas sociedades democráticas, etc., em todos esses exemplos nosdeparamos com três questões centrais para a teoria do direito e para30 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINa teoria política: a possibilidade ou não de se desobedecer uma leiou medida governamental que seja considerada injusta ou ilegítima/inconstitucional pela maioria da população; quais as consequênciasjurídicas que devem ser aplicadas aos desobedientes e a importânciaou não de atos de desobediência civil para a consolidação de ummodelo democrático de direito. Com a consolidação das propostas jurídicas democráticas seestreitaram as relações entre o direito e a democracia, e as pautasmorais publicamente construídas pela comunidade passaram a fazerparte dos conteúdos relevantes tanto do direito quando das açõespolíticas e servir como parâmetro de validade e de legitimidade deambos os sistemas de regulação da vida social. Tendo presente este cenários de (des)obediências ao direito numasociedade democrática, este texto tem a pretensão de apresentar deforma bastante rápida o histórico, os fundamentos e o conceito dedesobediência civil, demonstrando sua importância para a definiçãode uma cultura jurídica viva, democrática e dinâmica, que apostana participação ativa dos cidadãos para denunciar e modificar odireito pela geração de situações de debate e diálogo público emtorno de normas (interpretações) consideradas injustas/ilegítimas/inconstitucionais. A parte histórica e conceitual foi construída a partir de uma leiturageral e resume-se a fazer uma descrição da categoria estudada. Nosmomentos seguintes optou-se por apresentar a teoria de desobediênciacivil de Ronald Dworkin, seja pela importância do autor no contexto dateoria jurídica contemporânea, pela utilização histórica dessa práticanos EUA e, sobretudo, por sua proposta teórica situar a desobediênciacivil como uma posição de liberdade que não pode ser negada emvirtude dos conteúdos morais que condicionam a validade do própriodireito e da democracia.ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DADESOBEDIÊNCIA CIVIL A desobediência civil tem sido definida como a desobediência àlei ou medida governamental que não atenda aos princípios de justiça(RE) PENSANDO DIREITO 31

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadoou de moralidade estabelecidos publicamente pela comunidade. Éuma ação pública, realizada de modo não violento por um númeroexpressivo de cidadãos que visam denunciar a injustiça ou até mesmoa falta de legitimidade constitucional de determinada norma ou medidagovernamental, com o intuito de modificá-la (LUCAS, 2003). Consiste numa reformulação do direito de resistência desenvolvida,no final do século XIX e início do século XX, pelo escritor norte-americano Henry Thoreau (1817 – 1862). Foi ele quem elaborou aexpressão desobediência civil, utilizada pela primeira vez como títulode um escrito produzido pelo autor na oportunidade em que estevepreso por não pagar impostos que financiavam, no seu entendimento,uma guerra injusta que os Estados Unidos mantinham contra o México.Defendia que a desobediência era a única alternativa a ser adotadadiante de leis e práticas governamentais injustas ou contrárias aosprincípios morais do indivíduo. Entendia que o caráter opressivoda lei não é atenuado pelos processos legislativos orientados pelaregra da maioria, pois o motivo por que se permite à maioria governarencontra-se somente em sua maior força física e não em sua melhorcompreensão ou incondicional virtude moral. Nessa senda, o respeito à lei deve firmar-se na consciência doindivíduo. A única obrigação que o cidadão assume é fazer aquilo queconsidere direito, de modo que a transgressão à norma se configuracomo um dever ético do cidadão. É favorável ao dever de desobedecermesmo que disso resulte o aprisionamento, que deveria ser encaradocomo mérito pessoal, como um evento importante para mobilizar aopinião pública a adotar a mesma atitude e pressionar o governo amudar sua postura (COSTA, 1990). As construções teóricas de Thoreau, associadas a Tolstói e Ruski,acabaram influenciando aquele que seria o principal responsável pelaindependência da Índia e um fervoroso defensor da desobediênciacivil, Mohandas Karamachad Gandhi (1869 –1948). Sua proposta,diferentemente de Thoreau, previa a desobediência civil como umaação coletiva que ganha relevo e tende ao sucesso se realizada por umnúmero expressivo de pessoas. A necessária utilização dos protestos32 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINnão violentos é a marca principal da proposta de desobediência civilelaborada por Gandhi. O pastor norte-americano Martin Luther Kingfoi outro desobediente clássico que se valeu das técnicas de nãoviolência, especialmente em favor dos direitos da população negra dosEstados Unidos nas décadas de 50 e 60 do século passado, épocade intensa segregação racial em