Nazário ouviu complacente. Veio novo sanduíche, viu o amigo devorar esfomeado. Dudu continuou. — Li um dia destes num jornal que toca a cada brasileiro duzen- tos dólares. Até hoje não vi a cara de nenhum dólar em meu bolso, não sei onde andam os meus! Você saberá, por acaso? — Sem trabalhar eles não aparecem. Pois também eu estou ago- ra na mesma situação. Acabo de ser despedido do emprego. Dudu olhou surpreso para ele, mas observou, sorrindo: — Meus parabéns, pois vou ganhar um colega. Você vai ver que a vadiagem não é das piores coisas. No começo a gente estranha um pouco, mas acaba acostumando e no fim dá certo. Trabalhar... que coisa horrível! Bem podíamos iniciar um sindicato dos desempre- gados... — O diabo é que acaba faltando comida para todos. — Impressão errada, Nazário. Apesar de ajudar a quem traba- lha, Deus não desampara os vagabundos. Olhe! Não vá fazer a bes- teira de se empregar! — Vou procurar serviço, sim. O Cláudio me avisou há dias que o Fernando quer conversar comigo. Amanhã mesmo sigo para São Paulo, ver o que ele deseja. Não sei trabalhar com outro patrão. — Infeliz! Cumpra a sua sina de burrice. Acabou de mastigar, lançou um olhar súplice ao amigo e baixou a voz, em tom de lamúria. — Já estou “manjando” que vai ficar por lá... Antes de ir embora daqui, preste mais um serviço a este seu amigo. Estou atrasado três meses na pensão, se não pagar vou ser despejado... Nazário tinha bom coração. — Fique tranquilo, hoje irei pagar. .49.
❧ Desembarcando em São Paulo, na manhã seguinte, após o al- moço, Nazário encaminhou-se à Vila Prudente, onde se situavam os Moinhos Santa Helena dos Peçanhas, dentro de extenso muro, nos fundos de um parque bem cuidado. Passou pelo porteiro uni- formizado, percorrendo a alameda principal, observando grande galpão à esquerda, servindo de abrigo a uma dezena de automóveis dos mais variados tipos, também de algumas motocicletas e inú- meras bicicletas. A um guarda em serviço interpelou: — De quem são estes carros? — Ora esta, dos patrões! — Então, são muitos patrões? — Bem, dos patrões mesmo são três. O resto é dos empregados. Nazário sacudiu a cabeça, maravilhado. — Qual destes é do Fernando? — Do senhor Fernando? É aquele ali. Nazário olhou o carro indicado, pensando: “Puxa! Que automó- vel feio e velho, nem ficando rico se anima a comprar coisa nova.” Caminhou até a entrada principal, entrando no grande saguão, onde foi atendido por outro empregado, atrás de um balcão circular. — O Sr. Fernando Peçanha... — No andar de cima, por favor — respondeu, indicando uma escada ao fundo do corredor. Era um prédio antigo, de quase cinco metros de pé direito, de sólida construção. Subiu os degraus de mármore e viu-se dentro de .50.
enorme salão, dividido em inúmeros compartimentos estanques, onde se movimentava grande chusma de empregados e visitantes. A recepcionista, jovem de rosto rigorosamente maquilado, de blusa branca e saia azul — depois constatou ser o uniforme usado pelas demais — veio atendê-lo. — Quem o senhor procura? — Fernando Peçanha. — Seu cartão, por obséquio. — Não tenho, menina, basta dizer o meu nome. A moça sumiu no labirinto de corredores e demorou a reaparecer. — Quer fazer o favor de me acompanhar? Conduziu-o a uma saleta interna, indicando-lhe uma cadeira junto de uma escrivaninha, sobre a qual havia uma pasta, papeis e um vaso contendo linda rosa. Permaneceu ali demorado espaço de tempo, que lhe pareceu infindável, até aparecer nova funcionária, igualmente maquilada e um pouco mais idosa. — É o senhor que deseja falar ao Sr. Fernando? — Exatamente. — No momento está ocupado. Pode esperar um instante? O seu tom era estritamente formal, não se via mover um mús- culo em seu rosto, o visitante respondeu: — Mas com prazer... tenho bastante tempo. — Tem cartão de visita? — Não trouxe, porque raramente uso. Mas, é só falar meu nome. — Já marcou entrevista? O seu tom continuava impessoal, não se via mover um músculo em seu rosto e o visitante respondeu: — Não marquei nada. .51.
— É assunto confidencial? — Não. Não é confidencial. A jovem pegou um pequeno bloco de cima da mesa e uma caneta. — Quer escrever o seu nome, por favor? — Pois não, quer que escreva também o assunto? — Se desejar, ajuda bem. — Ele escreveu: “Nazário procurando emprego”. Ela acompanhou com o olhar e recolheu a papeleta, sugerindo: — O senhor procura colocação... penso que deve dirigir-se pri- meiro ao Departamento de Pessoal. Terá de preencher um formulá- rio e aguardar a chamada. É de praxe. Nazário principiou a impa- cientar-se. Fitou-a com firmeza: — Senhorita, eu quero falar ao Sr. Fernando. Vim aqui para isso. A secretária não tomou conhecimento da mudança de entona- ção, justificando-se: — O senhor vai desculpar, o chefe é exigente e gosta que leve tudo esclarecido. Faça o favor de esperar um instante. Viu-a premir um botão na mesa e um menino de recados far- dado e bem penteado abriu a porta, apanhando a papeleta. Quase imediatamente uma luzinha verde brilhou no alto do batente de co- municação, dando livre trânsito ao visitante. Antes de passar a outra sala voltou-se para ela: — Como se chama? — Edna. Pela primeira vez Nazário viu bailar um sorriso no semblante da jovem. — Sabe que simpatizei consigo, apesar... apesar desse ar sério? E que poderemos ser colegas? .52.
— Penso que iremos nos dar bem — respondeu a moça polida- mente. O visitante foi introduzido no salão de vastas proporções, ten- do ao fundo a mesa de Fernando, rente de ampla janela. Era uma mesa enorme, atrás da qual Fernando parecia ainda menor. No lado direito, uma escrivaninha com algumas poltronas, destinadas a Rogerio, que ali comparecia habitualmente no período da manhã. À esquerda, bem ao fundo, a mesa da correspondente datilógrafa, tendo à pequena distância o menino de recados ocupado a escrever na máquina. Ao ver entrar o amigo e antigo companheiro, Fernando veio ao seu encontro, abrindo os braços em manifestação cordial. — Estava esperando esta visita. Recebeu o recado que manda- mos pelo seu cunhado Cláudio? — Ele falou-me e cumpro ordens, chefe. Fui convocado e aqui estou. — Vejo que está bem disposto e, pelo visto, desempregado — exclamou, soltando uma risada. — Tal e qual. Fui despedido e preciso trabalhar. Deixei o serviço ontem e não perdi tempo. — Indenizaram-te, creio... — Qual nada! Aqueles patifes nem a dívida perdoaram! Descon- taram até o último vintém, sem a menor consideração pelo tempo e o serviço prestado. Saí da casa limpo! Na verdade estou hoje tão pobre como quando comecei a trabalhar! Basta dizer que tive de vender o meu automóvel, para não ficar a dever a ninguém. Disto fiz questão. — Pelo que ganhou podia estar muito bem, mas nunca deu ou- vido a minhas advertências, aí está: começando tudo de novo. .53.
— É muito difícil guardar dinheiro. — Engano. Tudo vai de economizar o primeiro conto de reis. É uma questão de treino. — Tenho medo de começar e depois estragar a minha vida. O dinheiro foi feito para dar-nos conforto e alegria. Fernando comentou sobre sua roupa. — Belo terno! Quem é o alfaiate? — Minorelli, quem mais podia ser? Casimira inglesa pura. Gos- to de pano bom, cai melhor e dura mais, no fim fica mais em conta. Essas considerações não deixavam de representar no fundo ín- tima censura ao modo de vida de Fernando, Nazário bem o sabia. Entretanto ele pareceu não tomar conhecimento de suas palavras, respondendo com ar sério: — Mas terá de mudar, precisa pensar que a velhice chega um dia e que devemos nos precaver. — Isso é bom para você, que tem mulher e filhos, não para mim, solteiro e sem compromissos. — Outro engano, todos nós temos compromissos para com nós mesmos e para com a sociedade. E por falar nisso, por que não casa? — Casar, eu? — respondeu, abanando a cabeça, pensativo. Não tenho jeito para viver amarrado, penso que não daria bom chefe de família. Fernando sorriu e voltou a outra ordem de ideia. — Vamos então falar do que serve. É melhor sentarmos ali, nas outras poltronas. Quando Cláudio deu o meu recado, em que pensou? — Em poder trabalhar aqui, naturalmente. Fernando deu alguns passos pela sala, com o cenho franzido, de- notando profunda preocupação. Parou depois, em frente de Nazário. .54.
