porque estou esperando. Prometo pensar seriamente no assunto e dar uma resposta até o dia da festa. Nada se perde em aguardar mais alguns dias. — Confio na sua inteligência e critério — respondeu a mãe mais confortada. Agora apronte-se para sairmos, irei esperar lá em baixo. A manhã decorreu em atividade nas lojas do centro, terminan- do com a visita à costureira. O vestido que Isabel ia usar na cerimô- nia da missa ficou muito bonito, entusiasmando a própria modista com a perfeição do talhe. O mesmo não aconteceu com o de Ifigênia e havia sérios motivos: Isabel tinha um corpo escultural e suas ves- tes caiam sempre bem, enquanto a mãe sentiu-se profundamente contrariada. Sua cor amorenada, o busto levemente encurvado, o nariz aquilino e principalmente aquela pápula f lácida debaixo do queixo não permitiam melhor impressão. A cor azul-turquesa do vestido não casava bem com seu físico imperfeito e Isabel sugeriu modificações, bem aceitas pelas duas. Saindo dali, já na rua, a filha perguntou: — Quer ir comigo à loja da Emília? Não é longe daqui. — Não, filha. Tenho ainda muitas providências a tomar e não disponho de tempo. Vá sozinha. A oficina de Madame Emília situava-se num andar alto da Rua Barão de Itapetininga, procurada por uma clientela selecionada. Isabel entrou no salão todo atapetado, com boa iluminação, ador- nado por grandes vitrinas e móveis do mais fino gosto. A modista ocupava-se em dobrar cortes de seda amontoados no balcão enver- nizado e que serviram para atender uma freguesa que se retirava, quando a viu chegar. Com o olho clínico dos hábeis comerciantes, .199.
percebeu a categoria da nova cliente e deteve a balconista que se apressava a atender. — Deixe que eu vou, Marga. Vá arrumando estas peças e ponha no lugar. Isabel informou procurar sua loja por indicação de Lúcia, expli- cando o que pretendia. Madame Emília correu rapidamente o olhar pelo corpo da jovem. — Temos aqui muita coisa bonita para o seu tipo, quer fazer o favor de me acompanhar? A família do Conde é minha velha cliente e das melhores freguesas. Fizemos há pouco um belo vestido para a senhorita Lúcia. — Achei-o muito lindo. — Pois vamos fazer um igualmente belo para a senhora. Conduziu-a a outra sala, chamando uma de suas manequins para exibição dos modelos. Isabel encantou-se com um vestido pé- rola e resolveu experimentá-lo. Passaram dali ao gabinete de pro- vas, anexo ao salão da loja. Estava ligeiramente folgado e a modista prontificou-se a ajustá-lo ao seu corpo. — Uma coisinha de nada — falou. Uma modificação insignifi- cante. Quero que a senhora saia contente da nossa casa para voltar sempre. Tem muita pressa do vestido? — Sim, alguma. — Poderei entregar dentro de dois dias. Prendeu alguns alfinetes entre os dedos, entregando-se ao trabalho de ajustar a veste. Precisamente nesse instante deu en- trada na loja estranha cliente, em aparição espalhafatosa, gingan- do como artista no palco. Isabel viu-a pelo espelho passar defronte .200.
da porta aberta, falando alto ao dirigir-se à balconista, que devia ser velha conhecida. — Marga querida, está bem? Me dê um beijinho, mas cuidado com minha maquilagem. Onde está Emília? — No gabinete de provas — ouviu a outra responder. Ouviu ainda a voz da recém-vinda: — Emi i i lia... benzi i i nho... — Espere um pouco e já vou falar com você, agora estou ocupa- da — respondeu a modista, pondo a cabeça fora da porta. — Estou com pressa, meu bem. — Que mulher esparolada — pensou Isabel — enquanto acom- panhava os arranjos da modista. Viu-a aproximar-se da porta aos bamboleios. Ao pressenti-la a recém-chegada aprumou-se, tomando compostura no corpo e na voz, dirigindo-se à Isabel para justificar-se: — Por favor, não repare e peço desculpas por interromper um momentinho. Não pensei que Emília estivesse ocupada, somos ve- lhas amigas e me permito estas liberdades, quando estamos sós. Seus modos eram agora distintos. Voltou-se novamente para a modista: — Vim restabelecer meu crédito, Emília. Vim trazer um cheque para você mandar receber. É mais do que devo, tire a sua parte e guarde o resto para mim, amanhã passo pegar o meu. Abriu a bolsa e retirou um cheque de dentro, mostrando-o à ou- tra. A modista voltou a cabeça para olhar e não escondeu a surpresa, sacudindo-a. — Pegue — disse a visitante, entregando-o e saindo. Como estivesse ocupada, tomou-o e o atirou na mesinha próxi- ma, prosseguindo no seu trabalho. .201.
Isabel dava tratos à bola para descobrir onde tinha visto aquela cara e não se lembrava. Intrigada, interrogou: — É curioso! Já vi essa mulher em algum lugar e não lembro! Quem é essa dama? — Uma das minhas antigas empregadas, foi meu manequim e tem uma história bem interessante. Há uns pares de anos conheceu um cidadão que se apaixonou por ela, fazendo um bom casamen- to. Hoje vive muito bem, é bastante sabida, tem uma cara bonita, isso ajuda, não? Mora num apartamento luxuoso, sustentada por alguém que deve ter muito dinheiro. — Não disse que era casada? — Desquitou-se logo depois. O mais interessante é que se cha- mava Argemira, tratávamos de Mira, mudou o nome para Cíntia, ao casar, Cíntia Teles e fica fula quando a chamam pelo antigo nome. Foi então que Isabel recordou ter ela comparecido na companhia do marido na festa de inauguração das novas obras da Fazenda Para- íso, despertando entusiasmo entre muitos dos convidados, pela de- senvoltura e ademanes. Fazia então mais de sete anos e a lembrança quase se esfumava pela distância do tempo, em sua memória. Marga acercou-se da modista, avisando-a chamarem urgente ao telefone, desculpando-se ela: — Permita sair um momentinho; falta muito pouca coisa e ter- minaremos em seguida. Afastou-se e a jovem pôs-se a mirar no espelho, examinando o vestido em prova, satisfeita por corresponder ao seu gosto. Seu olhar caiu distraidamente sobre o cheque de Cíntia, deixado na mesinha, e seu coração disparou descompassadamente, num pres- sentimento angustioso. Tinha a impressão de conhecer os caracte- .202.
res abreviados da assinatura e tomou-o, presa de intensa agitação, quase sem acreditar. Sentiu uma nuvem toldar-lhe a vista e precisou sentar para não cair. Então, justamente aquele que ocupava o mais sacrossanto lu- gar em seu coração mantinha uma amante! Sim, porque não podia conceber outra espécie de relação entre aquela mulher e seu pai! Es- tava ali a prova insofismável da evidência que acabava de descobrir! No verso do cheque vinha o nome de seu dono impresso com todas as letras! Quando Emília voltou, encontrou-a sentada e pálida, procuran- do respirar fundo. Gritou: — Marga, Marga, traga depressa um copo d’água... menina, menina, está sentindo alguma coisa? Apanhou uma revista, procurando abaná-la, assustada. Isabel recobrou-se rapidamente, reagindo ao choque recebido. — Não foi nada — disse tentando sorrir. — Costuma ter... esses desmaios? — Muito raramente — mentiu ela. Mas não se preocupe, são sempre passageiros e nunca perco completamente os sentidos — terminou, pondo-se de pé. Concluída a prova, a modista sugeriu chamar um táxi, que ela recusou. Chegando à rua pôs-se a caminhar, respirando a ple- nos pulmões, procurando restabelecer o controle emocional que a abandonara momentos antes. Não queria fazer um julgamento apressado da descoberta que vinha de realizar, encontrando-se ainda sob o impacto do choque recebido.Regressou à casa com a alma vazia, vendo ruir do pedestal a efígie do pai que ali erigira ao correr do tempo. .203.
