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Velhas Castas - Manoel Alves Proença

Published by Ruy Proença, 2020-12-17 12:59:30

Description: Romance finalizado pelo autor em 1968. A narrativa se passa nas décadas de 1930 e 1940, entre as cidades de Campinas e São Paulo. Trata-se de uma crônica de época, confrontando valores e costumes de diferentes atores da sociedade paulista da época, como famílias decadentes oriundas da atividade cafeeira e famílias constituídas por imigrantes italianos.

Keywords: Romance,Ficção x Sociedade,Século XX x São Paulo

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em grupos. Baseados neste princípio surgiram os grandes mo- vimentos coletivos, como a Revolução Francesa, o fascismo e o ­comunismo. As massas humanas, quando tangidas com habilida- de, podem ser levadas a cometerem os maiores desatinos. Elas são maleáveis, daí o sucesso dos chefes carismáticos. Isso explica a po- pularidade de nosso artista de rádio, Reinaldo Pujol, e da explosão juvenil em torno de sua pessoa. — Ah! Eu acho o Reinaldo fabuloso! — atalhou Laura, procu- rando trazer a conversa para o terreno informal. Bressane continuou: — O boi é o animal mais manso que se conhece. Mas já viram o estouro de uma manada? É uma coisa alucinante! Voltando ao caso do Reinaldo, não há dúvida ser um artista privilegiado, desses que surgem raramente. Possui um conjunto de predicados essenciais, físico simpático, personalidade atraente, boa voz e usa o microfone com elegância. Mas, vocês esquecem o elemento primordial do su- cesso: a máquina que funciona atrás dele, essa máquina que fabrica e tritura os artistas que promove, em função de sua finalidade co- mercial. Essa máquina é tão importante, se constitui de vários ele- mentos, desde os agentes de publicidade, os que fazem os textos e os responsáveis pelos equipamentos. Sem esquecer de montar uma claque perfeitamente organizada, esta é importante condimento para excitar o público. A claque, dispersa entre os assistentes no au- ditório, aplaude freneticamente, batendo palmas e assobiando. In- ventaram até as mocinhas que sobem ao palco levando f lores e bei- jando o artista. Essa máquina custa uma fábula e tem de produzir. Notando diminuir o interesse pelo assunto, voltou-se para C­ esar, batendo com a mão espalmada em seu joelho: .149.

— Está aqui, quem tem coisas novas para contar. — Sobre artistas? Não sou nenhum entendido. — Não sobre artistas, nem a respeito de saltos. Sabemos que esteve na campanha d’África e deve ter visto algo para dizer. — A propósito, Cesar — perguntou Aldrovando Marques — como brasileiro não tinha obrigação de servir, então como aconte- ceu isso? — É uma história comprida, não sei se apropriada para a ocasião. — Conte Cesar — interveio Laura, curiosa em ouvi-lo. — Gosta- ríamos de saber, não concorda comigo, Isabel? A outra esboçou um sorriso esquivo. Cesar falou: — Como sabem, meu pai era italiano, muito fervoroso, que se deixou inf luenciar por Mussolini e por tudo quanto ele fez. Queria que eu fizesse um estágio na Europa, particularmente na Itália, de- pois de formado, e tive de prometer-lhe para não o desgostar. Fui a Palermo fazer um curso em sua Universidade, sendo colhido pela entrada da Itália na guerra. Cesar passou a relatar as peripécias de sua permanência de quase um ano nas selvas da Abissínia, ouvidas com real interesse por todos. Enquanto falava, evitava dirigir-se diretamente a Isabel. Em duas ocasiões em que assim precisou fazer, notou a imobilidade de seu rosto, escutando-o com um misto de curiosidade e atenção, porém sem dar um aparte sequer, mesmo quando incitada por Laura. Esse acontecimento desencadeou em seu espírito uma série de conceitos diversos, levando-o a pensar: “essa pequena é bastante presumida, segundo sei, ou então... quem sabe... é bastante burrinha...” .150.

❧ Lúcia apareceu daí a instante. Tinha colocado um disco na vi- trola, com música para dançar e acercou-se novamente do grupo. — Quero ter a primazia, vamos? — disse, dirigindo-se ao mé- dico. — Com prazer. Seguiu-a e, terminada a dança, retornarem ao lugar. Lúcia cha- mou Isabel: — Toca a sua vez. Isabel levantou-se, encaminhando-se para Cesar. Um pouco desconcertado e sem jeito, enlaçou-a e saíram rodopiando pelo sa- lão, logo envolvidos por outros pares. Dançaram longo tempo, sem iniciar o diálogo, Isabel aguardando naturalmente que ele primeiro lhe dirigisse a palavra, mas Cesar continuou calado. A moça ergueu os olhos por duas vezes para ele, furtivamente, perscrutando o seu semblante, terminando por sentir surda irritação. Por fim não se conteve e perguntou, sopitando seu desaponto: — Por que está tão sério? — Talvez temperamento — respondeu, sem saber o que dizer. — Não parece sempre assim... — Penso que saí a meu pai. Ele raramente sorria. — Mas conversava, não? — Conheceu-o? — Lembro-me dele. Uma vez seu pai me levou ao seu consultó- rio e notei que era bem amável. Evidentemente Cesar não se dispunha a levar adiante a con- versa e ela acabou morrendo. Isabel sentiu um gelo invadi-la e não .151.

mais dirigiu-lhe a palavra. A música terminou e esperou que ele a conduzisse ao mesmo lugar, porém deixou-a no meio do salão, de- pois de um frio “muito agradecido”. A jovem lembrou-se do último encontro, na Sociedade Hípica, quando Márcia, referindo-se a ele, classificou-o depreciativamente de indivíduo intratável, de convivência difícil. No entanto, que pa- radoxal era! Possuía uma voz de timbre forte e rica sonoridade, en- cantador quando conversava, porém de atitude esquisita diante dela. Pensou na incompatibilidade entre sua mãe e a mãe de Cesar... conservaria ele alguma prevenção? Talvez ressentimento pessoal? Viu-o afastar-se na direção do grupo onde Bressane continuava divertindo os ouvintes com anedotas e piadas e voltou sentar-se de- trás dos jarrões de guaimbés. .152.

XV Na salão contíguo Barjona falava alegremente, com pessoas sor- ridentes ao redor. Ouvindo seu colega falar, Cesar passou a prestar atenção no semblante dele, analisando seu jogo fisionômico e ad- mirou-se de como certas pessoas nascem assim, como o velho Max Linder, Buster Keaton ou Carlitos, dos filmes cômicos que desper- tavam o riso, mesmo quando falavam sério. O formato do nariz de Barjona, cujas asas pareciam dilatar-se, o modo de olhar, as f lexões da voz, tudo nele era engraçado, com o complemento da mímica produzido por mãos enormes, semelhantes a manoplas. Entanto, que belo profissional! Contava agora peripécias do hospital, histórias que Cesar já conhecia, ouvidas dele próprio. Começou a sentir-se marginaliza- do, desejando afastar-se dali. Viu Roberto dançando na sala com a mesma garota, a quem parecia requestar, e aproveitou um momen- to em que todos estavam distraídos, para sair do salão. Ao passar junto à porta de comunicação com o interior da re- sidência, uma empregada abriu-a, sem fechar. Cesar olhou para dentro e viu um corredor de mármore, largo e comprido, coberto por passadeira escura. O primeiro compartimento, logo à direita, estava igualmente aberto e iluminado, deixando à mostra acolhe- .153.

dor recanto. Era o escritório de Salviani, servindo ao mesmo tempo de biblioteca, com armários de mogno trabalhado, atulhado de li- vros da mais fina encadernação. A um canto, belo conjunto de sofá e duas poltronas de pelúcia de cor azul forte. Como ninguém o notasse, tomou súbita resolução, adentrou o escritório, acreditou encontrar, afinal, refúgio repousante onde po- dia tranquilamente entregar-se por instantes a si mesmo. Acomodou-se displicentemente em uma das poltronas, estiran- do os braços e pernas, respirando fundo, feliz por fugir ao bulício da festa. Que delícia poder alhear-se de tudo e de todos, na paz da- quele gabinete! Estava quase absorto, quando lembrou-se da pequena paralítica que visitara ainda nessa manhã, a meiga Cleide, tão bela e carinho- sa, feliz quando o recebia e a quem apelidara inconscientemente de “brinquinho”. Por que lhe pusera esse apelido, nem ele mesmo sa- bia. Pensando na garotinha seu olhar pousou distraidamente em uma gravura pendurada na parede defronte, representando um grupo de mulheres formosas, envolvidas por véus diáfanos, dentro da f loresta. Contemplava-a com os olhos semicerrados, quando a porta do corredor para a sala foi novamente aberta, trazendo até ele um surdo murmúrio de vozes e os sons da vitrola. A porta fechou-se e o ruído cessou. Percebeu alguém se apro- ximar e apurou os sentidos. Era Isabel que passava no corredor, na direção do dormitório de Lúcia, para recompor o rosto, dada a li- berdade de que dispunha, como amiga e vizinha. Não demorou para voltar. Ao passar em frente de sua porta, lançou os olhos para dentro e parou indecisa na soleira, ao pressen- ti-lo. Fitou-o placidamente, resolvendo: .154.

