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Velhas Castas - Manoel Alves Proença

Published by Ruy Proença, 2020-12-17 12:59:30

Description: Romance finalizado pelo autor em 1968. A narrativa se passa nas décadas de 1930 e 1940, entre as cidades de Campinas e São Paulo. Trata-se de uma crônica de época, confrontando valores e costumes de diferentes atores da sociedade paulista da época, como famílias decadentes oriundas da atividade cafeeira e famílias constituídas por imigrantes italianos.

Keywords: Romance,Ficção x Sociedade,Século XX x São Paulo

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— Está presente à reunião o novo médico que ofereceu os seus serviços ao nosso asilo, a partir deste momento. Está bem recomen- dado, chama-se.... Com a mão trêmula tentou abrir a carta do Frei Bibiano. O visi- tante segredou-lhe o nome, ao seu lado. — Dr. Carlos Ungaretti... — disse ela. — Cesar Ungaretti — corrigiu o médico, em voz audível. — Cesar Ungaretti — repetiu ela. Vai ele dar-nos sua colabora- ção espontânea. O Conselho deve apreciar seu oferecimento. Está em votação. Observou-se uma pausa, percorrendo ela as presentes com o olhar. Uma voz se fez ouvir. Era Ifigênia. — Os nossos Estatutos determinam a apresentação do “curri- culum”. — Os Estatutos dizem isso? — Sim, senhora presidenta. É uma formalidade. Alguém passou à condessa a Lei Orgânica da Sociedade, que ela pegou. — Dona Ifigênia diz, deve ser. O senhor tem? — perguntou à Ungaretti. — Creio que o trouxe — respondeu tomando a pasta que tinha depositada na sua frente. Demorou propositadamente remexendo dentro dela diversos papéis. Procurava dessa forma readquirir o controle emocional de que tanto precisava naquele momento, em que sentia as entranhas em ebulição, pela intempestiva e desnecessária interferência da .99.

mãe de Isabel. Considerou em como sua mãe tinha razão em o aler- tar acerca da maneira inamistosa das “baronesas”. Já havia se sentido melindrado pela atitude de indiferença com que tinha passado por sua frente, via agora configurada sua animadversão no aparte dado, levantando uma questão de ordem inoperante. Experimentou incontido desejo de fulminá-la e entre- gou o “curriculum vitae” à presidenta. — Leia o senhor mesmo — disse ela. Cesar apanhou-o novamente e deu ênfase à voz, ao dizer: — Talvez a Exma. Senhora que arguiu queira ver, ela própria. Ifigênia mordeu os lábios, ao responder: — Não, senhor. Falou então, com voz firme: — Não vou me reportar às notas do curso, para não cansar; cin- gir-me-ei apenas às láureas obtidas e alguns certificados compro- batórios: um ano na Seção de Acidentados da Santa Casa; dois anos como assistente do Professor Alvim; láurea da Associação de Medi- cina por meu trabalho sobre enxertia óssea; láurea da mesma As- sociação pela inovação da técnica de operação da tíbia; certificado do Curso na Escola de Medicina de Palermo; certificado por minha atuação no hospital da mesma cidade; Menção Honrosa do Governo Italiano pelos meus serviços prestados nos Hospitais de Sangue na campanha da Eritreia, durante a guerra... A condessa perguntou se alguma das presentes ainda desejava fazer qualquer objeção e como ninguém se manifestasse, deu por aprovada a indicação. O médico levantou-se. — Minha missão está finda. Peço às respeitáveis senhoras licen- ça para retirar-me. .100.

A Condessa de São Padro obstou-o com um gesto. — Não tenha pressa, doutor. Faça o favor de sentar-se, assim poderá ajudar-me. Simpatizei com o senhor, sei que vamos ficar bem servidas. ❧ Dias mais tarde, relatando à sua mãe as peripécias daquela reu- nião, ouviu-a comentar: — Criaturas assim não podem ser felizes. Frequentam a igre- ja, comungam, dizem-se religiosas... que espécie de religião é essa, quando Deus condena o orgulho e a malquerença? De que servem tanta riqueza, títulos de nobreza, quando o coração está cheio de rancor? Ainda bem que você se portou com serenidade... — Serenidade, mãe? Bem que estive a ponto de explodir, naque- le momento, mas me contive. — Então, por que se conteve? — Aquelas criancinhas do asilo, principalmente as duas para- plégicas que precisam de mim. Elas não saíam do meu pensamento naquela hora. .101.



X Reclinada sobre a máquina de costura, junto à janela dando para o Sul, Camila remendava peças de roupas usadas, que a ar- rumadeira ia colocando num grande cesto de vime, a um canto. Quando não eram roupas de cama ou de uso pessoal, costurava vestidinhos ou agasalhos para ofertar aos asilos de menores ne- cessitados, preenchendo por essa forma o vazio de sua existência de solteirona, dependente e submissa, sem outra alternativa senão sentir o escoar melancólico do tempo. Rememorava então o fastígio da mocidade, quando os pais, ainda vivos, podiam proporcionar- -lhe vida faustosa. De quando em quando interrompia o trabalho para uma pausa repousante, lançando a vista para o casario da baixada a estender- -se pela colina, até encontrar as encostas do Morumbi distante, em cujo dorso podiam vislumbrar-se as primeiras mansões senhoriais, entre o arvoredo vetusto. Endireitava então o busto, aspirando o ar profundamente. A vivenda de Roberto Peçanha situava-se em casa alugada, eri- gida no começo do século no espigão que separa os Vales dos rios Tietê e Pinheiros, na elegante avenida idealizada pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima: a Avenida Paulista. Construção antiga, .103.

uma mescla do barroco — com seus exageros e adornos — com um leve toque bizantino a atestar a origem do primitivo dono. Revesti- da dos melhores materiais, ao tempo em que mesmo o cimento e os pregos eram de procedência estrangeira. Também com profusão de magníficos mármores de Carrara, era uma mansão bastante con- fortável. Essa vivenda fora escolhida por Roberto por situar-se nas ime- diações de suntuosos palacetes, como o do Conde Salviano e o do Comendador Gustavo Siqueira, sendo este quem justamente o atra- íra para sua vizinhança. O outono não chegara ainda ao seu termo, entretanto a cidade fora invadida por quente vento noroeste, enchendo o ar de umidade. Camila recostou-se na cadeira, deitando a cabeça para trás, no intuito de aliviar a fadiga. Pensava na sua condição de dependente, vendo os acontecimentos se desdobrarem na rotina cotidiana. Abú- lica, sem ânimo para interferir, omissa diante da presença prepon- derante da irmã, em quem reconhecia elevado senso e critério na condução dos assunto familiares. O próximo casamento de Márcia e sua consequente mudança para o bairro do Pacaembu exercia desde logo um processo de pe- noso esvaziamento em seu espírito, já que era tão apegada a ela. Ifigênia bem percebera seus sentimentos, recomendando a ­Isabel maior dedicação e companhia à tia, para suprir a ausência da irmã. A arrumadeira apareceu pela terceira vez trazendo mais peças para depositar no cesto e Camila observou: — Joana, por que você não vai ajuntando tudo, para trazer de uma só vez? .104.

— Eu só vejo os rasgos quando estou passando a ferro, D. Cami- la. Quem costuma separar as defeituosas é Dona Catarina. — Catarina já voltou? — Chegou agorinha mesmo, está trocando o vestido. — Peça a ela para vir cá. A governanta tinha saído pela manhã a chamado da filha, a fim de conduzir a netinha à Santa Casa da Misericórdia, onde se submetia a tratamento. Bastante eficiente, comandando as empre- gadas com vigorosa disciplina, cuidava ainda dos abastecimentos culinários com zelo e probidade, para gáudio de Ifigênia, liberan- do-a parcialmente para suas digressões sociais. A governanta não demorou, trazia o rosto contraído e Camila perguntou: — Como vai a menina? — Nada bem, dona Camila. Passei toda a manhã no hospital, os médicos falaram... Tinha a voz embargada. Isabel aproximava-se nesse instante e encostou-se à máquina de costura para ouvir. — Que tem ela? — Falaram um nome difícil de entender... só sei que ela está ficando com uma perninha mais curta do que a outra e vai precisar botar um aparelho... — Poliomielite, paralisia infantil — murmurou Isabel. — Isso mesmo. Nem penso que Lenita venha a ficar aleijada, Santo Deus! — Que pena! Uma criança tão linda! — Para a senhora ver, D. Camila! Não sei onde foi pegar essa doença. Deus não devia deixar acontecer essas coisas, ainda mais que somos pobres! .105.