escolas, hospitais e restaurantes.Sustentava que essa situação exigia a organização da sociedade civil,pois considerava que o Poder Judiciário não poderia promover, deforma exclusiva, as mudanças necessárias. Apesar de a desobediência civil ser anunciada como umareformulação do direito de resistência, com ele não se confunde.Enquanto a desobediência civil objetiva verificar a obrigatoriedadee a legitimidade de determinadas normas jurídicas e de medidasgovernamentais, a resistência, numa direção mais ampla, visafazer frente à totalidade do ordenamento jurídico, objetivando ainstauração de uma nova ordem político-jurídica. O desenvolvimentoe as manifestações do direito de resistência remontam à IdadeAntiga, servindo como melhor referência desse período a peça gregaAntígona, de Sófocles. Este clássico texto revela a revolta de Antígonacontra o decreto do rei Creonte proibindo o sepultamento de seu irmãoPolinice. Sustentando a existência de um direito natural não-escrito,superior às ordens do Soberano, Polinice justifica a não-obediência aorei quando este agir em desacordo com a lei maior. Contudo, diante datradição do poder tirano, sem limites, pouco desenvolvimento teve nomundo antigo o direito de resistência. Do mesmo modo, os primeiros séculos do cristianismo poucoacrescentaram para o reconhecimento deste direito, devido à culturaamplamente enraizada de obediência e de tolerância ao tirano. Exemploda tradição do poder com origem divina, e portanto inquestionável,pode ser encontrado na Epístola aos Romanos, do apóstolo SãoPaulo. Alguns autores identificam que as raízes históricas do direito deresistência apareceram apenas na Idade Média. Inobstante a doutrinado direito de resistência ter recebido a colaboração de muitos autorese alimentado diferentes manifestações ao longo da História, somente(RE) PENSANDO DIREITO 33

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadose solidificou teoricamente com o aparecimento do contratualismo.Sob esse viés, o direito de resistência se consubstância como umdireito de reagir frente ao abuso dos governantes que extrapolem asprerrogativas concedidas no contrato (GARCIA, 1994). Locke (1994), expoente dessa concepção, destacava que a faltade liberdade, a conquista, a usurpação, a tirania ou a dissolução dogoverno resultariam numa crise da sociedade que tornaria possívelum retorno ao estado de guerra, considerado um ambiente de deverapenas para com a consciência, sem outra responsabilidade quenão consigo mesmo, sendo legítimo o direito de resistir, uma vez quese configura no único mecanismo capaz de regenerar a sociedadecivil e o Estado. Enfim, o direito de resistência está voltado para areorganização do poder político como um todo, mesmo que para issoseja necessária a derrubada de um modelo de governo e a afirmaçãode outro.ELEMENTOS ESPECÍFICOS DA DESOBEDIÊNCIACIVIL A desobediência civil possui algumas características que lhesão próprias e que a diferenciam de outras formas de resistência.Na sequência apontamos, de modo bastante rápido, os elementosdefinidores da desobediência civil segundo a maioria dos autoresdedicados ao tema. Quanto ao número de participantes necessários para secaracterizar a desobediência civil, a maioria dos autores identifica adesobediência civil como sendo um ato necessariamente coletivo, comouma ação de grupo. Essa orientação é defendida por Hannah Arendt(1973), Norberto Bobbio (1992) e Michael Walzer (1977), por exemplo.Atualmente as manifestações mais significativas da desobediênciacivil são encontradas na atuação dos novos movimentos sociais e nosatos espontâneos de protestos públicos da sociedade civil, como osque vêm ocorrendo no Brasil mais intensivamente desde 2013. Caracteriza-se também por ser um ato público e aberto, peloqual os desobedientes expõem à comunidade todas as razões,34 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINfundamentos e intenções de sua desobediência, visando, com isso,angariar a simpatia e a confiança da população. A publicidade distinguea desobediência civil da desobediência criminosa, que é consideradaum ato de violação clandestina. É uma ação de natureza política por se tratar de um ato que seorienta e se justifica por princípios políticos, ou seja, está amparado,segundo John Rawls (1994), nos princípios de justiça que fundamentama Constituição e as instituições da sociedade. Face às insuficiênciasda democracia representativa, Arendt reconhece a desobediência civilcomo reafirmação da obrigação político-jurídica capaz de regenerar afaculdade de agir, de participar do processo de tomada de decisõespolíticas e, dessa maneira, impedir a degeneração da lei e a corrosãodo poder político. A desobediência civil é apresentada como um recurso não-violento.Objetiva modificar as práticas e leis injustas sem colocar à prova alegitimidade da ordem jurídica em sua totalidade. Os meios violentos,para Arendt, são