— Estamos pensando em te oferecer uma grande oportunida- de. Deu ênfase à voz, ao repetir: — Uma grande oportunidade! — É justamente do que estou precisando. — Desejamos associá-lo ao nosso negócio, que acha? Nazário estremeceu na poltrona. — Não entendi bem... quer repetir? — Estou falando, associá-lo ao nosso negócio. — Nos Moinhos? Como? — Faríamos inicialmente um capital simbólico, criando uma sociedade nova, que poderá funcionar como pulmão da nossa em- presa, o que os ingleses chamam de “holding”. O caso é o seguinte: precisamos dessa sociedade para expansão de nossas atividades, num campo paralelo ao nosso. Ao mesmo tempo queremos oferecer uma oportunidade ao nosso cunhado Cláudio, que vive a vegetar em Campinas como funcionário da Prefeitura. Como sabe, Cláudio é um ótimo burocrata mas não entende nada de negócios e necessi- tamos de alguém de nossa inteira confiança para trabalhar ao lado dele, comandando o leme. No caso, nossa confiança recaiu em você, de cuja capacidade e lealdade já temos experiência. Já pensamos até no nome da nova sociedade, que poderá ser Claunaz. Jamais poderia passar pela mente de Nazário semelhante pers- pectiva e sua cabeça começou a girar em roda, como se não acredi- tasse. Olhava para Fernando, incrédulo, ouvindo aquele raciocínio e levantou-se, como impelido por uma mola. — Sente-se e preste atenção, porque temos ainda muita coisa a conversar, ordenou Fernando. Nazário obedeceu. — Você falou Claunaz... por que essa designação? .55.
— É uma sigla, “Clau” de Cláudio e “Naz” de seu nome. O visitante tornou a levantar-se, Fernando repetiu: — Faça o favor de continuar sentado e ouvir. Como disse, vamos fazer um capital simbólico para os dois. Você terá metade e Cláudio o restante, cujas importâncias serão cobertas eventualmente com os lucros apurados. Além disso, receberão os dois um adiantamen- to pró-labore que será alvitrado, possivelmente dois contos de reis. Nazário temeu sonhar. — Não podia pensar em tanto... — Calma, ainda não chegamos ao fim. Precisa ouvir primeiro, porque existem condições reversíveis. Da sua participação, metade dos lucros terá de ser devolvida por força de um contrato particular. — Devolvida a quem? — Mais tarde chegaremos lá. Sem saber porque, Nazário sentiu-se envolvido por fugaz des- confiança, como se sentisse previamente espoliado e seu entusias- mo principiou a esfriar. Atrás de tudo não estaria oculta a voraci- dade dos Peçanhas, pois não ouvira o Dr. Carlos Azambuja dizer certa feita que, em matéria de dinheiro, eles eram terrivelmente insaciáveis? Perguntou: — Quais são as outras condições? — Não cobraremos juros dos adiantamentos necessários para a formação do capital, assim como correrá por nossa conta o excesso de Imposto de Renda tributado na parte reversível. Não há dúvida de que será um homem razoavelmente rico dentro de cinco anos, mas informo que existem riscos a enfrentar. Não é justo que só ve- nha a receber, sem oferecer alguma coisa em contrapartida. — Sim, acho isso razoável. .56.
— Há mais ainda, e o mais importante: terá de fazer uma pro- messa solene. — Que promessa? — Haja o que houver, e em qualquer hipótese, terá de zelar sempre pelo bom nome dos Moinhos. Rogério é muito cioso nesse particular. — Mas isto está implícito... — Não é tudo, agora há uma outra coisa, e esta sou eu que a peço em caráter pessoal, é também importante. Durante pelo me- nos um ano não porá os pés em cassinos ou qualquer casa de jogos, nem pegará as cartas de baralho. — Quer regenerar-me... — Não esqueça que estamos oferecendo uma oportunidade magnífica. Nazário ref letiu demoradamente. — Você falou no plural. Pode informar-me se Rogério está a par de tudo? — Tanto está, que foi ele o primeiro a sugerir seu nome. — Aceito! — respondeu exultando. — Diga então ao Rogério que em homenagem a ele ofereço não um, mas dois anos! Levantou-se da poltrona excitado e caminhou até a janela, po- dendo olhar dali a imensa f loresta de chaminés de fábricas para os lados do Brás, sentindo vibrar interiormente nova vitalidade, de que estava longe de suspeitar. A tarde lhe parecia então maravilhosa, recebendo com intensa acuidade o rumor das ruas distantes, que subia até ele como uma sinfonia desconhecida. Ouviu um pregoeiro ambulante anuncian- do no seu canto dolente a mercadoria e o farfalhar de um comboio .57.
de subúrbio ao passar apitando lá longe, apinhado de usuários, em busca de seus destinos. Voltou-se depois para Fernando, com brilho nos olhos. — Cidade espetacular, esta! Há sempre um lugar a mais para quem se disponha a trabalhar! Estou a seu inteiro dispor, porque sei que vou trabalhar em boa companhia. Quando vamos começar? — Imediatamente. Providencie sua mudança para São Paulo e procure o Paulo no Departamento Contencioso, para ir se inteiran- do da rotina da empresa, enquanto tratamos dos papeis da nova sociedade. Ao sair dali, Nazário achava-se tomado de grande euforia. Ao passar pela sala de Edna, onde diversas pessoas aguardavam ser recebidas, perguntou a ela: — Senhorita Edna, sabe escrever à máquina? — Claro que sei. — Ótimo! Creio que vou precisar de seus serviços. .58.
V Olinda aproximou-se do marido que ressonava pesadamente na cadeira preguiçosa, a um canto da sala, com as mãos sobre o ventre. Sentiu pena em despertá-lo. Viu-o aspirar o ar profundamente, de quando em quando, denotando certa arritmia na respiração e seu rosto denotando os primeiros sinais da senilidade. Contemplou-o silenciosamente algum tempo, contudo o hábito tinha força e viu-o mover-se. — Por que não dorme um pouco mais? Podia mudar a hora de começar o serviço e descansar melhor. Não está mais na idade de se matar de trabalhar e nem há mais necessidade disso. — Não, mulher, o dia em que eu me entregar, será o fim! A me- lhor maneira de conservar a fibra é a disciplina e o trabalho. Nada o fazia alterar os hábitos e preparou-se para sair. Ficando só, a esposa dirigiu-se à sala de jantar e recolheu os pratos que ainda restavam. Retirou da mesa a toalha servida e co- locou mais uma tábua no centro, aumentando-a. Abriu uma gaveta do grande móvel ao lado, à procura de alguma coisa. Abaixou-se, suspendendo grande quantidade de arranjos de mesa, por fim reti- rando dentre as peças de linho puro da Madeira linda toalha filigra- .59.
nada, que ela chamara de “veneziana”, por tê-la adquirido na terra dos Doges quando em sua viagem de lua-de-mel. Desdobrou-a com a maior precaução, auxiliada pela velha em- pregada Genoveva, examinando-a cuidadosamente para certificar- -se de não existir a menor rusticidade em suas dobras, devido ao lon- go tempo em que jazia fora de uso. Alisou-a com o ferro-de-passar, estendendo-a enfim sobre a mesa, colocando-se depois à sua frente a observá-la, estática e com unção, dedos trançados sobre o busto. Quantas recordações amenas e quanta saudade evocava em sua mente a toalha de mesa que ela se habituou a chamar de veneziana. Uma a uma, desfilaram em sua memória, em prolongada sucessão de momentos felizes. Lembrou-se do passeio pelo velho mundo na companhia do ma- rido, onde se demoraram três meses, percorrendo as principais ci- dades. Visitando uma loja na cidade dos canais viu aquela toalha, que lhe afirmaram ser uma raridade, pelo lavor e recortes esmera- dos. Encantou-se a sua vista e mais maravilhada ficou quando em uma tarde Enzo regressou ao hotel com ela embaixo do braço. Usou-a em raras ocasiões. Fora das noites natalinas, lembrava- -se bem quais haviam sido: no primeiro aniversário do filho, quan- do completou dez anos, em seguida no final de cada curso inter- mediário. Usou-a ainda ao receberem a visita do casal Falavigna, colega de Enzo. Iria usá-la agora para comemorar a formatura de Cesar, a quem esperavam nessa tarde. Mandou Genoveva preparar a louça de porcelana de Ginori, os cristais de Baccarat e providenciou f lores para adornar a casa. Quando Cesar chegou, já ao entardecer, encontrou a mesa ar- rumada e tendo ao centro grande vela vermelha, ornamentada com .60.