— Posso entrar? — Como não? — Há momentos em que a gente aprecia não ser perturbada, mas... se minha presença não incomoda, com licença. Entrou mansamente, tomando assento no sofá, a menos de um metro de distância. Cesar continuou na mesma posição de aban- dono, reclinado na poltrona, como sem dar conta de sua presença. Lançou-lhe um olhar oblíquo, considerando estar prestes a ouvir um daqueles motejos, como no encontro do asilo, pensando na res- posta que deveria dar. Entretanto ela conservou-se calada por al- gum tempo, antes de dirigir-lhe a palavra. — Parece não apreciar o movimento e a agitação... — Realmente, não aprecio. — Nem de dançar... — Nem de dançar. Novo e demorado silêncio. A atenção de Isabel voltou-se casu- almente para a gravura dependurada na parede. Notando que tam- bém ele a fitava, perguntou: — Gosta de pintura? — Gosto. — Que acha dessa gravura? — Não sou forte de pintura, mas acho-a bonita. — Somente bonita? Ela tem um significado, não sugere alguma coisa? — Bem... para dizer a verdade, sou nulo nessa matéria. Já vi um quadro desse não sei onde e não sei o que pode significar. A moça levantou-se, acercando-se da gravura, examinando-a com atenção e retornando ao seu lugar. .155.

— É reprodução de uma tela da Renascença Florentina, ao tempo de Lourenço, o Magnífico. Representa a “Alegoria da Primavera” e foi pintada por Botticelli. O original deve estar em um museu de Floren- ça, de cujo nome agora não lembro, e deve custar uma fortuna. Cesar pensou — Pronto, lá vem sabedoria. Respondeu: — Pelo visto, é bastante entendida no assunto. Havia ressaibo de ironia em sua voz, mas Isabel demonstrou não perceber. — Realmente, fiz curso de pintura no colégio, durante um ano. Tenho alguns livros sobre pintura e pintores célebres. Não é muito difícil aprender. O difícil, mesmo, é pintar. Abandonei ao perceber que não dava para a coisa, não podia tolerar o cheiro das tintas. Você já experimentou pintar? — Eu! Deus me livre! Quando garoto, um dia resolvi pintar um homem no muro do vizinho, que acabava de ser caiado. A cabeça foi fácil, um círculo. Coloquei dois olhos, esqueci as sobrancelhas, fiz o nariz e a boca e uns riscos para fingir de cabelos... sabe onde coloquei as orelhas? Nos ombros! Isabel soltou uma risada sonora. — Pintura abstracionista. Devia ser engraçado. — Engraçado nada, levei uma vaia da molecada e ainda por cima umas palmadas da minha mãe. — Sua mãe era então severa? — Fingia que me batia com força para me castigar. No fundo era boa criatura. — Sei que é uma senhora simpática. Cesar, que continuava conversando displicentemente, na mes- .156.

ma posição, aprumou-se de repente na poltrona, endireitando a ca- beça e olhou diretamente para ela. — Quem disse? — Não estou procurando agradar. Foi nossa prima Henriqueta, que a tem em alta estima e consideração. A conversa tomava um rumo inesperado, Cesar comentou. — Henriqueta é nossa amiga e muito amável. Mas devo acres- centar que minha mãe é a melhor mãe do mundo, doce como um favo de mel, serena como um lago tranquilo. Calaram-se por algum tempo. Podia-se ouvir o tic-tac do pe- queno relógio sobre a mesa do escritório e o médico sentiu nascer súbito interesse pela presença da jovem. Percebeu pela refração vi- sual o olhar dela pousando demoradamente em sua pessoa, como a esquadrinhá-lo. Encarou-a diretamente. Ela parecia ref letir e por fim falou: — Você lá na sala contou suas peripécias, lembrando os seus dias passados no estrangeiro. Também eu quero contar uma história. — Que história? — A história de uma menina que jogava tênis, aconteceu há muitos anos. De repente ela caiu ao rebater uma pelota, luxando o pé e foi socorrida por um moço que jogava na cancha pegada... — Conheço essa história — respondeu Cesar com ar divertido. Falavam na terceira pessoa e Isabel perguntou, fazendo trejeito com os lábios: — Note que é o primeiro sorriso que se concede e agradeço. Va- mos continuar: era uma menina malcriada, mas não acha que ele foi... um tanto ríspido para ela? — Naquelas circunstâncias, ela recebeu o que merecia. .157.

— Aprecio a sua franqueza. Era malcriada mas, ainda assim, uma criança. — Sou rude, reconheço. — Parece que chamou a menina de “gata estúpida e selvagem”... — Disse isso? Então era também um selvagem. — Agora responda: guarda algum ressentimento daquela me- nina? Cesar tergiversou. — Interessante como a gente não esquece facilmente certos acontecimentos. Esse não se apagou até hoje na minha memória, estou sempre a me lembrar dele. — Não respondeu a minha pergunta — insistiu Isabel. — Sinceramente, esse fato não deixou qualquer mágoa... são coisas da adolescência, seria injusto uma afirmativa... é isso que deseja saber? — Também eu nunca pude apagar completamente do pensa- mento aquela cena do Tênis Clube. Sinto certo alívio em esclarecer este assunto e é uma das razões que me fizeram entrar aqui, quan- do o vi só, aproveitando a oportunidade. Cesar não alimentava dúvida sobre a franqueza da jovem, pela sinceridade com que se manifestava. Contudo havia um ponto que ela estava esquecendo de avaliar naquele momento e era a incompa- tibilidade entre as duas famílias. Admirou-se da pertinácia e habi- lidade com que dirigia a conversa, abordando um problema sensí- vel e passou a encará-la com mais respeito e simpatia. Ouviu-a dizer: — Até agora falou somente em suas frustrações. Não quer con- tar também os seus sucessos? .158.

— Que sucessos? Que pode esperar de bom e de aprazível de um médico? Nossa vida é um contato e uma luta permanente com os sofrimentos físicos, um misto de sustos e apreensões. Vivemos sempre com os nervos esticados. — Não acha que é um tanto pessimista? Veja o Barjona, igual- mente médico, a divertir as moças lá da sala com as suas gracinhas. — Barjona é um sujeito a parte, privilegiado. Satírico, costuma zombar das coisas mais sérias. Hoje, então, não é um dia muito ale- gre para mim... lembra-se daquela menina paralítica, do asilo, e do carrinho? — Sei, a Cleide. — Essa. Hoje levei lá o Professor Pedreira para tirar uma dú- vida e ele declarou-a condenada a uma vida muito difícil. Sofre do coração. — Não me diga! Coitadinha! — comentou Isabel, consternada. — Lidando com as crianças a gente se toma de amores por elas. É como se fossem parte de nós. — As meninas do asilo são também um pouco minhas e essa notícia me deixa realmente contristada. Quando apareço lá, cor- rem alegres para mim, chamando-me de tia, e como isto me con- forta! Nunca deixo de levar uns presentinhos e como fico contente, vendo-as felizes, no meio de tanta desgraça. Além do mais, parece que Cleide não tem mãe. — E o pai é um alcoólatra, sem ocupação. É uma criança predes- tinada, sem ninguém para cuidar dela. Apesar de tudo e do diag- nóstico de Pedreira, sinto-me inclinado a fazer a operação. Vou ver se Barjona quer participar desta parada, ele é bastante competente. — E nossa doentinha, como vai? .159.