— Não blasfeme, Catarina. Isso acontece à revelia de Nosso Pai! É uma provação que pode atingir qualquer um, indistintamente, seja rico ou pobre, talvez para experimentar a nossa paciência. É profundamente lamentável que tenha acontecido com Lenita. — Peço desculpa, D. Camila. Estou com a cabeça tonta e nem sei o que mais pensar! Minha filha Elza trabalha no Laboratório e o João não pode abandonar a oficina mecânica. Os olhos da governante se encheram de lágrimas, que procurou enxugar com a ponta do avental. — Não desanime, tenha fé em Deus e tudo há de se arrumar. Era o mais que podia oferecer naquela conjuntura, apenas pala- vras de conforto, bem compreendia ser o mínimo, ou nada, a repre- sentar para a governante. Esta continuou. — Dantes a menina passava o dia brincando com as crianças da vizinha que tomava conta dela. Agora a vizinha vai mudar e Elza deu a entender que precisa de mim para ficar em casa. Estou tão desnorteada e não sei o que fazer! Acho que vou pedir uma licença à D. Ifigênia, até ver no que fica o tratamento da menina. Isabel ouviu todo o diálogo sem interferir. Tanto ela, como a tia, achavam-se sinceramente compungidas. Lenita era uma criança realmente bela, nos seus cinco anos, um rostinho maravilhoso, re- alçado por cabelos louros e olhos de um cinza vivo. Estivera diver- sas vezes em visita à avó, deixando em todos agradável impressão. Esse infortúnio atingia a todos, igualmente. Vendo Catarina afastar-se, comentou Camila: — É estranho como essa moléstia escolhe as mais lindas criatu- ras para holocausto! São tantas as meninas lindas, marcadas desde a infância pelo ferrete da doença. .106.

— Temos de fazer alguma coisa, titia. É inconcebível uma me- nina tão interessante e simpática tornar-se deformada! — Não está em nossas mãos contrariar os desígnios da Provi- dência. — Falarei a papai, talvez possamos ajudá-la. — Tente, Isabel. É claro que devemos. — Podemos amanhã fazer uma visita e levar alguns presentes. Quer ir comigo? — Sim, precisamos visitar essa gente, levar a essa família algum conforto. Catarina poderá ir em nossa companhia. ❧ A filha da governante residia nos lados do Brooklin Novo, em rua ainda não pavimentada, em modesta casa comprada a presta- ções, como o permitiam as condições econômicas do marido, mecâ- nico de profissão. Era bem de ver o transtorno trazido ao casal pela enfermidade da filha. As duas mulheres foram na manhã seguinte fazer a visita. En- contraram a pequerrucha estirada no fundo da sala, em uma en- xerga, despreocupada e inconsciente do mal a insinuar-se insidio- samente, enquanto a vizinha de Elza procurava explicar a dificul- dade de continuar tomando conta da menina, por ter de mudar-se para muito distante. Era esta circunstância que impunha a Catari- na a necessidade de afastar-se temporariamente do serviço, para dedicar-se a ela. Isabel levou uma de suas bonecas italianas para Lenita, recebi- da com vivas demonstrações de alegria. A menina agarrou-se a ela com frenesi. .107.

— Ah, como é bonita! — Você gosta? — Minha boneca é pequenininha, esta é grandona! — Tem cabelos louros como os seus e tem também olhos quase azuis. Vai precisar batizar e por nome. — Vou chamar ela de Lili. — Muito bem, é um bonito nome. Vai me convidar para madrinha? — Vou sim. Elza conversava a um canto com a vizinha, mais a mãe e Ca- mila, mas não deixava de acompanhar de longe os movimentos da criança, recomendando a certa altura: — Você não agradeceu o presente, filhinha. Lenita atirou-se ao pescoço de Isabel, enlaçando-a com vivaci- dade, podendo a jovem notar a simplicidade das veste da menina, entretanto muito limpas e asseadas, ela própria tresandando a per- fume de sabonete. Ouviu ainda a mãe aconselhando: — Não aperte tanto assim Dona Isabel, Lenita. Você está amar- rotando o vestido dela. — Deixe-a abraçar-me, Elza, adoro crianças. Retribuiu o beijo da garotinha, experimentando enternecida a sensação de solidariedade humana. A observação da tia na tarde anterior, de alcançar a poliomielite criaturinhas belas, tornava-se então mais patente, diante daquela pequerrucha tão inocente e des- preocupada. Foi comovida que se despediu. — Preciso ir, meu bem. — A senhora vai voltar? — Sim, voltarei qualquer dia. Que é que você mais gosta, para eu trazer? .108.

— Chocolate. — Vou trazer um saquinho, está bom? — Deste tamanho? — levantou as mãozinhas. — Sim, desse tamanho. ❧ A cena presenciada na casa da filha da governante não tinha ainda se dissipado em sua mente, quando Isabel viu chegar Frei Bi- biano em sua casa. Correu para ele. — Ora, viva, tio! A que devemos esta surpresa? — Saudades de vocês, aí está! Não tenho visto vocês, ultima- mente, então meu Pai me mandou aqui, para abençoá-los... e tam- bém para filar o almoço. Quando se achavam reunidos à mesa, o assunto veio à baila, como não podia deixar de acontecer. Isabel relatou a visita feita com sua tia, expondo as dificuldades do casal, apelando aos pais no sentido de encontrarem uma solução para o caso. A menina iria necessitar de um aparelho ortopédico e eles não estavam em con- dições de comprá-lo. Rogério respondeu: — O problema não é assim tão simples, minha filha. Esse apa- relho necessita de correções periódicas, que só podem ser feitas em hospitais, por médicos especializados. Homem prático, lembrou-se do Asilo Santa Ernestina. — Quem pode dizer alguma coisa é sua mãe. Ela participa da di- reção de um asilo que, segundo consta, dispõe de meios adequados. .109.

— O Santa Ernestina? Não me parece que disponha de tais faci- lidades — respondeu a esposa. O monge atalhou: — Se minha cunhada me permite, penso de maneira diferente. Sei que tem um pavilhão próprio e conta lá duas paraplégicas em observação. Conseguimos agora um médico jovem e competente para cuidar delas... o filho de nosso velho conhecido Dr. Enzo. Ifigênia curtia ainda o travo do último encontro com o filho de Ungaretti e não se conteve: — O neto do João Passarinho? O frade procurou corrigir delicadamente. — Sim, esse mesmo. Seu avô, meu falecido amigo João Fonseca, um excelente homem. — A família dele trabalhou alguns anos para nosso pai. — Era um apaixonado por canários e pintassilgos e natural- mente tornou-se conhecido por essa alcunha, que não mais o dei- xou. Tanto ele, como a esposa Dona Ofélia e a filha, eram pessoas dignas. Conheci-os todos bem de perto, por morar nas proximida- des. Muitas vezes, quando menino, eu passava por sua casa para admirar a grande quantidade de pássaros. Fonseca explicava-me pacientemente os seus processos, animava-se pela minha curiosi- dade, dava-me informações detalhadas. Sua casa estava sempre cheia de gaiolas, foi tomando verdadeiro amor pelas avezinhas, ob- servando-lhes os hábitos e preferências. Inteligente e curioso, ad- quiriu tratados de ornitologia, tornando-se profundo conhecedor da matéria. Quando deixou a fazenda do vosso pai, transferindo-se para a cidade, passou praticamente a viver da criação de aves cano- ras, promovendo acasalamento de canários com pintassilgos, ob- .110.

tendo hibridações interessantes. Com o aprimoramento e seleção, seus canários amarelos passaram a obter preços elevados e procu- ra imprevista, exceção dos híbridos, por serem estéreis. A fama do Fonseca, ou João Passarinho, como era realmente conhecido, espa- lhou-se fora de Campinas, não raro recebendo encomendas de São Paulo e do Rio, e mesmo de outras cidades mais distantes. Falava com entonação natural, como um professor em aula, não obstante Ifigênia sentiu um calor subir-lhe ao rosto, ao dizer: — Bela dissertação, Frei. Bem dignificada a memória do nosso velho funcionário. — E quanto ao neto, conto com ele, seguro de desempenhar a contento a tarefa atribuída por vocês, do Conselho de Administração. Isabel acompanhava a conversação, atenta ao diálogo e interferiu: — Podemos contar com a sua boa vontade, mamãe? — Pode sim — assentiu ela. — Fica então sua mãe incumbida dos passos necessários — fa- lou Rogério. Ela cuidará da internação da menina, se a família de- sejar. Poderemos ajudar nas despesas. O frade lembrou: — Seria bom irem pensando num enxovalzinho para ela. O asi- lo é pobre e necessita de auxílio. Todos passaram a porfiar na contribuição a ser dada. Ifigênia abriu a primeira oferta. — Vou comprar o pano. — Farei as costuras — ajuntou Camila. Apesar de andar atarefada com seu enxoval, Marta associou-se. — Darei uma mãozinha no que puder. — E eu? — perguntou Isabel. .111.