Rogério chegou para o almoço na hora habitual, beijando a es- posa, segundo seu costume e dirigiu-se a ela para receber o ósculo que sabia reservado. Quão delicado e atencioso era o pai! Afetuoso com ela e com todos, mas não deixou de sentir íntimo zelo ao pen- sar que aquele rosto poderia ser beijado por lábios outros que não os da mulher e das filhas. Seriam assim os outros homens? Quem poderia afiançar que figuras aparentemente respeitáveis, como o Comendador Siqueira, Marcelo e... Ouvira comentários acerca de conhecidos, Nazário era o mais citado, também na existência de um célebre pavilhão, onde jovens francesinhas atraiam os melhores rapazes da cidade. Isabel não pôde esconder sua tristeza naquele dia, o que levou Rogério a interpelar a esposa: — Que se passa com Isabel, que anda melancólica e não conver- sa com os outros? — Tive hoje de manhã uma prosa muito séria com ela, fazendo ver que não é possível protelar mais o namoro com Marcelo e ela prometeu decidir até o dia de nossas bodas de prata. Naturalmente anda preocupada com o assunto... .204.
XX Como boa descendente da raça germânica, Catarina Geyer go- vernava as empregadas de Ifigênia com pulso firme, exigindo de cada uma a máxima presteza no cumprimento das tarefas. É verda- de que as festas estavam apenas a dois dias, entretanto nada justi- ficava que não andasse o serviço em ordem. Falava sempre em tom calmo e inalterável, nunca elevando a voz, contudo tinha o condão de ser obedecida sem necessidade de ordenar duas vezes. Depois de inspecionar as dependências internas, entrou na copa e o que viu não a deixou satisfeita. — Joana — chamou. A copeira achava-se ocupada na sala pegada, passando uma pi- lha de guardanapos, empinou o ferro e acudiu. — Pronto. — Ainda não guardou a louça do café. — Estava esperando dona Isabel descer. — E aquele escovão fora de lugar? — Já vou guardar. Estava querendo acabar de passar os guar- danapos. — E o copo em cima da pia? .205.
Ia responder, mas interrompeu-se, com os olhos postos na por- ta de comunicação. A governanta voltou-se e deu com Isabel que chegava para a refeição da manhã. Foi ela quem falou: — Joana não tem culpa. Usei esse copo há pouco para tomar um comprimido. A copeira cumpriu as determinações recebidas e retirou-se. Ca- tarina ligou o gás para aquecer o leite e justificou: — Preciso ensinar essas franguinhas a fazerem as coisas direito para não cometerem fiasco depois de casadas. Serviu o café e apanhou o pano de enxugar para espantar as moscas, cerrando em seguida as cortinas. Parou depois em frente da jovem observando-a, na expectativa de qualquer nova ordem. — Melhorou a cabeça, dona Isabel? — perguntou. — Não muito. Alguma coisa não anda funcionando bem comigo. — A senhora não anda muito boa, tem comido pouco, tenho re- parado. — Ando sem apetite. — Quer que frite uns ovos com queijo? — Não, Catarina. — Está com os olhos no fundo... — Tenho dormido mal, custo pegar no sono, durmo menos de duas horas seguidas, sono interrompido. — Precisa consultar um médico, dona Isabel, e tomar remédio. Tenho visto uns comprimidos de dormir na gaveta da penteadeira e ouvi dizer que não deve acostumar. ❧ .206.
Isabel suspirou. — Não é de remédio que preciso, o que tenho é hipocondria. — Que doença é essa? — Bem... é uma doença de quem não tem o que fazer — tergi- versou. — Serviço não falta, dona Isabel, anda tudo como louco nesta casa, um corre para cá, outro corre para lá... — É por causa da festa, faltam só dois dias e mamãe quer que saia tudo direitinho. Você foi visitar Lenita? — Fui, sim. Lá estão todos tristes — respondeu a governanta aproximando-se mais, demonstrando vivo interesse pelo assunto. — Já sei, morreu a menina do carrinho de rodas. — Não é só por isso, dona Isabel; o Dr. Cesar não vai mais ope- rar a minha netinha. Isabel susteve o bocado que levava à boca, parando de engolir. — Ora essa! Por quê? Quem vai operar? — Falaram um nome mas não lembro... deixe ver... é um nome complicado, parece um tal Albino... — Professor Alvim, deve ser. — Acho que é esse. — Ele é um bom operador. Mas por que vai ser ele e não o Dr. Cesar, que também é bastante competente? — O Dr. Cesar não trabalha mais no asilo. Foi como se tivesse levado uma estocada no estômago e a moça levantou-se num impulso. — Desde quando? — Uai! A senhora não sabia? Faz mais de uma semana que se despediu das meninas e não voltou mais. .207.
Enorme inquietação apoderou-se da jovem. Para tomar tão ex- trema deliberação, Cesar deveria estar excessivamente acabrunhado, envolvido por grande desânimo, depois da perda da paralítica. É ver- dade que não o tinha encontrado ultimamente, devido aos preparati- vos da festa, entretanto estranhava não a tivesse ele avisado. Telefonou diversas vezes para o seu consultório e por mais que fizesse não conseguia comunicar-se com ele. Ora estava atendendo clientes, ou então ausente. Sentia agora, mais do que nunca, pre- mente desejo de falar-lhe. Em uma dessas ligações a enfermeira respondeu que tinha saído e não sabia se iria voltar. Resolveu tentar mais uma vez. Por coincidência pegou-o impre- vistamente no outro lado da linha. — Cesar? — Sim, sou eu. Quem é? — Isabel, não está reconhecendo? — Que deseja? A moça estranhou o tom distante da voz e a algidez das respostas. — Ora, Cesar, estou há horas atrás de você, telefonando, telefo- nando...com vontade de conversar, de dizer alguma coisa... — Para me consolar? Não é preciso. — Soube que deixou o asilo. — Deixei. — Custei acreditar, o que aconteceu não era motivo para você sentir-se desanimado... — Quem disse que estou desanimado? — Nem para afastar-se de lá. Penso que está encarando o acon- tecido por um prisma muito severo, levando as coisas muito a sé- rio... então, o amor às pequeninas... .208.