— Lenita? Muito bem, para não dizer, otimamente. Viu como está ficando gordinha e bem disposta? Irmã Dora cuida bem dela e eu próprio pratico massagens na perninha doente. Tenho intenção de operá-la em seguida e estou confiante de que ficará perfeita. — Os pais dela estão muito animados. Catarina, nossa gover- nanta, chegou a dizer lá em casa que foi Deus que a colocou em suas mãos... veja que já conta muitos fãs. — Isso nos dá mais confiança. — Então não é tão pessimista como parecia a princípio. — Ainda não consegui dominar certa depressão que costuma assaltar-me — continuou ele. A natureza da nossa profissão, as con- tingências que tive de enfrentar, tudo isso faz de mim um homem introspectivo. Preciso de algum estímulo para viver e só me sinto bem quando estou ocupado, quando estou ao lado das crianças do asilo, por exemplo. Quando o desânimo me atinge, corro para mi- nha casa de Campinas. Escondido ali dois dias, volto reanimado. Não é brincadeira, às vezes acordo banhado de suor, depois de pe- sadelos desagradáveis, vendo coisas da guerra. Não pense que in- ventei aquelas histórias das peripécias da luta nos campos da fren- te para divertir: elas são verdadeiras. Os conhecidos me taxam de insociável, em parte com razão, mas é bom que entendam a causa de tudo. Qualquer gesto menos delicado de minha parte, corre por conta desse defeito... Como interrompesse, Isabel, que ouvia atenta, entendeu ex- pressar: — Não é normal essa maneira de pensar, na sua idade. — Exatamente, o que também considero. Tudo leva a crer que... .160.

Parou indeciso, sem saber se diria o que pensava. Com voz sua- ve, ela incitou-o a prosseguir. — O que, Cesar? — Ora, Isabel, digamos um neurótico de guerra. — Não deve ser tão severo e exagerar em seu julgamento. Era a primeira vez que se tratavam pelos respectivos nomes e ela experimentou grande simpatia por aquele jovem. Que a tratava sempre com forte dose de prevenção e acabava, finalmente e talvez sem o sentir, tomando-a por confidente de suas preocupações. — Não esqueça de que sou médico... Dava a impressão de alguém na busca de uma palavra de con- forto e Isabel julgou oportuno oferecê-la: — Um médico de belo futuro, de quem falarão um dia, não te- nha dúvida. Continua visitando o asilo nos dias habituais? — Às quartas, pela manhã. — Pretendo ir lá ver as minhas sobrinhas. Estou sem visitá-las há bem tempo e já estou com saudade. — Devem estar estranhando. A porta do corredor de comunicação com a sala foi novamente aberta, porque um forte ruído de vozes ecoou no gabinete. Compre- enderam que a tertúlia devia terminar e Isabel levantou-se, dizendo: — Você não imagina a satisfação deste nosso encontro, em que lavei a alma. Agora vou pedir um favor... — Fale, Isabel. — Eu sou, às vezes, um pouco irreverente e brincalhona, não sei se já percebeu. Peço que não me leve a mal por isso. No outro dia chamei você de esculápio e vi que ficou muito sério. — Ora, pode chamar-me assim quantas vezes quiser. .161.

— Outra coisa, perdoe aquela menina malcriada do Tênis Clube. — Com uma condição: que ela desculpe aquele moço selvagem, que lhe disse palavras tão feias. — Combinado. Vamos dançar? — Mas, com que prazer. Vamos dançar... .162.

XVI O movimento defronte da Casa Mappin era intenso àquela hora da tarde, por ser ali o ponto predileto dos encontros combinados, sem falar na enorme corrente de transeuntes nas duas direções, uma no sentido do Viaduto do Chá e Rua Xavier de Toledo, outra na direção da Rua Barão de Itapetininga, os pontos nobres da cidade. Havia também a massa amorfa da clientela alimentada pelo credi- ário do grande magazine e ainda aqueles que tomavam os elevado- res para o salão de chá, igualmente ponto de reunião das mulheres chiques da cidade. Cesar, de folga nessa ocasião, encaminhou-se à conhecida loja, lembrando necessitar adquirir algo. Esgueirou-se entre a multidão, parando diante de uma das imensas vitrines, enquanto pedestres apressados passavam por trás, não raro roçando em suas costas, atrapalhados pela quantidade de pessoas estacionadas no passeio, contidas pela banca de jornais da esquina próxima. Abstraído na contemplação da vitrine, sentiu subitamente uma mão pousar em seu ombro. Pelo ref lexo no vidro à sua frente re- conheceu Nazário Pinto e voltou-se, abraçando o conterrâneo, que não via há algum tempo. — Esperando alguém? — indagou o recém-vindo. .163.

— Bem sabe que não tenho tempo para essas coisas. — Como aqui é uma espécie de sala de espera... — Preciso refazer minha camiseira e estava examinando... que acha daquelas camisas, ali? — São bonitas e ótimas. Iguais e bem parecidas, a Kosmos está vendendo por preços de liquidação, veja esta que comprei na sema- na passada — respondeu mostrando os punhos, onde sobressaiam belas abotoaduras de ouro. O médico olhou para ele, admirando-se de seu aspecto saudável e elegante. A idade tornava-o mais bonito e imponente, seus belos dentes brilhando na face morena, alvos e perfeitos. Sentiu-se mo- mentaneamente inferiorizado diante do amigo esbelto, com seu modo descuidado de vestir, e falou: — Não pergunto como passa porque nota-se logo que está bem. Passeando? — Vim à cidade resolver um negócio complicado e estava pen- sando enforcar o resto da tarde, com vontade de tomar um chá. Que tal, acompanha? — Onde? — Lá em cima, claro. O chá do Mappin é afamado. — Nunca estive lá, falam tanto e estou curioso por conhecer. O que estranha é ver como você evoluiu do uísque para o chá. — Modos de dizer, há uísque também. Foram se enfiando devagar no meio da turba que enchia todos os vãos dos mostradores, dentro da loja, no pavimento térreo. Era um trança-trança de gente das mais variadas condições, desde da- mas recendendo aos mais finos perfumes franceses, até modestas mulheres do povo e militares da Força Pública a fazerem suas com- pras a prestações. .164.

Ao passarem próximo da caixa registradora, onde se juntava enorme quantidade de pessoas pagando as mensalidades — com a caixa marcando ininterruptamente a entrada do dinheiro no carac- terístico ruído “trilin-trilin-trilin” — ouviram uma mulher simples reclamando: — Ainda não paguei todas as prestações do rádio e precisei cha- mar um técnico para o consertar. — Tem crianças em casa? — perguntou o funcionário que fisca- lizava o movimento da loja. — Tem. — Então... Nazário comentou: — Veja você, gente simples, talvez não tenham o suficiente para comer, mas rádio e geladeira não faltam em casa. Depois é patati- -patatá, reclamando que o ordenado não chega para as despesas. Tiveram de aguardar em fila diante dos elevadores que subiam e desciam, engolindo ou despejando número elevado de pessoas que procuravam os diversos andares da grande organização. Nos andares se distribuíam os variados ramos de mercadorias, fossem móveis, artigos para crianças, tapetes, até bebidas e artigos culiná- rios. O pessoal mais aquinhoado encaminhava-se ao salão de chá. Ali chegando, constataram achar-se ele completamente lotado, muitos aguardando de pé a sua vez, à entrada, e iam se dirigindo às mesas na medida em que estas vagavam. Nazário era velho cliente da casa e um garçom acorreu prestes para ele, falando baixo: — Doutor, tem uma mesinha reservada para o senhor, ali na saleta, onde pode sentar e esperar. .165.

Foram para o lugar indicado e Cesar chasqueou: — Como você está importante aqui, até doutor! — Aqui somos todos doutores. Do ponto em que estavam, descortinava-se boa parte do salão, de onde se elevava um murmúrio de vozes e de perfumes. A atenção de Nazário pousou em uma mesa não muito distante, ocupada por elegante dama a tomar solitária seu chá. Era evidente que ela es- perava ser notada, porque sorriu amistosamente, fazendo discreto aceno com os dedos. —Conhece-a? — perguntou ao médico. — Não, é completamente estranha para mim, não me lembro de a ter visto em qualquer outro lugar. Quem é? — Cintia Teles, um estouro de mulher! — Casada? — Desquitada. Seu marido era quem controlava os abasteci- mentos no governo passado. Parece que foi despedido, por avançar demais. Deu-nos muita dor de cabeça. Veja que mulher bonita. — Realmente bela. Pelos modos parece que goza de suas boas graças. — Jogamos pif-paf algumas vezes, na companhia de conheci- dos. Ultimamente anda meio retraída, correm certos rumores que mais adiante contarei. Viram-na levantar-se, dirigindo-lhes breve cumprimento, ao sair; acenou a mais duas pessoas ao passar e Cesar acompanhou-a com a vista, até vê-la desaparecer. — Tem muita classe, não há dúvida... ❧ .166.