— Fará os bordados — alvitrou a mãe. — Bem lembrado, farei os bordados. O monge esfregou as mãos, satisfeito. Sua visita tinha contribu- ído para aquele ato de caridade. .112.

XI Isabel aproximou-se da larga janela envidraçada, olhando a chuva fina a molhar os telhados. Meio escondidos sob a fronde das árvores do Jardim América, estendiam-se a perder de vista, lá em- baixo. Pôs-se a pensar, desconsolada, em todos aqueles dias de es- tação chuvosa a perturbarem seus passeios prediletos. Não podia sair na companhia de amigos ou frequentar reuniões. Atentou para a irmã, sentada próxima e inteiramente absorvida na leitura de um romance moderno, considerando a perspectiva de se separarem em breve. Não obstante o antagonismo de tempera- mentos entre ambas, de certa forma tinham pontos de aproxima- ção, não somente pela vida em comum, como pela exígua diferença de idade. Sua mãe, com a inteligência e o tato que lhe eram peculiares, acabou vencendo a batalha para afastar Márcia de Alceu Mendes, por quem ela se sentia atraída, aproximando-a do filho do Desem- bargador Drumond, família de nobres antecedentes, como a sua. Alceu, um parente afastado, estroina por natureza, desbaratou em pouco tempo o dinheiro deixado pelo pai, em orgias e exibições na Hípica. Era um rapaz cativante e belo, inteligente e de maneiras insinuantes. Vendo eclipsar-se em pouco tempo o pouco que resta- .113.

va da fortuna, atirou-se atrevidamente à conquista da filha de Ro- gério, despertando viva reação de Ifigênia, que não via com bons olhos essa união. O casamento de Márcia com Renato Drumond estava prestes a se realizar, levando agora Isabel a pensar seriamente na sua condi- ção de solteira. Não que sentisse ansiedade de decidir, era uma si- tuação que realmente não a inquietava, mas bem sabia que sua mãe passaria a pressioná-la em seguida, no sentido de uma definição a favor de Marcelo Siqueira, que a cortejava há dois anos. Por sua mente desfilou então a série de iniciativas de conhe- cidos que a rodeavam, algumas de duração efêmera, somente Marcelo persistindo ainda. Quem poderia afiançar sua constante fidelidade? Era ref letindo na possibilidade de que a aproximação poderia dar certo que o alimentava sutilmente, mas sem se definir. Afinal, em sua concepção juvenil, que era o casamento? A união de duas pessoas do mesmo nível social, quase sempre patrocinada pelos familiares, em que não raro conjugavam interes- ses patrimoniais. Este pensamento não deixava de causar-lhe certo desconforto mental, embora julgasse Marcelo um moço digno e educado, de fí- sico apreciável, fácil convivência. Certamente teriam filhos e, com estes, todos os problemas de criação e formação moral, para que a geração cumprisse a sua marcha. Alguns romances conhecidos tratavam de paixões delirantes e avassaladoras, levando quase sempre as personagens a situações dramáticas, cometendo às vezes verdadeiros desatinos. Notícias de jornais falavam de dramas passionais e desfechos violentos. Seriam explosões de indivíduos frustrados, de instintos primários, o que .114.

não era dado constatar em sua esfera social, mas sim e apenas entre as classes menos favorecidas. Ante a ideia do casamento da irmã e consequente afastamento, experimentou um misto de depressão e abandono, foi assaltada por um ímpeto de ternura. Entregue às suas divagações, Isabel pôs-se a tamborilar com os dedos nas vidraça, quando Márcia apostrofou-a, de maneira inusitada: — Irra, Isabel! Quer fazer o favor de parar com esse tambor? — Pois não senhora duquesa — respondeu a outra, parando de bater. Tudo teria terminado aí, se a irmã não insistisse: — Como é possível ler sossegada, com esse barulho. Quando a gente chega na parte mais interessante, começam meus ouvidos a receber esse tum-tum-tum! Isabel passou a mirar as unhas com displicência, respondendo com leve remoque na voz. — Também, para ler um livro desses... — Não tem nada de mais. É um autor muito conceituado. — Para certos leitores. — Qual é a restrição? — Não se faça de inocente, Márcia. É sabido que existem passa- gens escabrosas, que fazem corar. — Ora, a santinha! Como sabe? Já leu, para criticar? — Não é preciso ler para saber o que o livro contém. Ouço co- mentários, é o bastante. — Pois eu não vejo nada demais. Não é tão imoral assim, como você pensa, a não ser para quem lê com segundas intenções — e Márcia sublinhou as últimas palavras. .115.

— Então por que trata de esconder o livro, quando mamãe está por perto? Isabel era teimosa e a irmã, assim apertada, foi tomada de re- pentina fúria. — Vamos parar com essa impertinência! Não estou disposta a levar pitos e você não é minha mãe. Fechou o livro com força, atirando-o para cima de uma mesinha a sua frente. O impulso dado foi além do que desejava, atingindo uma estatueta de porcelana, que foi ao chão, partindo-se em dois pedaços. Atraída pelo ruído, Ifigênia assomou à soleira da porta, inter- rogando: — Que se passa nesta sala? — Pergunte à Márcia — respondeu Isabel. — Logo este presente de casamento de prima Henriqueta e sei bem que não deu pouco dinheiro por ele. Dizia ser um “porte-bo- nheur” — exclamou Ifigênia compungida, apanhando as duas par- tes no chão. — Mande consertar, mamãe — falou Isabel. — Que pena! Realmente, com este bibelô a felicidade entrou em nossa casa. Sempre tive muito apreço por ele. Agora foi Márcia, que ironizou: — É verdade, mamãe; mande as duas peças ao seu Avelino e vai ver como volta perfeito. É até capaz de dobrar a nossa felicidade. — Deixe de sarcasmo, menina. Isso não tem propósito. Claro que mandarei consertar, para Henriqueta não perceber. Poderia estranhar se não mais a visse aqui e sabem como ela é melindrosa... .116.

Voltando a outra ordem de ideia, acomodou os pedaços da peça em uma caixa, no desejo de não aprofundar os motivos da disputa, propondo: — Em lugar de estarem aí a discutir, por que não vão dar uma vista d’olhos na lista dos convidados para o casamento? Os convites impressos já vieram e temos bastante o que fazer. Somente do nos- so lado são perto de duzentos envelopes a encher. As duas podiam dividir o trabalho, verificando que possam não ser esquecidos al- guns de nossos melhores amigos e conhecidos. — Renato ficou de trazer os dele hoje, não acha mais acertado esperar? — interveio Márcia. — Não devemos deixar tudo para a última hora, minha filha. Lembrem-se que têm de ser entregues pessoalmente e não há muito tempo a perder. — É que pode haver duplicatas... — É possível que isso aconteça, não serão muitas. É preferível perdê-las que atrasar. Dirigiram-se ao escritório onde tia Camila examinava a relação deixada por Rogério, na maior parte pessoas a ele ligadas por vín- culos comerciais, muitas, desconhecidas das famílias, entretanto elementos de projeção, na cidade. Camila não deixou de pilheriar: — Já pensou no suplício de ficarem coladas à parede da basílica, depois do ato, vendo deslizar uma corrente interminável das mais estranhas caras, a dirigirem cumprimentos, repetindo sempre as mesmas coisas? É um nunca acabar de gente, já imaginaram quan- tos apertos de mão? Ifigênia respondeu: .117.

