Fábula do (fim e do) começo do mundo Diana Araujo Pereira curitiba 2020
Copyright desta edição © 2020 Medusa Copyright dos textos © 2020 Diana Araujo Pereira Edição Ricardo Corona Eliana Borges Projeto gráfico Eliana Borges Revisão Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra ISBN 978-65-86276-09-1 Impresso no Brasil / 1a. Edição Foi feito o depósito legal Editora Medusa www.editoramedusa.com.br [email protected] facebook.com/EditoraMedusa
Fábula do (fim e do) começo do mundo
Para meu pai, Amauri, que me ensinou sobre a esperança
9 I Tudo começou quando ela se deu conta da rela- ção que mantinha com as baratas, esses bichinhos que sempre lhe pareceram repugnantes e com os quais ela não sabia lidar. Tinha pavor das baratas a tal ponto que nem se aproximar para matá-las ela conseguia. Para pa- recer menos patricinha, dizia que tinha nojo, mas no fundo ela sabia que tinha mais do que medo. Sentia pa- vor das baratas. Bichinhos feios, inoportunos, introme- tidos... Porém, pouco a pouco as informações foram se aglomerando em sua mente, como pecinhas de um grande quebra-cabeça. Ela começou a intuir que havia uma lógica para o seu pavor depois de sofrer um aciden- te causado por baratas. Logo após uma temporada fora de casa, de fé- rias, ao voltar, encontrou-a completamente tomada pe- las baratas. Ao limpar a casa, acabou caindo da escada, em uma ridícula cena, nocauteada por duas baratas que resolveram voar sobre a sua cabeça. Esse foi o começo. A partir desse dia ela enten- deu que baratas não são bichinhos aleatórios... não! São movidos por poderosas forças invisíveis. E
10 para chegar a esta conclusão, que logo se expandiria ainda mais, ela teve que colecionar vários episódios nos quais a presença ou a ausência das baratas era muito significativa. Certo dia chegou em casa à noite muito cansada e, ao entrar na cozinha, uma barata literalmente voou para cima dela, indo parar na sua barriga. Outra vez, já deitada na cama, com o quarto absolutamente fechado e as luzes acesas, sentiu as patinhas caminhando sobre o seu rosto. E, por outro lado, em vários momentos de extre- mo calor (portanto propícios ao aparecimento das ba- ratas), nenhum sinal delas... nada de voos estranhos ou repentinas aparições. Como era possível? Seriam tão aleatórias estas abruptas chegadas, ou respondiam a alguma lógica? Será que teriam algum padrão? Em busca de respostas, passou a observar qual era o seu estado de espírito, em que estava pensando e o que estava sentindo, quando baratas apareciam de forma violenta sobre o seu corpo ou no seu entorno. Passou, então, a colecionar essas cenas, com um estrito acompanhamento de si mesma. Ou seja, quando uma barata se aproximava, ao invés de se perguntar pelo veneno aerossol para matá-la, se perguntava: “O que eu estou sentindo? Sobre o que estou pensando?” Com o tempo, pouco mais de três anos, ela se deu conta de que sim... havia um padrão. Quando ela es-
11 tava serena, tranquila, não havia baratas nas proximida- des. Porém, quando ela estava abalada emocionalmen- te, com raiva, impaciência, angústia ou outras emoções desse tipo, então as baratas apareciam. Essa constatação empírica levou-a a pensar que as baratas até poderiam ser teleguiadas por mãos invisí- veis, mas era ela que permitia, ou não, a sua aproxima- ção. E chegar a esta conclusão foi como um bálsamo, pois dissolveu, ou diluiu, o tremendo medo que sentia cada vez que se deparava com esses bichinhos. Ela en- tendeu que as baratas, em si mesmas, eram insignifican- tes; o que era relevante, de fato, era o que permitia a sua aproximação. Nesse ínterim, ao realizar uma de suas cotidia- nas caminhadas, embalada por suas músicas preferidas, e pensando sobre algumas ações que faria no trabalho, chegou à beira da euforia. Curiosamente, naquele exa- to momento, um cavalo atravessou o terreno baldio, ao lado da rua por onde ela caminhava, parando na cerca justamente ao seu lado, bufando estranhamente, como se quisesse se comunicar com ela. Ela se assustou, mas não como se assustava com as baratas. O cavalo tinha atravessado a quadra inteira, a toda velocidade, para lhe dizer algo... ela sentiu que a sua euforia havia contagiado aquele cavalo. Outra circunstância, entre tantas anotadas nos seus diários, junto com as anteriores: Ela estava conver-
12 sando com sua irmã, quando duas formigas subiram so- bre o seu braço, apoiado na mesa, e a morderam. Em lugar de xingar as formigas, ela se perguntou: Sobre o que estamos falando? Será positivo ou negativo meu posicionamento neste assunto? Estou sendo ataca- da pelas formigas da mesma forma que um dia fui ata- cada pelas baratas, quando não estou sentindo ou pen- sando bem? O que seria, então, sentir e pensar bem? Todos os animais, grandes e pequenos, poderiam ser aciona- dos pela energia que ela emitia? A cada semana uma nova surpresa: Quando pa- recia que todas as pragas já haviam aparecido, que tí- nhamos chegado ao fundo do poço, algo novo surgia. Os meios de comunicação e as redes sociais não chamavam de pragas (soaria excessivamente bíblico, é verdade), mas também já não sabiam mais como chamar aquele contínuo cataclismo biológico que assolava o planeta. Manifestações sociais tomavam as ruas, e entre as máscaras que cobriam os rostos raivosos e assusta- dos, ouviam-se muitas consignas. Uma, particularmente, lhe chamava a atenção: “É a queda do céu!” Praticamente a cada semana, uma novidade. Mutações genéticas de vírus, bactérias, microrganismos
13 variados invadiam as mesas do café da manhã de quem, nesta etapa, ainda se dava ao luxo de tomar café da ma- nhã acompanhado pelas notícias. Vários líderes religiosos arriscavam que tudo isso não era outra coisa senão uma atualização bíblica enca- minhada ao apocalipse. Havia tantas previsões quantos vírus insurgentes. Como chegamos a esse ponto? Era a pergunta que todos se faziam. Cientistas arriscavam explicações; intelectuais se debatiam entre teorias diversas, mas todos, em uníssono, faziam fila para reclamar sobre os excessos ou, por outro lado, a inércia das ações governa- mentais e das políticas públicas. Por que acreditamos que um sistema econômico baseado no individualismo, de caráter predatório, nos levaria a outro lugar que não a esse no qual agora es- tamos? Com a devastação de várias reservas florestais e a mínima sobrevivência da flora e da fauna do mun- do, os fenômenos climáticos se intensificaram. Mas eles, de certa forma, já eram esperados há décadas. O que não estava tão amplamente divulgada era a necessária adaptação da vida a este novo cenário de devastação e extrema pobreza que, juntos, formavam o nascedouro de mutações, em muitos sentidos. Muitas vezes, sem se dar conta, as pessoas iam adaptando hábitos, sonhos, desejos e temores. Mas não estavam atentas às mutações genéticas de seus próprios corpos, e dos corpos invisíveis que são, também, parte