Ao penetrar no pátio, na quarta-feira seguinte, lá estavam as paralíticas expostas ao ar do verão, protegidas pelas sombras de ár- vores copadas, também protegidas pelo olhar atento da Irmã Dora, entretida a tricotar. Dirigiu-se a ela: — Bom dia, Irmã Dora, que está tricotando? — Um pulôver — respondeu com um sorriso. — Salmão, bonita cor, é para a senhora? — Não, não é para mim, é para presente. Gosto de fazer mais para os outros do que para mim. — Alguma novidade no preventório? — Aquela pequena moreninha, a Amélia. Acho que é sarampo e já separamos das outras. Cleide vinha rodando o carrinho em sua direção, seguida de Marilda, manquitolando com o aparelho ortopédico, fazendo “tic- -toc”. Lenita continuava deitada num acolchoado previamente dis- posto. Tomou primeiramente Marilda nos braços, recebendo um beijo da menina. — Bem estaladinho, tio. — Obrigado, minha f lor. Depositou-a no chão e virou-se para o carrinho. — Como vai, brinquinho? A garotinha envolveu seu pescoço com os bracinhos magros. — Titio... — Precisa soltar-me, meu bem. — Eu quero bem a você — respondeu desatando as mãos que o prendiam. .167.

— Eu também gosto muito de você e vou dar uma boa notícia: quer livrar-se do carrinho de rodas para andar e brincar, como as outras pequeninas? Os olhos da pequena brilharam de satisfação. — Vou “podê andá” de verdade, tio? — Não agora, brinquinho, daqui há mais alguns dias. Para isso vamos fazer uma operaçãozinha na perna e você vai sarar. Mas tem de prometer que se comportará como uma menina valente, que não vai chorar. — Não vou chorar, tio. Nem que doa muito, faço de conta que não dói. Ah! Como estou contente! Essas pequenas cenas tocavam o coração do médico. Encami- nhou-se depois para Lenita a aguardá-lo, ansiosa em seu acolchoa- do, beijando-a e assentando a seu lado. — A Lili também quer dar um beijinho no tio — disse ela, apre- sentando a boneca italiana dada por Isabel. — Está bem, mas quero um beijo bem gostoso — respondeu, oferecendo o rosto. Lenita aproximou dele a cara da boneca, imitando com os lábios um beijo bem estalado. — É a boneca que tia Zabé deu. — Eu sei, ela disse que viria hoje aqui, visitar você. O tempo passou e não viu a jovem aparecer, retirando-se pen- sativo. ❧ No fim dessa semana o telefone do consultório tocou. Era Ro- berto Linhares, convidando-o para uma sessão de cinema nessa .168.

noite, no Cine Metro, um filme fartamente comentado, com os ar- tistas da moda: Clarke Gable e Vivian Leigh, mais a Olivia de Havi- land, em “E o vento levou”. Uma bela ficção em torno da Guerra da Secessão americana, que Cesar estava interessado em assistir. Foi encontrar-se com ele à porta daquela casa de diversões. Grande concorrência, a fila de espectadores era enorme e cus- tou a entrarem. A sala de espera achava-se repleta e o ar condicio- nado não mais conseguia aliviar o calor reinante. Meio andando, meio empurrados, foram ter a um canto da sala. Roberto dirigiu um alegre cumprimento para um lado e Cesar re- conheceu, entre os presentes, a certa distância, a solitária dama da Casa Mappin, na companhia de uma amiga. — Também você a conhece? — Conheço-a, mas por que “também”? — É que Nazário e eu a vimos há poucos dias e ele me contou certas coisas. De onde a conhece? — Como é curioso. Eu a conheço desde o almoço que Rogério ofereceu na Fazenda Paraíso, há uns oito anos, depois da reforma. Ela estava lá, na companhia do marido, agora estão separados. Tiveram de interromper a conversa porque Cesar ouviu uma voz muito sua conhecida e uma mão tomou-lhe o braço. — Como vai o meu esculápio? — Mas que alegria encontrar você aqui, Isabel! — disse voltan- do-se para ela e cumprimentando a tia Camila, a seu lado. Roberto tentou dar-lhe a mão, inutilmente. Tornava-se impossível a conversa naquela confusão, em que iam sendo empurrados para a frente, sem o desejarem. .169.

— Nunca vi este cinema tão concorrido assim! Já leu o romance? — tentou dizer Isabel. — Ainda não, disseram-me que é bem interessante. Espero que o filme não desminta o que falam. — Tem trabalhado muito? — Não tenho tido descanso... esperava vê-la no asilo esta semana... — Não fui, papai resolveu passar uns dias na fazenda e nos le- vou. Foi uma viagem quase improvisada. —Senti sua falta — falou-lhe junto ao ouvido. Elevando a voz: — Não vai ser fácil conseguir acomodação. Preferem ficar na frente ou mais atrás? Vamos ajudá-las. — Não façam isso, o melhor é cada um se arranjar, senão aca- bamos todos bobeando. A onda parecia f luir em borbotões na sala de exibição, muitos se atropelando na ânsia de tomar os melhores lugares. Cesar somente tranquilizou quando viu as duas mulheres se aboletarem e sentou- -se com Roberto em uma das filas, mais atrás. — Que acha dessa pequena? — perguntou ao companheiro, quando sentaram. — Uma grande menina — respondeu Roberto. Possui todas as qualidades, é inteligente, muito segura, rica e bonita e, como não existe regra sem exceção, tem também um defeito, a meu ver. — Que defeito? — Não sei bem se deva qualificar como defeito; acho-a um tanto presunçosa e parece que gosta de jogar a cabra-cega. — Não entendi bem... — Quero dizer que brinca com o fogo. Ao sentir que os rapazes estão caídos por ela, acaba se esquivando como uma gazela. De um, .170.

sei que ele levou muito tempo para se esquecer. Um outro, por si- nal meu colega, o Licurgo, chegou a propor-lhe casamento e sabe o que ela respondeu? “— Você está brincando, Licurgo”. Era dez anos mais velho e percebeu que Isabel estava a divertir-se, afastou-se de- sapontado. Sem falar em Marcelo, que vai levando na conversa, sem se definir. — E por que não casa? — Sei lá! As duas famílias empurram, cada uma do seu lado, o moço é rico, tem tudo a seu favor e no fim acabará abocanhando a fatia. A luz foi diminuindo lentamente, até apagar-se, restando ape- nas duas lâmpadas vermelhas nas paredes laterais e o sussurro que se fazia ouvir cessou, para dar lugar à ansiosa expectativa em torno da película. Então projetou-se na tela, em cenas coloridas, a interes- sante história da guerra do Norte contra o Sul, nos Estados Unidos, não faltando no início a aparição da cabeça de um leão, dando o indefectível urro, aquele urro que imortalizou o “Leão-da-Metro”. Entretanto, Cesar não pôde prestar inteira atenção ao desenro- lar do filme. Seu olhar vagava por cima daquele oceano de cabeças, na escuridão reinante. Dentre as cabeças femininas, qual delas seria a de Isabel? .171.



XVII Na quarta-feira seguinte, pela manhã, como previamente pro- gramado, Isabel mandou aprestar o carro, chamou a governanta Catarina Geyer e foram ao Brooklin apanhar Elza e o marido João para visitarem Lenita. Os pais da menina já esperavam bem arrumados, o mecânico e a esposa fizeram meio feriado, vestindo as melhores roupas para, como dizia Elza, parecerem gente de respeito. Sentaram-se os dois na frente, ao lado do motorista. Elza nunca tinha andado num carro tão grande e bonito, todo reluzente. João achou de mostrar seus conhecimentos mecânicos, falando sobre as qualidades do Cadillac. Entrando no pátio do asilo, já ali estavam as paralíticas. Lenita acolheu os familiares entre demonstrações de júbilo e alegria. Ha- via troca de beijos e de exclamações, de que compartilhavam as ou- tra duas, Marilda e Cleide. Avisada da presença das visitantes, Madre Ursulina acorreu pressurosa, cumprimentar as recém-vindas, dando informações sobre a pequerrucha. Colocou Isabel ao corrente da determinação do médico, de operar Cleide em primeiro lugar e Lenita em seguida. Cesar tinha tomado as providências cabíveis para transferir a me- .173.

nina nessa semana para a Santa Casa de Misericórdia, onde seria praticada a operação. Elza não se cansava de mirar a filha. — Como está linda nossa filhinha, não é mesmo João? — excla- mou para o marido. — Engordou, está a ver-se. — Depois de tudo o que esta boa gente tem feito por nós, foi Deus que botou a menina nas mãos do Dr. Cesar — falou Catarina. — Deus há de pagar — respondeu Elza. Voltou a afagar a filha, com os olhos úmidos. — Com essa boa vida, veja se não vai esquecer os paizinhos. Você já está fazendo falta, lá em casa. — Eu quero morar aqui, mãe — balbuciou a pequerrucha. — Pudera! Com o tratamento que recebe nesta casa, mais as crianças para brincarem juntas... Isabel afastou-se para o lado de Cleide, em seu carrinho, bei- jando-a e entregando também a ela um pacotinho com chocolates. — E você, meu amor, como vai? — Tia, a senhora pode chamá eu de brinquinho? — Brinquinho, ora essa! Por quê? — Tio Cesar, quando fala comigo, chama de brinquinho. — Está bem, meu anjo... quero dizer, meu brinquinho. Mas porque ele te chama de brinquinho? — Não sei... ❧ Cesar tinha completado a visita à enfermaria e chegava nesse ins- tante. Cumprimentou as hóspedes, satisfeito pela presença da moça. .174.