fitas alusivas. A um canto, pequeno presépio já montado em anos anteriores. Abraçou a mãe em feliz efusão. — Antes de vir para cá, passei no consultório para cumpri- mentar o velho. Como sempre, muito ocupado com seus doentes, o que não impediu que interrompesse por um momento o traba- lho para me receber. Pediu desculpas aos que ainda esperavam, alegando ser um dia bastante feliz para ele, por entregar mais um médico para cuidar dos enfermos. Sabe, mãe, que vi lágrimas nos olhos dele? Fiquei até apreensivo, por não ser natural essa emoti- vidade no pai! — Com a idade ficamos todos sentimentais, meu filho. Não sei porque, mas também eu estou com vontade de chorar, não sei se é este dia que nos deixa mais sensíveis. É uma noite em que gostaria de ter bastante gente na minha mesa, mas nossa família é tão pequena. — Há outros que nem família tem... Bateu com a mão na testa e continuou. — Por falar nisso, estou me lembrando, posso convidar alguém? — Quem? — Alguém que não tem família e que gostaria de passar a noite em nossa companhia. É um amigo que encontrei há pouco, por aca- so, antes de vir para cá, que preferiu passar o Natal em Campinas, dizendo esperar encontrar aqui pessoas mais afetivas do que em São Paulo, onde as amizades dele são convencionais. Mas, quem é? — Nazário. Ele já tem estado em nossa casa. Olinda assentiu e Cesar foi ao telefone convidá-lo. Quando o Dr. Enzo chegou ao cair da noite, após despojar-se do paletó e da gravata, dirigiu-se a sala com um envelope na mão .61.
para conversar com o filho sobre os planos futuros. Cesar manti- nha a firme deliberação de permanecer na capital a fim de abraçar a especialidade escolhida, para isso tendo feito entendimento com o Professor Alvim, o grande cirurgião ortopédico. O pai passou-lhe o envelope. — Leia. Era uma carta do Professor Falavigna, agora diretor do Hospital Municipal de Palermo. Dispondo de boas relações com o Governo Italiano, poderia conseguir uma bolsa de estagiário, sem nenhuma despesa, porque ficaria hospedado em sua casa. Cesar devolveu o envelope. — Que diz? — perguntou Enzo. — O convite é bastante honroso, pai, mas entendo que não devo romper o compromisso assumido com o Professor Alvim, de traba- lhar dois anos como seu assistente. As perspectivas aqui me pare- cem melhores, apesar de não querer menosprezar Palermo. Notou uma sombra na fisionomia paterna. O Dr. Enzo amava a pátria extremadamente e era evidente o seu desaponto. — Então recusa? — Não vamos dizer que recuso. Penso que devemos agradecer e dizer que aceitarei, logo termine o estágio de cá. O semblante do progenitor desanuviou-se, ao responder: — Eu sabia que não iria recusar. Umas aulas nos hospitais euro- peus ajudam a colocar nos receituários: “com prática nos hospitais de tal lugar”. — O senhor não tem medo de uma guerra? Mussolini ameaçan- do o poderio inglês na África com a sua política agressiva... .62.
Empolgado pelas façanhas políticas do Duce, o médico italiano aparteou: — Não fale de Mussolini. A Itália é uma terra maravilhosa, um povo trabalhador, que acaba de encontrar no Duce o homem que faltava para conduzir essa nação ao seu grande destino no mundo! Um homem como ele só aparece a cada mil anos! — Estamos de acordo, pai. Fica combinado que irei quando ter- minar o estágio na Santa Casa de São Paulo. Seriam nove horas da noite quando Nazário chegou no seu novo carro Chevrolet, que os hospedeiros examinaram encantados. O jantar decorreu bastante animado. Nazário relembrou pas- sagens jocosas dos tempos de viagens pelo interior e o próprio Dr. Enzo saiu do sério, excedendo-se nas iguarias e na sidra italiana, que reputava superior ao champanhe francês. Chegou mesmo a declamar trechos de estrofes da Divina Comédia de Dante, relem- brando os tempos de juventude na Faculdade, quando representava no anfiteatro da escola, nos fins de ano. Conseguiu recordar quase inteiro o terceiro canto da ode, quando descreve a chegada dos poetas à porta do inferno, na qual estavam escritas palavras terríveis, na senda que leva ao Aqueronte. Fez Nazário prometer estudar e conhecer a obra do poeta, que considerava a expressão máxima da latinidade. .63.
VI Seriam quase dez horas quando Nazário chegou ao escritório naquela manhã de segunda-feira, após três dias de permanência nas praias do Guarujá. Ali chegando tentou colocar o automóvel no exíguo espaço late- ral do edifício, encontrando já estacionado o carro de Paulo Peça- nha, provavelmente à sua espera. Desceu, atirando a porta de mau humor e encaminhou-se para a entrada. Tinha uma série de motivos para andar contrariado: pequenas e sutis discrepâncias o levavam a prevenir-se contra o sócio Cláudio, dantes cordato e aceitando passivamente sua gestão, como era do contrato, agora se permitindo opor-se em determinados assuntos, como aquele, contrariando sua proposta de aumentar o ordenado de sua funcionária Edna. Era ela sua secretária particular, bastante eficiente e o sócio jul- gou mais acertado um ajuste amigável e dispensá-la, por se ter ca- sado. Nazário recebeu a ideia desconcertado, no entanto se conteve, desconfiado de qualquer participação dos Peçanhas por detrás da- quela medida. Outro motivo de seu azedume provinha da má sorte a persegui- -lo naquela semana, perdendo soma nada desprezível no Cassino da Praia. .65.
Quando entrou no escritório, Paulo Peçanha o aguardava, en- tregue à leitura de um jornal matutino. Nazário sabia ao que ele ali estava: a intervalos regulares comparecia para a prestação e con- tas das vendas e arrecadações que se faziam no mercado paralelo, na farinha que os Moinhos entregavam dentro das rígidas normas estabelecidas pela Comissão de Abastecimento controladora do mercado de trigo, que muitos, entretanto, desrespeitavam pelos mais hábeis ardis. A Nazário não era nada confortável semelhante comércio, a que fora jungido por contingências poderosas, da qual não conseguia se desvencilhar. — Olá, Paulo, cansado de esperar? — Aproveitei para uma vista d’olhos no jornal, já que o cunhado Cláudio também chega só depois das dez, como bom burocrata que sempre foi. Não é o seu caso, evidentemente, porque sei que esteve na praia. Paulo dobrou o jornal, colocando-o sobre a mesa de trabalho, ao lado da correspondência e demais papeis. Nazário acendeu um cigarro, tomando acento na cadeira e começando a manuseá-los, enquanto conversavam. — As vendas da semana foram excelentes! Viu o relatório? — Fernando contou. — Quer que mande transferir todo o saldo arrecadado? — Convém conservar uma reserva maior para as contingências. Você leu o discurso do Sarmento na Câmara? Nazário levantou os olhos da correspondência. — Sobre o trigo? Não merece comentários. É um refinado patife. — De acordo, mas a coisa apareceu nos jornais. Rogério ficou incomodado com a referência ao câmbio-negro da farinha, envol- vendo os moageiros na trama. .66.
— Os Moinhos não tem de que recear. — Certamente, mas Rogério teme essas investidas. O melhor é tapar logo a boca desse homem. — Como? — Converse com o Haddad, ele é bastante experiente nessas questões e conhece os meios adequados. O homem quer dinheiro, o importante é contornar. Um sorriso bailou fugaz no rosto do advogado. Nazário abanou a cabeça, pensativo. — Por mim, não daria a menor importância. O homem não goza de nenhum prestígio. — O que ele diz não importa, mas não faltam jornalecos para servir de eco, o que então importa. — Por que mencionou o Haddad? — Ele me telefonou. Não deixe de o procurar. — Não aprecio muito esse tipo. É como o Sarmento, senão pior. — Que fazer? O mal se cura com o próprio mal. São vinhos da mesma pipa e se completam. Certamente o Sarmento vai querer se candidatar novamente e o Haddad pode oferecer ajuda, sem com- prometer os Moinhos. Nazário voltou a examinar os papeis. Apertou um botão e Edna apareceu. Entregou-lhe a papelada e vendo-a transpor a porta, fa- lou a seu respeito, como distraidamente: — Edna é uma funcionária exemplar, perfeita nas suas atribui- ções, mas parece que Cláudio tem certas restrições... Paulo encarou-o. — Por quê? Ele disse alguma coisa? — Propus um aumento no seu ordenado e discordou, o que não deixou de me surpreender. Chegou mesmo a considerar a conve- .67.