— Que queria que fizesse? Eu não poderia continuar mais lá. A sua voz era agora ríspida e Isabel sentiu um frio percorrer seu corpo. Pensou um momento que ele estivesse assumindo uma atitu- de teatral para brincar com ela e tentou mudar de tática. — Estou achando você muito malcriado! Chega de caçoar comigo! A voz do médico tornou-se mais áspera, ao replicar: — Estou falando muito sério, Isabel, e atente bem no que vou dizer depois de tudo o que aconteceu, só resta um caminho... Vendo-o interromper-se, perguntou apreensiva: — Que caminho? Cesar abrandou a voz. — O único compatível: desfazer o equívoco que se criou entre nós dois e interromper nossas relações. Foi quase num lamento que ela respondeu. — Cesar, estou te desconhecendo. Que há com você? Que acon- teceu que está me tratando assim tão duramente? — Já disse uma vez que sou rude por natureza e por tempe- ramento e costumo dizer as coisas como sinto, francamente. Não adianta querermos mudar a direção dos ventos quando eles estão em sentido contrário. É preciso colocar um ponto final nesta panto- mima e parar enquanto é tempo. — Cesar... por favor... penso que há algo errado nesta nossa conversa... — Não há nada errado, Isabel. — Não entendo... eu disse alguma coisa que te ofendesse? — Você não, mas é bastante inteligente para compreender a mi- nha situação. — Cesar... .209.
❧ Soou ao ouvido de Isabel um “clic”, como se a ligação fosse in- terrompida. Podia ser casual, como amiúde acontece, entretanto, face às circunstâncias, o mais certo seria ter partido dele mesmo a interrupção. Conservou-se ainda indecisa junto ao aparelho, por al- gum tempo, com o coração oprimido e esperando que a chamasse, na dúbia esperança de voltar a falar-lhe e acabou desistindo. Por mais que examinasse o acontecido, não chegou a compreen- der o motivo daquele brusco rompimento. O insucesso de Cesar na operação de Cleide não era o único; milhares de outras frustrações aconteciam todos os dias, sem justificarem desânimo e abandono da luta. Mas Cesar não era homem para se entregar facilmente, en- tão, que teria sucedido? Ignorava as razões que o afastaram do asilo, para uma melhor compreensão de sua atitude e de uma coisa ficou certa: ele fora posi- tivo, declarando sem ambages a ruptura irreversível. Seu pundonor não permitiu procurá-lo novamente e pensou que talvez sua mãe ti- vesse razão, Marcelo devia ser o caminho certo, ela via os problemas objetivamente, foi sempre tão judiciosa. No entanto, não pôde evitar que as lágrimas lhe af lorassem aos olhos. ❧ Joana veio preveni-la que seu pai chegara e a esperavam para jantar. Lavou os ohos para apagar os vestígios da sua mágoa e diri- giu-se à sala de comer. .210.
Os assuntos à mesa foram os mais variados. Ifigênia começou por se referir ao que lera na Tribuna acerca do discurso sibilino do deputado Sarmento na Assembléia, a respeito do trigo, atirando um punhado de lama nos moageiros, evidentemente dirigido aos Moinhos Santa Helena, um dos maiores. O deputado ameaçava dar o nome aos bois, concitando “o Governo a uma devassa nos negó- cios desses moinhos e a aplicar sanções contra os sugadores da eco- nomia do povo”. Ifigênia vociferou: — É um desaforo! Você deve fazer uma publicação de desagravo contra esse manipanso. Não tem propósito o que publicam! Rogério aparteou, tranquilamente. — O melhor é não tomar conhecimento, porque quem toma as dores parece conivente. Todo mundo me conhece e sabe quem é Sarmento, um homem desacreditado e criador de escândalos, que é a sua tônica. Certamente mandará procurar-me qualquer dia des- tes para pedir auxílio à sua campanha eleitoral, como sucedeu no passado. É um refinado patife! — A mim me incomodam essas diatribes. Um homem de cará- ter limpo e ilibado como você, bom chefe de família, de vida auste- ra, não pode ficar a mercê de achincalhadores. Que dirá o povo de tais verrinas? — O povo tem memória fraca e esquece logo. — O pior é que os jornais envenenam... — Nem todos. O Estado, por exemplo, não deu destaque a essa demagogia. Por que você não dá preferência a este jornal? — Leio os dois... — tangenciou a esposa, não desejando deixar transparecer sua simpatia pelo matutino onde pontificava Salomão .211.
Oliveiros, somente porque o esperto colunista em certa ocasião se referiu a ela, dizendo “né-baronesa de Valinhos”. Camila interveio: — Sou da opinião do meu cunhado; não devemos dar impor- tância aos que agridem sem motivo. Diz o ditado que os cães la- dram e a caravana passa. — Mesmo porque — tornou Rogério Peçanha — o próprio Sar- mento será o primeiro a fazer-nos elogio, depois que receber nos- sa ajuda, salientando existirem comerciantes honestos, isentos de suspeição, como é de seu costume. — O mal é trabalhar para eleger indivíduos desse jaez — ajun- tou Ifigênia. — Infelizmente somos levados a proceder dessa forma, para nos livrarmos de sua peçonhas e de campanhas tendenciosas. O assunto virou para os preparativos da festa. Camila fez um relato das incumbências que lhe cabiam, o mesmo acontecendo com Ifigênia. Tinham sido distribuídos mais de cem convites, era difícil uma previsão quanto ao número de comparecimento à reu- nião campestre, o essencial era ficarem prevenidos. Rogério infor- mou ter contratado a Churrascaria Gaúcha para cuidar desse setor. Ifigênia dirigiu-se à filha, que até esse momento não participara da conversa, como se estivesse completamente alheia ao que se falava. — Os seus vestidos ficaram lindos! Conta a seu pai, que ainda não viu. Rogério, como a esposa, abstivera-se até então de chamá-la a opi- nar, respeitando seu silêncio. A jovem tentou esboçar um sorriso. — Não acham melhor aguardar o dia para exibir? Será uma sur- presa. .212.
O pai respondeu: — Por que nossa filha está hoje tão quietinha e pensativa? Até agora não disse uma palavrinha, será que está indisposta? — Nada, papai. Nada além das atribuições de uma moça nas minhas condições. — Já sei, sua mãe me contou. Oh! Como tenho saudade daquele tempo em que você, ainda pequena vinha sentar nos meus joelhos para relatar suas confidências. Como eu ficava feliz ouvindo e pas- sando os dedos em seus cabelos. Você era uma garota impulsiva e eu te chamava de gatinha. Mas, foi crescendo, ficou adolescente e um dia reagiu amargurada, pedindo depois desculpa e chorando no meu ombro, você lembra? Isabel achava-se ainda dominada pela opressão dos recentes acontecimentos e seus olhos se encheram de lágrimas a essa evoca- ção, respondendo, sem conseguir disfarçar a emoção: — Ah, papai! Por que está a lembrar essas coisas? Bem que gos- taria de voltar àqueles tempos e ouvir você me chamar de gatinha, porque agora estou convencida de que era mesmo uma gata... Rogério Peçanha era um sentimental em relação à filha e tirou um lenço para assoar o nariz, a fim de disfarçar a sua perturbação. .213.