— Sua visita veio trazer alegria a estas crianças, veja como fi- caram alvoroçadas... e por que não dizer? Também a mim — disse sem esconder a perturbação. — Tinha prometido à Catarina esta visita e aproveitei para tra- zer os pais, que desejavam vê-la. Muito serviço? — Isto aqui é um prazer para mim, dou-me maravilhosamente no meio desta petizada. São os melhores momentos da minha vida. Quando você desejar terei prazer em mostrar o meu trabalho, e de mostrar todas as crianças do asilo. — Quando vier com mais tempo, aceitarei. Os pais de Lenita dispõem de pouco tempo e tenho de levá-los de volta. Na próxima semana, quando vier com minha tia, aproveitaremos para subir. Soube que já está preparando a operação de Cleide. — Está tudo programado para estes dias. Na próxima semana levarei a menina para a Santa Casa. — Desejo felicidade. — Obrigado, Isabel. Cleide ouvia a conversa e chamou: — Tio Cesar... — Que é, amorzinho? — Tia Zabé quer saber por que me chama de brinquinho. — Porque... porque... ora benzinho, porque acho você um mimo igual aos brincos lindos que as moças trazem nas orelhas. Cleide atentou para o rosto da jovem. — Mas tia Zabé não tem brinco! — Ah, não tem? — respondeu, confuso. É verdade, agora repa- ro, as moças bonitas demais não precisam usar brincos. Isabel sorriu, ante o embaraço do médico. .175.

— No nosso colégio era proibido usar enfeites e acabei por não ser muito amiga desses adornos. — Tia Zabé... — Que é brinquinho? — Tio Cesar vai operar, ele disse que eu vou andar. Eu disse que não vou chorar nem que doa, que vou fingir que não dói. — Assim é que procede uma menina valente. Quando você sa- rar, venho te pegar para passear no meu carro, aceita? — Lenita e Marilda também? — Vão todas, sim, meu bem. Isabel voltou a conversar com o médico. — Estas meninas são uns amores e vejo que elas adoram o mé- dico. Sinal de que não dá remédios amargos. — Nada mais agradável do que lidar com essas criaturinhas de Deus. Será o dia mais feliz da minha vida aquele em que elas estive- rem caminhando com as suas perninhas. Vou fazer tudo o que for possível para que isto aconteça, empregarei para isto todo o meu esforço. Ao se despedir das visitantes, no portão, retornou ao trabalho assobiando baixinho, sentindo o coração embandeirado. ❧ Na manhã seguinte, no hotel, ao descer do quarto e passar pela portaria, como de costume Cesar apanhou a edição matutina do jornal O Estado. Era hábito seu percorrer rapidamente suas colu- nas, enquanto deglutia a refeição matinal. Corria os olhos pelos tí- tulos do noticiário, pouco se demorando num ou noutro assunto. .176.

Entretanto, ao virar a primeira página, uma notícia em grandes ca- racteres chamou logo a sua atenção. “Morreu a Condessa de São Pedro”. Seguiam-se duas colunas descrevendo a sua longa existência, toda ela devotada a obras assistenciais, não raro interferindo em questões políticas, quando sua consciência o determinasse. Nunca se omitia na oportunidade em que sua voz pudesse ser ouvida, es- tigmatizando com palavras candentes todos aqueles que julgasse em erro, quer fossem, ou não, dos mais prestigiosos. Cesar guardava a mais respeitosa admiração e amizade pela venerável senhora, pelas demonstrações de carinho que ela lhe tri- butava. Por duas vezes comparecera ao asilo, percorrendo algumas dependências em sua companhia, elogiando o seu trabalho e dedi- cação para com as criancinhas desprotegidas, numa evidente prova de seu apreço. Lendo a notícia da sua morte, julgou-se no dever de prestar-lhe sua última homenagem, comparecendo ao velório, em sua residência. O jardim da casa da morta, no bairro de Higienópolis, já estava repleto de visitantes não obstante a hora matinal, o mesmo aconte- cendo no corredor de entrada e nas dependências. Assinou a folha de presença que estava no patamar e penetrou na grande sala de visitas. A condessa parecia dormir placidamente no caixão mortuário, levando-o a considerar em como as pessoas bem fadadas, até depois da morte, continuavam bonitas. A sala se conservava em semiobscuridade, alumiada apenas pe- las tochas de cera, na manhã cinzenta. Ao redor do caixão viam-se alguns familiares e pessoas íntimas, não faltando as companheiras da Associação Feminina de Assistência Social. .177.

Na penumbra reinante, à claridade da luz bruxuleante dos qua- tro castiçais, pôde divisar a um canto Ifigênia, conversando com uma senhora a seu lado. Deu repentinamente com os olhos nele, desviando-os logo. Experimentou uma sensação de desconforto, sentindo a latente incompatibilidade existente entre eles. Contem- plou por alguns instantes aquele semblante pouco simpático, o na- riz adunco na face esguia, mais feia ainda pelo efeito da luz trêmu- la dos círios e pensou numa frase de Roberto Linhares, falando de Isabel: “É uma garota linda, cem por cento em tudo, mas aguentar como sogra uma mãe dessas não é sopa.” A Condessa de São Pedro passava agora à eternidade. Na con- templação do esquife, Cesar jamais poderia supor como o desapare- cimento da respeitável dama viria modificar o curso da sua vida! É curioso como fatos aparentemente dissociados de nossa existência podem muitas vezes nela interferir de maneira inesperada! Lembrando então ser o dia destinado a mandar uma ambulân- cia para apanhar a menina paralítica, retirou-se. ❧ Em uma sala do hospital da Santa Casa conversavam alguns médicos. Ali estavam reunidos o Professor Alvim, o grande espe- cialista em correções ortopédicas, Barjona, Moretti e Valter, a pe- dido de Cesar, a fim de discutirem o caso da pequena Cleide. Ele expôs seu método, explicando a técnica já praticada com bons re- sultados na Itália. O Professor Alvim aprovou-a com entusiasmo, reputando-a um capítulo novo nesse tipo de problema ortopédico. Disse: .178.

— Ademais, se o coração da menina não resistir, não será pro- priamente em consequência da operação e, resistindo, virá propor- cionar-nos novos elementos na prática cirúrgica. A operação foi marcada, realizando-se daí a dias. Barjona foi um auxiliar perfeito. Desempenhou a contento a sua participação, o mesmo acontecendo com os demais colegas, nas funções especí- ficas a eles atribuídas, particularmente Valter, que foi incumbido de controlar as pulsações da doente, sendo esta tarefa voltada para o que mais os inquietava, dado o precário estado do coraçãozinho. — Foi uma maravilha! — disse Valter depois de tudo concluído. Correu tudo como melhor não se podia esperar! O coração funcio- nou muito bem! Cesar sentiu-se jubiloso ante o comportamento da paralítica, cumprimentado por seus colegas e professores, aguardando agora, tomado da maior ansiedade, sua recuperação. Visitava-a todas as manhãs e à noite, recomendando às enfermeiras a máxima atenção a seus menores movimentos. Moretti acompanhava-a durante o dia e Valter se encarregava de vigiá-la de noite, aliás, sem maiores preocupações, pela natural evolução satisfatória do estado da menina. Depois de uma semana de permanente tensão, Cesar experi- mentou grande euforia, ao visitá-la pela manhã. Ao entrar no quarto notou logo a fisionomia radiante da pequena, cujos olhos brilhavam excitados. O Dr. Valter dirigiu-lhe um sinal animador, afirmando marchar tudo de maneira excelente, antes de deixar o aposento. Cesar beijou a pequerrucha como de costume, sentindo seus bracinhos envolverem seu pescoço. .179.