14 da vida do planeta. As alterações profundas da água, da terra e do ar, geraram alterações sociais, culturais e também bio- lógicas. Toda a tecnologia disponível para o bem-estar humano não poderia dar conta do que se configurava. Mesmo que houvesse ar-condicionado para o excesso de calor, e muita medicação para as crises de ansieda- de cada vez mais frequentes nesta sociedade adoecida, o desejado estado de bem-estar jamais seria alcançado por todos. A brecha entre os que tinham condições de se manterem razoavelmente saudáveis e os que estavam relegados à própria sorte, sem proteção ou amparo nem dos enfraquecidos Estados nem das distorcidas institui- ções, aumentava consideravelmente. Porém, curiosamente, as enfermidades nascidas neste contexto se disseminavam sem respeito à divisão de classes, da mesma forma que as tempestades despe- daçavam casebres e mansões. O estado alterado do planeta atingia com maior violência aos mais pobres, é verdade; mas, de certa ma- neira, alcançava a todos. Ana via a proliferação das baratas e moscas, e o desaparecimento das abelhas. Desde que começou a es-
15 tar atenta aos bichinhos do mundo, entendeu que eles a levavam a um nível de comunicação com o planeta mui- to superior e mais complexo. Esses bichinhos – insetos, vírus e bactérias, prin- cipalmente – mapeavam a qualidade da vida, mas não apenas isso. Mapeavam a qualidade da sua emoção e dos seus pensamentos. Na verdade, e para simplificar, esses bichinhos passaram a exercer o papel de sinaliza- dores para uma espécie de acompanhamento de si mes- ma. Sua proximidade, de forma visível (como era o caso das baratas) ou invisível (como os contágios, infecções e etc.) lhe davam a medida de si mesma, de sua autoges- tão, da qualidade da sua conexão com as energias, com as forças do planeta. Em certa medida, ela passara a reconhecer, nos bichinhos, interlocutores. Ou melhor, algo como um es- pelho que refletia seu estado de ânimo, suas fortalezas e também fraquezas. Estando ciente disso, Ana conseguia se mover de forma saudável neste cenário obscurecido pela busca in- cansável de culpados pela crise. Para sua sorte, ela entendeu muito cedo que to- dos eram culpados, e certamente ela mesma inclusive, ao desejar perpetuar uma comodidade baseada na de- predação da vida ao redor. Como chegamos a este ponto? Usando ar-con- dicionado, gasolina, comendo carne de vacas que pre- cisam pastar onde antes havia matas, florestas, e um
16 longo etecetera de ações e práticas cotidianas tão naturalizadas nos nossos consumismos. Como chegamos a este ponto? Sendo egoístas, individualistas e solitários. Ana se levantara cedo para ir trabalhar, embora a jornada de todos os funcionários tivesse sido reduzida à metade, devido aos transtornos dos últimos meses. Era uma manhã cinzenta, de poucas pessoas nas ruas. Quem ainda se mantinha são evitava a exposição dos ambien- tes públicos. Mas Ana não temia nem o vírus nem o dia cinzento. Ela havia entendido que todas as forças forma- vam um fluxo, e que ela era uma parte dele. Entrou no metrô. Havia um homem que a olhava insistentemente. Ana o reconheceu. Era o antigo portei- ro do prédio onde morava, com quem costumava con- versar sobre vários assuntos, entre eles, política. Ele a cumprimentou a distância. Não ousou se aproximar. Am- bos deram um meio sorriso e se mantiveram distantes. Ela lembrou, então, que sua última conversa terminara em uma discussão, mais acalorada do que as anteriores. Os ânimos se acirraram na mesma proporção que o es- tado social geral piorava. Os índices de violência em au- mento atingiam as relações mais cotidianas. Ana trabalhava em uma empresa de telefonia. Era uma das responsáveis pela relação com os clientes.
17 Basicamente, escutava queixas o dia inteiro e procurava meios institucionais para reverter as insatisfações dos clientes. Sua produtividade se baseava na quantidade de clientes que permaneciam fidelizados à operadora. No começo não foi nada fácil. Ela chegava limpa ao trabalho, pela manhã, e à noite retornava a casa sen- tindo-se imunda, como se cada reclamação manchasse a sua aparência. Quanto mais violentas eram as falas, mais difíceis de suportar. Aquelas vozes a tingiam de cores agressivas. Ana se carregava com o peso da raiva alheia, todos os dias. No começo realmente não foi fácil. Os gritos do outro lado da linha a perfuravam. Mas ela não tinha op- ção se não agradecer, todos os dias, por ter aquele tra- balho que lhe permitia pagar o aluguel e manter-se de forma simples, mas autônoma. E no estado atual, de cri- se generalizada, não podia se dar ao luxo de pensar em trocar de emprego. Ana precisou aprender, com o tempo, a ouvir aquelas vozes com paciência e respeito. Enquanto escu- tava as reclamações, pensava em que tipo de vida aque- la pessoa do outro lado da linha teria. Seria uma esposa infeliz no seu casamento, com ganas de liberdade, mas tolhida por alguma razão, como ela mesma já fora? Ou seria um homem que suportava uma sexualidade em de- sacordo com seus reais desejos, e por isso sofria a dor da inaceitação, de ter que se esconder de si mesmo, como viu seu primo sofrer? Ou seria ainda uma jovem espe-
18 rançosa que, de repente, se defrontava com a violência de uma doença grave, como acompanhara na vida de uma amiga muito próxima? A cada ligação exaltada, Ana visualizava uma dor e se perguntava sobre o quão grande seria essa dor, para que a alvejasse com tamanha agressividade. Enquanto procurava ouvir as reclamações, também se dedicava a abstrair a sua aparente ferocidade, buscando se con- centrar na sala ou no quarto onde estava aquela pessoa. Buscava encontrar um rosto com uma história e um con- texto. Foi assim que Ana encontrou o caminho para ouvir sem ser afetada. O fato de ela construir uma empatia com quem falava do outro lado da linha não a fazia sofrer mais... ao contrário, tornava-a tão benevolente com seu/sua inter- locutor/a que já não se sentia agredida, atacada, suja. Era como se ela pudesse se dividir em duas: Uma Ana atendente que ouvia e outra Ana que percorria a distância entre as vozes e se aproximava de quem falava. Esta Ana ouvia e se compadecia. Quando as duas partes se reconectavam, no final da ligação, ela estava sorrindo, pronta para recomeçar. Claro que esta habilidade demandou anos de aprendizado. Foi no final do seu quarto ano de empresa que ela teve a comprovação que precisava para sentir-se ainda mais fortalecida nesta atitude. Naquele dia, uma senhora idosa ligara às 8h05 da manhã com uma raiva tão grande, acompanhada de
19 tanta agressividade, que lhe chamou a atenção. Ana teve que se esforçar ainda mais na técnica da empatia, que vinha desenvolvendo. Anotou seu nome, sem nem saber por quê. À noite, em casa, soube, pelo telejornal, que aquela senhora de 85 anos havia se atirado do décimo segundo andar, onde vivia solitária. Esse foi o episódio que lhe trouxe a comprovação que ela precisava. Sim... a dor daquela pessoa era muito maior do que um proble- ma de telefonia. A partir deste dia, seu trabalho foi se tornando gradualmente mais leve. Ana foi aprimorando a técni- ca, buscando o tom de voz e a maneira de se comunicar mais adequados a cada atendimento. Paralelamente, Ana também começou a apren- der que deveria escutar com mais qualidade, com aten- ção e empatia, a tudo e a todos ao seu redor. Inclusive aos bichinhos que, antes, tanto a incomodavam. Aliás, quanto mais a incomodassem – os bichinhos, as baratas ou as vozes do outro lado da linha – mais ela procurava se aproximar e se conectar. Em lugar da distância, Ana procurava a interação. Essa habilidade, que vinha desen- volvendo ao longo dos últimos anos, já quase há uma década, foi decisiva para o desenrolar de sua história. Ana acordou mais cedo do que de costume. Nes-