considerados inadequados porque levam à destruiçãodo poder e da autoridade. Para Gandhi, o principal defensor das práticasnão-violentas - somente a não-violência, ahimsa, poderia ser umapolítica profícua na conquista das mudanças necessárias em um mundomoldado sob a cultura da pouca tolerância e do arbítrio. Ressalta-se queum dos objetivos da resistência não-violenta é fazer com que o opressorreconheça a dignidade do oprimido, minando as diferenças que impedemo reconhecimento mútuo. No entendimento de Martin Luther King, aeficácia do ato não-violento está diretamente ligada ao efeito produzidonos participantes e nos espectadores do conflito, do que dependerá asimpatia da opinião pública e a aproximação entre os lados opostos(LUCAS, 2003). A desobediência civil é considerada um recurso que somente podeser utilizado depois de esgotadas todas as alternativas institucionaisde solução de conflitos, isto é, deve limitar-se aos casos extremos.No entanto, Rawls defende a utilização da desobediência civilcomo instrumento primeiro quando se tratar de situações urgentesou quando for notória e reiterada a improficuidade das respostas(RE) PENSANDO DIREITO 35

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadoinstitucionais. Dworkin também aduz essa possibilidade quando asituação de obediência provoca uma ofensa irreparável a consciênciado desobediente que não poderá ser remediada caso ele obedeça adeterminada regra que considere injusta. Um estudante que é obrigadopor lei beijar a bandeira americana todos os dias, comenta Dworkin,terá sua consciência e seu senso de justiça atacado se obedecer aregra, sendo irrelevante para a ofensa já perpetrada que ele recorraposteriormente a outros mecanismos institucionais visando discutir avalidade da norma. Para a grande maioria dos autores, a desobediência civil é umaprática ilegal, apesar de enfatizarem que não se trata de uma práticailícita qualquer, mas de uma ilegalidade amparada em justificativaslegítimas. Sustentam que o ordenamento jurídico não pode considerarlícito um comportamento que ameaça a obrigatoriedade de obediênciaao direito. Este recorte mais positivista posiciona a desobediênciacivil no debate do idealismo doutrinário, sem reconhecer nenhumaconsequência ou elemento que permita considerá-la de modo distintodas ilegalidades tradicionais. A qualidade principal da desobediência civil estaria contidajustamente na sua ilegalidade legitimada. Rawls (2000) aduz que acontrariedade da desobediência civil à lei se desenvolve dentro doslimites do ordenamento jurídico, pois, apesar da violação legal, anatureza pública e não violenta do ato demonstra a aceitação dasconsequências jurídicas pelos desobedientes, o seu reconhecimentoe sua fidelidade à autoridade da lei. Bobbio (1992) e Arendt (1973)também aceitam a dimensão de ilegalidade legitimada dos atosdesobedientes. Inobstante o predomínio da concepção maistradicional, existem teses que consideram a desobediência civil umdireito fundamental de proteção da liberdade, da cidadania e daConstituição, sugerindo, inclusive, sua inclusão no ordenamentojurídico. Nesse quadro teórico, a desobediência civil é caracterizadacomo o exercício de um direito ou como teste de constitucionalidade.Outra possibilidade assumida pela desobediência civil no âmbito36 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINconstitucional diz respeito a sua identificação com o exercício de umdireito fundamental. Caracteriza-se, nesse viés, como defensora dasliberdades necessárias à existência de uma opinião pública crítica. Quanto à sujeição dos desobedientes às prescrições punitivas,predomina o entendimento de que, pelo fato de reconhecerem alegitimidade do sistema político e de dirigirem a desobediência apenascontra determinadas leis, os desobedientes aceitam a punição pelosseus atos como uma forma de chamar a atenção da sociedade e criaras condições necessárias para a instauração do debate público. Apunição é anuída como elemento estratégico, persuasivo, capaz demobilizar a opinião pública a adotar a mesma postura participativa ecrítica assumida pelos desobedientes. Thoreau considerava o aprisionamento decorrente dedesobediência civil um mérito pessoal, pois ao agirem injustamenteos governos fazem da prisão o único lugar digno para um homemjusto. Quanto à postura que deve assumir o Estado-juiz diante dadesobediência civil, Dworkin (2002 ; 2005), Rawls (2000) e Habermas(1994) defendem uma punição privilegiada aos desobedientes,diferente daquela dispensada aos ilícitos tradicionais, sem justificaçãopolítica. A esse respeito Dworkin refere que devem ser evitados doiserros grosseiros: o de que o Estado deve punir sempre e, ao contrário,o de que deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil.Sugere que sejam consideradas as justificativas da desobediência eaplicadas aos desobedientes penas mais brandas, se com isso nãose causar prejuízos a outros compromissos. Assim, dedicamos umitem específico para tratar dos argumentos de Dworkin a respeito dotema. Para Habermas a desobediência civil enquanto mecanismoindispensável à legitimidade do Estado Democrático não pode sertipificada e tratada como qualquer ato ilegal. Os juízes devem respeitara virtude e a dignidade da aspiração dos desobedientes, evitandopersegui-los como se fossem criminosos comuns, para, desse modo,não incorrerem num legalismo autoritário.(RE) PENSANDO DIREITO 37