XXI Pela estrada velha do Aeroporto, em direção a Santo Amaro, transitavam diversos automóveis conduzindo convidados para a reunião campestre que os Peçanha ofereciam à margem da represa, no formoso recanto que possuíam à beira do lago. Uns seguiam len- tamente, outros ultrapassavam mais apressados, porém todos com o mesmo destino. Entre eles ia o velho packard de Salomão Oliveiros, tendo Luizão a seu lado, fotógrafo da Tribuna, seu colaborador e particular ami- go. Estes dois homens formavam uma singular simbiose. Quando Salomão entrou como foca para a equipe do jornal, ainda desconhe- cido, Luizão já ali se aplicava e muito o auxiliou no início dos seus trabalhos, documentando fotograficamente as reportagens que ia colhendo dos acontecimentos cotidianos. Luizão, apelido ganho por seu corpanzil adiposo, era um pro- fissional competente e Oliveiros percebeu logo os frutos a colher num trabalho conjugado, dividindo com ele os proventos recebidos, numa base que variava de acordo com a soma auferida. Ardiloso e solerte, o árabe possuía um faro apurado para desco- brir os pontos fracos e vulneráveis da nova geração que despontava, especialmente os novos ricos e fácil foi galgar notoriedade, firman- .215.
do uma posição como cronista do matutino. De conversa amável e envolvente, passou a vestir-se com apuro, usando roupas caras, trazendo boa parte dos punhos da camisa fora das mangas do pa- letó, o que considerava elegante, com forte bigodeira por cima dos lábios. Logicamente, um tal estilo de vida exigia gastos acima das suas posses, o que o levava a cobrir as deficiências econômicas com empréstimos dos conhecidos mais abastados, sob promissórias que raramente pagava, ou que resgatava com elogios em crônicas nas colunas do jornal. Apelava continuamente para Luizão, que o atendia de manei- ra limitada, sabendo que o dinheiro só retornaria sob a forma de serviços prestados. Quando o fotógrafo sabia com antecedência de algum acontecimento importante, casamento ou aniversário, procurava os familiares e oferecia a confecção de um álbum com as fotografias da reunião, o que sabia fazer com perfeição. Vinha de contrapeso uma notícia do acontecimento na coluna do diário e cobrava então uma quantia suplementar, que transferia para o Sa- lomão. Por seu lado, o colunista conferia-lhe uma participação no seu trabalho. Procuravam às vezes enganar um ao outro mas, de qualquer forma, o acordo funcionava. Oliveiros voltou-se para o companheiro ao lado: — Tivemos uma manhã esplêndida! Muita gente na missa, o povo sobrando para o lado de fora; se todo esse pessoal comparecer ao almoço, vai ser uma beleza! — É verdade, tive um trabalho imenso para poder fotografar! Quase não podia andar lá dentro e o calor estava danado! Custava carregar a máquina, assim mesmo peguei bons ângulos. .216.
— Também, com esse corpo... você precisa fazer umas saunas e entrar em regime de dieta. — Dieta, eu? Com a fome que tenho, diante de um belo prato de macarronada e um copo de vinho Chianti? Prefiro estourar de gordo. — Trate de tirar boas fotografias da festa, principalmente da- queles que eu for indicando. Vamos ter safra grossa e abundante. — Quanto vai ganhar neste negócio? — perguntou Luizão dis- traidamente, como quem não estivesse interessado. — Vinte mil — mentiu o árabe. — Só? Para um mundão de gente assim, é muito pouco! — Que fazer? A turma regateou e tive de aceitar. — Quanto levo? — Dez por cento, como de costume, nos negócios maiores. O fotógrafo não escondeu o seu desaponto. — É uma ninharia, considerando os gastos e o serviço. Qual- quer dia largo esta porcaria de andar atrás de ajuntamentos para poder ganhar a vida... — Sempre reclamando! Não precisa corar, dou vinte por cento. — Ainda não é muito, Salomão. Ponha a mão na consciência e lembre que não é todos os dias que temos festas deste naipe. — Ora, Luizão, seja razoável. Veja que dou sempre cobertura ao seu trabalho e sei que muitas vezes faz o seu serviço sozinho e se esquece de mim. Vai a muitos lugares, faz seus álbuns, ganha bons cobres, já montou atelier, comprou casa e eu ainda não consegui me desfazer desta charanga que não anda. Para não reclamar mais, vou dar de choro uma caixa de vinho Chianti, está bem? O fotógrafo não respondeu, mas Salomão sabia que seu silêncio representava uma tácita aquiescência. Tinha-o em elevado apreço .217.
por encontrar nele um colaborador discreto e eficiente, sabendo guardar distância, quando ambos cumpriam suas funções em pú- blico. Além do que, parte das comissões continuava em seus bolsos, a título de empréstimo. ❧ Um belo e novo Chevrolet emparelhou subitamente a seu lado, fazendo soar a buzina e um braço acenou do interior, cumprimen- tando-o, era Marcelo Siqueira. Olá, Salomão, quer apostar uma corrida? — Está me desafiando porque sabe que o meu carro não anda. — Vamos trocar? Quanto volta? — Não custa esperar. Qualquer dia compro um novo e então veremos quem corre mais. Está muito longe ainda? — Um bom tiro daqui. — Não conheço o caminho depois que sai do asfalto. A conversa se processava aos gritos e Marcelo respondeu: — O melhor é seguir a turma, mas não há problema, eu passo na frente e você me acompanha. Marcelo ganhou dianteira, moderando a marcha e Salomão vol- tou a conversar com o companheiro. — Cara decente, este Marcelo. Moço educado, rico, viajado, o me- lhor partido da cidade e não exibe muita panca, como certos camara- das que conheço, empelicados, que olham os outros por cima, só por- que têm o bandulho cheio. Marcelo não, é sempre igual com todos. Ladearam Santo Amaro e deixaram a Estrada Velha. Transpon- do Interlagos por um atalho, continuaram margeando a represa pelo lado esquerdo. .218.