20 ta manhã, parecia que voltava de uma longa viagem. Sentia um bem-estar enorme. Espreguiçou-se por vários minutos, esforçando-se para encaixar cada pedacinho solto de sua alma naquele corpo ainda meio anestesiado pelo sono. Como boa observadora que vinha se tornando, Ana mantinha um caderno de sonhos ao lado da cama. Alguma vez ouvira de uma amiga que sua psicóloga lhe havia indicado anotar todos os seus sonhos, que sempre eram tão simbólicos. Ana gostou da ideia e a tomou para si, passando a colecionar, desde então, seus próprios so- nhos. De vez em quando ela os relia e sentia uma pro- funda satisfação ao fazê-lo, pois era como se reencontrar com versões mais jovens dela mesma. Cada sonho lhe trazia as preocupações e desafios das diversas épocas de sua vida. Reler estes relatos era como ver o teatro de sua trajetória representado sintéti- ca e simbolicamente. Nesta manhã, especialmente, sentia um profun- do prazer, e até mesmo gratidão, mas não se lembrava nada do que havia sonhado. Levantou-se. Costumava tomar banho antes de ir trabalhar. Ao entrar no box se deparou com uma aranha, daquelas grandes e assustadoras. Ao vê-la, Ana entendeu que seu dia requereria cuidado e atenção. A aranha ficou alguns segundos parada, olhando-a, para em seguida desapa- recer por trás do armário. Entregou o seu recado e foi embora.
21 Ana tomou seu banho, preparou o café da ma- nhã e foi trabalhar. No caminho até o metrô, notou as pessoas mais apressadas e nervosas do que o normal. Perguntou-se o que estaria acontecendo. Chegou ao tra- balho e, estranhamente, não havia ligações. Estava tudo tão silencioso que Ana chegou a pensar que talvez ainda estivesse dormindo. Foi Solange, sua colega de turno, que esclareceu o mistério. Havia um novo vírus solto no ar. - Mas o que há de novidade nisso? Já passamos por tantos novos surtos nos últimos anos... - Não, Ana, esse é diferente. Mata muito mais e em menos tempo do que todos os outros. Está se mos- trando agressivo mesmo... Como as ligações estavam realmente mais es- porádicas, Ana conseguiu abrir o navegador da internet para tentar entender do que se tratava. Já há alguns anos tinha saído das redes sociais. Redes cheias de buracos, ela dizia para as amigas e familiares que estranhavam a sua ausência e cobravam que ela voltasse. Como vamos saber se você está bem? Se está fazendo coisas interes- santes?, diziam todos. Ana sorria e respondia: Me liguem e conversa- mos. Quem sabe até usamos aquela velha e antiquada tecnologia, de nos encontrarmos pessoalmente para passar umas horas juntas? Familiares, amigos e amigas sorriam, mas o te- lefone de Ana só tocava no trabalho, para transmitir as
22 dores extravasadas pelas reclamações. Para Ana as redes sociais eram uma insuportá- vel miragem, um cenário insólito de felicidade e sorrisos perpétuos; ou, por outro lado, de queixas, denúncias e enraivecidos posicionamentos que, curiosamente, não chegavam nem perto de tocar a realidade. Ana era uma observadora nata, e foi desenvol- vendo, ao longo dos anos, uma profunda acuidade que lhe encaminhava para a reflexão. Sentia-se mais filósofa, ou poeta, do que trabalhadora de um call center, embo- ra atualmente gostasse desse emprego, onde fora parar meio a contragosto, no início. Certamente Ana tinha muitos sonhos e ambições na sua juventude. Mas vinha de uma família pobre, do subúrbio; de um contexto no qual ir para a universida- de era um sonho quase inalcançável. Até tinha chegado perto de realizá-lo, quando passou na prova de ingresso para o curso de Psicologia. Porém, naquele momento estava casada e seu marido não gostou da ideia de ter que dividir a esposa com tantos colegas. E, além disso, estudar à noite, depois de um longo dia de trabalho... o que lhe sobraria, um bagaço de esposa? Ana então abriu mão da vaga. Dois anos depois se separava, depois de sete anos juntos. Com a separa- ção e tendo que se encarregar de todas as despesas, Ana novamente precisou escolher a sobrevivência, o traba- lho, em detrimento do sonho de voltar a estudar. Mas sua vida solitária não lhe era um fardo. Ao
23 contrário, ela encontrou um profundo prazer nesta soli- dão madura, quase escolhida. E como intuía que podia estudar a alma humana, com suas contradições e bele- zas, de outras maneiras, decidiu que faria do seu traba- lho, e de si mesma, o seu local de estudo. Foi assim que, pouco a pouco, Ana aprendeu a se relacionar com seus clientes e consigo mesma, como quem entra em um la- boratório de experimentações e aprendizagem. O novo vírus, em poucos dias, expandira-se por todos os continentes. Durante esta noite, havia causa- do centenas de mortes em várias cidades do mundo. Já eram milhares de pessoas contaminadas. Tratava-se, novamente, de uma mutação para a qual não tínhamos anticorpos, não estávamos preparados. Ana lia as notícias, via os números e não podia deixar de pensar que poderia haver algum padrão. A qual energia este vírus se refere? Do que ele efetivamen- te se alimenta? O que vem nos comunicar? O telefone voltou a tocar e os atendimentos re- começaram, coerentes com a rotina das últimas déca- das, ou talvez dos últimos séculos. Nos espantamos ao presenciar as cenas mais terríveis, para logo em seguida nos acostumarmos com elas. Voltamos sempre à rotina. Tudo se acomoda ao longo do dia, da semana, da exis-
24 tência, pensava Ana. Procurou se concentrar no atendimento e exerci- tar a sua técnica. Ana percebeu, porém, que havia tanta dor nas vozes do outro lado da linha, que neste dia sen- tiu seu coração se apertar, como se uma mão invisível o espremesse. Ao voltar para casa, no metrô e também ao cami- nhar, sentiu um cheiro diferente. Além das caras de es- panto por trás das máscaras, esse cheiro a acompanhou até em casa. Era o cheiro do medo. Um odor ácido, mas suave, impregnante como um perfume velho. Começou a pensar se esse novo vírus não po- deria estar associado ao cheiro e ao medo. Seria essa a equação? O medo libera odor que atrai o vírus? Alguma vez tinha escutado isso sobre os cães, que eles sentem o cheiro do medo, liberado pela adrenalina. Então, medo – adrenalina – cheiro... seria essa a equação que atrairia um cachorro raivoso para o ataque? Ana seguia pensando: Será que o cachorro tam- bém se contagiava do medo exalado pela pessoa? Será que eu, durante todas as décadas da minha infância e adolescência, exalava medo para os cachorros e os afe- tava, e por isso me atacavam? Ana sempre tivera medo desse outro bicho: ca- chorro. Agora pensava se não era ela quem os atacava, provocando a sua ira. Ela enviava o medo e o cachorro se sentia agredido, ou era o contrário? No dia seguinte, o novo porteiro do prédio, Sr.