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel MachadoA DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO PENSAMENTODE DWORKIN COMO TESTE DECONSTITUCIONALIDADE E DE VALIDADE DASNORMAS JURÍDICAS Na obra de Dworkin, a relação entre a moral e o direito ébastante estreita e de certo modo interdependente. A discussãoe a decisão sobre a validade de uma norma jurídica estão sujeitasa deliberações sobre problemas e temas morais. Para o autor, afusão entre problemas morais e jurídicos são constitutivos da própriamaterialidade da Constituição norte-americana. É neste contexto demoralidade do direito que o autor norte-americano situa sua teorizaçãosobre a desobediência civil, que ele considera uma decorrência dapossibilidade real de pessoas livres, dadas as suas convicções,duvidarem e discordarem de interpretações a respeito de questõesmorais que constituem o direito ou uma decisão política (DWORKIN,2000; 2002). Importa para o objeto da desobediência civil saber qual amedida a ser adotada quando, dadas as convicções pessoais, umalei é considerada inconstitucional, portanto não válida, e qual ocomportamento a ser adotado pelo Estado nessas circunstâncias.Para o jusfilósofo norte-americano, o cidadão tem obrigação moralde obedecer às obrigações políticas porque elas são resultados davida em comunidade, sobretudo nos Estados democráticos de direitoque reconhecem e protegem os direitos individuais básicos comoa dignidade e a igualdade. No entanto, quando se depararem comuma lei de constitucionalidade e, portanto, de validade duvidosa, seucomportamento não será injusto se seguirem seu próprio entendimentosobre esta lei, desde que razoável. O autor refere que a moralidade social presente nas Constituiçõesdemocráticas interfere na validade das normas jurídicas, de modoque qualquer lei que pareça colocar em perigo dita moralidade suscitaproblemas constitucionais, e se ela for grave, as dúvidas constitucionaistambém o serão (DWORKIN, 2000; 2002). A interpretação constitucional38 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINé um processo que ultrapassa os limites do Judiciário e reconhece aimportância da participação pública na construção dos significados.Neste contexto, a desobediência civil deflagra o debate sobre aconstitucionalidade das leis, apresentando-se como um especialinstrumento para se testar e preservar os níveis de constitucionalidadedas mesmas. O direito seria mais pobre e com menos possibilidade dequestionar seus próprios postulados e fundamentos se todos oscidadãos tivessem que, a priori, obedecer incondicionalmente às leisque consideram de validade duvidosa. Poder questionar, duvidar einterrogar sobre a validade de uma lei com base em argumentos moraise constitucionais parece ser uma atitude alinhada com os ideários dedemocracia que constituem os modelos jurídicos contemporâneos econtribui na elaboração da melhor decisão judicial possível. A lealdade do cidadão é para com a lei e não para com umdeterminado ponto de vista particular sobre a natureza do direito.Diante de normas jurídicas de interpretação duvidosa, o cidadãopoderá se posicionar de forma livre, desde que sensata. Ao se colocarcomo intérprete da norma o indivíduo está agindo de forma coerentecom a própria possibilidade que a dúvida interpretativa lhe garante.Não se trata de estar certo ou errado, mas de poder interpretar a normade modo diverso em um ambiente de incertezas. Nesse sentido adesobediência é vista pelo autor americano como uma decorrência doexercício dos seus direitos fundamentais. O fato de não ser positivadanão lhe retira a juridicidade. Pode ser um direto fraco se comparadoa clássicos direitos individuais, mas mesmo assim se considera umdireito aos olhos do desobediente (OBREGÓN; CANIZALES, 2013). A desobediência civil, explica Dworkin (2000), é uma característicada experiência política, não porque umas pessoas sejam virtuosas eoutras más, ou porque umas detém a sabedoria e outras a ignorância.Mas sim, porque os indivíduos discordam entre si e ao divergiremreconstroem objetos e entendimentos. Nesse norte, Dworkin acreditaque a resposta à pergunta “o que é certo as pessoas fazerem quandoacreditam que as leis estão erradas?” dependerá das circunstâncias(RE) PENSANDO DIREITO 39