— Bravo! Vai tudo maravilhosamente! — Eu não chorei, não, titio? — Não chorou, não, estou muito orgulhoso de você. Mas precisa soltar os bracinhos. Ela libertou-o, sorrindo com ares misteriosos. — Estou muito contente, tio. — Estou vendo. Viu algum passarinho verde entrar aqui? Está tão excitada. — Quer ver uma coisa? — perguntou, sem mais poder conter- -se, apontando com os dedinhos para o meio da cama. — Que é, meu bem? — Olhe... Lançou a vista para o local indicado e o que constatou deixou-o maravilhado, elevando-o aos páramos do contentamento. No meio da cama, na altura dos joelhos, a coberta principiou a elevar-se mansamente, indicando que a perninha operada, antes anquilosa- da, readquiria seu movimento. Cesar sentiu uma vontade louca de chorar e lamentou não ter lágrimas. Abraçou-se a Cleide, quase sem poder falar. — Não faça esforço, meu benzinho. Tenha paciência até ficar bem fortinha. — Agora vou poder andar sem o carrinho... — Vai sim, brinquinho. Quando levantar, vou te levar passear comigo, no meu carro. Vou te levar ao Jardim da Aclimação, ver os peixinhos no lago, no Jardim Zoológico, em muitos lugares. — Também tia Zabé... — Sim, com tia Isabel, com Marilda e com Lenita. — Que bom. .180.

— Mas prometa ficar bem quietinha, senão não sara. Você vai ter de aprender a andar novamente, até a perninha acostumar. Não adianta fazer as coisas antes do tempo. Ela fez que sim, que ficaria bem quietinha. Foi um dia feliz, na vida de Cesar. As palavras dos Professores Pedreira e Alvim, tão coincidentes entre si, não deixavam de ba- dalar em sua mente ao pronunciarem suas opiniões acerca daque- le caso: “Há muito a ganhar e pouco a perder”. Era a evidência da confiança depositada em seu método. O coração de Cleide resistira galhardamente à intervenção e ali estava ela a encurvar a perninha. Quase não dormiu essa noite, cheio de contentamento. A operação estava sendo muito comentada entre professores e colegas. Já que o estado da paraplégica estava bom, sentiu um desejo irreprimível de dividir sua alegria com alguém, e quem melhor que sua mãe? Seguiu para Campínas, para um descanso de dois dias. ❧ Regressou na segunda-feira pela manhã, dirigindo-se bem cedo ao hospital, assobiando baixinho, satisfeito. Ao deixar o elevador, percebeu um movimento inusitado no corredor. A enfermeira da noite deixava o aposento da paralítica excitada, fazendo-lhe agita- dos sinais. — Doutor, a garota teve uma crise grave esta noite e está passan- do muito mal! O Dr. Valter está lá com ela, parece que desmaiou... ande depressa, doutor... Cesar precipitou-se como um raio adentrando o aposento e uma angústia terrível se apoderou dele. Compreendeu num relance que .181.

todo o seu esforço e trabalho tinham sido inúteis. O colega acabava de passar os dedos nas pálpebras da menina, abanando a cabeça desalentado, sem articular palavra. Então, com o coração roído de dor, avançou para o leito e to- mou-a nos braços, comprimindo em seu peito o corpinho exânime ainda quente, como se não acreditasse no que via. — Meu brinquinho querido! — articulou emocionado, beijando o rostinho. Até então não se lembrava de ter chorado depois de adulto. Ago- ra, grossas lágrimas deslizaram de seus olhos, banhando a face es- tática da menina. Esteve muito tempo abraçado a ela, entregando-a por fim à enfermeira. Sentia que algo se rompia em seu coração. Todo profissional cioso de sua responsabilidade teme o insucesso. Particularmente no caso de Cleide, sua morte poderia representar para ele uma do- lorosa frustração. Teria ânimo para prosseguir? Pensou em Lenita, em Marilda, em todos aqueles que aguardavam esperançosos a sua atuação. De- pois do que vinha de acontecer, teriam ainda a necessária confiança em seu trabalho? ❧ Nessas ocasiões buscava alento no recesso do lar materno e abalou-se para Campinas. Somente a presença da mãe conseguia devolver-lhe a serenidade de que não podia abdicar. Olinda ouvia-o atenta e carinhosa, evitando tocar na causa de seus aborrecimen- tos, era enfim um lago tranquilo de paz e amor. .182.

Quando retornou a São Paulo, a sua enfermeira avisou ter Isa- bel telefonado várias vezes, desejando falar-lhe urgentemente, pe- dindo avisar o seu regresso. Que desejaria ela? Provavelmente dirigir-lhe palavras de estí- mulo e conforto, justamente o que mais o desagradava na emergên- cia. Não conseguia evitá-la, ao atender o telefone. — Cesar? — Sim, sou eu, Isabel. — Estava ansiosa por te falar. Fiquei sabendo o que aconteceu com a Brinquinho e estou profundamente consternada, muito triste, mesmo. Enfim, são coisas da vida e temos de aceitá-las, como são... — Mas não devia ter acontecido... — Não imagina como me sinto penalizada e queria... queria di- zer que estou inteiramente solidária com você neste momento. — Infelizmente nada disso consola, mas agradeço sua delica- deza. — Não deve exagerar o que aconteceu, Cesar... você tem às ve- zes um espírito um tanto pessimista... não esqueça que Cleide já estava condenada, você me disse que sofria do coração. — Realmente, mas joguei demasiado nesta operação. Que juízo farão agora de minha capacidade, todos aqueles que confiavam em mim? — Era um caso difícil, ninguém pode criticar e amanhã tudo será esquecido. As meninas que esperam por você não devem ser abandonadas. — Mas quem disse que vão ser abandonadas? — Desculpe, Cesar. Prometa que nos encontraremos em breve. E que não se deixe contagiar por desânimo. .183.



XVIII Decorridos os dias de praxe, rezada a missa de sétimo dia por intenção da venerável dama desaparecida, urgia dar nova presidên- cia à Associação Feminina de Assistência. Inúmeros assuntos recla- mavam solução, contas necessitando pagamento, papéis guardados nas gavetas da secretaria aguardando a assinatura da responsável devidamente credenciada. A associação controlava uma série de departamentos assisten- ciais, como o Asilo Santa Ernestina, uma escola na Vila Prudente, uma creche na Penha para filhos de operários, além de uma granja nos arredores da cidade. A bem dizer, a condessa tinha seu trabalho facilitado por um con- junto de senhoras dedicadas e especializadas em cada setor, desta- cando-se entre elas Emerenciana Queiroz e Ifigênia. Estas duas mu- lheres arcavam com a responsabilidade executiva da associação, de- terminando a mor das vezes as medidas a serem tomadas e influíam poderosamente nos Conselhos da Ordem. A condessa era o pináculo, por seu prestígio pessoal e por tudo quanto tinha realizado até então. Na verdade, achava-se em acentuado declínio físico e mental e seu trabalho se resumia em apor sua assinatura com as duas outras nos documentos e nos cheques que circulavam pelos bancos. .185.

Pela ordem natural caberia a dona Emerenciana ocupar o lu- gar vago. Era mais antiga, muito participante, desfrutando de largo prestígio social. O cargo de presidenta exigia permanente presen- ça e ela demonstrou sempre boa disposição a cooperar. Aconteceu, porém, achar-se essa senhora com viajem marcada à Europa e um arranjo foi feito: Ifigênia ocuparia o cargo até o seu regresso, entre- gando-o depois a ela. A Ifigênia não interessava assumir indefinidamente a direção, para não ser tolhida em todo o seu tempo. Apreciava visitar perio- dicamente sua fazenda de Campinas e entrava igualmente em seus planos uma viagem ao velho mundo, depois de suas bodas de prata, prestes a se realizar. Contudo recebeu com agrado a investidura, lembrando ter algum projeto a executar. Logo ao primeiro dia de trabalho destinado a pôr em ordem o expediente atrasado, apareceu na sede Irmã Dora, trazendo a pasta contendo o relatório semanal, contas de fornecedores, folha de pa- gamento do pessoal interno e outros papéis. Habitualmente o pessoal de comunicação era atendido pela res- ponsável de contato e de tomada de contas. Sabendo porém de sua presença, mandou chamá-la. Recebeu-a com extremo carinho, Ifi- gênia sabia ser untuosa quando desejava agradar, envolveu-a com amabilidade, levando-a até o sofá no fundo da sala e convidando-a a sentar-se a seu lado. — Como vai, Irmã Dora? Não queria que se retirasse sem pri- meiro conversar com a senhora. Deram-me esta atribuição e desejo conhecer pessoalmente todas as pessoas que cooperam dedicada- mente conosco. Está satisfeita com seu trabalho? — Estou sim, dona Ifigênia. .186.