niência de estudar um ajuste amigável para que ela se retire. Não consegui entender bem o seu o pensamento, em se tratando de uma empregada tão eficiente. Paulo passou a mão pela testa, enquanto expelia uma fumaça de cigarro. — Não esqueça que ela casou... — O que tem isso? — Casou com um rapaz da imprensa, se não me engano. Há receio de que possa causar-nos algum embaraço. — Não creio, conheço-a bem e não a considero capaz. — Além disso é bom não esquecer que pode engravidar, afas- tando-se do serviço por alguns meses, por nossa conta. — Sim, por nossa conta, é da lei. Nazário comprimiu a ponta do cigarro no cinzeiro, como a des- carregar por essa forma a sua irritação interior e levantou-se. — Muito bem, vamos considerar o assunto. Quando Paulo se retirou, permaneceu por longo tempo de pé, próximo da janela, mãos enterradas nos bolsos, olhar perdido no ca- sario distante como se tivesse o pensamento paralisado. Sentia uma força superior a comandar suas ações e não lhe restava alternativa. Ao cair da tarde, quando se dispunha a encerrar o expediente, uma visita inesperada surpreendeu-o, por ser a primeira vez que se verificava. Edna achava-se ausente da antessala e a porta se abriu, impulsionada pelo próprio visitante, surgindo no pórtico a figura majestosa de Frei Bibiano. De elevada estatura, dentro das vestes talares, parecia ainda maior, quase um gigante. O seu rosto rubicundo, contornado pela barbicha ruiva e pon- tiaguda, trazia permanentemente um sorriso nos lábios, o que lhe .68.
conferia um ar alegre, quase infantil. Extrovertido, ao contrário dos irmãos, apreciava uma boa prosa, os seus olhos irradiavam um brilho cintilante. Nazário precipitou-se ao seu encontro. — Que alegria, Frei Bibiano! Que enorme satisfação em receber o amigo em minha modesta tenda de trabalho! É uma feliz com- pensação depois de um dia de intensa labuta. — Deus ajuda os que lutam. Como vai passando? — Bem como sempre. Necessitando de uma dose de conforto espiritual para atenuar as nossas muitas culpas e aborrecimentos. Como vê, a sua presença é bem-vinda. — Ai, pecadores! — Vivemos sempre os pecados, por mais que procuremos evi- tar. Em que terei o prazer de o servir? — Vim procurar meu cunhado Cláudio. Tinha uma conversa com ele e como passava aqui por perto, resolvi chegar, assim mato dois coelhos de uma só cajadada. Soltou uma risada sonora, ajuntando: — Eu disse que mato dois coelhos? Força de expressão, não sou capaz de matar coisa alguma... — O Cláudio já se retirou. — Que folgado. É um grande boa-vida! Não faz mal, o caso não é assim tão importante. Tenho assunto também para o senhor. Acomodou-se na poltrona que Nazário puxou para junto da sua escrivaninha, depôs uma pequena pasta sobre ela e enfiou a mão no bolso da veste, retirando um lenço que passou na testa, recolhendo- -o novamente. — Estou ao seu dispor, Frei. .69.
O capuchinho explicou: — Estou angariando fundos para um asilo de crianças necessi- tadas, do qual sou capelão. Vou lá todas as semanas rezar missa e vi as dificuldades com que lutam. Pus-me em campo, falei com meus irmãos e alguns paroquianos, todos se comprometeram a ajudar e aqui estou para implorar a sua contribuição. É uma obra meritória que lhe abrirá as portas do céu. — Mas que dúvida! Serei imensamente feliz em colaborar! O monge apanhou a pasta de cima da mesa, retirou uma lau- da de papel do seu interior e a apresentou. Nazário percorreu rapi- damente o seu conteúdo, considerou um momento, assinou o seu nome e a devolveu. — Não colocou a quantia — observou o franciscano. — Deixo a seu critério. O senhor é quem vai dizer. — Isso é muito nobre da sua parte mas prometo não abusar. Sei que está bem de finanças porque os meus irmãos me contaram, mas não tão bem quanto eles. Deixe ver... Rogério cinquenta con- tos, Fernando trinta, Paulo vinte... vou colocar você junto de Paulo, está bem? — Não Frei, ponha mais, por favor. A mesma quantia do Roge- rio. Sou solteiro e é justo que contribua com um pouco mais. Deus não deixará de agradecer e retribuir, em nome das crian- cinhas pobres e abandonadas. Gostaria que o senhor aparecesse um dia lá, para ver. É muito comovente sentir as misérias deste mundo. São tão precisadas! — Como se chama o asilo? — Santa Ernestina. Doação de um casal de portugueses ricos. Vivem ali perto de setenta meninas, entre sete e quinze anos, assis- .70.
tidas por freiras leigas, sob a direção de Madre Ursulina, uma santa mulher extremamente dedicada a elas. — Irei sim — prometeu Nazário. Frei Bibiano aproximou a cabeça e falou em um quase murmú- rio, como se estivesse cometendo uma indiscrição. — Meu bom amigo, tenho um problema que atormenta o meu pensamento há algum tempo e gostaria de esclarecer... é assim tão fácil ganhar dinheiro moendo trigo? Nazário empertigou-se na cadeira, suspicaz. — Por que pergunta, Frei? — É que... consta que meus irmãos possuem hoje uma fortuna difícil de avaliar. — Nada mais natural, são operosos e inteligentes. — Eu sei. O que não posso compreender é terem acumulado uma tão grande quantidade de dinheiro em tão pouco tempo. O vil metal não rola com tanta velocidade assim para os bolsos! Vai des- culpar a minha curiosidade... é normal, esse resultado? — Sim, normal... não devemos pôr em dúvida a honorabilidade dos vossos parentes. Um bom empreendimento, um pouco de sorte e as oscilações do mercado... tanto se pode ganhar como perder... — Não faço mau juízo de ninguém, mas tenho lido e ouvido certas referências ao câmbio-negro da farinha e espero que meus irmãos não se envolvam nele. O pão é o alimento dos pobres e seria doloroso ajuntar fortuna com a miséria alheia. A fome é má conse- lheira, não devemos abusar. Nazário procurou atenuar. — Não devemos pré-julgar, Frei. É verdade que existem mani- puladores do mercado, forçando a alta e sonegando estoques, mas .71.
os Moinhos Santa Helena não entram nesse jogo, atuando como elemento moderador, procurando sempre uma posição ética. Isso não evita serem obrigados a aceitar fatos consumados, porque o mercado tem muita força, os interesses em jogo são muito fortes. Quem está no negócio tem de correr os riscos contingentes, bons ou maus. — Realmente, não entendo da economia e da ciência dos negó- cios. O senhor não imagina o que é um estômago vazio, Nazário! Todas as semanas formam-se filas enormes às portas das igrejas para receberem sua ração de alimentos! São criaturas humildes e descoradas, famintas, e se não fossem os moinhos nos entregarem farinha de graça, não sei o que seria delas. Frei Bibiano levantou-se, estava na hora de sair. Nazário o acompanhou. — Vou levar o senhor ao convento, Frei. É tão rara uma oportu- nidade como esta e não quero perdê-la. .72.
VII Quando Olinda abriu a porta para receber o marido, duas coisas a tornaram apreensiva: seu regresso antecipado e o semblante carre- gado, sem ocultar a intranquilidade que o dominava. Tomou-lhe a pasta, o chapéu e a bengala, inquirindo: — Por que veio tão cedo, não está se sentindo bem? — Muito preocupado, mulher... muito preocupado... Também ela não se sentia segura. — Recebeu carta de Cesar? — Não. — Que aconteceu? — A Itália invadiu a Etiópia! Não era para menos. Cesar achava-se em Palermo, depois de cumprir o seu compromisso de dois anos com o Professor Alvim e na Santa Casa de Misericórdia. A situação na Europa se complicava a cada momento, prenunciando graves acontecimentos. Mussolini pronunciava discursos inf lamados, conclamando o povo a levan- tar-se em armas, prometendo-lhe um império. Passados os arroubos patrióticos, o velho médico italiano prin- cipiou a sofrer um terrível complexo de culpa — ao incitar o filho único a aceitar o oferecimento do Professor Falavigna — atemoriza- .73.