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadoque motivam e fundamentam o ato de desobediência. Considerandoque nem todos os atos de desobediência civil apresentam os mesmosmotivos e circunstâncias, Dworkin propõe três tipos de desobediência. Um primeiro tipo ele denomina de desobediência baseada naintegridade. Nesse caso o atendimento aos ditames da consciênciaimpede de obedecer. Considera a desobediência civil baseadana integridade uma questão de urgência que não pode esperar asmanifestações institucionais sob pena de esta obediência significaruma perda definitiva. É uma forma de defesa pessoal que “tem comoobjetivo apenas que o agente não faça algo que sua consciênciaproíbe.” O autor aduz que quase todos concordariam que é corretoviolar a lei quando as pessoas são obrigadas a fazerem aquilo quesua consciência reprova de forma absoluta. (DWORKIN, 2000, p. 160-161). Exemplifica o autor: “O nortista a quem se pede que entregueum escravo ao proprietário, ou mesmo o escolar a quem se pede quesaúde a bandeira, sofre uma perda definitiva ao obedecer e não é demuita valia para ele que a lei seja modificada logo depois” (DWORKIN,2000, p. 159-160). Para Jorge Malem Seña (1990), o que Dworkin denominadesobediência civil baseada na integridade pode ser identificada coma objeção de consciência. Há que se frisar, no entanto, que as razõesmotivadoras da desobediência civil, em muitos casos, não são distintasdas motivadoras da objeção, sendo desse modo a classificaçãode um ato desobediente, em uma ou outra categoria, uma tarefacomplexa. Ressalvado este aspecto conflitante, importa destacar queDworkin introduz um novo elemento na discussão quando defendea possibilidade de se utilizar a desobediência civil como instrumentode defesa para situações de urgência sem antes recorrer aos meiosinstitucionais. Nos passos do autor americano, parece coerente afirmar que,quando a situação exigir uma manifestação imediata, seja paradefesa ou protesto, recorrer previamente aos mecanismos jurídicossignificaria anular o próprio objeto da desobediência civil. Assim, umateoria da desobediência civil que se quer profícua não pode excluir40 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKINde forma incondicional a atuação defensiva e imediata, sob penade restarem prejudicados seus objetivos quando de circunstânciasextremas e irreversíveis. É a natureza e a gravidade da injustiça quedeterminam a ênfase e o momento da reação a ser tomada. Diferentemente da primeira, a desobediência baseada na justiça édefinida por Dworkin como uma postura estratégica e instrumental quevisa se opor à políticas consideradas injustas com intuito de modificá-las.Para tanto, vale-se de estratégias persuasivas e não persuasivas. Obrigara maioria a escutar os argumentos contra uma determinada política naexpectativa de que mude de ideia é um exemplo do primeiro tipo deestratégia. As estratégias não persuasivas não visam alterar a posiçãoda maioria, “mas elevar o custo de dar prosseguimento ao programa quea maioria ainda prefere, na esperança de que esta julgue o novo custoinaceitavelmente elevado.” (DWORKIN, 2000, p.161.) Em determinadas situações, porém, em condições pouco favoráveispara o diálogo político e diante de uma posição rígida do governo,estratégias não persuasivas de intimidação (bloqueio de estradas,ocupação de prédios públicos) desde que sem violência, podemrepresentar uma alternativa de razoável sucesso, defende o autor. Um terceiro tipo é denominada por Dworkin de desobediênciacivil baseada na política e visa reverter uma posição política porconsiderá-la perigosamente imprudente, estúpida ou insensata para amaioria. Acreditam os desobedientes que a política resistida é má paratodos e não apenas para alguns setores ou minorias. Nesse caso,igualmente à desobediência baseada na justiça, também podem sedistinguir estratégias persuasivas e não persuasivas. “As estratégiaspersuasivas pretendem convencer a maioria de que sua decisãoestá equivocada e assim, fazê-la renunciar ao programa a que antesfavoreceu. As estratégias não persuasivas pretendem aumentar opreço que a maioria deve pagar por um programa que continua apreferir.” (DWORKIN, 2000, p.162 -163). As estratégias persuasivas são sempre melhores em qualquer tipode desobediência, destaca o autor, pois o fato de se tentar persuadir aopinião valendo-se de argumentos sensatos não desafia em nenhum(RE) PENSANDO DIREITO 41