— Como passa Madre Ursulina? — Passa bem, sim senhora. — Ela é muito eficiente e enérgica, segundo consta. — Precisa ser assim, para que tudo caminhe. — Eu sei, Irmã Dora. Daqui acompanhamos os trabalhos de to- dos os departamentos da nossa sociedade. Logo que disponha de tempo, depois de pôr em ordem tudo isto, pretendo aparecer no asilo para uma visita. Quero ver as coisas por dentro para inteirar- -me das suas necessidades e assim poder atuar melhor. As meninas estão bem? — Vão bem, dona Ifigênia. — Dão muito trabalho, naturalmente. Quantas são, mesmo? — Setenta, exatamente. — Contando as paralíticas? — Sim, incluindo as duas meninas. — Não eram três? — A menorzinha morreu, a do carrinho, não sabia? — É verdade, morreu na operação. — Não foi na operação, dona Ifigênia; foi dois dias depois. Ela já estava passando bem e teve uma crise. Sofria do coração. — Ouvi dizer que essa operação não devia ser feita, dado o es- tado dela. Houve muita precipitação do médico, não se pode jogar assim com a vida dos outros. — Ela sofria de estenose mitral, vivia continuamente debaixo de remédios. — E as outras duas, também vão ser operadas? — O Dr. Cesar disse que a primeira vai ser Lenita. — Essa menina é neta de minha governanta, a senhora sabia? Faço empenho em que proporcionem a ela toda a assistência. Penso .187.

até contratar o Professor Alvim para a operação. Tenho minha pre- venção com esses médicos novos que procuram aprender na carne dos outros. Suas últimas palavras vinham impregnadas de indisfarçável remoque. — O Dr. Cesar é muito estimado no asilo. — A senhora está vendo o que aconteceu. Não quero que suce- da com Lenita a mesma coisa. Tenho muita responsabilidade nesta associação e no meu período temos de zelar seriamente por seus problemas. Irmã Dora recebeu essas palavras sem responder. Ifigênia c­ ontinuou. — A propósito, tem visto minha filha? — Tenho, sim senhora. — Minha irmã e Isabel têm ido lá? — Tem, sim senhora. — Em que dias vão? — Espere... deixe ver... às quartas. — Sempre às quartas-feiras? — Sim, senhora. — Na parte da tarde ou da manhã? — Da manhã. Ifigênia parou para ref letir. Sabia ser a hora da presença do mé- dico e deu por encerrada a entrevista, levantando-se. — Bem, Irmã Dora. Agradeço as informações e peço transmitir minhas recomendações à Madre Ursulina. Encaminhou-se a sua mesa de trabalho, arquitetando agora um plano para afastar Cesar do asilo e da sua filha. Não podia esque- .188.

cer o menoscabo sofrido na reunião que o admitiu, diante da con- dessa a das colegas. Buscaria alicerçar-se junto das companheiras, mostrando o malogro do médico na operação de Cleide, para não parecer uma represália de caráter pessoal. Precisava feri-lo na sua dignidade profissional e o meio mais adequado era dar uma de- monstração de desapreço e de falta de confiança em sua capacida- de, frente ao que vinha de acontecer com a pequena paralítica. Uma das companheiras tinha um sobrinho recém-formado aguardando oportunidade, e já que a ocasião era propícia, poderia substitui-lo. Iniciou então o trabalho de envolvimento de suas cole- gas nesse sentido. ❧ Tendo permanecido vários dias em Campinas, deixou Cesar de comparecer três semanas ao asilo, pedindo ao colega Moretti substi- tui-lo em sua ausência, para qualquer emergência. Não houve proble- ma de maior vulto, comportando-se as meninas satisfatoriamente. Não tinha conseguido até então conformar-se com a morte de Cleide, tanta era a confiança depositada na operação. Foi acabru- nhado que transpôs o portão do asilo, reiniciando seu trabalho. Mal entrou no pátio, onde brincavam as duas meninas, Irmã Dora veio ao seu encontro. Tinha o semblante consternado e o mé- dico o percebeu. — Doutor, Madre Ursulina pede o favor de falar com ela. Encaminhou-se para a sala da monja, que o esperava de pé. Seu aspecto era igualmente compungido, com um envelope entre os dedos. — Bom dia, Madre. .189.

— Bom dia, Doutor. Tenho aqui uma carta para o senhor. Tomou o sobrescrito das mãos dela, com sombrio pressenti- mento. Era uma comunicação lacônica, dizendo simplesmente ces- sar desde aquele instante seus serviços no asilo. Terminava agrade- cendo a contribuição prestada graciosamente durante o tempo em que serviu e que o eventual substituto assumiria o posto em segui- da. O preâmbulo da carta dizia: “Por deliberação tomada na última reunião do Conselho Deliberativo da Associação”. Estava assinada pela secretária Belegarde, que não conhecia. Ifigênia tivera o cui- dado de mandar outra assinar, em seu lugar, mas não teve a menor dúvida de onde partia a insólita demissão. Levantou a cabeça e fitou a freira com dignidade. — Naturalmente já conhece o conteúdo desta carta. Agradeço, Madre Ursulina, tudo quanto fizeram por mim nesta casa e o cari- nho que me dispensaram. Sei que deixo aqui bons amigos e creiam que me retiro dela com imensa tristeza e que me afasto destas crianças bastante penalizado, tanto me acostumei com elas. Já sabe quem vai substituir-me? — Um médico que acaba de se formar, ao que parece, sobrinho de uma das senhoras da Sociedade. O senhor também deixa aqui muitas recordações agradáveis e vamos sentir sua ausência. Estava realmente contraída e abraçou-o. — Não quero ir sem me despedir do pessoal e das pequeninas. — Vá vê-los, Doutor. Percorreu as diversas dependências do edifício, terminando suas despedidas no pátio, onde as paralíticas aguardavam ansio- sas e contristadas, sabendo ser o último dia que contavam com sua .190.

presença. Lenita e Marilda ofereceram-lhe um presente, que abriu: um pulôver de cor salmão. Olhou para Irmã Dora, sorrindo: — Aquele pulôver que a senhora estava tricotando no outro dia, que eu não suspeitei que era para mim. Fico eternamente grato e o conservarei como lembrança dos dias felizes passados nesta casa. Estava comovido ao ver os olhos úmidos das duas meninas e da freira. Beijou as crianças enternecidamente e saiu dali com o co- ração oprimido, sentindo que nunca mais poderia voltar, que iria perder o contato com elas, que eram e foram por muito tempo sua maior alegria. Entrou no automóvel e partiu em marcha lenta. Apalpou o envelope no bolso, disposto a atirá-lo pela janela, mas se conteve. Encostou o carro e leu a carta novamente. Bem sabia de quem era sua autoria; era impossível esquecer a expressão de contida raiva estampada no rosto de Ifigênia ao ver seus desígnios contrariados pela Condessa de São Pedro, quando o admitiu. Comprazia-se ago- ra em se vingar, ou então, quem sabe? Não seria um resquício da velha animadversão entre ela e sua progenitora? Esta ideia fez vir à tona o ressentimento manifestado pela mãe ante o retraimento das duas “baronesas”. Em ocasião em que rela- tava a ela o encontro com Isabel, na casa de Salviani, viu claramente desenhada uma sombra em seu rosto, embora nada lhe dissesse. Era evidente sua preocupação. Voltaram-lhe claramente à memória duas frases de Roberto, ao ocupar-se em diferentes ocasiões das duas mulheres, dizendo ser ingrato contar Ifigênia como sogra, aludindo igualmente ao prazer da jovem Isabel em excitar as esperanças dos rapazes para deixá-los .191.

depois à deriva, como sucedeu a Licurgo e alguns outros. Mais ain- da, da convicção nutrida por seu amigo, de que Marcelo certamente acabaria abocanhando aquela fatia, porque estava sendo preparada para ele. Nesse momento todo o ressentimento do médico voltou-se con- tra a moça, por extensão, considerando os ressentimentos sofridos diante daquela família e tomou uma deliberação extraordinária: — Pois bem, compro inteirinha a mágoa de minha mãe! Não irei permitir que zombem de nós! O negócio é cortar rente o mal pela raiz. Isabel não irá rir-se de mim, como fez com os outros. Va- mos soltar as amarras enquanto é tempo.” Pisou no acelerador do automóvel e reiniciou a marcha. Entretanto, seu coração continuava constringido e sentia-se profundamente triste... .192.