do agora com a perspectiva de ser ele envolvido pelos acontecimen- tos. Aa cartas que recebia da Itália deixavam antever a aproximação da borrasca e os jornais já se referiam a ela abertamente. Apenas um sentimento de orgulho o impedia de chamá-lo de volta à casa, quando era de todos conhecido o seu entusiasmo be- licoso. Também para Olinda não deixava de ser uma notícia desalenta- dora. Notando, contudo, a intranquilidade estampada no rosto do marido, procurou dominar a ansiedade, contornando: — Bem... não vamos fazer a situação tão feia... A Etiópia fica tão longe da Itália. — Parece que não tão longe. — Não fica na Ásia? — Não na Ásia. Na África. — Não é a mesma coisa? Para ela, a África ficava tão distante da Itália, como do Brasil. — Não fica tão longe como você pensa. É só atravessar o Canal de Suez e pronto! Fique sabendo que os novos aviões podem trans- por o Canal de Suez em poucas horas. — Se a guerra é na África, por que ficarmos mortificados, se o nosso filho está na Itália? Além disso ele é brasileiro e não está obrigado a servir. — Sim, é verdade, mulher. Confio em Falavigna, mas acho bom você escrever para que regresse o quanto antes. Concordou, iria se comunicar com Cesar, imediatamente, co- municando o pedido dos pais para retornar. Viu, apreensiva, o ma- rido procurar no armário de remédios o vidrinho de rótulo amarelo contendo os comprimidos da digitalina, ingerir um deles com um .74.
gole d’água, sentar-se depois na cadeira preguiçosa, silencioso e descorado. A carta seguiu, sem conseguir porém, o resultado colimado. As missivas recebidas, depois, traziam as mais desconcertantes notícias. Falavigna tinha uma filha solteira, pouco mais velha que Cesar. Pierina tinha Curso de Enfermagem e se apresentou para servir nos hospitais da Eritreia e Cesar, vendo o desânimo dos pais quando da partida da moça, resolveu acompanhá-la para a zona de combates. Entretanto, um acontecimento inesperado ocorreu: a imprevista morte de Pierina na Eritreia, atingida por uma epidemia de tifo. Tudo isto foi relatado em carta aos pais e o Dr. Enzo Ungaretti não se chocou menos com a infausta nova. Então, aquele homem tido como uma rocha inabalável, desmoronou de repente, causando sérias apreensões à esposa. Declarou-se enfermo, passando largo tempo em sua cadeira preguiçosa ou no pequeno escritório. Em certo momento em que se achava na saleta, a esposa veio sentar-se ao seu lado. Conhecia ela o motivo daquela hipocondria, sem ânimo para abordá-lo. Foi Enzo quem falou. — Cesar não diz quando vem, isto me preocupa. — A mim também, vou escrever a ele novamente. Viu duas lágrimas rolarem dos olhos do marido, ao dizer: — Perdoe, mulher... — Por que mortificar-se, Enzo? Ela tomou-lhe a mão enorme entre as suas, afagando-a, ao mes- mo tempo em que tentava fazer-se forte. — Você sabe, mulher, a culpa da ida do filho é toda minha. — Tenha fé, tudo terminará bem. .75.
O italiano abanou a cabeça. — Não posso deixar de pensar na dor dos Falavigna. Parece que é a minha dor. Pobre Concetta, sem a filha! E pensar que o nosso Cesar está naquele inferno! Permaneceu calado algum tempo, com o olhar perdido no espa- ço, como se uma ideia ruminasse no íntimo. Voltou a dizer: — É muito bonito a gente falar em patriotismo enquanto es- sas desgraças não acontecem. Quando penso que Cesar pode não voltar... E a sua voz tornou-se trêmula pela emoção. Há de voltar — res- pondeu Olinda. — Sou o culpado, mulher... Não continuou. Os soluços brotaram de repente, abaixou a ca- beça sobre os braços cruzados na escrivaninha e o corpo passou a sacudir, sob o impacto do pranto convulsivo. A esposa procurou acalmá-lo, passando os dedos em seu cabelo grisalho, dobrando-se por fim sobre ele, chorando igualmente. Conteve-se subitamente, alarmada. — Enzo, Enzo! Está sentindo alguma coisa? O médico fez um grande esforço para levantar o rosto, fitando- -a com olhar embaçado, deixando tombar novamente a cabeça na escrivaninha. ❧ O Dr. Mário Ferri, chamado às pressas, pouco pôde fazer. Re- moveu-o ao Círcolo Italiano Uniti, onde Ungaretti era sócio benfei- tor, porém Enzo expirou nessa mesma noite. .76.
Pelas condições irregulares do Correio Aéreo Militar, circuns- tância inerente à própria guerra, somente um mês depois Cesar tomou conhecimento da morte do pai. Trabalhava no momento nos contrafortes das montanhas de Harrar, onde se feriam alguns combates, impossibilitado de afastar-se, dado o vulto de feridos hospitalizados. Passaram-se dois anos, desde quando partira, ao retornar a Campinas. Chegou nos começos de 1936, silenciosamente, sem pre- venir ninguém, metendo-se em casa, sem sair durante muito tempo. Encontrou a mãe mais conformada com a perda do marido. Olinda e o filho entregavam-se então a mútuas e infindáveis confi- dências, relatando os acontecimentos daqueles dois anos de separa- ção. A mãe achara-o agora transformado. O jovem despreocupado dos tempos escolares transmudou-se em um homem concentrado, precocemente amadurecido aos vinte e seis anos, pelas agruras dos campos de batalhas e pelo clima inóspito da região. Uma tarde, após o jantar, Cesar resolveu penetrar no pequeno compartimento onde o velho pai italiano costumava refugiar-se, quando desejava entregar-se ao estudo ou meditação. Viam-se ali, amontoados a esmo, na mais promíscua confusão, na escrivaninha e nos armários, livros de medicina de diversos autores e línguas, jornais e revistas da Península, edições ilustradas do “Domênica del Corriere” de Milão e da “Tribuna Ilustrata”, atestando seu en- tranhado apego à Mãe-Pátria. Pendurado na parede, a um lado, grande retrato do pai junto à esposa, tirado na Itália por ocasião do seu passeio. E em outra pa- rede uma fotografia de Pierina, recentemente colocada, que o casal Falavigna enviara expressamente de Palermo, a pedido de Enzo. .77.
Cesar sensibilizou-se à lembrança da destemida moça, compa- nheira de campanha. Sobre a mesa de trabalho, em moldura de pra- ta, o retrato de Cesar, com a beca de formatura. Olinda procurou conservar aquele exíguo escritório nas mes- mas condições deixadas pelo marido ao morrer, como um sacrário em preito à sua memória. De pé, à entrada, Cesar lançou um olhar reverente para aquele amontoado de coisas, mantendo-se longo tempo em silencioso recolhimento. Como a tarde findava aos poucos, um manto de sombra chegava através das cortinas da janela, foi preciso acender a luz de um gran- de abajur. Sentou-se por fim na cadeira giratória, atrás da mesa de trabalho. Olinda apareceu daí a pouco, ocupando a poltrona ao lado da es- crivaninha, permanecendo ambos mudos algum tempo, como a re- lembrarem o morto ausente. Cesar foi o primeiro a quebrar o silêncio. — O pai era um homem metódico e meticuloso, bastante or- ganizado. Os seus negócios eram perfeitos e acabados, nada ficava pendente e por terminar. Num único ponto havia relativa desordem e era esta saleta. E como a mãe conserva tudo do mesmo jeito! — Houve um tempo — respondeu Olinda — em que tentei ar- rumar este escritório, mas percebi que Enzo não gostou e nunca mais mexi. Ele disse que saberia encontrar o que desejasse, no meio dos desarranjos. Agora não tenho mais ânimo para modi- ficar qualquer objeto, apenas espano todos os dias e abro a janela para arejar. Cesar abriu uma gaveta do móvel, depois outras, constatando imperar dentro delas a mais perfeita ordem, em dissonância com o desalinho externo. Encontrou diversas pastas de arquivo con- .78.
tendo os mais variados papéis, com nomenclaturas indicativas do seu conteúdo, que até então não tinham sido tocadas. Tudo bem classificado. Em uma delas encontrou a declaração de bens do casal, incluin- do extensa relação de títulos da Dívida Pública, além de ações e de- bêntures de Companhias de Investimento, até então ignoradas. Examinou-as detidamente, voltando-se surpreso para a proge- nitora: — Não estamos tão mal assim! Veja esta relação de títulos de relativo valor, depositados em nossa caixa particular no banco. — O seu pai estava sempre investindo e pouco me informava... gostava de negociar esses papéis. — Títulos ao portador, grande parte com juros a receber! Com mais vagar tratarei deste assunto. — O Dr. Carlos falou-me na conveniência de vasculhar esses guardados, sabendo que Enzo empregava dinheiro em negócios. Respondi que queria aguardar a sua volta para cuidar deles. Seguiu-se demorado silêncio, em que viu a mãe fitá-lo, preocu- pada. Sentira ela ter chegado o momento em abordar o assunto que levara procrastinando a vida inteira, sem saber de que maneira ini- ciar. Foi com a voz alterada que falou: — Meu filho, há alguma coisa em nossa vida que você precisa conhecer e que seu pai e eu temos deixado de ventilar, por achar- mos que não tinha ainda chegado a ocasião. Você vai ter em mãos a certidão de nosso casamento e deverá estranhar que somente agora foi possível fazer a legalização. Até parece que Enzo esperava por isso para morrer, tanto se inquietava! .79.