— Pior que os apertos de mão são as mulheres que nos beijam e nos abraçam, murmurando palavras que nem sempre conseguimos entender, algumas até desastradas, a nos entortarem o chapéu que nos deu trabalho em colocar... Passaram o resto da tarde no afã de sobrescritar os envelopes. O tempo foi melhorando aos poucos, uma claridade difusa inun- dou o aposento e Renato apareceu sobraçando uma pasta repleta de convites, já com os endereços colocados. Depositou-os sobre a es- crivaninha. Beijou sua noiva, cumprimentou as demais, enquanto Ifigênia apanhava uma toalha, enxugando solícita a roupa do futu- ro genro, respingada pela chuva. — Que sogra maravilhosa arranjei! — brincou Renato. Quando é que alguma vez minha mãe se deu ao trabalho de fazer isso? Sim- plesmente ordenava: “pegue uma toalha e enxugue a roupa”. — Hoje você é hóspede — respondeu ela. E lembre-se que as mães têm liberdade com os filhos. — Acho bom não me acostumarem com esses mimos, para não me botarem a perder. De qualquer forma, muito agradecido. Ifigênia virou-se para as filhas: — Vejam como o Renato não perde tempo. Trouxe tudo ter- minado. Aproveitando a saída das filhas acompanhando o futuro genro, à noite, Ifigênia e Camila resolveram examinar os nomes dos con- vidados do desembargador, amigos do magistrado, pessoas larga- mente conhecidas, ligadas à Justiça. Camila, mais desenvolta, ia lendo os endereços, juntando-os em bloco, que passava à irmã, quando a via virar o último subscrito. .118.

Ifigênia lia-os atentamente, ajuntando de quando em quando um comentário pertinente. — Este já está aposentado. Este foi juiz em Campinas, você lem- bra? Este aqui é o novo Presidente da Caixa Econômica. Este... upa! O Secretário da Justiça! Levantou os olhos para a irmã. — Tudo gente da melhor qualidade. Só penso agora que quando Isabel casar com Marcelo os convidados serão em maior número, porque pretendemos incluir a alta finança do país. Essa bobinha precisa desatar logo... — Ainda não deu o estalo... — Estou contemporizando até casar Márcia, não devemos for- çar. Isabel é uma menina difícil, conheço-a bem, precisa ser levada com jeito. Um tanto contraditória em certas ocasiões, obriga a gente a agir com paciência. De qualquer maneira, terá de decidir. Clara e eu nos entendemos perfeitamente, ela já insinuou abertamente sua satisfação em contar minha filha como sua nora, o mesmo aconte- cendo com o marido. Subitamente Camila destacou um envelope e a irmã notou o seu movimento de espanto. Perguntou intrigada: — Que é? — Estranho como as coisas acontecem! — Fale... — Você nem vai acreditar! — Para quem é? — Jamais poderia pensar e você vai cair das nuvens quando souber! — Você me deixou curiosa. .119.

❧ Recebeu o envelope das mãos da irmã e leu nele o nome do Dr. Alcides Fajardo, o homem que seria hoje o seu marido, se seu pai não se tivesse arruinado, deixando-a na pobreza, ao morrer. Levan- tou a cabeça, a olhar para o teto, enquanto o pensamento fazia uma volta ao passado. Quando jovem, como as moças da sua idade sonhava com o seu príncipe encantado. O belo bacharel cearense aparecera na cidade pela mão de seu pai, então onipotente. Fizera-lhe a corte, tornando- -se seu noivo a breve tempo, acenando-lhe com um porvir cheio de encantamento. Ao ver a degringolada do futuro sogro, não tivera o suficiente escrúpulo para aceitar a situação. Rompeu o compromis- so, ao tênue pretexto de precisar abandonar Campinas, removido para outra comarca. Não podia esquecer igualmente a felonia de Célia Medeiros, sua mais íntima amiga, arrebatando-lhe o noivo e casando com ele. Fajardo subiu, percorrendo algumas cidades do Interior, promo- vido a Juiz de Direito. A rica Célia, como boa poedeira, encheu-o de filhas, duas delas casando nas cidades por onde passaram em sua movimentada trajetória, outras três ainda solteiras e estudando. Transferido para a Capital, seu nome foi indicado para uma das vagas do Tribunal de Alçada, mercê dos seus dotes jurídicos. Não exerceu o cargo por muito tempo, acometido por leve derrame cere- bral, ocasionando parcial paralisia locomotora. Ifigênia tivera oportunidade de vê-los certa manhã, na Igreja da Consolação, em cerimônia religiosa por intenção de amigo comum. Viu Célia entrar, muito enxundiosa, metida num vestido de péssi- .120.

mo gosto, amparando o marido pelo braço, arrastando o Juiz uma perna com grande dificuldade, qual paraplégico, e com um olho a lacrimejar constantemente. Malgrado o profundo ressentimento ainda latente, naquele ins- tante teve sincera pena do casal. Afinal, Deus escreve direito por linhas tortas, preservando-a de tal infortúnio. Que ao menos pudesse a amiga da juventude absolver-se da fal- sidade cometida, pela penitência que estava cumprindo. Olhando então para Rogério, a seu lado, soberbo e sólido, experimentou in- contido desejo de aconchegar-se mais a ele, num íntimo assomo de imensa felicidade. Falou para Camila: — Como Deus tece o destino da humanidade! Acho-me plena- mente recompensada dos contratempos de solteira, por ver que Êle não nos desamparou. Lamento a infelicidade desse homem, mas não a ponto de recebê-lo em minha casa. Rasgou o envelope ao meio. .121.



XII Desde quando se fizera sócio da Sociedade Hípica Paulista, Ce- sar tratou de encontrar um cavalo que pudesse oferecer um bom desempenho nos saltos com obstáculos. Aldrovando Marques indicou-lhe um belo corcel, criado por um amigo. Não tinha aprovado nas corridas de fundo, revelando po- rém excelentes predicados em saltos. Potengi, o belo castanho, foi assim transferido para as cocheiras da Sociedade. Quando dispunha de manhãs livres o jovem médico compare- cia à Hípica, mandava encilhar o animal, cavalgando largo tempo, procurando com ele integrar-se. Após algumas sortidas, então mais familiarizado com a montaria, passou a treinar saltando os primei- ros obstáculos, do que se saíram plenamente a contento. Potengi era brioso, demonstrando aceitar o novo dono. Ao chegar à cocheira nessa manhã, encontrou o cavalariço no mister de escová-lo, esfregando a raspadeira no pelo luzidio. Ce- sar achegou-se, passando a mão no pescoço e no peito do animal, afagando-o. — Bom dia, meu velho. Recebendo a ração? Ao que vejo, nem sempre está certo o dito do filósofo, julgando-se feliz em ter nascido homem e não cavalo. No teu caso foi melhor mesmo nascer cavalo, .123.

tendo de tudo: cocheira limpa, boa forragem, cama macia, veteri- nário, bom trato... o que me diz? Gimenez tem tratado bem de você? O animal sacudiu a cabeça, parecendo responder afirmativa- mente. O cavalariço interveio, enquanto passava a raspadeira. — Está vendo, patrão? Não quer outra vida! Arreado o cavalo, partiu para praticar nos obstáculos. Dese- java exercitar-se discretamente, por ser o animal ainda um no- vato, e desconhecer suas possibilidades nas competições que se avizinhavam. Montava bem, tinha disso consciência, contudo não se animava a enfrentar cavaleiros veteranos como Aldrovando e Marcelo sem ter bom preparo, por serem eles os melhores das temporadas anteriores. Por mais de uma vez estivera observando o treinamento de alguns deles, na expectativa de colher possíveis ensinamentos, quanto às distâncias e posicionamento, no ato de transpor as bar- reiras. Apreciava a elegância de postura de Aldrovando e a com- petência de Marcelo. ❧ Ao regressar, preparou-se para visitar o asilo. Seriam dez horas quando ali chegou, vendo então estacionado grande carro, com o motorista dentro, à espera. Pela sua compostura julgou ser da Con- dessa de São Pedro, em visita de rotina. Ao entrar no pátio interno, divisou duas mulheres conversando animadas com Madre Ursulina. Reconheceu Isabel e a tia. Como se achassem a certa distância, disfarçou, subindo a escada e diri- gindo-se ao ambulatório, para vestir o avental branco. Passou na .124.

enfermaria para atender duas meninas enfermas, prescrevendo o tratamento para a Irmã Dora. Chegou à janela, lançando a vista em direção ao pátio, vendo as visitantes se afastarem em direção ao portão de saída na companhia da Madre Diretora. Mais ao fundo, as duas paraplégicas brincando na relva do parque. Calculou que ao chegar embaixo as mulheres já estariam fora e desceu para visitar o pavilhão das paralíticas. Viu-as, entretanto, ainda paradas junto ao portão. Notaram sua presença e voltaram-se para ele, como se estivessem a falar a seu respeito. Fez o que devia, dirigindo-lhes rápido cumprimento de cabeça e ia continuar, quando percebeu Madre Ursulina acenar-lhe para que se aproximasse. Retrocedeu, acercando-se das visitantes. A freira tentou fazer as apresentações, com seu sorriso profis- sional. — Dr. Cesar Ungaretti, o novo médico do asilo. Dona Camila e a sobrinha Isabel. Cesar fez uma mesura e a diretora explicou: — Estas senhoras são responsáveis pela nova doentinha inter- nada nesta semana e que espera pelo senhor. Acompanharam os pais da menina e hoje vieram trazer suas roupinhas. Isabel dirigiu-lhe amável cumprimento: — Como vai, senhor esculápio? A tia olhou surpreendida para ela e a sobrinha tornou: — Tivemos ocasião de nos encontrar há dias, na basílica, quan- do fui ver o frei. Foi assim que ele o saudou, não foi? O jovem assentiu e ela continuou: .125.