25 Arlindo, advertira, por trás de sua máscara, que Ana ti- vesse muito cuidado para não se infectar. A vizinha do 302 estava contaminada. - A senhora não ouviu, não? Aquele tremendo reboliço de madrugada? Veio bombeiro e o diabo. Le- varam D. Edna, diz que para ficar em isolamento. Até o cãozinho dela foi junto. Pobrezinho do Xodó... vai saber o que vão fazer com ele. Fecharam a porta dela com aquelas fitas amarelas, diz que ninguém lá não. - Nossa, não ouvi nada, Sr. Arlindo. Coitada da D. Edna e do Xodó. Que ela fique bem logo. Ana foi para o trabalho pensando naquela se- nhora solitária do andar debaixo. De vez em quando o Sr. Arlindo contava detalhes da sua vida, que nesse mo- mento lhe pareceram muito valiosos. Agora Ana tinha a chance de finalmente juntar infecção e mutação viral com alguém conhecido. Na época da dengue, há anos atrás, ela conheceu muitas pessoas que adoeceram gravemente. Algumas até vieram a falecer, mas naquele momento Ana não es- tava atenta a essa relação secreta e invisível entre vírus e ficha pessoal. Agora já não havia mais dengue, não ao menos com esse nome, então não tinha como fazer o rastreamento. Mas a D. Edna lhe trazia a valiosa opor- tunidade de observar, no auge dos seus sentidos aguça- dos, uma relação real entre pessoa e vírus. Dedicou-se, durante a viagem, a recordar co- mentários soltos sobre a vizinha. Pouco a pouco foi com-
26 pondo o seu retrato, juntando também as suas próprias memórias a partir de frases trocadas na escada, no ele- vador ou nas reuniões de condomínio. Ana percebeu que estava animada com o proje- to, mas também triste pela D. Edna. Sentia um profundo afeto por ela e pelo Xodó, seu fiel companheiro. Ambos se arrastavam, em solene silêncio, pelas ruas do bairro, amparando-se um ao outro, em uma velhice comparti- lhada. D. Edna morava sozinha há poucos anos. Depois do falecimento do marido, seu filho mais novo partira para estudar em uma universidade fora do Brasil. Era um pequeno gênio, ela dizia orgulhosa, ainda que sempre muito ressentida. - No Brasil não tem vez para quem é muito bom. Só tem gente ruim na política, em tudo quanto é lugar. Os bons têm que ir fazer a vida fora daqui. E essa era a sua marca mais presente: Um grande ressentimento por ter sido deixada, “abandonada”, pelo marido e pelos filhos. A menina mais velha, já casada e mãe de gêmeos, também tinha ido cuidar da própria vida, como ela dizia. - Parir dois filhos e suportar um marido a vida in- teira, para depois acabar sozinha com o Xodó, meu único companheiro. D. Edna sempre se queixava de tudo e de todos. Era vítima de todas as injustiças. Ana foi juntando cada conversa que recordava,
27 assim como os relatos do Sr. Arlindo. Ao final daquela semana, já tinha preenchido a metade de um caderno, cujo título era “Projeto D. Edna”. Procurando sintetizar o seu perfil, chegou à conclusão de que D. Edna era exem- plar do perfil do vitimismo, da vitimização. Ana teve um dia sobressaltado no trabalho. Nos intervalos procurava mais informações para o seu proje- to de pesquisa sobre o novo vírus. Porém, em lugar de ficar ouvindo detalhes (muitas vezes mórbidos) sobre o estado de decaimento das vítimas, ou o aumento inces- sante da quantidade de infectados, Ana procurava os no- mes, os rostos, informações sobre aquelas pessoas antes de chegarem ao adoecimento e às estatísticas. Encontrou muito pouco material porque parecia que toda a imprensa, talvez toda a sociedade, estava in- teressada apenas nos sintomas e nos números. Médicos, cientistas, ambientalistas, políticos... havia até economistas para falar sobre a queda da bolsa de valores e toda aquela longa conversa em economi- quês, para chegar à conclusão de que o surto global afe- tava o mercado. O mercado parece muito mais importante do que as pessoas contaminadas. Até que seria bom que o tal mercado morresse de uma vez, pensou Ana.
28 Mas não havia, em nenhum site, blog, jornal, notícia alguma sobre as pessoas contaminadas, sobre as suas histórias, suas vidas, seus temores ou desejos. Nada. Eram números em um gráfico em aumento. Ana foi para casa refletindo sobre tudo isso, sobre a prioridade da informação, ou melhor, sobre o que se prioriza como informação. E, enquanto pensa- va, procurava resistir à tentação da frustração. Ana já tinha entendido o poder das emoções para repelirem ou atraírem os bichinhos do mundo. Sentir-se frustrada ou angustiada não lhe traria nenhum benefício, mas sim poderia transformá-la em mais um número na lista. Não era inteligente ficar triste ou decepcionada, frustrada ou ansiosa. Para se contrapor a estas emoções, Ana en- contrara, ao longo do tempo, diversas táticas de alegria, como ela as chamava. Já contava, neste momento, com uma boa quan- tidade de técnicas, ou estratégias, que a reconectavam ao fluxo da vida que corre nas veias, como ela costumava dizer. Ana recitava: “A vida corre nas veias, eu corro na vida, a vida corre em mim, eu sou vida em movimento”. Essa era uma das suas técnicas mais potentes. Ana repe- tia e repetia e repetia essas ideias, cada vez mais rápido, até sentir, na própria pele, a vida acionando todo o seu corpo. Um pequeno tremor lhe sacudia e, em seguida, uma indescritível sensação de bem-estar. Outra de suas técnicas preferidas era cantar. Mas
29 não qualquer canção. Cantava aquelas especialmente selecionadas, cujas letras e melodias também conseguis- sem jogá-la novamente no fluxo, no movimento da vida. Se tivesse que descrever, o medo e a tristeza seriam uma gigantesca pedra cinza sobre as costas. E a vida, que Ana associava à alegria e ao bem-estar, seria como um rio de águas caudalosas, ora conturbadas ora serenas, mas sempre em movimento. - Medo e tristeza são pesos paralisantes; eu prefi- ro a dor e a delícia do fluxo, da vida dinâmica e surpreen- dente! Ana colecionava frases, ideias, canções, imagens, cenas de filmes, poemas, que a reconectassem ao fluxo, à vida. Esse era o seu mecanismo secreto de bem-estar, de alegria. Por incrível que pareça, sempre funcionavam a seu favor. Via pessoas adoecendo ao seu redor, en- quanto ela permanecia saudável. Chegou em casa e, ao entrar pela porta, viu que a acompanhava uma esperança. - Seja bem-vindo, bichinho. Seja bem-vinda, es- perança! Esperança e alegria eram duas palavras que a re- conectavam com a vida. Esperança, como aprendera na escola, “confiança em algo positivo”; alegria, “vivacida- de, animação, ânimo leve.” Com essas duas palavras construía seu mantra pessoal: confiança na vivacidade, confiança no fluxo da vida.