A chácara de Roberto Peçanha era bela e acolhedora. Situada à beira do lago, em bela enseada, pertencera inicialmente a um alemão amante da tranquilidade. Ali construiu casa bem monta- da, nela introduzindo o conforto de um esteta. A mansão foi mais tarde vendida pelos herdeiros a um industrial italiano que pouco a usufruiu, finalmente sendo adquirida por Peçanha. Cada proprietário que ali passou deu ao sítio a sua colaboração. O anterior acrescentou cocheiras e estábulos, dependências para empregados. Gostava de cavalgar e também de velejar, construindo junto à margem grande galpão para lanchas e veleiros. Além disso adquiriu, por acerto de negócios, pequeno sítio pegado, que anexou à propriedade. Nesse sítio havia diminuta casa luxuosamente mo- biliada, que o dono vizinho construíra para suas eventuais aventu- ras amorosas e que as más-línguas segredavam servir para digres- sões do atual proprietário. ❧ Nas proximidades do galpão havia pequeno molhe, com tosca escada de pedras descendo até a água, vendo-se ali amarrado a um cepo o Meteoro, diminuto barco à vela, provido de motor de popa. Tinha a vela enrolada e balouçava graciosamente à brisa reinante. A animação no sítio ia num crescendo, com a incessante chega- da de automóveis conduzindo elevada quantidade de convidados, quando Marcelo e Oliveiros deram entrada na clareira destinada ao abrigo dos carros. O fotógrafo conservou-se algum tempo arru- mando seus apetrechos, manteve-se à distância, enquanto aguar- dava o momento de entrar em cena, com sua habitual discrição. .219.
Um cheiro acre de carne assada pairava no ar, seus olores evolando por toda parte, despertando o apetite e convidando aos aperitivos, fartamente distribuídos, enquanto um exército de em- pregados se ocupava dos churrascos, em imensas grelhas de ferro montadas a um lado. Grupos de pessoas iam se formando ao sabor de suas intimida- des, acomodando-se em cadeiras de armar, em bancos providen- ciados com bastante antecedência, dispostos por todos os cantos. Outros procuravam o aconchego acolhedor dos salões da vivenda. Viam-se ali banqueiros e comerciantes, médicos e magistrados, toda a gama de relações do casal Peçanha. Formavam rodinhas, destacando-se entre eles o vulto imponente do Comendador Otavio Siqueira, um representante do Governador em seu fardamento de campo. Também os Professores Alvim e Pedreira, além de elemen- tos da Associação Comercial e da Federação das Indústrias, mais o Desembargador Drumond — sogro de Márcia —, Carlos Azambuja e muitos convivas vindos especialmente da cidade de Campinas. As mulheres formavam grupos separados, atenciosamente as- sistidas por Ifigênia e Camila, pelas filhas do casal e por Henrique- ta, ocupando-se esta especificamente de suas conterrâneas cam- pineiras. Todas empenhavam o melhor de seus esforços a fim de proporcionar boa acolhida às convidadas. Ifigênia veio finalmente sentar-se ao lado de Clara. — Estão lhe atendendo bem, Clara? — Estou perfeitamente servida, Ifigênia, e admirada da boa or- dem reinante, apesar da grande quantidade de gente. — Já experimentou o churrasco? .220.
— Tudo ótimo. — Quer repetir? Isabel passava por perto e a esposa do Comendador chamou: — Filhinha, venha cá um instante. Faça o favor de servir-me mais um espetinho daquela carne que me trouxe há pouco. Ifigênia reforçou, melíf lua: — E bem escolhido, minha filha. Sem gordura e bem assado. Isabel afastou-se, dirigindo-se à churrasqueira, onde os empre- gados da Gaúcha, de bombachas e largas pantalonas, cercavam as assadeiras, e enfiou-se no meio deles. Alguns hóspedes porfiavam pessoalmente em revirar suas porções de contrafilé ou de lombo, postas de frangos ou linguiças, consoante suas predileções. A filha de Ifigênia diligenciava no afã de preparar um espeto escolhido, revolvendo ela própria a carne no braseiro. Tinha a face enrubecida pelo calor, quando sentiu Marcelo aproximar-se tentan- do ajudá-la. — Que é isso, Isabel? Pode se queimar. — Estou servindo sua mãe. — Não faltava mais nada! — exclamou o rapaz. Minha mãe a fa- zer-lhe de criada, inventando complicações! Cuidado com os dedos! — Sirvo-a com muito prazer. — Deixe por minha conta, só peço para orientar-me, porque não sou muito entendido em assados. — Não, Marcelo, obrigada, mas quero eu mesmo atendê-la. Ela não me recomendou para lidar na grelha, eu é que faço empenho em assar, senão não há nenhum mérito. Fui eu que me ofereci. Virava lentamente o espeto ao calor do braseiro, dispensando o oferecimento dos serventes que a desejavam auxiliar. .221.
Marcelo ficou parado ao seu lado, observando seus movimentos, encantado com a cor rubra do rosto da jovem, alumiado de quando em quando pelos clarões do fogo. Em determinado momento não se conteve, ciciando em seu ouvido: — Logo que termine e possa dispor de uma folguinha, quero que me conceda alguns minutos de atenção. Preciso falar-te em particular. Isabel estremeceu, sentindo o coração pulsar descompassado. Pressentia aquilo que ia ouvir, era aquele o dia prometido para uma definição, bem possível que Marcelo estivesse industriado a provo- car uma decisão de sua parte. Procurou aparentar serenidade e respondeu, com o rosto incen- dido: — Que ar solene! — O assunto é muito sério, moça, precisamos falar de coisa muito importante. Isabel sentiu a garganta seca e uma tosse impulsiva acometeu- -a, provocada pela fumaça. Foi com voz rouca que replicou: — Coisa importante... que será? Penso que não aqui... neste lu- gar... — Não aqui neste lugar, necessariamente, Isabel, mas terá de ser neste dia. — Estas festas me deixaram com a cabeça confusa e preciso botá-la no lugar. Deixe-me terminar este serviço, quero descansar, relaxar um pouco os nervos e mais tarde falarmos... — Então, logo mais? — Disse que é assunto sério... .222.
— É bastante inteligente para compreender. Sugiro um passeio ali no bosque de trás, onde ninguém possa perturbar-nos, assim conversaremos mais à vontade . — Combinado. ❧ Isabel procurava ganhar tempo, completamente desorientada e insegura quanto ao seu comportamento, na entrevista solicitada. Uma repulsa instintiva a impedia de achar a solução que seus familiares desejavam e não sabia como evadir-se a ela. Procurou de- morar-se mais, revirando o espeto mais longe do braseiro, sentindo a mente paralisada. Por fim ergueu-o com a mão direita, enfiando o braço esquerdo no braço de Marcelo. Caminharam juntos alguns passos, tinha notado uma certa decepção na fisionomia do rapaz e julgou dever desfazer a má impressão que demonstrava. Não tinha pressentido o fotógrafo a sua frente tomando rapidamente dois ins- tantâneos do par, a um sinal de Oliveiros. Isabel percebeu o sorriso feliz da progenitora, enquanto Clara não escondia sua satisfação ao vê-los se aproximarem, beijando-a carinhosamente, o que valeu novo instantâneo fotográfico. Chegando com algum atraso, Roberto Linhares surgiu entre os presentes. Ao vê-lo, Isabel acenou-lhe alegremente. Disfarçou e chegou-se a ele, dizendo discretamente: — Roberto, preciso falar-te com urgência. — As suas ordens, Isabel. — Espere-me na copa, se não estiver ninguém lá. Roberto esgueirou-se por entre as inúmeras pessoas que en- .223.