— Alguma objeção? — Não, absolutamente nenhuma. Camila procurou dizer algo. — Conheci vosso pai. Era um excelente homem. — Assim o considero e agradeço a referência. — Gozava de ótimo conceito na cidade e todos o estimavam. Foi uma grande perda para Campinas. — Espero não desmerecer a memória. Não se notava a mais tênue reserva mental nas palavras e na fi- sionomia da tia de Isabel, procurando corresponder à apresentação da Madre Diretora, entretanto ao médico causou penosa impressão a falta de referência acerca de sua mãe. Por que teria ela menciona- do apenas o pai, omitindo a progenitora? Conservou-se calado e austero, esperando que o diálogo partis- se agora delas. Foi Isabel que falou. — Vai ter o que fazer com a nova doentinha. Lenita é uma criança linda, neta de nossa governanta e estamos todos empenha- dos em sua cura. Fica entregue em suas mãos... senhor esculápio. Esperamos que vença a parada, não é mesmo, tia Camila? — Seguramente, confiamos no senhor. Despediram-se e Cesar ficou entregue ao seu paradoxal racio- cínio. De um lado, o tom jocoso da moça, quando lhe falava, cha- mando-o de esculápio, o fazia desconfiar que ela se divertia com sua natural introversão. — Não viesse ela a pensar poder tangenciá-lo, como sabia ter feito a muitos outros — pensou. No devido tempo iria dar-lhe o devido troco. Em relação à tia, quem estaria realmente alimentando injustifi- cável prevenção? Ela ou ele próprio? .126.

❧ Imerso nesse pensamento, encaminhou-se ao pátio, sendo in- terceptado a meio caminho pelas duas paraplégicas a se movimen- tarem ao seu encontro muito excitadas, Marilda com a perninha ortopédica a bater no solo e Cleide rodando o carrinho. Falavam ao mesmo tempo, desejando a primazia da novidade: — Sabe, tio Cesar? — Deixe, eu conto... — Temos mais uma amiguinha... — Chama Lenita... — Ela é boazinha. — Já sei, já sei — respondeu. Vim hoje para conhecer a Lenita. Com essa agitação toda esqueceram de me dar bom-dia. Beijou-as, encaminhando-se a seguir ao pequeno comparti- mento anexo ao pavilhão, onde repousava a nova hóspede, no mo- mento entregue aos cuidados de uma irmã. Contemplou-a algum tempo, constatando as feições regulares da menina, um lindo rosto emoldurado por madeixas alouradas, não lhe escapando ao exame as finas roupinhas a envolverem o corpinho magro, de onde se des- prendia leve perfume de alfazema... Tomou-a nos braços, sentando-a sobre os joelhos. — Como vai, meu benzinho? Está contente por estar aqui? — Estou, sim. — Não tenha medo, todos aqui vão gostar muito de você. Sabe quem sou eu? — Sei, é o doutor — respondeu a garotinha, olhando-o nos olhos. .127.

— E que vai curar você. Que roupinhas mais lindas! Foi mamãe que fez? — Foi tia Isabel que deu. — Ah! Foi tia Isabel, como ela é boazinha, não? — É sim, eu gosto muito dela. Esta bonecona foi ela que deu. — Muito bonita essa boneca. Então, tia Isabel é sua tia? — Não, mas disse que pode chamar ela de tia. Disse que o se- nhor vai curar a minha perna. — Vou sim, f lorzinha, vou curar você, para poder andar e correr com todas as outras meninas. — Que bom! — exclamou a pequerrucha, mais confiada. — Agora quero que me dê um abraço. Lenita enlaçou-lhe o pescoço com os bracinhos a surdirem de entre as mangas orladas de rendas finas. Cesar possuía um dom inato para lidar com crianças, captando sua confiança e criando um intercâmbio instintivo de boa camara- dagem. Isto se estabeleceu desde logo, entre ambos. Sorriu de novo, fixando-a carinhosamente. — Já conheceu as novas amiguinhas, Marilda e Cleide? — Conheço. Elas vieram brincar comigo. — Agora vai deixar-me olhar a perninha. Prometo não magoar. E pode também chamar-me de tio, vou ser igualmente tio de Lenita. Colocou-a novamente no leito, examinando-a com atenção. In- formou-se com a Madre Diretora dos exames feitos na Santa Casa, olhando as chapas radiográficas dali trazidas e tomando conheci- mento das indicações recomendadas. Informou: — A pequerrucha acha-se anêmica, necessitando fortalecer-se durante algum tempo, antes de poder operar. Vou receitar os medi- .128.

camentos mais urgentes, faça ela se alimentar bem, expondo-se ao ar livre nas manhãs de sol, evitando esforços demasiados. É uma criança perfeitamente recuperável, apenas desnutrida. ❧ Dois meses depois, em casa de Rogério, Ifigênia e a irmã tro- cavam impressões acerca do tratamento de Lenita. Camila infor- mou-a das visitas periódicas que faziam ao asilo e a Ifigênia não dissimulou sua apreensão. — Não estou muito confiante no resultado da operação dessa me- nina. Há tantos especialistas de renome na cidade e foram entregar Lenita a um médico novo e inexperiente, ainda tateando na matéria. — Dizem que tem feito intervenções interessantes na Santa Casa de Misericórdia. — Não creio, Camila. É possível que tenha tido sucesso numa ou noutra operação, quem pode saber? Quem me dirá que muitos não paguem com a vida, anonimamente, os maus resultados? Esse moço é ainda principiante e não me inspira a menor confiança. Por mim, jamais assumiria responsabilidade perante a família dessa criança. — Que acha que se deve fazer? — Bem sabe que fui voto vencido. Por minha vontade entrega- ria a menina a mãos mais experientes, como um Professor Alvim, por exemplo. Se estivesse em mãos dele, garanto que tudo já se teria solucionado. Por que esse moço nada fez, até agora? A resposta é evidente: está com receio de não se sair bem. Por que então essa desculpa de anemia e tratamento prolongado? A irritação da irmã tornou Camila apreensiva. .129.

— Figê, por que não se anima a ir ao asilo, conversar com Madre Ursulina para se orientar? — Eu não! Bastam os problemas existentes, não quero criar novos. Nem quero ver a cara desse médico. E penso que você não esqueceu as minhas recomendações para evitar encontros e fami- liaridade da minha filha com ele. — Somente uma vez o vimos lá, por fazermos nossas visitas em dias desencontrados. Ifigênia deu ênfase à voz: — Em todo o caso não é demais repetir o que já tenho dito, Ca- mila! Você vai tornar-se fiadora da sua conduta e fica responsável por Isabel... .130.