30 Depois da D. Edna, a próxima pessoa de sua con- vivência cotidiana a adoecer foi sua mãe. No mesmo dia que recebeu a notícia do falecimento da vizinha, rece- beu também o telefonema da irmã, informando a inter- nação de sua mãe. Com pesar, Ana disse à irmã que se cuidasse, para não terminar também contaminada. E disse isso in- tuindo um futuro próximo que se confirmaria. Ana sabia o quanto as duas eram parecidas, em termos de tempe- ramento. Já tinha o retrato preciso de seus pontos fortes e fracos. Como boa observadora de pessoas, seu primeiro treino havia sido dentro da casa onde crescera, com a sua própria família. Ana nunca pôde se conectar verdadeiramente com as mulheres da sua casa. Sempre se sentia uma peça desencaixada entre as duas. E o que tinham em co- mum? Eram ansiosas ao extremo. Estavam sempre ten- sas com ideias, projetos, previsões que, na maioria das vezes, não se concretizavam. A festa de um aninho do primeiro filho de sua irmã, ou seja, do seu sobrinho, por exemplo, havia tirado o sono das duas durante meses. Ana via todo aquele alvoroço e não conseguia entender. Pensava que um menininho de um ano não
31 se importaria se havia três ou quatro tipos diferentes de salgadinhos, ou se o tema deveria ser este ou aquele. Para um bebê de um ano, certamente bastaria música divertida e outros bebês com quem brincar, ela pensava. Até que, depois de um tempo, conseguiu ver por trás de tanta ansiedade qual era a preocupação real que as motivava: Se vizinhos e parentes as julgariam boas ou más mãe e avó, respectivamente. Então Ana entendeu uma emoção que se escon- de por trás da ansiedade: o medo, ou os medos, no plu- ral, porque são muitos. Porém, no fundo, todos os pequenos medos se fundem em um grande medo sintetizador, que se desdo- bra: o medo da vida, o grande e fundamental medo das consequências que todos os atos (e até os pensamentos) que realizamos inevitavelmente engendram. Cada ato (feito ou pensado) gera reverberações que se expandem ao nosso redor e, muitas vezes, se es- tendem às pessoas da nossa convivência. O aniversário de um ano do Felipinho era, por- tanto, a expressão do medo de seu próprio futuro e do futuro de ambas: como ser mãe e avó neste devir impre- ciso? A partir deste momento, passou a ter um extre- mo cuidado com a palavra futuro. Ana entendeu que fu- turo é uma palavra, uma ideia, patológica, que adoece as pessoas de ansiedade. Alguma vez escutou, da boca de alguém que não recordava, que ansiedade era excesso
32 de futuro. Bingo! Finalmente alguém conseguira sinteti- zar o que Ana vislumbrava. Portanto, ao perfil da vitimização, Ana agora po- dia acrescentar um outro, o da ansiedade, como perfis que atraíam os bichinhos da morte. Será que eles têm algo em comum? O que po- deria juntar vitimismo e ansiedade? O medo, concluiu depois de alguns dias dando voltas em torno desta per- gunta. A vítima padecia de medo do passado e a an- siosa, de medo do futuro. O primeiro perfil sofria pelas consequências de atos ocorridos e o segundo, pelos que ainda ocorreriam. Então, Ana chegou a uma conclusão ainda mais ousada, que requeria mais observação para ser respalda- da pela realidade: ambos os temperamentos temiam, de fato, a ação, o movimento, ou seja, a vida em si mesma que, inevitavelmente, desestabiliza o que temos como realidade, como cotidiano, como costume ou normalida- de, mas também como expectativa. E eu, pensava Ana, não temo nada? Qual o meu medo mais secreto? Poucos dias depois, Ana acompanhava o enterro da mãe praticamente sozinha, pois a irmã já estava inter-
33 nada. Seu pai fora acometido anteriormente, há quase um ano, por outra das inovações virais. Acompanhava-a apenas a irmã sobrevivente de sua mãe, sua tia Tita, a mulher mais forte que Ana ha- via conhecido. O resto da família escondia-se, cada vez mais, entre as quatro paredes aparentemente seguras de suas casas. Aposto que esse enterro vazio, desolado, não é uma exceção, pensava Ana. Todos se escondiam. Só as mais ousadas, as mais decididas, pareciam dispostas a se arriscar, teimando em se manter vivas, colocando vida onde ainda houvesse vida. Ana abraçou longamente sua tia Tita, uma mu- lher robusta de sessenta e oito anos, a irmã mais nova de sua mãe. Elas eram as únicas pessoas, em todo o ce- mitério e nos seus arredores, que não usavam máscara no rosto. Até o padre, do enterro ao lado, fazia suas rezas escondido atrás da máscara. Ana foi para casa, naquele domingo nublado, pensando em sua infância, e em como se sentia segura e feliz na presença da tia Tita. E Ana era correspondida com o mesmo afeto, por parte de Tita, o que causava uma mistura de inveja e ciúme em sua irmã, nos primos e até em sua mãe. Alguma vez Ana dissera, em uma das tantas dis- cussões com sua mãe, que tinha nascido na família erra- da, que devia ser filha de Tita.
34 Mas Tita nunca se casou e a desconfiança geral era de uma homossexualidade nunca confessada ou as- sumida. Ana se entristecia quando ouvia certas frases agressivas de sua mãe, ou quando percebia seus olhares de reprovação por demonstrar tamanha alegria com a chegada da tia. Mas o que poderia fazer? Ana se sentia muito mais próxima da tia do que da mãe, e com o tem- po já não era mais necessário disfarça-lo. Com Tita conversava sobre todas as suas malu- quices, como dizia Ana, sem nenhum constrangimento. Ana e Tita se divertiam e confidenciavam segredos, per- cepções e sonhos. Alguma vez ouvira de seu pai: Aí vêm as bruxas da família. Divertiram-se tanto com a ideia que fizeram uma camiseta para cada uma: Bruxinha e bruxona. Ana nunca soube das preferências sexuais da tia. Na verdade, desconfiava que Tita não tinha vida sexual alguma, pois este era o único tema sobre o qual não fa- lavam. Ana contava suas agruras com os namorados, e mais de uma vez chorou no colo de Tita, quando por fim decidiu acabar com o seu casamento. E dela ouvia con- selhos que sempre lhe pareceram os mais sensíveis e sá- bios. Mas nunca ouvira, de sua parte, nada desse âmbito da vida. Ana acompanhava a sua tia com muito interesse. Conhecia seus amigos e amigas, pessoas com as quais
35 trabalhava, principalmente. Tita tinha um círculo gran- de de amizades que lhe acompanhara durante décadas, mas nunca conhecera o/a namorado/a. Um dia, quando se sentiu com coragem, pergun- tou diretamente: Tia, quando vou conhecer sua namo- rada? Tita olhou-a longamente, em silêncio, e respon- deu: Você já conhece todos os amores da minha vida... e são muitos. Nunca mais voltaram a tocar no assunto. Seja como for, Ana via em Tita uma mulher forte e radian- te, com uma independência e autonomia que, para sua mãe, era quase uma afronta. Voltando para casa, depois do enterro, Ana se deu conta de como as pessoas que não vivem com medo assustam as outras que sim, vivem com medo; que tem no medo, paradoxalmente, sua base de segurança. Tita era, portanto, mais que uma tia. Era sua ami- ga mais velha. Ana agora tinha quarenta e dois anos, ou seja, entre elas havia uma diferença de vinte e seis anos. E nunca, desde que podia se lembrar, tinham tido qual- quer tipo de desentendimento. No enterro de sua mãe sentiu, pela primeira vez, que Tita estava vulnerável. Viu-a menos forte do que de costume, como se lhe faltasse cor no rosto. Não pude- ram conversar porque Tita tinha um compromisso logo depois do enterro. Despediram-se na porta do cemitério com um longo abraço.