Mais tranquila agora, passou a revelar ao filho toda a sua vida pregressa ao lado do médico italiano, com a final formalização do ato matrimonial. Cesar ouviu atentamente a confissão materna, beijando-a bas- tante comovido. — Mãe, jamais eu deixaria de amá-la! Você é para mim a melhor mãe do mundo e ai daquele que vier a ofendê-la. ❧ Dias depois, passando por Campinas a serviço da Ordem, Frei Bibiano não deixou de fazer-lhes uma visita. Foi recebido alegremente. Cesar relatou-lhe as peripécias do tempo passado em campanha, especialmente os rudes trabalhos nos hospitais de sangue. Procurava agora refazer os nervos na tran- quilidade do lar, à espera de enfrentar nova vida. — Onde pretende clinicar? — Ainda não sei bem, penso trabalhar em São Paulo, aprovei- tando o aprendizado com o Professor Alvim e as experiências acu- muladas nos hospitais, especialmente no campo da cirurgia infan- til, que mais aprecio. — Ótimo! — exclamou o franciscano. Estamos justamente pre- cisando de alguém experiente para cuidar de crianças paraplégicas e você chega a calhar! O nosso dispensário já conta duas delas para observação, a serem operadas. O Professor Alvim prontificou-se a fazer o serviço, mas é um homem muito ocupado e nunca sabe- mos quando podemos contar com ele. Além disso necessita de um .80.
assistente para acompanhar o tratamento preliminar. Gostaria de colaborar? — Claro, Frei! É justamente o que mais estou procurando, lidar com crianças. — Quando pode iniciar? — Possivelmente dentro de um mês, tão logo me instale na Capital. — Combinado, Cesar. Não vou procurar mais ninguém. Venha ver-me quando se arrumar. A perspectiva de contar desde logo com uma ocupação incitou-o a seguir imediatamente para São Paulo. Procurou corretores, per- correu anúncios. Encontrou um colega desejando repassar o con- sultório que mantinha no Centro, na Rua Marconi, a fim de tentar nova vida no Norte do Paraná. Cesar comprou-o, transferindo-se definitivamente para a Capital. Uma das primeiras providências foi procurar Frei Bibiano no Convento. Numa tarde amena percorreu o corredor lateral da basí- lica ao encontro do franciscano, que o recebeu jubiloso. — Bravos! Mais cedo do que eu esperava. Combinaram um encontro para o domingo seguinte. — Venha buscar-me às oito horas da manhã para irmos ao asilo Santa Ernestina. Vou rezar missa lá e quero apresentá-lo à Madre Ursulina, até as pequerruchas o esperam excitadas. Vieram caminhando vagarosamente pelo corredor, parando em frente da porta do pequeno parlatório, onde uma jovem esperava sentada. Enquanto tratavam dos últimos detalhes, o capuchinho notou a moça e dirigiu-lhe afetuoso cumprimento com a mão, batendo na costa de Cesar. .81.
— Tenho certeza de que vai gostar. Voltou-se para a jovem. — Como vai a minha sobrinha amada? Já conhece este esculápio? Isabel acolheu a saudação com um sorriso, enquanto Cesar me- neou para ela a cabeça, cerimoniosamente. O frade continuou. — Esta menina é a pupila dos meus olhos, não é verdade, Isabel? Ela assentiu com novo sorriso. Ao reencontrá-la de maneira inesperada passou pela mente de Cesar, como um relâmpago e como se tivesse acontecido na véspe- ra, a cena do Tênis Clube. Quando ela o tratara com tanta agressivi- dade, no momento em que tentava socorrê-la. Uma réstia de sol filtrou-se pelo vidro colorido ao alto de um vitral, incidindo precisamente sobre a jovem, iluminando-a. Foi então que o médico relembrou a mágoa de sua mãe àquela gente e tratou de retirar-se, sem mais demora. Uma vez fora da igreja, não deixou de fazer uma autocrítica ao seu comportamento. Não teria sido mais elegante aproximar-se da jovem, cumprimentando-a, relembrando talvez a cena do Tênis Clube e se divertindo com ela? Que juízo faria Isabel de sua atitude? Uma sensação de desconforto apoderou-se dele, ao considerar a maneira pouco polida com que abandonara o local. Afinal de con- tas, ao tempo da ocorrência, Isabel não passava de uma adolescente muito mimada e bem poderia ter mudado nesses oito anos em que não mais a vira. Não sabia se foi o efeito da réstia de sol em sua ca- beça, mas pareceu-lhe bastante bela. .82.
Cometera uma grave e insanável indelicadeza — concluiu amargurando-se momentaneamente. Não conseguia apagar do fundo da imaginação o sorriso condescendente que ela lhe dirigira ao fitá-lo com olhos curiosos. Procurou uma atenuante ao seu gesto, tentando trazer a ima- gem da mãe em seu auxílio. Enfim, aquele sorriso bem poderia sig- nificar secreta ironia pela sua inibição. Tão preocupado estava que deu forte empurrão em um passan- te apressado, que se pôs a encará-lo espantado. — Desculpe — gaguejou ele. — Mas que diabo de besteira! — pensou. Por que estou a perder tempo com tais considerações? .83.
VIII Cesar pôs-se a caminhar a esmo, sem destino determinado, pensando na melhor maneira de empregar a tarde. Deu-se conta achar-se em uma cidade de vida tumultuada, onde cada indivíduo tinha uma missão a cumprir. Verdadeira multidão atarefada desli- zava em todas as direções, qual colmeia excitada. Lembrou-se contar reduzido número de amigos, deles desliga- do em consequência da prolongada ausência. Foi nesse estado de ânimo que pensou em Roberto Linhares, o gorducho e antigo com- panheiro dos primeiros tempos escolares, o amigo sempre cons- tante e fiel, o único que realmente exercia sobre ele preponderante fascínio, com seu gênio extrovertido e alegre, sempre pronto a com- preender e aceitar suas pequenas impertinências. Roberto trabalhava agora no escritório de advocacia do Profes- sor Felisberto Macedo, ali colocado por inf luência de seu pai, colega do causídico. Telefonou-lhe, convidando-o a jantarem juntos. Cesar aguar- dava no salão de espera do Hotel Esplanada, onde residia tempo- rariamente, quando ao cair da noite viu-o chegar bem disposto e sorridente, cabelos bem penteados. Encarou-o observando: .85.
— Precisa ensinar-me o segredo dessa eterna juventude e mag- nífica forma. Apesar do tempo, não mudou nada. — Nada de extraordinário, meu velho, o segredo está na manei- ra de encarar a vida. Quando temos saúde, o essencial é não com- plicar as coisas. Sou da opinião daquele filósofo — quem é mesmo? — que dizia: “não faça hoje o que pode ser feito amanhã, porque amanhã talvez não seja mais necessário”... — Vai nisso uma questão de temperamento, — redarguiu o mé- dico sorrindo. Nem vou acreditar que proceda realmente assim. O seu trabalho se reveste de grande responsabilidade, de outra forma perderia o conceito de seus clientes. — Quer saber o meu serviço no escritório? Puramente funcio- nal! Meu trabalho é acompanhar a tramitação dos papéis nos tribu- nais e fórum, fazer movimentá-los para que não fiquem mofando nas gavetas e fiscalizar o seu andamento. Qualquer empregado de segunda categoria podia fazer o mesmo. Nem era necessário de- bruçar anos e anos em cima dos livros, aprendendo o Direito Roma- no, para tais atividades! — Sempre fazendo pilhéria sobre coisas sérias! Sabe que deve ser esse seu aspecto o que mais admiro? Não vai me dizer que não está ganhando experiência... — Sim, é verdade — concordou o outro, fazendo-se sério. Va- mos com o tempo adquirindo sólida aprendizagem, que muito vai nos servir para o futuro. Aliás, estou me especializando em ques- tões trabalhistas, esse setor não tinha quem cuidasse no escritório e me foi afeto. O diabo é que a legislação trabalhista é bastante com- plicada, temos de anotar diariamente as mudanças, tantas são as leis novas que aparecem! Fora do trabalho emprego o meu tempo .86.