XIII Ao sentir o cavaleiro sobre a sela, agitando as rédeas, Potengi, o belo cavalo de Cesar Ungaretti, rompeu em pequeno galope até os portões da Sociedade Hípica, continuando depois em marcha acelerada em direção ao Morumbi, para onde o conduziu o dono, aproveitando a manhã clara e ensolarada do domingo. Cesar tinha o impetuoso corcel em grande apreço, bem se en- tendiam os dois. O cavalo castanho, de pelo luzidio como seda, muito brioso e valente, proporcionava-lhe grande alegria. Conse- guira com ele arrebatar à Marcelo Siqueira o primeiro lugar no salto aos obstáculos na última competição da Sociedade, posição que o filho do conhecido banqueiro mantinha invicta há mais de um ano. Tinha se preparado sem alarde e a sua atuação despertou os mais vivos encômios entre os aficionados do elegante esporte. Salomão Oliveiros, conhecido colunista social, ocupou-se logo do assunto, publicando nos jornais laudatórias notícias do resul- tado da disputa. Com fotografias, o afamado cronista o elevou ao pináculo, elogiando o novo astro que despontava, destacando: “por ter vencido saltadores da marca de Aldrovandro Marques, Bres- sane e Marcelo Siqueira, particularmente este último, consagrado .131.

vencedor de provas internacionais na França e na Itália, pátrias de bons cavaleiros”. Cesar cavalgou pelas novas alamedas do Morumbi, descendo aqui, subindo ali, até atingir a parte mais elevada, indo abrigar-se à sombra de uma árvore para breve descanso. O sol já ia alto, darde- jando seus raios sobre a terra, raras nuvens esbranquiçadas f lutua- vam no espaço, preguiçosamente. Desmontou, apoiando a bota de cano reluzente nos fragmentos de velho tronco ali abandonado, acariciando-a com a extremidade do rebenque, ao mesmo tempo em que o olhar se dirigia para a bai- xada que se estendia a perder de vista, pontilhada de todos os lados por miríades de telhados novos e vermelhos, numa demonstração eloquente do surpreendente crescimento da cidade, em busca de seus altos destinos. Do lado direito avistava-se uma faixa onde cresciam os dois Brooklin, o novo e o velho. Seguiam-se os recentes conglomerados resultantes de loteamentos, a Vila Olímpia, a Vila Nova Conceição, o Ibirapuera, neste o obelisco e o jazigo dos mortos da Revolução Constitucionalista, elevando ao céu a f lecha imponente. Vinha de- pois, já à esquerda, a elegante zona residencial dos Jardins, com nobres mansões escondidas dentro de copados arvoredos, de onde emergiam de quando em quando, manchas roxas ou rosadas de quaresmeiras em f lor, desabrochando nessa época do ano. Avista- vam-se a seguir, mais próximos ao Morro do Morumbi, os bairros de Cidade Jardim, Jardim Europa, Pinheiros, Vila Madalena, Cer- queira Cesar e outros, tendo ao fundo os arranha-céus a domina- rem o espigão da Avenida Paulista. .132.

Uma visão impressionante do crescimento da cidade, de sua ar- rancada em direção ao futuro. E serpenteando no meio do casario, podia distinguir-se perfeitamente a fita prateada representada pelo rio Pinheiros. Bem ao fundo da paisagem, os contrafortes dos mor- ros a formarem o fundo do panorama, onde sobressaia majestosa a fímbria azulada da Serra da Cantareira, elevando sobranceira o dorso alcantilado. Cesar deixou-se dominar por suas reminiscências, evocando os dias da infância, lembrando o pai morto e a mãe extremosa, sem- pre tranquila e sem ânimo para deixar a velha casa de Campinas. Passara despreocupado os tempos de meninice, brincando com os garotos de sua idade; depois a adolescência e o período universitá- rio, este tendo como corolário natural o Internato na Santa Casa de Misericórdia. Depois, a bolsa que lhe foi concedida e permitiu uma comple- mentação italiana, na cidade de Palermo. Não houve como não acatar a insistência do velho pai italiano, muito apegado à pátria, entendendo imprescindível um estágio do filho na Península, a fim de aprimorar os conhecimentos médicos. Desta época não podia só guardar recordações amenas, pois veio em seguida a passagem pelos postos militares da África. Da- qui foram penosas as recordações, ao tratar de feridos e mesmo de prisioneiros. Quase sempre eram rapazes em plena mocidade, morrendo muitos deles distantes dos familiares, que somente dias mais tarde viriam a tomar conhecimento da perda do filho ausente. Muitos outros ficavam lamentavelmente mutilados ou estropiados. ❧ .133.

Abstraído nesses pensamentos, ouviu tropel de animais nas imediações. Dois cavaleiros marchavam em sua direção, freando os cavalos. Era a pequena e alegre Lúcia Salviani na companhia de Aldro- vando Marques, seu companheiro de equitação. — Ei, o que aconteceu? Potengi deu o prego? — perguntou ela. — Parei para admirar esta maravilhosa paisagem, Lúcia. De- pois de passar uma temporada fora, isto aqui parece ainda mais lindo! — É o que costumo dizer, quando volto dos meus passeios. Os pessimistas deviam dar um giro pelo estrangeiro, para dar mais va- lor ao que é nosso. Vejam este Morumbi, esta colina: há pouco não valia nada, era só mato de todos os lados e agora é um dos bairros mais bonitos da cidade, com casas espetaculares. Lugar convidati- vo e sossegado para morar, não é Aldro? — Sem dúvida muito lindo. Como disse Cesar, a visão daqui é maravilhosa! — Até o Potengi levanta a cabeça para olhar, como se estivesse entendendo a nossa prosa — aduziu a moça. Faz lembrar o Touro Ferdinando, do desenho animado, que estacava extasiado ao sentir o perfume das f lores! — O cavalo e o dono são dois poetas. Desmontar para ver a pai- sagem, só mesmo os poetas — tornou Aldrovando. O médico passou carinhosamente a mão na testa do animal. — Não posso deixar de gostar deste bichinho, que acaba de me dar um grande contentamento. — E que contentamento! disse Lúcia. Desbancou um dos nossos melhores saltadores, sem falar do Aldro, também um dos bons. .134.

— Obrigado pelo elogio, Lucinha — respondeu Aldrovando. — Pura sorte, Lúcia — retrucou Cesar. — Que modéstia! Valeu por uma bela promoção. Minhas co- nhecidas comentam a façanha que te colocou em destaque. Tome cuidado! Vai se tornar o “enfant gaté” das nossas namoradeiras, principalmente depois que o nosso principal cronista social se ocu- pou de sua pessoa. — Quem? — Ora, Salomão Oliveiros. Esse homem tem forte prestígio nas altas rodas. — Entre as mulheres, ao que parece. Não o aprecio muito. — Nem eu — ajuntou o advogado. É um oportunista que agarra as evidências no ar. Com essa história de escrever elogios às mu- lheres, vai se infiltrando sorrateiramente na sociedade e cavando a vida mansamente. Um amigo contou-me que o nome dele não é esse, e sim Salmon Zeitune. Não se sabe porque traduziu o primeiro nome para Salomão. Quanto ao segundo, Zeitune, deve ser azeito- na, em árabe, o que deu Oliveira. Mas como Oliveira é muito pro- saico, virou Oliveiros. Lúcia soltou uma risada galhofeira. — Essa é boa. Então é pseudônimo. — Pseudônimo ou não é como assina as promissórias que an- dam esquecidas nas gavetas e nos cofres de muita gente, porque é hábito esquecer de acertar suas contas, e ninguém tem coragem de cobrar. Mesmo porque tem a habilidade de pedir pequenas quan- tias para aqueles que promove. — Vamos deixar Salomão em paz e continuar, Aldro. Você vem conosco, Cesar? .135.

— Claro, Lúcia — respondeu enfiando o pé no estribo e mon- tando. — Vou contar um segredinho... ou melhor, uma indiscrição fe- minina. Como todos sabem, Marcelo namora Isabel e prometeu a ela ganhar a prova em sua homenagem. Não é por nada, mas acho deselegante não respeitar os adversários. — Parece não ser do caráter de Marcelo... — De acordo, é um belo rapaz mas a paixão vira a sua cabeça. — E Isabel, gosta dele? — Isabel é uma moça meio misteriosa... vai temperando, tem- perando... Aldrovando interveio: — Cesar, até parece que você não conhece as mulheres! Res- guardando a irreverência da comparação e com o devido respeito de Lúcia, elas são como a sombra que se afasta à medida em que caminhamos. — Engraçadinho! Respondeu a moça em tom chocarreiro. — Falando de Marcelo, disse o médico — considero-o um es- portista educado. A maneira como veio cumprimentar-me depois da derrota, demonstra um cavalheiro gentil. — Aqui se adota essa praxe. Perdeu, cumprimenta-se o vencedor. — Mas ele o fez de modo tão sincero e cordial e não parecia con- trariado. — Marcelo é um excelente esportista. Acontece que aqui em São Paulo era imbatível e depois de vencer na Europa, ficou um tanto presunçoso. Você e Aldro eram as únicas esperanças, sem falar no Bressane, que tem melhorado bastante ultimamente. .136.