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadosentido o princípio do governo da maioria. Já as estratégias nãopersuasivas podem ser mais facilmente justificadas na desobediênciabaseada na justiça do que na desobediência baseada na política.É possível reagir fortemente contra uma maioria que sonegue osprincípios de justiça presentes na Constituição e tente empreendermodificações nessa direção. Ao contrário, não parece que tenhasentido obrigar a maioria a modificar ou aprovar determinadas medidaspolíticas que segundo o seu entendimento, mesmo que equivocadopela minoria, considere de interesse comum. A distinção que Dworkin faz entre estratégias persuasivas enão persuasivas é, em nosso juízo, um tanto confusa e não ajuda acaracterizar categoricamente nenhum dos tipos de desobediência civilpor ele proposta. E essa não é a fragilidade principal dessa distinção.Ora, a desobediência civil é utilizada quase sempre depois deesgotadas as diversas instâncias institucionais de debate público nasquais os argumentos de persuasão foram apresentados e certamenterefutados. Caso os melhores argumentos tivessem a garantia desaírem sempre vitoriosos de uma disputa de ideias, possivelmente adesobediência civil jamais teria surgido como estratégia para se fazerouvir argumentos. Por outro lado, o recurso de desrespeito à lei visa justamenterecolocar o argumento e reformular espaços de diálogo, o que significaque mesmo as estratégias não persuasivas são utilizadas para iniciarprocessos persuasivos, de modo que separar ambas as estratégias deação da desobediência civil parece uma tarefa sem sentido prático. Anão ser que a desobediência civil possa obrigar mudanças de rumo nodireito e na política mesmo sem o consentimento da maioria, situaçãoque obviamente Dworkin não ventilou. Em suma, a desobediência civil adotará estratégias quedependerão do contexto de sua ação prática, mas quase semprerecorrendo a mecanismos não oficiais e institucionalizados de petição,como por exemplo a desobediência direta à lei considerada injusta,protestos, ocupação de prédios públicos e rodovias, etc, que servempara colocar em debate a injustiça de determina lei ou medida política.42 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN Dworkin destaca que em casos extremos de injustiça, de equívocopolítico ou de imoralidade é bastante fácil se posicionar favoravelmenteà desobediência civil. O mesmo, alerta ele, não acontece diante desituações que, dadas as convicções de diferentes sujeitos e grupos,não se consegue ter clareza de uma posição majoritária que assegureque os mesmos argumentos favoráveis à desobediência não sejamrefutados com a mesma energia pelos argumentos desfavoráveis.Enfim, é na recusa moral (e portanto também jurídica) de um umanorma ou de uma política que reside o fundamento da desobediência; éna possibilidade de duvidar e de discutir qualquer lei que comprometa amoralidade jurídica da Constituição que a desobediência civil pensadapor Dworkin encontra seu valor político e jurídico.RESPOSTA À DESOBEDIÊNCIA CIVIL: O QUE OESTADO DEVE FAZER COM OS DESOBEDIENTES? Ao tratar do problema da punição ou não dos desobedientes,Dworkin refere que duas compreensões estanques devem serafastadas: a de que o Estado deve punir sempre ou, ao contrário, deque deverá sempre se abster de punir atos de desobediência civil. Naspalavras do autor, devemos evitar dois erros grosseiros. Não devemos dizer que se alguém teve motivos, dadas as suas convicções, para violar a lei, o governo não deve puni-lo. Não existe nenhuma contradição e, muitas vezes, há muito sentido em decidir que alguém deve ser punido apesar de ter feito exatamente o que nós, se tivéssemos as suas convicções, faríamos e teríamos a obrigação de fazer. Mas o erro oposto é igualmente ruim. Não devemos dizer que se alguém violou a lei, por qualquer razão que seja e por mais honrosos que sejam seus motivos, sempre deve ser punido porque a lei é a lei (2000, p. 168). Quando, porém, o Estado deverá punir? Para o autor norte--americano ninguém deveria ser punido, a não ser que, considerandotodas as circunstâncias envolvidas, a punição provocasse, em longoprazo, um bem geral para a sociedade. Sem dúvida que será sempremais desejável que a desobediência civil atinja seus objetivos sem(RE) PENSANDO DIREITO 43

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadoa necessidade de punição. Essa é a condição melhor para todos enão deve ser descartada pelas autoridades estatais responsáveis pelapersecução penal. Caso se reconheça, segundo Dworkin, que alguém está certoao violar a lei, “dada sua convicção de que a lei é injusta, pareceincoerente não reconhecer isso também como uma razão que ospromotores podem e devem levar em conta ao decidir acusar ou não[...], como (também) uma razão para punir mais brandamente alguémque foi processado e condenado”. (DWORKIN, 2000, p. 170). O autornão considera incompleta a desobediência civil que se der sem apunição dos desobedientes, mas entende que muitas vezes ela podese caracterizar como elemento estratégico, incitando o desejo demuitos pela punição. No caso de leis de validade duvidosa, tanto dissidentes quantojuízes podem acreditar na razão de seus argumentos e elaboraremteses convincentes. Desse modo, se o debate está centrado navalidade da própria lei, a partir da moralidade da Constituição, não sepode dizer, a primeira vista, se a norma é válida ou inválida. Por óbvio,então, uma norma de validade discutível não poderá punir de modoindiscutível, permanecendo