fazendo vida social. Na nossa idade isso é muito importante, por- que nos proporciona novas amizades, e novas amizades nos trazem bons rendimentos. Como você está voltando ao nosso convívio, aconselho-o a tornar-se sócio de dois ou três clubes dos mais im- portantes da cidade. — Que clubes? — Por exemplo, o Paulistano ou a Sociedade Hípica. — Você já está num desses? — Justamente nos dois que citei. — Não dou para frequentar sociedades. — Por que, Cesar? — Sou um elemento antissocial por natureza. — Deve tentar. Os frequentadores desses clubes pertencem ao melhor nível social, bons rapazes, moças que são uma uva! Estou certo de que vai se adaptar no meio deles. — Roberto, você me conhece e sabe que detesto gente sofistica- da. Não passam de criaturas de muita ostentação e cabeça vazia. Nunca estou à vontade no meio delas. — Precisa destruir essa ideia errada, o importante é o exercício físico, a convivência. Não é obrigado a tolerar pessoas de quem não gosta, mas tenho certeza que acabará gostando de muitas delas. Você revelou-se em Campinas um excelente cavaleiro. Umas cavalgadas fazem bem ao corpo e ao espírito e ajudam a descarregar as preocu- pações, além de aumentar a forma. Sempre que posso estou na Hípi- ca, montando. Tenho ali bons amigos, como Bressane, Aldrovando Dias, Marcelo Siqueira e outros, que você não perde por conhecer. — Desista, Roberto, essa maneira de vida está bem para você, não para mim. Além de ser avesso a festas, sou hoje um homem .87.
sofrido. Nem queira saber o desgaste que um ano de guerra ope- ra sobre nós. Sem falar na Revolução de 1932, em São Paulo, que me pegou um mês na Zona Sul do Estado! Quase todo o egresso de qualquer campanha esconde no fundo um neurótico. — Mas não você — rebateu Roberto. Mesmo que assim seja, uma razão a mais para se divertir. Vai entrar para um clube, sim, vai fazer relações, dançar, conhecer moças, namorar... Cesar não conteve uma risada. — Imagine, eu namorando! — Perfeitamente, meu velho, namorando, é isso mesmo! Não vai dizer que é diferente dos outros, a não ser que queira entrar para um presbitério! — Há muitas maneiras de se distrair, por exemplo, trabalhando. — Está certo que o trabalho é necessário, mas a sabedoria man- da associar as duas coisas, para o equilíbrio do corpo e da mente. Na hora do trabalho, trabalhar, e na de divertir, divertir. Você quer melhor distração do que passear a cavalo no meio de bons amigos? Posso indicar bons animais para escolher um que te sirva. — Bem... vamos esperar... ❧ Na semana seguinte o advogado procurou o amigo. — Tenho duas entradas para um recital de piano para esta noi- te, no Municipal. Quer acompanhar-me? — Quem vai tocar? — Guiomar Novaes, nossa vedete do piano. — Estou interessado em ouvi-la, aceito — respondeu. .88.
Havia curiosidade em torno da exibição da consagrada pianis- ta, precedida de retumbante sucesso e elogios da crítica europeia. Havia ainda a circunstância da prolongada ausência de récitas e funções teatrais e, de outro lado, por ter sido fechado o teatro para reformas, mais de um ano. Por tais motivos, a concorrência nessa noite ultrapassou as melhores expectativas, todos os lugares dis- poníveis ficando lotados por uma assistência selecionada, aprovei- tando as mulheres para exibir finos agasalhos e adereços preciosos. Os dois rapazes tomaram acento no meio da plateia, descorti- nando dali parte apreciável do público presente, distribuído pelos balcões, frisas e camarotes. Roberto Linhares cumprimentou ou respondeu saudações de alguns conhecidos. Seu olhar divagou, percorrendo alguns balcões, até demorar-se momentaneamente em uma frisa rente ao proscê- nio, ocupada pela família de Roberto Peçanha. Além do casal, acha- vam-se presentes Márcia e Renato Drumond, mais Camila. Isabel estava na frisa ao lado, ocupada pela família do Comendador Gus- tavo Siqueira, com seus filhos. Sentada na frente, Isabel reconheceu Roberto. Afastou dos olhos o pequenino binóculo, acenando-lhe discretamente com os dedos. Cesar acompanhou instintivamente esse movimento e seu olhar cruzou-se com o da moça, vendo bailar ainda no seu rosto fugaz sorriso, no instante mesmo em que procurava dizer qualquer coisa ao ouvido de Marcelo, sentado logo atrás e reclinado levemente so- bre seu ombro, para escutar. Roberto voltou-se para o companheiro e puseram-se a falar em voz baixa, referindo-se a Isabel. .89.
— Que diferença fez essa moça! Não se parece mais com aquela menina estouvada de Campinas! Hoje está mudada, muito bonita e assentada, se bem que um tanto convencida. — Quem é aquele que está na frisa, a seu lado? — Marcelo Siqueira, filho do Comendador Gustavo, banqueiro, de sólida reputação e fortuna, que ajudou Rogério a conquistar os Moinhos, emprestando o dinheiro para comprar a maioria acionária. — Noivos? — Um dos que a cortejam. Moram vizinhos, consta que ela ain- da não se decidiu. As famílias protegem o namoro. — Que faz ele? — Estudou Economia, fez estágio na Europa. Dizem que o pai quer arrumar para ser um dos diretores do banco. — Que banco? — Banco Meridional, um bom banco. Marcelo é um rapaz de bri- lhante futuro, inteligente. Um dos melhores saltadores de obstáculos da Hípica, junto com Aldrovando e Bressane, conquistando o primei- ro lugar nas recentes provas. Fez bonita apresentação na Europa. — Que me diz daquela outra? — Márcia? Essa não é realmente muito simpática nem bonita. O rapaz ao lado dela é seu colega Renato Drumond, filho do Desembar- gador Drumond. Boníssimo sujeito, competente e sociável, é noivo dela, vão se casar em breve. Lá está ele a dirigir-me cumprimento. — Sabe que não consigo engolir a mãe dela? — Ifigênia? Nem eu. — Não aprecio essa gente. Minha mãe sempre teve forte pre- venção contra ela. As mulheres são muito orgulhosas, parece que têm o rei na barriga. Em Campinas poucos as toleram. Quem defi- .90.
niu com justeza a empáfia dessa gente é o nosso popular Dudu, que as fustigava com dois palavrões adequados. As luzes foram esmaecendo lentamente e o murmúrio dimi- nuindo, até desaparecer completamente, dando lugar a uma sim- pática acolhida e expectativa. O pano de boca se abriu e Guiomar surgiu no palco iluminado, recebida por aplausos prolongados. A audição esteve à altura da excelsa pianista, agradando ple- namente. Cumprida a primeira parte do programa, seguiu-se um intervalo de meia hora, proporcionando aos presentes oportunida- de para encontros fortuitos nos corredores e salões, aproveitando alguns para percorrerem os melhoramentos no teatro. Roberto foi cumprimentado nos salões por Renato e Aldrovan- do Marques, aproveitando para apresentá-los a Cesar. Chegavam no mesmo instante Patrícia, irmã de Marcelo, na companhia de Lúcia Salviani, filha do Conde Salviani, industrial de tecidos. Formaram todos alegre grupo. Lúcia era de mediana estatura, muito simpática, irradiando permanente bom humor. Roberto dirigiu-se a ela: — Vou precisar da sua ajuda, Lucinha, para tirar o Cesar do ca- ramujo. Este moço voltou da África estragado por um ano de guer- ra. Já não era lá muito expansivo, agora ficou pior. Não imagina o meu trabalho para o recuperar. Não podemos deixar ele assim! — Ponha o Cesar na nossa roda e o deixe por nossa conta — res- pondeu a mocinha. — Tenho de me readaptar, primeiro — disse o médico, tentando ser gentil. A conversa continuou animada, quando ouviram soar a cam- painha, anunciando a continuação do programa. A segunda par- .91.
te foi toda destinada à execução de partituras de Chopin, tocadas com expressivo sentimento pela virtuose, arrancando prolongados aplausos e grande ovação. Ao se separarem os dois amigos, nessa noite, Roberto perguntou: — Que achou da turma? — Excelente! — Então, não se anima a se inscrever num dos clubes da cidade? Cesar Ungaretti não conteve um sorriso. — Você é terrível e acaba de me convencer. — Qual deles? — Na Hípíca, por enquanto. Pode inscrever-me. .92.