— Quanto à minha colocação, não estou ainda muito seguro de a merecer. Durante a prova houve um incidente... — Que incidente? — Perguntou Aldrovando. A queda do cavalo de Bressane. Já estava quase terminando os obstáculos, quando o cavalo caiu e foi desclassificado. — A sua vitória foi perfeitamente legítima. A cronometragem demonstrou que ele estava fora da competição, com tempo bastante precário. ❧ Passava do meio-dia quando deram entrada na Hípica, trans- pondo os portões e estacionando próximo a um grupo de frequen- tadores que conversavam, despreocupados. Entre eles as filhas de Rogério Peçanha, mais Marcelo e sua irmã Patrícia, Renato D­ rumond e Bressane. Este trazia um braço engessado, em conse- quência da queda. — Que maravilha, Lúcia — exclamou este último — está com- boiada pelos melhores cavaleiros da cidade! — Pena que não pudesse saltar em nossa companhia — sorriu a moça. — Tenho de ficar de molho durante um mês, mas é coisa de pe- quena importância. Meu receio é que o cavalo pudesse desmunhe- car. Como foram de passeio? — Muito divertido. — Lúcia é uma ótima companheira — disse Aldrovandro. — Gentilezas, gente. .137.

Márcia ouviu denotando desinteresse. Quanto a Isabel, olhava curiosa para Cesar. Bressane perguntou: — Quando vamos comemorar a vitória do novo astro? É de pra- xe uma festinha de confraternização quando aparece um novato. Está na hora de pensar nisso. Aldrovandro lembrou: — Você é da diretoria, cabe reunir os companheiros e marcar o dia. — Que barbaridade! Peço que esqueçam isso — interveio o médico. — Vamos comemorar — responderam vozes. — Não mereço tanto, pois Marcelo estava cansado da inven- cibilidade por tanto tempo e decidiu dar a oportunidade a outros. Sei que vai recuperá-la na próxima vez. Não fez muita força nesta competição. — Qual nada! Empreguei-me a fundo, mas o páreo estava duro, realmente. — Então o Treinador não estava em forma. Alguma coisa deve ter acontecido com ele. — Não procure diminuir o seu mérito, Ungaretti. O cavalo es- tava tinindo e tinha tudo para ganhar. O seu tempo foi magnífico e espero ter o prazer de disputarmos em dupla contra os europeus. Sei que salto bem e não me sinto diminuído por ser superado por um saltador da sua marca. Isabel resolveu intervir. — Vi a prova. Venceu com bastante mérito. .138.

Cesar fixou-a, desconfiado, mas viu um sorriso amável em seu rosto. — O mérito foi todo do cavalo. O cavaleiro não fez mais do que dirigir. — O cavalo ajuda, mas sem um bom cavaleiro não pode fazer muita coisa. — Repito que o mérito é do Potengi. Este cavalo possui uma li- nhagem nobre e é sabido o que isto vale e representa. Não havia muita consonância nesse diálogo e Lúcia interveio: — Deixemos de modéstia e vamos tratar da festa. Bressane, to- que o barco e marque o dia. Não é sempre que aparece um pretexto para o encontro da turma. ❧ Cesar e Aldrovando partiram em direção à cavalariça, enquan- to o grupo passava a comentar, com Márcia puxando a conversa, a respeito de Cesar. — Não achei sentido nas respostas, nem no tom em que foram ditas, ríspidas, e devo confessar honestamente que não aprecio esse moço. — É um tanto fechado, mas tem qualidades — disse Bressane. — Tenho convivido com ele ultimamente e considero o rapaz inte- ressante. — Você disse fechado, pois eu digo, esquisito. É fácil sentir isso nas respostas que deu à Isabel — retrucou Márcia. — Não dei muita importância — respondeu a irmã. — Tem cara de quem está sempre aborrecido. Lúcia tentou conciliar: .139.

— Nem tanto assim, Márcia; privando com êle você acaba mu- dando de ideia. É um conversador fascinante quando está à vonta- de. Demos boas risadas nesse passeio. — Você tem gênio alegre, sempre disposta a levar os assuntos para o lado cômico. Em Campinas ele é tido como um indivíduo intratável. Quando lá está, mete-se dentro de casa e não procura ninguém, nem parece uma pessoa normal. — Pois foi um companheiro bastante divertido, não é mesmo, Aldro? — falou Lúcia, dirigindo-se ao advogado que acabava de re- tornar, incluindo-se na roda. — Não há dúvida, excelente companhia. Renato Drumond permanecia silencioso, sem imiscuir-se em assuntos de ordem pessoal. Consultou o relógio, voltando-se para a esposa, lembrando: — Márcia, está na hora de levantarmos acampamento. Sua mãe não gosta de atraso para o almoço. Márcia respondeu: — Espere um momento mais, Renato. Preciso ir lá dentro, arru- mar o rosto na toalete, não demoro. A turma começou a dispersar-se, aos poucos. Bressane encami- nhou-se ao seu automóvel e Aldrovando perguntou: — Não tem receio de dirigir, tendo um braço engessado? — Não há problema, não tenho encontrado grande dificuldade. ❧ Márcia afastou-se em direção à sede social, deixando Isabel na companhia de Marcelo e dos demais. Ao atravessar o salão princi- .140.

pal, divisou Alceu Mendes em uma poltrona, entretido na leitura de uma revista. Ia caminhando sem se deter, após bater-lhe um rápido aceno de mão. — Alô, Alceu. Viu-o erguer-se em atitude gentil, colocando a revista na mesi- nha em frente, dirigindo-se a ela: — Que prazer encontrá-la aqui, Márcia. Há muito que chegou? Ao desligar-se dele, fazendo sua opção matrimonial, Márcia não mais teve ensejo de falar-lhe. Sentia-se realizada em seu casa- mento com Renato, entretanto, não podia olvidar as maneiras gen- tis e elegantes do rapaz. — Viemos pegar meu marido, e você, como vai passando? — Bem, como pode notar. — Que tem feito? — Para ser exato, muito pouco, quase nada que recomende. Vou enfiando a cara no que aparece, ora corretagens, seguros, até agente de anúncios, entretanto, tudo de parcos resultados. Não consegui conciliar-me com a dura rotina do trabalho. E você, como vai de vida nova? — Esplendidamente. — Ficou com aspecto mais... mais bonito, se me permitir a ir- reverência. Márcia não pôde deixar de sorrir. — Que quer dizer? — Ganhou aparência de senhora, não mais de mocinha, e saiba que lhe vai muito bem. — Cruzes! É precisamente o que mais receio: engordar. .141.

— Fica melhor assim. Creia que faço sinceros votos para que seja feliz e estou convencido de que acertou. Renato é um desses homens que fazem a felicidade de qualquer mulher, pela convivên- cia fácil e agradável. É o tipo do bom marido, pacato e paciente. — Espero que não esconda uma pontinha de ironia nesse co- mentário. — Absolutamente, Márcia. Seria incapaz de uma descortesia. Enquanto você estava ainda indecisa, lancei mão de todos os meus trunfos. Hoje nada me resta senão aceitar o fato consumado. Não é nada agradável perder numa competição, mas sei receber os acon- tecimentos quando eles têm muita força. Não se vislumbrava malícia em suas palavras. Alceu pareceu- -lhe sincero e cativante. Na realidade, o finório era um feiticeiro, hábil no trato com as mulheres e Márcia sorriu-lhe, acolhedora. — Não imagina o quanto me agrada ouvir essas palavras, princi- palmente partindo de onde vêm. Fique certo que as aceito e agradeço. Nesse instante Isabel assomou à porta de entrada, presenciando a cena final desse encontro. Tinha vindo à sua procura e exclamou: — Márcia, está na hora de partirmos e não podemos nos demo- rar. Renato está esperando no seu automóvel. .142.