aberto o debate sobre a sua aplicação.Deste modo, ao julgar o que deveria ser feito em relação aos opositores do recrutamento, não podemos pressupor que eles estavam reivindicando o privilégio de desobedecer leis válidas. Não podemos decidir que a equidade exige sua punição enquanto não tentarmos responder às questões que se seguem: o que deve fazer um cidadão quando a lei não for clara e ele pensar que ela permite algo que, na opinião de outros, não é permitido? Sem dúvida, não pretendo perguntar o que, para ele, é juridicamente apropriado fazer, ou quais são seus direitos jurídicos- isso seria uma petição de princípio, já que a resposta depende de sabermos quem está certo: ele ou os outros. Eu desejo perguntar qual é o comportamento que lhe compete enquanto cidadão; em outras palavras, o que consideraríamos ‘seguir as regras do jogo’. Trata- -se de uma questão crucial, porque não pode ser injusto deixar de puni-lo se ele estiver agindo, dadas as suas opiniões, como achamos que deve agir (Dworkin, 2002 p. 321).44 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN Afinal, pergunta Dworkin, o que deve fazer um cidadão quandoele considera que uma norma é duvidosa e pensa que ela permitealgo que, na opinião de outros, é proibido? Dworkin apresenta trêspossibilidades para essa pergunta e depois aponta qual delas melhorse adapta as práticas e expectativas do modelo jurídico democráticoamericano. Numa primeira hipótese de a lei ser duvidosa, obscuraquanto a permitir que o indivíduo faça o que quiser, este pode imaginaro pior e agir pressupondo que a lei não permite, obedecendo à leimesmo considerando-a errada, enquanto utiliza o processo políticopara modificá-la. Já a segunda possibilidade diz que se a lei é duvidosa o cidadãoseguirá sua própria interpretação e fará o que quiser, se pensar que oargumento a favor da permissão seja mais forte do que o da proibição.No entanto, no momento que advier uma decisão judicial contráriaao seu entendimento o desobediente passa a respeitar a norma,mesmo considerando-a inválida. E por fim a terceira possibilidade:se a lei é duvidosa, o cidadão poderá orientar-se por seu própriodiscernimento, mesmo depois de uma decisão contrária tomada peloTribunal. O jusfilósofo americano rejeita os dois primeiros modelos. Não ésensato, afirma ele, que os cidadãos pressuponham sempre o pior.Caso nenhum tribunal [...] tenha se pronunciado quanto a questão e se um indivíduo acreditar, depois de ponderar sobre os fatores, que a lei está do seu lado, a maioria de nossos juristas e críticos achará perfeitamente correto que ele siga seu próprio discernimento. Mesmo quando muitos discordarem do que ele faz – como, por exemplo, vender literatura pornográfica – não pensarão que ele deve desistir somente porque a legalidade de sua conduta é objeto de dúvida (DWORKIN, 2002, p. 324). Se a lei é ambígua, portanto, nem sempre o que a Suprema Cortediz das normas é de fato o que diz ser, pois pode estar influenciadapor diversas situações e agir de forma mais conveniente para si,o que também pode acontecer com o indivíduo que interpreta a leia seu modo. Além disso, os Tribunais mudam de ideia e revisam(RE) PENSANDO DIREITO 45

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadosuas decisões, podendo considerar legal uma determinada condutaque durante muito tempo foi considerada ilegal. Nesse sentido, umhomem deve levar em conta aquilo que os Tribunais farão quandoele decidir se é prudente seguir o que seu próprio juízo indica. Épor isso que se deve rejeitar o segundo modelo proposto, pois umacoisa é afirmar que o indivíduo deve, de vez em quando, violar suaconsciência quando sabe que a lei o obriga a agir assim. Outra coisaé afirmar que ele deve violar sua consciência mesmo quando acreditasensatamente que a lei não exige que o faça, somente porquecausará incomodo aos seus concidadãos se utilizar tal expediente deforma direta (DWORKIN, 2002). O terceiro modelo (o cidadão orientar-se de acordo com seupróprio discernimento mesmo depois de uma decisão judicial emcontrário tomada pela mais alta corte), portanto, é indicado por Dworkincomo a formulação mais equitativa do dever social de um membro dacomunidade. O cidadão tem o dever de lealdade com a lei e não composicionamentos particulares sobre ela. Obviamente que os Tribunaisdevem ser respeitados e guiar a conduta das pessoas no que se refereà possibilidade de fazer ou não fazer determinada coisa. Contudo, emse tratando de direitos fundamentais, um indivíduo não extrapola oslimites de seu direito ao se recusar a aceitar uma decisão definitiva seargumentar que o Tribunal cometeu um erro e que a dúvida sobre amatéria persiste. Dworkin sugere que se deve tolerar o dissenso por umdeterminado tempo como uma forma de permitir que o debate construaentendimentos aceitáveis a respeito do assunto, visto que aqueles queduvidam da constitucionalidade