36 Ana não poderia supor, naquele momento, que esse dia se despedira de sua mãe e também de sua tia. As semanas se passavam com uma lentidão inu- sual. De vez em quando o telefone tocava, com interva- los estranhamente longos. Parecia que a cidade estava anestesiada, que o movimento se detinha em slow mo- tion. Até seus chefes estavam desaparecidos. Raramente passava alguém fiscalizando as cabines. A sua colega de turno mais próxima, Solange, também caíra doente e o setor (e toda a empresa e toda a cidade...) estava cada vez mais silencioso. Ana resistia veementemente a assistir os noticiá- rios. Resistia a devanear na rede ou em sites que serviam apenas para mascarar o verdadeiro problema, com uma enxurrada incessante de números, estatísticas e infor- mações que apenas geravam mais distração. Infelizmente, essa distração era efetiva. Quanto mais notícias enfermas, mais pessoas adoeciam. E nin- guém parecia se deter para pensar no problema de fun- do, na raiz de toda aquela tragédia coletiva. - Por que ninguém se pergunta pelas escolhas que, como humanidade, coletivamente, fizemos? O que priorizamos? Essa é uma pergunta tão simples, mas que teria o poder de alterar rumos. Se as escolhas anterio-
37 res nos trouxeram às infecções, então vamos para outro lado! Simples assim... Ana tentava conversar com as pessoas ao seu re- dor sobre suas ideias em relação a tudo aquilo que es- tava acontecendo, mas era uma perda de tempo. Alguns a olhavam com pena, como se ela fosse uma menininha ingênua; outras ficavam chocadas e raivosas, acusando- -a de alienação, de insensível e até mesmo de irrespon- sável. Curiosamente, estas pessoas iam caindo, dia após dia, enquanto Ana permanecia de pé. Já há alguns anos ela decidira testar em si mesma a sua teoria e comprovar se ela poderia ou não ser acer- tada. E, para manter a coerência, Ana procurava sempre a direção contrária da enxurrada mediática, digital, vir- tual, que era incessantemente transmitida. Em lugar de se conectar, pegava um romance ou poemas para ler. Preferia filmes antigos, comédias, às ficções bélicas de cada temporada. Ouvia muita música, sempre cuidadosamente selecionadas: samba, música clássica, MPB, merengue, rap... não importava o estilo ou a procedência, mas sim a energia que dinamizavam no seu corpo. Outra prática fundamental: no horário do almoço e nos fins de semana, Ana caminhava descalça sobre a terra, e procurava se conectar ao seu calor, ao seu pulsar. Para a sua sorte, havia um parque em frente à empresa de telefonia. E, próximo da sua casa, havia uma pracinha bastante arborizada.
38 Quando não estava trabalhando, Ana seria facil- mente encontrada na praça da vizinhança. Lá disputava as árvores com as crianças e, também com elas, se deli- ciava sob o sol. Essas práticas foram metodicamente pensadas. Não eram escolhas de uma hippie rasa, como ela dizia para si mesma. A sua prioridade era clara: o mundo real composto de afetos. O que lhe dava a medida dessa rea- lidade eram os seus sentidos – olfato, tato, paladar, au- dição, visão. Essa era a sua melhor tecnologia, plugada neste mecanismo incrível que era o seu próprio corpo. Portanto, o cuidado com o que via, ouvia, sentia, ingeria, tocava, era fundamental para a sua saúde. Afi- nal de contas, o que era saúde senão um funcionamento integrado e sinérgico do que se pensava, sentia e fazia? No final daquele ano, certamente o mais difícil da sua vida, já não lhe sobravam muitos amigos e familiares. Quase todos adoeceram e outros simplesmente desapa- receram. Naquele momento tão desafiador, ou ela sedi- mentava em cada gesto e palavra todo o seu posiciona- mento vital, ou sucumbia, como quase todos ao redor. Em dezembro a empresa fechava suas portas, de- mitindo todos os funcionários e declarando falência. O mundo super conectado ruía e as pessoas se isolavam
39 cada vez mais. Sem trabalho, em um verdadeiro caos social de dimensões planetárias, Ana tomou a difícil decisão de se mudar para uma cidade pequena, na esperança de en- contrar mais natureza e, com isso, mais amparo. Sua vida nunca fora fácil. Descobrir esse caminho que a levara a priorizar sua pacificação íntima era o re- sultado de anos de intenso e profundo sofrimento. Quando já estava no fundo do poço, prestes a assumir um divórcio conflitivo, logo depois da morte de seu primeiro e único filho, ainda um bebê de três me- ses, Ana se deu conta de que precisava olhar para além daquela dor, para finalmente encontrar uma maneira de amenizá-la. No começo era essa a sua única intenção: ameni- zar a dor. E conseguiu, durante alguns poucos anos, viver esse estado inerte, de anestesia geral. Porém, foi a che- gada do câncer, que a sacudiu com tamanha intensida- de, que a fez entender que precisava se decidir e se posi- cionar. Definitivamente, ou escolhia a vida ou escolhia a morte. Já não havia mais meio termo ou a possibilidade da indiferença. Tita foi fundamental naquela fase. Ana jamais es- queceria o profundo olhar de sua tia mergulhado no seu, procurando resgatar a sua alma, que parecia prestes a se afogar em si mesma, prestes a se afogar no excesso de dor acumulada. Tita, sem dizer nada, questionava sua vitimização
40 e, com isso, sacudia o que lhe restava de força e de resis- tência, para que Ana escolhesse a vida. Todas as vezes que a visitava no hospital, sua tia dizia: vida é movimento e alegria. E em seguida cantava “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima...”. Fe- chando sua performance, estourava em uma intensa gargalhada. Durante as semanas que Ana ficou internada, Tita repetia, com poucas variações, aquela mise en sce- ne. E Ana, pouco a pouco, foi se abrindo à luz da sua gar- galhada. Um dia acordou e pensou que se a vida é movi- mento, então haveria movimentos ruins... e começou a se imaginar derrapando em um curva perigosa... mas o ruim também será passageiro... se tudo é movimento... Nas últimas visitas de sua tia, Ana já sorria e can- tarolava com ela seus sambas preferidos. Depois desse período, certamente o mais difícil de sua história, a sua prioridade era ser uma excelente sobrevivente, uma grande observadora do movimento da vida. Ana compreendera que dirigir sua vida era como dirigir um carro por estradas tortuosas. Se você é uma motorista tranquila, cuidadosa e atenta, saberá a hora certa de acelerar ou frear. E passará pelas curvas perigo- sas sem se amedrontar. Escolher a vida, mas sobretudo escolher ser uma parceira da vida na dinamização do movimento, e não mais a sua vítima melancólica ou revoltada. Há dez anos vinha sobrevivendo às suas próprias