chiam as salas da vivenda e entrou na pequena dependência contí- gua à cozinha. Não havia ninguém e sentou-se em uma cadeira per- to da janela. Enquanto a moça não vinha pôs-se a olhar o panorama que se descortinava à sua frente, através da folhagem de copadas árvores. Era uma visão magnífica da represa com sua superfície le- vemente crispada pela brisa. A margem do lado oposto aparecia tão distante que as habitações dispersas em sua orla mais se asseme- lhavam a pequeninos pontos claros e vermelhos. A jovem não demorou a aparecer. Encostou a porta ao entrar e Roberto notou a expressão inquieta do seu rosto. — Em que posso servir? Ela sentou-se à sua frente, ensaiando um sorriso. — Não vai ser muito fácil o que tenho a dizer... estou assim como alguém perdido num labirinto escuro, sem encontrar saída. Roberto prestou mais atenção, percebendo o enleio com que f alava. — Parece tão preocupada... — Estou mesmo, mas antes de começar, quero que diga como vai o seu amigo Cesar e se tem se encontrado com ele. — Seguramente faz três semanas que não o vejo. Que há? — É que ele ia operar a netinha da nossa governanta e desistiu... Olhe! Vou ser mais franca! Estávamos de boas relações e afastou-se de mim bruscamente. — Cesar é homem de repentes... — Depois da operação da paralítica ficou acabrunhado e saiu do asilo... sabia que a menina morreu? — Ouvi que ela tinha a saúde comprometida. Tive de perma- necer alguns dias no Rio, cuidando de um processo complicado e quando voltei, procurando por ele, soube que estava em Campinas. .224.
— Estou interessada em saber porque ele ficou amuado comigo. Como explica essa atitude? O advogado não sabia o que responder e obtemperou: — Como disse, Cesar toma às vezes resoluções estranhas que mesmo eu, que convivo com ele desde menino, não chego a enten- der. É evidente que alguma coisa deve ter acontecido... quer que investigue? — Não, não por minha conta, mas se quiser fazer isso como coi- sa sua, eu agradeço. Uma empregada abriu a porta e a moça levantou-se. — Agradeço, Roberto, e não quero te prender mais. Vá lá fora servir-se e eu irei logo depois. ❧ Viu-o afastar-se e a empregada retirou-se atrás dele, deixando a porta entreaberta, trazendo um sussurro de vozes da sala pegada, onde conversavam muitas senhoras. Ouviu perfeitamente a argu- mentação de uma delas, sentada rente à porta, discorrendo sobre o problema da educação sexual: — Tenho para mim que não adianta prendermos demais nos- sas filhas, exercendo sobre elas excessiva vigilância, porque sem- pre descobrem uma maneira de nos enganar. O mais acertado é instrui-las desde a adolescência das tentações e dos riscos do sexo, alertando-as no sentido de evitar consequências danosas e irrepa- ráveis. Sempre que se oferece ocasião, precisamos citar exemplos e acontecimentos de todos os dias. Nunca me dei mal com esse sis- tema, elas me fazem muitas vezes suas confidências e me consul- .225.
tam sobre suas dúvidas. Meu marido adota os mesmos princípios. Quando um filho tinha quinze anos, foram contar a ele que alguém o levou a uma casa de francesinhas para aprender o amor e deu gos- tosas gargalhadas. Ouviu a vizinha inquirir: — E essa tal casa que você falou, parece que se chama Pavillon d’Armenonville, onde é mesmo que fica? — Onde fica não sei. Dizem que são mocinhas trazidas por ex- ploradores, consta que uma delas viajou no mesmo vapor em que voltou o Marcelo. Isabel empurrou a porta com força, sentindo enorme desejo de afastar-se dali para muito longe, com o coração em pedaços, ao lembrar que logo mais teria de encontrar Marcelo para ouvir juras de amor em um passeio pelo bosque, longe das vistas de todos. Veio-lhe à mente o galpão à beira da represa, onde sabia existir alguns móveis encostados, poderia ali encontrar na solidão um re- fúgio de paz e de tranquilidade que tanto necessitava para conside- rar sua situação. Assim pensando, esgueirou-se pelos fundos da casa, descendo a rampa, sem que fosse notada. .226.
XXII Isabel caminhou em passadas rápidas até o fim da vereda, ter- minando no pequeno molhe junto à tosca escada de pedras que descia até a água. Parou bem defronte do Meteoro, contemplando o belo barco à sua frente, pensando nos momentos felizes em que dentro dele singrava as águas tranquilas do lago, na companhia de Marcelo e conhecidos. Aprendera o manejo da embarcação com o filho do Comendador, recebendo no rosto as rajadas frescas das brisas que a impeliam. Agora ali se achava com a alma cheia de me- lancolia, desnorteada e irresoluta. Desalentada, entrou no galpão. Dentro dele um homem repou- sava deitado em velho canapé, levantando-se mal a pressentiu. Era Nazário Pinto que ali se abrigara, fugindo ao bulício da fes- ta, como ela própria. — Procurava alguma coisa, Isabel? — Sim — respondeu forçando um sorriso. Estou à procura de um pouco de paz, que não encontro lá fora. — Também eu sou pouco amigo de agitação. Penso que começo a ficar velho. O que é mau sinal, mas você, jovem na força da moci- dade, é de estranhar. .227.
Olhou para ela, como desejando descobrir a causa de seu apare- cimento e ela o compreendeu. — Estou bastante fatigada, necessitando de repouso, por isso vim até aqui, na esperança de que ninguém me descobrisse. Não quero perturbar o seu descanso, pode deitar-se e ficar à vontade e eu vou sentar neste sofá, assim iremos conversando como velhos amigos, recordando os tempos em que ia contar a você minhas bri- gas com Márcia, quando pequena, também os pitos de mamãe, e você me carregava nos braços e me enchia de guloseimas, lembra? — Se lembro! E que felizes recordações! Mas espere um instan- te, o sofá está todo empoeirado e pode manchar seu vestido. — Sempre gentil — murmurou, vendo-o tirar do bolso fino len- ço de cambraia, forrando o assento. Nazário conservava por ela extrema afeição, acompanhando seu crescimento dia a dia, apreciava a maneira delicada com que retribuía sua amizade, bem diferente de Ifigênia, Camila e Márcia, tratando-o à distância, sempre altivas. Pela jovem arriscaria a pró- pria vida, se necessário. Isabel acomodou-se no sofá e Nazário sentou-se na borda do ca- napé, dizendo: — Você deu a entender que veio até aqui em busca de paz... en- tão deduzo que tem algum problema. — Tenho, como todos, somente que eles começam a me pertur- bar. Alguns me deixam mesmo desorientada, sem saber que fazer. — Posso ajudar? — Acho que não, são problemas sentimentais, você se admira? — Qual a moça que não os tem? .228.