de uma lei vão continuar duvidososmesmo se a Suprema Corte afirmar esta constitucionalidade. Duvidarda constitucionalidade das leis é duvidar de sua própria validade. Porisso, em situações de dúvidas consistentes e razoáveis, os órgãoscompetentes devem estimular o debate e o diálogo seja para modificarentendimentos ou reforçá-los, seja para rever as leis ou para ampliare confirmar a sua legitimidade constitucional, pois “[...] é injusto punirhomens por desobedecerem uma lei duvidosa” (2002, p.339).46 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA TEORIA JURÍDICA DE RONALD DWORKIN Uma lei que é questionada em sua validade obviamente quetem fragilizada a sua capacidade de definir tipos penais e sançõescorrespondentes. Se persistirem dúvidas sobre qual é a melhorinterpretação que se deve dar a um dispositivo de lei é porque a própriavalidade do dispositivo está sendo questionada e seria um exageroexigir um comportamento incondicional por parte do desobediente eainda mais exagerado lhe punir no caso de descumprimento da normade validade duvidosa. Estaríamos transferindo para os Tribunais,Ministério público, polícia e demais instituições de persecução penala palavra final sobre os conteúdos morais da lei, algo totalmenteincompatível com a harmonia dos três poderes estabelecido noEstado Democrático. Certamente que os Tribunais devem ter legitimidade para dizera última palavra, caso contrário o sistema de justiça se desintegraria.Isso, contudo, não garante que eles digam a melhor palavra e quefaçam interpretações absolutas sobre a moralidade e validadedo direto. Tanto que seguidamente revisam suas decisões. Osdesobedientes fortalecem o sistema de constitucionalidade na medidaem que obrigam os Tribunais e a comunidade jurídica a debatersobre novas interpretações e conteúdos das normas jurídicas. Suadesobediência tem uma causa moral e jurídica; não desobedecem porrazões egoísticas. Por isso tudo, sugere Dworkin, os Tribunais devem imporpenas mínimas, suspender os efeitos da sentença e em situaçõesde evidente dúvida constitucional devem obviamente absolver osdesobedientes civis. Enfim, se reside dúvida sobre a validade de umalei, não é errado que uma pessoa aja da forma como entender sera melhor. E ninguém pode ser punido se, diante das circunstânciase dadas às convicções pessoais, todos considerarem que a pessoatenha agido de modo adequado ao desobedecer determinada lei.CONSIDERAÇÕES FINAIS O Estado moderno centralizou a ação política e minimizou aimportância do cidadão no processo democrático. A racionalidade(RE) PENSANDO DIREITO 47

Doglas Cesar Lucas - Nadabe Manoel Machadoliberal-burguesa monopolizou os espaços de reivindicação,distanciando, por conta disso, a ação política formal das tensõesreais da sociedade civil e reduzindo a compreensão da legitimidadeà coerência lógico-formal do processo legislativo e das instituições dedireito. Nesse contexto, a soberania popular transfigura-se em íconeque se sustenta no homem abstrato ao mesmo tempo em que nega ahistoricidade desse mesmo homem. A desobediência civil permite a construção de uma discursividadefora dos limites institucionais que é fundamental para a definição deconceitos representativos das reais demandas sociais. Consubstancia--se como uma alternativa para expressar as necessidades públicase para construir espaços públicos de discussão que aumentem acapacidade de controle do poder institucionalizado e dos conteúdosdo direito. Ademais, se a perspectiva liberal de democracia reduzo espaço da palavra, da construção e da percepção da moralidadepública ao patamar legal-formal, a desobediência civil, por sua vez,atua no resgate de um discurso compartilhado que permite a formaçãodos conceitos coletivos a partir da constituição de objetivos comunsdentro da diversidade da comunidade política. A desobediência civil também deve ser situada como instrumentoalternativo capaz de promover um deslocamento da soberania. Nomomento em que a comunidade política promove um agir associativo emtorno das condutas que desaprova, por considerá-las injustas, resgata afonte formadora do que, por esse ângulo, deposita-se na ação conjuntade muitos. Desobedecer a uma lei injusta ou inconstitucional representauma disposição para avaliar a validade das normas a partir dos conceitoscoletivos que expressam os níveis de legitimidade publicamenteconstruídos. Assim, colocar em dúvida a justiça ou a constitucionalidadede uma lei, pela desobediência civil, é incitar um debate, é publicizara discussão em torno dos valores que devem estar presentes para aconsideração desta constitucionalidade e desta justiça. O liberalismo de Dworkin reconhece a desobediência civil comouma forma de manifestação da liberdade de ação diante da dúvidasobre a constitucionalidade da lei. Uma posição de desobediência48 Ano 4 • n. 8 • jul/dez. • 2014


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