XIV Foi um dia extenuante para Cesar Ungaretti. Pela manhã, de- morada operação de um paciente, a seguir auxiliando Barjona em outra intervenção melindrosa. Almoço muito tarde, saindo em se- guida para conduzir o Professor Pedreira ao Asilo Santa Ernestina. Pedira ao mestre examinar a pequenina Cleide, antes de empreen- der a operação que sua perninha reclamava. Havia constatado nela sérias perturbações cardiológicas. O Professor confirmou seu diagnóstico: a menina padecia de cardiopatia congênita, contudo não via motivo para que a operação ortopédica não se fizesse. Poderia resistir bem, mas alguma inter- corrência cardiológica poderia ocorrer. De qualquer forma o estado de seu coração tanto poderia se agravar desde logo, como poderia continuar vivendo ainda por muito tempo. Nesta hipótese seria mais humano libertá-la do carrinho de rodas. — Não custa tentar — disse ele. Há muito a ganhar, se for bem sucedida. Passou o resto da tarde e do dia pensando no caso. Alimentava pela pequerrucha terna predileção, comovendo-se a cada vez que a visitava, por seu olhar meigo e pela alegria com que o recebia. Che- .143.

gou à conclusão de que Pedreira estava certo: se tinha de viver, me- lhor seria fora daquela prisão. Depois do jantar subiu ao quarto, sentou-se e permaneceu quieto largo tempo, ainda dominado por sua preocupação com a paralítica. Era hábito seu, quando o assaltava qualquer apreensão, entregar-se ao abandono nessa posição, com o aposento imerso em semiobscuridade, iluminado apenas pelos focos de luz da praça e pelo ref lexo da claridade na parede do Teatro Municipal, defronte ao hotel. Da rua subia até ele o ruído de viaturas, ou de portas de auto- móveis batendo, depois de deixarem ou de receberem usuários. O recolhimento o acalmava, ocorreu-lhe ter herdado do pai italiano esse apego à solidão. Tentando afastar da mente a paraplégica, seu pensamento des- viou-se para outros rumos. Como no giro de um caleidoscópio, acudiram-lhe detalhes da campanha na Etiópia, parecendo rever as casas alvas do deserto africano; as escalas pelos aeroportos da Líbia, com seus habitantes em trajes típicos; os hospitais de Asmara e Massauá e os postos de emergência nas frentes de combate. Lembrou-se também de Pierina e de suas enfermeiras, das noi- tes mal dormidas, entremeadas por momentos de leve pasmaceira, enquanto se aguardavam novos avanços da frente de combate. ❧ Entregue a tais recordações, não percebeu a porta do quarto abrir-se mansamente, aparecendo na frincha a cabeça empomada- da do amigo Roberto Linhares. .144.

— Sim senhor! — ouviu-o exclamar. Então isso é maneira de viver? Oito horas da noite e aí sentado no escuro, como um asceta! Vai se ver que ainda não jantou. — Já jantei. Roberto apertou o comutador elétrico, inundando o aposento de luz. Colocou-se na frente do amigo, acrescentando: — Penso que não esqueceu o convite de Lúcia para comparecer hoje em sua residência. Ela me disse que você prometeu que pode- ria contar com a sua presença. — Prometi mas, sinceramente, esqueci. — Então trate de mudar de roupa para não chegarmos tarde. Reunião íntima para pessoas amigas. É dia de seu aniversário. — Estou pensando em não ir, sou avesso a festinhas em casa de família, em que a gente tem de fazer rodinhas, falando frivolida- des. É bom para quem gosta de namorar e dançar e é quase certo que vão tocar música e dançar... então, que irei fazer lá? — Nada disso! Hoje você vai comigo à casa de Salviani, nem que seja a muque! Isso mesmo! Lúcia telefonou-me com essas palavras e faz empenho na sua presença. — Pois não vou! — Vai sim. Onde se viu ficar fechado no quarto, em plena escu- ridão? Você é médico e sabe onde terminam os hipocondríacos. Por ventura pretende ser hóspede em algum sanatório, no Pinel ou no Juquerí? — e completou. Quem mandou virar cartaz, com retrato nos jornais, ah! Se eu pudesse manejar com perícia um cavalo. Enquanto falava, abriu o guarda-roupas, escolheu um terno es- curo, que depositou no leito. Em seguida aproximou-se do amigo, retirando seu paletó. .145.

— Com licença. — Você é um demônio incorrigível! Se fosse uma sessão de cine- ma, um desses filmes de bang-bang, vá lá, mas reunião familiar... ainda por cima aniversário, ter de ir de mãos abanando... — Ninguém vai chegar de mãos abanando, já preveni tudo. Comprei um ramalhete de f lores, que está no automóvel, lá embai- xo, portanto não há desculpa. — Está bem, vamos à festinha de Lúcia — respondeu sorrindo. Cesar submeteu-se ao arbítrio do amigo e vestiu-se, auxiliado por ele. Era, dos antigos conhecidos, o único que mantinha certa ascendência sobre sua pessoa a não menosprezava sua amizade. — Lúcia o estima, não podia deixar de ir. — É uma menina espetacular, não nego. — Não esqueça que virou notícia de jornal, nas crônicas espor- tivas, e trate de tirar vantagem e colher proventos da popularidade. — Em que sentido? — No sentido prático, que pergunta! Todos nós temos de nos mexer. Sendo de profissões liberais, temos de cultivar relações, elas ajudam nossa promoção. De meu lado, não descuro, devemos cobrar juros de nossas amizades e até já estou pensando em montar escritó- rio particular, contando com uma clientela pessoal nada desprezível. — Então você encara as relações pelo prisma do interesse? — Claro, elas proporcionam bons dividendos. Enquanto conversavam ajudava Cesar, ao se vestir, examinan- do-o e apertando o nó da gravata, escovando a gola do paletó, o que o levou a chasquear: — Ouça, Roberto, estava justamente pensando contratar um valete para servir-me e ninguém será tão bem ajeitado como você. .146.

— Os amigos são para as ocasiões. ❧ Partiram para a bela residência de Salviani, na Avenida Paulis- ta, recebidos por Lúcia com efusões de alegria. —Sei que você é um urso polar, pouco apreciador de festas, mas se não viesse cortávamos relações — disse ela, dirigindo-se ao mé- dico em tom de gracejo. — Seria uma enorme perda e imerecido castigo, mas quem pode brigar com uma moça como você? — Vamos entrando e tomando conta da casa. Quero apresentar vocês a meus pais. Venham para cá. Conduziu-os até a sala de jantar, onde Silviani e a esposa entreti- nham alguns convidados. O conde recebeu-os afavelmente. Era um homem esguio, de maneiras polidas. Dirigiu-se primeiro a Roberto: — Estive diversas vezes em Campinas. De que família é o senhor? — Linhares. Meu pai foi juiz ali, alguns anos, antes de vir para São Paulo. Hoje está aposentado. — Ah! Já sei quem é; tive uma pendência prolatada por ele, numa questão judicial. Bela inteligência. — Já não mais atua, a não ser para consultas. — Merecido descanso. E o senhor? — voltou-se para o médico. Pelo sobrenome pertence à família do Dr. Enzo Ungaretti... — Filho. — Conheci o Dr. Ungaretti numa de minhas visitas a sua cida- de. Era um médico conceituado. Por que não quis ele clinicar em São Paulo? .147.

— Minha mãe é muito apegada a Campinas e não compreende outra cidade para viver... mesmo meu pai radicou-se ali, desde sua vinda ao país. Encaminharam-se para outra sala, onde Barjona entretinha um grupo de jovens, contando anedotas, no que era exímio. Ungaretti ficou a um lado, ouvindo. Lúcia apareceu daí a momentos, toman- do-o pela mão, num gesto muito espontâneo e disse: — Temos mais gente aqui dentro. Levou-o ao amplo salão de inverno, onde conversavam outros grupos. Meio escondidos detrás de uns jarrões de guaimbés folhu- dos, conhecidos seus discreteavam, bebericando. Aproximou-lhe uma cadeira. — Pessoal, este aqui dispensa apresentação. Cesar, faça o favor de se acomodar. Quer tomar um refresco? — Bem lembrado. — Bressane e Aldro, tomem conta dele. Quanto a vocês, Laura e Isabel, podem depená-lo à vontade, enquanto vou atender novos convidados, mas cuidado! Ele é muito arisco! Bressane, mais próximo, estendeu-lhe a mão do braço não en- gessado, sem interromper a conversa. Aldrovando dirigiu-lhe um amistoso aceno e Laura distinguiu-se com um alegre: “Olá! O nosso campeoníssimo”. Quanto a Isabel, apenas esboçou um leve movi- mento de cabeça. Bressane falava professoralmente, procurando explicar o fenô- meno coletivo das massas, a propósito da influência de certos astros e comediantes sobre seus assistentes, sobretudo os adolescentes. — Vocês sabem perfeitamente o quanto é difícil convencer pes- soas individualmente, no entanto é facílimo as conduzir, quando .148.


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