— Ah, Nazário! Estou assim como o peru dentro de um círculo, sem poder sair. — Está bastante misteriosa. — Devo estar, sim, com um desejo imenso de sair navegando mar afora, sem destino, arribar num porto qualquer e ali ficar... — Sofreu alguma contrariedade? Não posso fazer nada? — Não, Nazário... Os olhos dela pousaram de novo, distraidamente, no Meteoro a balouçar no lago e uma ideia surpreendente perpassou-lhe pela mente, como um raio, continuando em irresistível impulso. — Sim, é de sair por aí que estou precisando e é isso que vou fazer. — Fazer o quê? — Navegar, navegar... — Navegar? — Nazário, você foi sempre meu amigo, atendeu-me em todas as ocasiões em que apelei para sua boa vontade, pois vou pedir ago- ra uma daquelas guloseimas que me dava quando pequena... — Não entendo, Isabel — respondeu, inquieto. — Não irei mar afora, mas podemos navegar na represa. Tenho necessidade de movimento, sim, o que me falta é exercício! Quer vir comigo? O Meteoro está ali fora nos convidando para uma volta. — Você está doida, menina — Doida ou não, vou velejar. — Desculpe, mas isso não farei. Não tem propósito largar os con- vidados aí no sítio e sair de barco, ainda mais sem prevenir ninguém. — Nazário, escute: com você ou sem você, vou sair. Ele olhou para Isabel, aterrado. .229.
— Não, não conte comigo, não sairei sem primeiro o consentimen- to de seu pai. Por que então não convida Marcelo ou outros rapazes? Era justamente quem não lhe convinha naquelas circunstâncias e redarguiu, peremptória: — Quero a sua companhia e de mais ninguém. — O que vai fazer é rematada loucura. Pense nas consequências e desista enquanto é tempo. De qualquer forma, não conte comigo. A moça estava determinada. — Não vejo porque essa relutância e não percebo que mal há em sair comigo, no lago. Sabe que sou perita nas manobras? — Que tem isso? O problema não é esse. — Está muito bem, já que não quer ir, irei sozinha. Até logo. ❧ Viu-a, perplexo, encaminhar-se para o molhe, descer a escada de pedras e desamarrar o veleiro. Correu atrás dela tentando ainda convencê-la, chamando-a à razão. O pano enfunou-se rapidamen- te, Isabel manobrou para largar e mal Nazário teve tempo para pu- lar dentro do barco. — Que desatino! — murmurou ele, alarmado. Ela encarou-o, triunfante. — Está com medo? Se não tem confiança no meu serviço, ainda podemos voltar para desembarcar. — Não se trata disso, menina, bem sabe que sou um homem que não conhece o medo. Que dirão seus pais desta aventura? — Isto não é aventura, para mim é coisa corriqueira. Sei que meu pai tem inteira confiança em você, em último caso confia intei- .230.
ramente em mim. Ficarão bem mais tranquilos sabendo que estou em sua companhia, apesar dos rumores que correm da sua pessoa. Olhou para ele maliciosamente. — Muito do que dizem de mim é pura fantasia. — Mas, tirando a fantasia, ainda deve sobrar muita verdade, não? — Nem sempre. Ela voltou a manobrar as cordas e a vela inclinou-se ligeiramen- te, fazendo o veleiro dar leve guinada, avançando garbosamente, transpondo a frente da clareira, onde muitos se levantaram de seus lugares para contemplar o avanço do belo barco. Nazário estava arrependido mas era tarde. Que diriam aqueles que ali ficaram, vendo-o partir na companhia da jovem, deixando os convidados no meio da festa, sem uma razão plausível? Isabel não dava ouvidos e sorria ante suas admoestações. Dirigia o veleiro com bastante perícia, manobrando o Meteoro para o centro da represa. A seu pedido, Nazário procurava auxiliá-la, controlando o cabo do leme. O pequeno veleiro deslizava obediente, como uma casca de noz, impulsionado pela brisa que soprava pela ré. Nazário pôs-se a observar os movimentos da jovem admirado pela desenvoltura e entusiasmo que empregava nas ações. Não tirava os olhos de seus gestos, atentando em seu busto esbelto, a tez voltan- do a cobrir-se de rubor e os cabelos esvoaçando à aragem reinante. Depois de colocar o barco na direção desejada, vendo-o romper a água valentemente, exclamou: — Isto faz bem ao corpo e à alma. Agora podemos conversar. Era justamente do que estava precisando para acalmar os nervos. Nada como um bom exercício para a cabeça funcionar melhor! .231.
Ficaram calados durante longo tempo, olhando outros barcos singrarem a represa em várias direções. Uma lancha passou bem próxima e tão veloz, metade da proa fora d’água. Dentro dela, uma moça e dois rapazes acenaram alegremente ao passar. — Não sei que prazer em andar com tamanha velocidade! — disse Nazário. — É a volúpia do movimento uma das razões que nos leva a este exercício. Essas corridas nos proporcionam uma sensação ine- briante — respondeu. ❧ Tranquilizada quanto à marcha firme do veleiro, Isabel veio sentar-se ao lado do companheiro, silenciosa, procurando coorde- nar os pensamentos, até então ainda confusos. Que diria Marcelo dessa brusca escapadela e como explicaria a ele ao se encontrarem? A prometida entrevista ficava automatica- mente adiada. Como se comportaria ele daí por diante, ao perceber suas evasivas? Compreendia ser impossível fazê-lo esperar mais, já que uma tácita aceitação entre ambos e respectivas famílias torna- va quase irreversível esse caminho. Tinham assentado aguardar o casamento de Márcia para em seguida pensar no seu e sua mãe não tinha ouvido Clara contar que Marcelo ia ser guindado à diretoria do banco para casar? Cesar voltou a ocupar sua mente. Sua figura exercia irresistível fascínio sobre ela, pela vibração de toda a sua personalidade e pelo zelo demonstrado no trato das pequeninas do asilo, como igual- mente pela maneira delicada como se referia à sua mãe. Não podia .232.
atinar com os motivos que o levaram a afastar-se dela tão brusca- mente. Fora rude, mesmo agressivo, não lhe deixando outra alter- nativa senão Marcelo. Nazário continuava imóvel, sentado no mesmo lugar, com a mão presa ao cabo do leme e falou para ele: — Nazário, quando a gente vai andando por um caminho e che- ga a uma encruzilhada, vendo um caminho largo em sua frente e um atalho pedregoso de outro lado, sem saber qual deles tomar, qual dos dois você escolheria? Tomado de improviso, respondeu: — Depende, Isabel. Não sou bastante forte em metáforas e além disso nunca começo uma caminhada sem destino certo. De- vem existir sempre circunstâncias que nos orientam, ou melhor, uma espécie de sexto sentido. Há sempre um indício que nos apon- ta o caminho certo. É o mais que posso dizer, porque não sei qual o problema que a preocupa. — Vou ser mais clara estou enfrentando um dilema sentimen- tal. De um lado a tranquilidade de um casamento para o qual não sinto grande inclinação nem entusiasmo, e do outro... a perspectiva de um casamento mais modesto, que parece não agradar a alguns... — Por que não consulta seus pais? Eles têm experiência da vida e estão em melhores condições para aconselhar. — É um assunto que gostaria de resolver por mim. Nazário sentiu no íntimo a responsabilidade em opinar sobre um problema tão delicado, como ele parecia se apresentar, e procu- rou meios de evadir-se. Contudo perguntou: — E o coração? .233.