XIX Sentada na banqueta em frente da penteadeira, antigo móvel francês adquirido por sua mãe em um leilão da vivenda nos Cam- pos Elíseos, ostentando um espelho de cristal em três faces conju- gadas, Isabel analisava atentamente seu rosto, comprazendo-se em verificar a perfeição do nariz bem formado, o mento semelhante a uma figura grega, a tez cor de pêssego e a vasta cabelereira des- pencando na cobertura de seda na camisola de cetim cor de rosa, ornada de rendas finas. Tinha acabado de levantar-se, após uma noite bem dormida, seus olhos estavam límpidos e repousados, sob cílios espessos. Completada a higiene matinal, procurava naquele instante escovar os cabelos. Ao mesmo tempo, seu pensamento vagava, hesitante. Isabel achava-se imersa em uma fase de grande perplexidade quanto ao futuro, sem encontrar uma definição para as preocupa- ções sentimentais. Confiava plenamente em seus dotes físicos e in- telectuais, sentia a segurança do seu talento no trato social e não se dava pressa em descobrir o verdadeiro rumo, espreitando que os acontecimentos o indicassem. Cortejada por mais de um preten- dente, sopesou no íntimo os mais em evidência. Sem mencionar Licurgo, mais idoso que ela e logo descartado, aí estava o perseve- .193.

rante Marcelo, dotado de atributos excelentes, belo, rico e polido, a esperar pacientemente. Esteve prestes a decidir-se por ele, quando surgiu inesperadamente em seu caminho Cesar Ungaretti a reavi- var antigas lembranças, moço cheio de contrastes excitantes. Por que se preocupava com o médico, quando ele próprio jus- tificava sua maneira de agir estribado em uma possível neurose? Seria talvez a vitalidade de que era possuidor, conferindo-lhe uma voz sonora e robusta? ❧ Perdida nessas considerações viu ref letir-se no espelho o vulto da mãe assomando à porta do quarto, vindo estacionar silenciosa- mente por detrás, em muda contemplação, mirando-a com ar pers- crutador. Sua mão se deteve no alto da cabeça, com a escova momenta- neamente imobilizada, esperando o cumprimento que veio sem de- mora, numa entonação suave. — Bom dia, minha filha. — Bom dia, mamãe — respondeu, reiniciando os movimentos interrompidos. Ifigênia aproximou uma banqueta para junto dela, observando o contínuo deslizar da escova sobre as longas melenas da jovem, ao mesmo tempo em que fitava os braços bem torneados a emergirem das largas mangas da camisola, ao levantá-los, assim como a seu colo e busto perfeitos a se ref letirem nas faces tríplices do espelho. Isabel aguardava paciente o motivo daquela visita matinal, no- tando o tom melíf luo com que a saudara e tratou de forrar-se de .194.

tranquilo resguardo, conhecendo — e como bem conhecia — o tem- peramento pugnaz de sua mãe. Terminado o trabalho, colocou a escova na gaveta do móvel e voltou-se para a progenitora, esboçando um sorriso e beijando-a na face. — Tão cedo e já arrumadinha! Ifigênia procurou acomodar uma madeixa rebelde na fronte da filha, respondendo com ar distante: — Venho te convidar para ir comigo à cidade, ajudar-me a es- colher alguns enfeites para a nossa festa de bodas de prata. Você tem bom discernimento e muito gosto. Sua tia está incumbida dos arranjos na igreja e também dos doces na dona Escolástica e não dispõe de tempo para mais nada. Dona Escolástica é muito sosse- gada, deixa tudo para a última hora e isso causa-me af lição. — Mas entrega a tempo... — Faltam apenas seis dias para as bodas e já me sinto extenu- ada! É um constante corre-corre, não consigo dormir tranquila, levanto-me sempre no meio do sono para anotar providências que só me ocorrem durante a noite. Temos algumas compras para esta manhã e depois a modista. E você ainda não escolheu o seu vestido! Não deixe para os últimos dias, porque depois Madame Sofia não vai poder aprontar. Bem sabe como ela está cheia de encomendas. — Ah, mãe! Não estou com vontade de fazer meu vestido para a reunião campestre na Madame Sofia. O vestido para a missa está terminado, queria escolher uma coisa diferente... — Escolher onde, minha filha? — Podia ser na Madame Emília. — Somos velhos clientes da Sofia, por que mudar? .195.

— Só desta vez, mãe. Lúcia comprou o dela lá, aquele cor de limão, você viu o talho, que elegante ficou? — Pois seja, vá à Madame Emília, depois venha me contar. Faço empenho que escolha um vestido a seu gosto e que chame bastante atenção. Vai ser uma festa de marcar época, já acertei com Salomão Oliveiros a reportagem das duas reuniões, na igreja e na represa. Vai ter uma repercussão de deixar muita gente com água na boca. Além disto, desejo aproveitar esta oportunidade para... Calou-se, observando o semblante da jovem. — Para quê, mãe? Ifigênia apelou para todas as suas faculdades interpretativas e adotou uma voz sentimental, ao falar: — Minha filha, você já completou vinte e dois anos, o tempo passa muito depressa e começamos a nos preocupar seriamente com a sua situação de solteira. Não desejamos te aconteça o que sucedeu com sua tia... descan- sou, descansou, quando abriu os olhos era tarde. — Ela teve oportunidade? — Sim, algumas. Certa vez, em Paris, um nosso conterrâneo do Rio, lá de passagem, mostrou interesse por ela. Acompanhou-nos em diversos passeios e um dia deu a entender que gostava dela. — E titia? — Como sabe, Camila sempre foi irreverente e trocista. Pôs uma porção de defeitos no rapaz, via isto e mais aquilo e acabou desconversando. Foi uma pena. Na verdade, era um moço direito, de família conceituada e podia dar um bom marido. Entrou mais tarde na carreira diplomática e casou-se muito bem. Um outro pre- .196.

tendente não serviu, por não pertencer ao nosso nível social, neste caso estive de acordo com ela. — Este outro não tinha mérito pessoal? — Sim, razoavelmente culto, mas não pertencia a nossa grei. — Isso é assim tão importante? Ifigênia sentiu-se ligeiramente desconcertada. — Evidentemente não é tudo, mas bons predicados devem vir acompanhados de uma boa ascendência. Você pensou no descon- forto de se unirem duas famílias de níveis diferentes, quando uma delas possa se sentir inibida diante da outra? — E também o desconforto do outro lado, não é assim? — Como você adianta os problemas! Vamos aceitar que seja as- sim, felizmente isso não ocorre conosco, já que tens um pretenden- te à altura da nossa estirpe e das nossas tradições, graças a Deus... Ifigênia chegara ao ponto delicado e tomou impulso: — É bom que saiba do nosso desejo em aproveitar a oportuni- dade desta festa para se definir... — Refere-se a Marcelo? A progenitora sentiu-se embaraçada com a serenidade com que ela argumentava e continuou. — Sim, quem mais poderia ser? Marcelo é um moço de exce- lentes predicados, belo, inteligente, viajado, de maneiras finas e, o que é mais importante, ainda que você possa ter conceitos próprios, pertence a uma família de alto gabarito. Sua mãe Clara e eu nos en- tendemos perfeitamente, o mesmo acontecendo com seu pai e o Co- mendador Gustavo... ah, minha querida filha: não nos prive mais a alegria desse sonho, que é a união dessas duas famílias. .197.

— A minha felicidade não está sendo levada em conta em pri- meiro lugar? — perguntou em tom irônico. Ifigênia tateava em terreno escorregadio, vendo-o fugir mo- mentaneamente, ao levar demasiado longe sua obcecação pela li- nhagem e tratou de ser cautelosa: — É exatamente a sua felicidade que mais nos preocupa ou en- tão estaríamos argumentando à toa. Não pode imaginar o conten- tamento do seu pai e o meu, quando vimos você e Marcelo juntos, em boa harmonia. Também os pais de Marcelo sentem a mesma coisa. Quem melhor que esse moço pode te fazer feliz? Clara con- tou-me que o pai vai dar-lhe de presente de casamento sua promo- ção a diretor do banco, numa das primeiras vagas, você já pensou? — Até parece que vocês já resolveram o meu casamento... — As coisa caminham por si. — Mas mamãe, Marcelo ainda não disse nada... Ifigênia redarguiu, animada: — Você não é nenhuma toupeira para entender que ele está an- sioso para definir a situação; é só abrir o sinal verde. Tomou as mãos da filha entre as suas, num gesto súplice. — Isabel, não podemos esperar mais, nem adiar; seu pai e eu ficaríamos imensamente contentes se aproveitassem nossas bodas de prata para resolver de uma vez por todas... onde irias encontrar um partido melhor e mais vantajoso? Era forçoso tomar uma decisão e a jovem o compreendeu. Le- vantou os olhos num movimento de ref lexão, respondendo: — Eu sei, mãe, a senhora tem inteira razão. Gosto de Marcelo, não nego as qualidades dele, outro qualquer não poderia ser mais atencioso e paciente comigo... eu é que sou indecisa, nem entendo .198.


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