41 fraquezas, e agora, quando recordava essa fase, era como se visse outra pessoa. Ela não se reconhecia mais naquela Ana assustada, frágil, medrosa. Tornara-se uma mulher forte, guerreira, como dizia sua mãe. Ou simplesmente uma parceira da vida, aprendendo sempre com ela a dançar qualquer novo rit- mo que surgisse no horizonte. Numa ensolarada segunda-feira de janeiro, Ana chegou à pequena cidade de quatro mil habitantes que a acolheria por um ou dois anos, ou quem sabe para o resto de sua vida. Trazia na bagagem o mínimo possível. Em uma mala grande conseguira meter toda a sua história: algu- mas peças de roupa, alguns livros e cadernos, além de um álbum de fotografias. Dos objetos da casa, trouxera apenas o seu computador e o radio que a acompanhava há décadas. Há muito tempo prescindia de luxos ou ma- quiagens. Há muito tempo procurava se fixar no estrita- mente necessário para viver com tranquilidade e leveza. A escolha daquela cidade foi baseada no acaso. Ana pensava que movimentos aleatórios são muito des- prezados, embora possam ser muito potentes. É preciso respeitar o acaso, dizia ela. Movimentos aleatórios po- dem ser os mais importantes justamente porque nos le-
42 vam a direções inesperadas. Naquela manhã, Ana chegou à Rodoviária e ve- rificou quais seriam as próximas partidas. Entre os cin- co destinos possíveis, escolheu a cidadezinha no alto da serra, de quatro mil habitantes. E por que esta cidade e não as outras? Porque sempre gostara mais de mon- tanha do que de praia e porque queria um lugar com poucas pessoas. Uma busca rápida no google lhe ajudou a definir o seu novo destino. Ana temia que fosse difícil alugar uma casa em uma cidade tão pequena, praticamente um vilarejo. Mas para sua surpresa havia uma enorme quantidade de ca- sas vazias, simplesmente desocupadas, quase abando- nadas. Havia, também, um pequeno comércio na cida- de, e foi lá que Ana conseguiu as chaves para a sua nova morada. Pôde se dar ao luxo de escolher uma casinha pequena, mas com um grande quintal, onde alguém ini- ciara uma horta e um pomar. Todos a olhavam com desconfiança. Afinal, vir alguém da cidade para aquele fim de mundo habitado por velhos, cachorros e gatos, só podia significar que ela estivesse doente, talvez em estágio terminal, como con- jeturavam no bar da esquina ou na pequena mercearia que ainda abastecia a cidade. Porém, ao verem aquela mulher ainda jovem re- mexendo a terra com tamanha energia, começaram a construir novas teorias sobre a sua fuga da cidade. Talvez
43 fosse uma criminosa vil, ou talvez tivesse sido abando- nada, e um longo etcetera de hipóteses cada vez mais dramáticas. Para Ana soavam divertidas. Ela quase podia adi- vinhar o que estavam cochichando quando ela passava. Mas, depois de alguns meses, Ana já estava colhendo suas próprias frutas e verduras e, com isso, frequentava cada vez menos os ambientes comuns e o pequeno co- mércio da cidade. Curiosamente, havia sido muito mais fácil se ins- talar do que ela imaginara. Precisou comprar poucas coi- sas porque era notório que o dono daquela casa tinha saído às pressas e deixado as chaves com os pais para alugar ou vender a casa. Afinal, seus pais eram um casal de idade já muito avançada para se aventurar na cidade grande. Eles moravam no final da rua, quase na esquina da praça principal. Aliás, a cidadezinha tinha praticamente uma praça, com uma igreja e uma escola, e em volta uma mercearia, um bar, um restaurante e duas lanchonetes. Sua população vivera, anteriormente, em sua época de glória, do turismo fomentado por algumas nascentes de água mineral e uma bela cachoeira. Neste momento, po- rém, os pequenos hotéis já estavam fechados e falidos, e do comércio anterior sobrara apenas um bar e a mercea- ria. Nem a igreja, ou a escola, funcionavam mais. Sua pequena casa tinha dois quartos, sala, cozi- nha e banheiro. E um grande quintal nos fundos, onde
44 aprendera a cultivar. Estava praticamente mobiliada. Ti- nha cama com colchão, geladeira e fogão. Com a mesa e as quatro cadeiras que comprou, além de uma poltrona e uma luminária, sentia-se plenamente confortável. Sem telefone ou internet, Ana viveu os anos mais pacíficos de sua vida neste quintal, nos fundos de sua casa, isolada das atrocidades do mundo que, por sinal, só aumentavam de proporção. Pouco a pouco seus vizinhos foram perdendo o medo, e as saudações matinais se transformaram em amáveis trocas de mantimentos ou de iguarias recém- -preparadas. Ana adorava o bolo de chocolate da vizinha da frente ou a torta salgada da esposa do padeiro. E elas, por sua vez, recebiam felizes as verduras ou frutas que Ana não podia consumir. Assim, com o tempo criaram um pequeno co- mércio de trocas generosas entre a vizinhança. Um dia de dezembro, anos depois de sua che- gada, Ana se deu conta de que a cidade de quatro mil habitantes agora teria no máximo quatrocentos. E até mesmo as vizinhas do seu entorno iam morrendo ou se mudando. Com tristeza, Ana recebeu o último cesto de pães de uma de suas vizinhas, falecida dias depois, e teve que se despedir de várias outras que, apesar dos seus
45 conselhos, teimavam em se mudar para cidades maio- res. A estas alturas já não havia mais prefeito ou policiais. Nem o padre sobrevivera à uma nuvem de inse- tos que varrera a região alguns meses antes da sua che- gada. Ele estava subindo a escadaria principal quando foi tomado de surpresa pela gigantesca nuvem de bichinhos enlouquecidos e barulhentos. O susto o fez rolar escada abaixo. Este episódio foi definitivo para que começas- sem novamente os cochichos sobre maldições e, quem sabe, a proximidade do apocalipse. Muitos se mudaram nas semanas seguintes, por medo de se manterem iso- lados em uma cidade abandonada até mesmo por Deus, como eles diziam. Infelizmente, as nuvens de insetos se tornaram muito recorrentes. Ana vinha conseguindo, quase que por milagre, preservar a sua horta cobrindo-a com uma piscina de plástico há muito em desuso, adormecida em um dos quartos da casa. A primeira vez que Ana teve que proteger as suas plantas dos insetos enlouquecidos se tornou um episó- dio marcante, que a levou a dar um passo além, e enten- der algo novo sobre si mesma e sobre a sua relação com o mundo. Ana sabia que o que de fato impedira aqueles bi- chinhos de destruírem a sua pequena plantação não ti- nha nada a ver com o plástico da piscina, mas sim com a energia que havia jorrado de suas mãos sobre as plantas, quase de forma involuntária, ou intuitiva.