IX No dia seguinte, como aprazado, Cesar passou na basílica apa- nhar Frei Bibiano a fim de se dirigirem ao Asilo Santa Ernestina. Este orfanato situava-se no alto do Bosque da Saúde, em terre- nos outrora pertencentes a um capitalista português, em rua ainda pouco habitada. O seu nome era uma homenagem à esposa do mi- lionário, como estipulava o contrato de doação. O edifício primitivo se constituía de grande casa assobradada, repartida em salas enormes e demais dependências afins, compa- tíveis com a finalidade a que se destinava. Ficava para dentro de extenso muro de proteção, ocupando imensa área. Na parte de trás da construção, via-se um parque relvado, cer- cado de frondosos hibiscos e pinheiros. Posteriormente à doação, foram acrescentados novos compartimentos necessários ao serviço interno, tais como um pavilhão térreo para eventuais isolamentos, outro para paraplégicos. Mais de sessenta crianças habitavam o asilo, atendidas pelas irmãs leigas, sob a competente direção de Madre Ursulina, freira alemã. Recebeu ela amavelmente os visitantes e o frade fez a apresen- tação: .93.
— Aqui está o homem. Não se espantem com a sua cara séria, porque é um bom moço, meu conhecido desde menino. O rosto não diz o grande coração que tem dentro do peito. Cesar sorriu, agradecendo, com a convicção de haver impres- sionado a freira favoravelmente, pensando: “creio que vamos nos entender perfeitamente”. Madre Ursulina conduziu-os às várias dependências da casa, explicando o seu funcionamento e a disciplina interna. Ao passar pela enfermaria, Cesar aproveitou para examinar três crianças ata- cadas de resfriado, concordando com o tratamento empregado. No ambulatório foi apresentado à responsável. — Esta é a Irmã Dora, que toma conta desta parte. Tem curso de enfermeira, é bastante hábil e fica sob as ordens do doutor. Dirigiram-se depois ao pátio aos fundos, onde as meninas se divertiam em folguedos infantis e, por ser domingo, aguardando a chamada para a missa. Cesar pôde constatar a disciplina reinante, ao ver a Madre Dire- tora dar uma ordem à Irmã vigilante, esta bater palmas duas vezes e as meninas interromperem os brinquedos para se aproximarem em ordem, rodeando os visitantes. — Meninas — falou Madre Ursulina em seu sotaque germânico — Este é o doutor que vai cuidar de vocês quando estiverem doen- tes. Chama-se Dr. Cesar. Batam palmas para ele. Pequeninas mãos, a baterem uníssonas, foi a resposta. A freira mandou trazer em seguida duas paraplégicas, Maril- da e Cleide. A primeira usava aparelho ortopédico em uma perni- nha, caminhava com alguma dificuldade, ele a tomou nos braços, suspendendo-a. .94.
— Como se chama? — Marilda. — Eu sou o médico que vai tratar de você, para ficar boazinha. Beijou-a no rosto, depondo-a no solo ao ver se aproximar a outra, jungida ao carrinho de rodas, que manejava com incrível perícia e agilidade. O médico debruçou-se sobre ela, beijando-a igualmente. — Como é o seu nome? — Cleide. — Vou fazer você sarar e sair desse carrinho, está bem? — Verdade? Ah, que bom! Assim vou poder brincar com as ou- tras meninas! Trançou os bracinhos magros em torno do pescoço de Ungaret- ti, devolvendo-lhe o beijo, num enternecido arroubo. Cesar voltou-se para o franciscano, ao seu lado, a contemplar a cena, sorridente: — São estas coisas que fazem a gente feliz. — Felizes os que sabem dar. O frade afastou-se para se paramentar e daí a instantes soou a sineta para a celebração da missa, encaminhando-se as meninas para a capela, dentro da mais perfeita ordem. Ao retornarem à cidade Frei Bibiano foi colocando o médico a par do funcionamento do asilo. — Naturalmente foi um bom negócio para o capitalista Bezer- ra, a doação, levando a Prefeitura a receber os arruamentos feitos, valorizando a gleba restante. Para o povo foi também um bom ne- gócio, por contar mais um abrigo para as crianças desvalidas. Algu- mas são meninas abandonadas, enviadas pelo Juizado de Menores; .95.
outras filhas de mães solteiras pobres, sem condições para o seu sustento. Algumas poucas são parcialmente mantidas por parentes ou pessoas caridosas. — Os gastos devem ser alentados — obtemperou Cesar. Quais os recursos do asilo? — Donativos, meu caro, donativos. Tenho dado boa contribui- ção neste setor, apelando para os meus paroquianos mais abasta- dos, a começar pelos familiares e você sabe como essa missão é espi- nhosa. A manutenção de um asilo com elevado número de crianças é vultosa. Abastecimentos, pessoal que trabalha... — Quem administra? — O asilo é administrado por um grupo de senhoras respeitá- veis da nossa melhor sociedade. Esse grupo elege uma mesa dire- tora bienal, composta de diversos elementos. Atualmente é dirigida pela Condessa de São Pedro, que tem sido reeleita sucessivamente, é senhora de fortuna e de grande prestígio. — Sei quem é, fala-se muito nela. É irmã do professor de direi- to, Clementino. — Exatamente, bastante idosa, quase oitenta anos. Você vai co- nhecê-la no fim deste mês, quando se reunirem, para aprovação do seu nome. — Aprovação de quê? — Os Estatutos da Sociedade determinam que certa categoria de funcionários, mesmo trabalhando gratuitamente, como o seu caso, deve merecer a aprovação do Conselho Administrativo. Isso é dos Estatutos, aliás, uma formalidade simples, porque já obtive au- torização da condessa para a sua entrada em serviço. A palavra dela é uma ordem que todos acatam sem discutir. Disponho de muita .96.
consideração junto dela. Precisava resolver logo esse problema de assistência e não podia ficar dependendo de reuniões para decidir. — Quer dizer que ela resolve tudo sozinha... — A bem dizer, é assistida por muitas senhoras dedicadas, ou- vindo suas opiniões, submetendo os assuntos à votação da mesa. No momento é assistida por senhoras como a Condessa Salviani, pela dona Belegarde, dona Emerenciana Souza Queiroz, minha cunhada Ifigênia... Ao ouvir este nome o médico pôs-se a meditar. Segundo tinha entendido, teria de se apresentar ao Conselho daquelas senhoras e talvez defrontar-se com a mãe de Isabel, o que não lhe parecia mui- to desejável. ❧ Mas os dias se passaram e uma tarde dirigiu-se ao encontro das respeitáveis damas, levando uma carta de recomendação do mon- ge. Tomou o elevador e desceu no imenso salão de reuniões. Achavam-se no recinto inúmeras senhoras, na maioria já de ida- de madura. Estavam sobriamente vestidas, bastante elegantes, to- das compenetradas da alta missão de que foram depositárias. Des- tacava-se a figura da condessa, muito bem nutrida, dentro do fino vestido escuro de seda, com imensa papada desbordando por cima da gola branca de rendas. Tinha dificuldade em se expressar, não raro repisando as palavras, que lhe acudiam a custo e engroladas. Rejubilou-se não encontrando entre elas a esposa de Rogério, assim estaria mais à vontade. Antes de penetrar na sala, preocupa- va-o tal perspectiva, sem saber como se comportariam. .97.
Acomodada em um sofá, a Condessa de São Pedro convidou-o a sentar-se a seu lado. — Frei Bibiano fez boa recomendação do senhor. Está então disposto a prestar seus serviços gratuitamente? — Terei muita satisfação em poder colaborar. — Isso é nobre. Também nós fazemos o mesmo, filantropica- mente. — O que é meritório, senhora condessa. A cidade deve orgulhar- -se de contar com uma elite que não mede sacrifícios pelo bem social. — O senhor é gentil, obrigada. Vamos iniciar nossos trabalhos. Ergueu-se a custo, Cesar procurando auxiliá-la, tomando-a pelo braço. Dirigiram-se à comprida mesa de sessões e as diversas senhoras foram ocupando os seus respectivos lugares. Cesar foi convidado a tomar assento ao lado direito da velha senhora. Pôde então apreciar a serena majestade com que ela premiu o botão da campainha e declarou aberta a reunião. Foi nesse preciso instante que Ifigênia assomou no recinto. Lançou rápido olhar em torno, encaminhando-se diretamente até a presidenta, a quem cumprimentou amavelmente, desculpando-se pelo atraso e dirigiu-se a seguir ao seu lugar na mesa, cumprimen- tando as demais presentes. Tinha passado defronte do médico, sem aparentar reconhecê- -lo, o que o deixou intimamente gelado. Era impossível não o ter notado, vira-o algumas vezes em Campinas por ocasião das férias, embora não se falassem. Procedida pela secretária Belegarde a leitura da ata da sessão anterior, discutidos dois ou três assuntos de rotina, a Condessa de São Pedro anunciou: .98.
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