46 Ao ver a nuvem cinzenta se aproximando, Ana lembrou-se da piscina e correu para buscá-la. Mas, ao cobrir apenas uma parte das plantas, se deu conta da fragilidade do plano. Correu, então, para dentro de casa, para se proteger e, de lá, estendeu as mãos em direção ao quintal. Sua única intenção, ao fazer este gesto, era a de tentar se conectar com as plantas, suas companhei- ras cotidianas, e com isso protegê-las. Em um milésimo de segundo, lembrou-se das ex- perimentações anteriores, e da sua forma tão pessoal de se relacionar com os seres que a assustavam ou com as vozes que a agrediam, e entendeu que havia uma chan- ce de proteger a sua fonte concreta de alimentação. Fechou os olhos e entregou-se inteira ao movi- mento de estender as mãos na direção do quintal, com a única intenção de interagir não apenas com as plantas, mas também com os bichinhos. Repartiu-se em duas, como aprendera a fazer no trabalho: Uma parte de si acolheu as plantas, cercando- -as com um abraço invisível, e a outra se permitiu ouvir o que diziam os insetos. Dor e susto, era isso o que os movia. Eles atacavam porque vinham sendo atacados. Agrediam porque vinham sendo agredidos. Ela conectou-se com a sua dor e entendeu que nós, humanos, somos muito mais cruéis com os outros seres, com a Natureza, do que podemos imaginar. Cau- samos muito mais dor e sofrimento a eles do que eles a nós.
47 Desesperados, eles corriam em bando, procuran- do encontrar abrigo para o desalojo sistemático que vi- nham sofrendo. Eles sofriam e Ana se compadeceu. Eles queriam apenas se manter vivos, assim como nós. Ana via, com os olhos fechados, a sombra que materializava aquela dor e, ao mesmo tempo, a luz que se desprendia das suas mãos. Quando o ruído terminou e ela entendeu que os insetos já tinham ido, e finalmen- te abriu os olhos, percebeu que seu rosto estava comple- tamente molhado por muitas lágrimas. Ana já tinha sentido, em vários momentos, e so- bretudo quando mexia com a terra, que saiam fios de energia de suas mãos. Às vezes podia até vê-los, mas dizia para si mesma que era apenas o efeito do sol, da incidência da luz. Não entendia... e, na verdade, se as- sustava com isso. Ela era uma observadora que, com o tempo, vi- nha aprimorando sua argúcia interpretativa. Sua mente se conectava aos seus sentidos e sentimentos e assim, pouco a pouco, Ana foi aprofundando estas relações entre pensamentos, sentimentos e ações corporais. No entanto, fios de energia, brilhos inusitados desprenden- do-se de suas mãos e até de outras partes do corpo, era algo estranho e inesperado.
48 Mas, diante da impossibilidade de agir de outra maneira para defender a sua principal fonte de alimenta- ção, Ana se deixou levar pela intuição, pela necessidade de proteger o que tinha, e estendeu suas mãos num ges- to instintivo, porém certeiro. A partir deste dia já não pôde mais desconhecer esta nova habilidade recém-descoberta. De suas mãos saíram jatos de uma energia clara, brilhante, que prote- geu todas as plantas e também a casa. Ana construiu, em poucos segundos, uma bolha, ou uma cápsula, em torno da casa e do quintal. Quando a nuvem de insetos desapareceu, só ha- via restado duas pequenas plantações na cidade, e a sua era uma delas. Sem saber o que dizer para os vizinhos assombrados, explicava que o plástico da piscina tinha sido a sua salvação. Após esta nova onda catastrófica, os habitantes que restavam na cidade não passavam de quarenta. Co- nheciam-se todos e se apoiavam como podiam. Os quarenta sobreviventes intercambiavam ali- mentos, informações, abrigo e até mesmo afeto. Neste grupo formado por idosos, em sua maioria, havia tam- bém alguns jovens e até mesmo uma criança. Ana acabou se conectando mais com o jovem casal, pais da pequena Alicia. Eram argentinos e haviam chegado à cidade algumas horas antes da nuvem de in- setos, fugidos de outras tantas que haviam conhecido pelo caminho, por onde encontraram apenas dor e de-
49 sespero. Agora moravam na pequena edícula, acolhidos por Ana, no fundo do quintal de sua casa. Os quarenta habitantes da cidade se encontra- vam aos domingos para uma feira de trocas e almoço coletivo. Cada um trazia o que tinha e passavam juntos todo o dia. Nos primeiros encontros o ambiente era de consternação, de assombro. Não entendiam como e por que ainda estavam vivos, já que iam tombando os co- nhecidos e os desconhecidos. Pouco a pouco, conversando, foram se dando conta do que tinham em comum, pois o que os diferia era óbvio: no grupo havia donas de casa, uma cuidado- ra, um contador, advogados e enfermeiros aposentados, uma manicure, dois lixeiros e várias professoras e profes- sores. Em termos de idade, a maioria estava entre qua- renta e cinco e cinquenta e cinco anos. Alguns mais ve- lhos e poucos mais jovens. Ana, nesse momento, já es- tava a ponto de cumprir os seus cinquenta e cinco anos. Entre todos, apenas três casais: os jovens argentinos, o casal de lixeiros e um casal de professoras. Todos os ou- tros tiveram que suportar a dor da perda de familiares mais próximos, assim como Ana. O que os assemelhava? Pensavam todos e Ana,
50 particularmente. Por que ainda sobreviviam, fortes e saudáveis? Na verdade, tinham muitas coisas em comum. A principal era, certamente, uma inabalável vontade de viver. Cada um deles, a seu modo, se deleitava com pequenas ações cotidianas que se erguiam, estrategi- camente, como muralhas contra as quais o sofrimento se batia. Duas irmãs, ambas professoras, sorriam terna- mente quando cantavam. Gostavam de fazer o mesmo dueto da infância e sempre se alegravam com os aplau- sos que elas mesmas se davam. Já Xavier, um dos lixeiros, desfrutava da sua co- leção de selos. Se houvesse quem o escutasse, poderia passar horas a fio descrevendo cada detalhe, minucio- samente. No grupo havia donas de casa que se esmeravam em cozinhar, com os poucos recursos que lhes restavam, pratos saborosos. Havia quem cuidasse, como a um fi- lho, seus cachorros e gatos, quem se alegrasse ao obser- var, a cada dia, as cores do pôr do sol, quem escrevesse poemas e canções, quem se deliciasse ao correr pela ci- dade, e havia ainda quem encontrasse nos seus próprios sonhos, de cada noite, misteriosas cifras para serem de- cifradas ao longo do dia.
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