— O coração me mostra o atalho e é justamente o caminho que os meus não preferem, principalmente minha mãe. — Escute, Isabel. Você pede uma opinião bastante difícil e eu não queria imiscuir-me. É muita responsabilidade para um homem que não soube resolver o seu próprio problema. Ela insistiu: — Sem nenhuma parcela de responsabilidade da sua parte quanto ao meu caso, quero que me diga, se ele se passasse com você como reagiria? — No meu caso pessoal, se fosse obrigado a tomar uma atitude, seguiria o meu coração. Gosto de lutar pelo meu ideal. — É isso que queria ouvir e concordo com sua opinião. Mamãe pensa de modo diferente e acha que a linhagem pesa bastante, di- zendo que a finalidade é uma só, que o amor vem com a convivên- cia, desde que sejam do mesmo nível social e de educação. — Respeito a opinião de sua mãe; ela é muito criteriosa e deve ter suas razões para pensar dessa forma. — Deixe de conversa e não fuja do assunto. Estou fazendo uma confidência, pedindo o parecer de um conselheiro experimentado e não aceito evasivas. Nazário encarou-a pensativo, antes de responder: — Antes de mais nada, deixe dizer uma coisa, e você já deve ter encontrado alguns casos particulares: tenho visto casamentos de amor desmoronarem de repente, como outros que foram arran- jados, durarem felizes. É uma questão de consonância de tempera- mentos. Antigamente era comum os pais resolverem o casamento dos filhos, aconselhando-os e parece que a coisa funcionava. Quero .234.
repetir que não é fácil dar conselhos em matéria de amor e penso que você está metida nesse embrulho... — Está você se desviando novamente. Estou, realmente, e que- ro que você defina direito o seu pensamento: que caminho tomaria? Nazário tinha o pressentimento de adivinhar o dilema da moça e resolveu opinar, definindo-se: — Pois seja, já que exige, vou ser positivo: se acontecesse comi- go e somente no meu caso, gostaria de entrar pelo atalho, mesmo que as pedras ferissem meus pés. Não sou bom católico mas sei que o evangelho diz que o caminho do céu é coberto de espinhos. — E que espinhos! — murmurou Isabel. ❧ A tarde começou a cair lentamente, uma aura fresca passou a soprar e Nazário advertiu, consultando o relógio. — Faz mais de uma hora que estamos navegando e o pessoal deve estar preocupado com nossa demora. Não acha que já é tempo de voltar? — Depois daquele morro. — Mais um pouco e chegaremos a Jurubatuba. — Ainda está muito distante. Aqui é Guarapiranga. Ao franquear a elevação, Isabel manobrou com notável perícia, ao mesmo tempo em que recomendava ao companheiro dar forte guinada no leme. O barco volteou garbosamente, com tal precisão, arrancando de Nazário exclamação de júbilo: — Bravos, sabia que navegava bem, mas não com tal precisão! Pode tirar a carta de navegação! .235.
— Estou habituada a isto e gosto de velejar. Marcelo e Aldrovan- do, bons navegadores, ensinaram-me os segredos. Por sorte o vento está virando e nos ajuda. — Quer que ligue o motor? — Não, Nazário, vamos no pano mesmo. — Vai atrasar, chegaremos lá pelas cinco horas... — É exatamente o que desejo, atrasar a volta e atracar quando o pessoal já tenha se retirado. Não houve senão como conformar-se e Nazário pôs-se a ref letir nas palavras da jovem. Sabia do seu namoro com Marcelo e era evi- dente ter surgido outro em seu caminho. Conhecia a firme determi- nação da moça, bem digna de sua ascendência e não tinha dúvida de que iria perseguir com firmeza seu anelo. O veleiro vinha agora bordejando pela borda direita da represa, em marcha lenta. O sol passou a esconder-se, vez por outra, detrás de alguns montes e elevações da margem, lançando sombras no espelho líquido do lago, para seus raios mornos ressurgirem mais adiante. Contornando uma das últimas saliências, Isabel chamou a atenção do companheiro, com o dedo estendido na direção de uma casinha escondida no meio de árvores frondosas. — Está vendo um ponto amarelo no meio daquele bosque? Quer dizer que estamos chegando. Está arrependido do passeio? — Por Deus que não. Resta saber de que maneira vamos expli- car esta fuga através do lago. — Fique tranquilo, eu me encarrego disso. O ponto que mostrei é uma casinha amarela e pertence a nossa propriedade. Ali é o limi- te da chácara. Nazário sabia, mas não deu a perceber. Aquela casinha anexada pelo anterior dono ficara célebre pelos requintes de conforto, para .236.
suas incursões amorosas. Inúmeras vezes sua chave foi oferecida a amigos para digressões particulares. Agora ali permanecia quase sem uso e esquecida, salvo em raras ocasiões. Respondeu: — Estou vendo a casa de que fala. Já teve oportunidade de a conhecer? — Ainda não e bem que estou curiosa para ir lá. Qualquer des- tes dias pretendo conhecê-la. Dizem que é muito interessante, ape- sar de pequena. Nosso caseiro contou que é um primor. O barco foi se aproximando ainda mais, avançando junto da margem, podendo observar-se, através dos ramos do arvoredo, a janela da frente levemente entreaberta. — Deve estar alguém lá dentro, ou então o caseiro foi fechar — disse ela, prestando atenção e desejando inteirar-se. — Provavelmente, algum visitante... — Penso que não, a esta hora já terão se retirado todos. Entretanto, ficou surpreendida ao avistar meio escondido atrás da casa um pequeno carro grená muito seu conhecido, o automóvel da irmã. Que estaria ela fazendo ali, quase ao cair da noite? Talvez em companhia do marido, para a conhecer? — É da Márcia — comentou ela. Certamente foi visitar a casa. Está aí uma boa oportunidade para eu ir lá. Vamos aportar? — Não aprovo, Isabel. Já está se fazendo muito tarde e a hora é imprópria. Não acha preferível deixar para outro dia, com mais vagar? — Não. Vai ser agora. — Não dá tempo, Isabel — respondeu Nazário preocupado, vendo-a dar forte guinada no leme que ele ainda conservava, e a vela virando, quase a espanejar seu rosto. .237.
— Ajude-me, por favor... assim. Nazário sacudiu a cabeça, em sinal de reprovação. Estava à mercê da jovem e não restava senão obedecer. — É o carro de Márcia, repetiu ela. — Muito bem, é o carro de Márcia, que foi ver a casa. Você po- derá vir noutro dia, há sempre tempo para isso. Pense que o lugar não oferece segurança e o veleiro corre o risco de encalhar. A jovem não lhe dava ouvido, depois de tomar sua resolução, aproou o barco para a terra. Mal encostou, tratou de saltar fora, re- comendando: — Por favor, Nazário, amarre o barco enquanto dou um pulo até lá em cima. — Onde vai? — gritou ele assustado, tomado de mau pressenti- mento. — Volte, Isabel, não entre lá! A moça subiu a íngreme ladeira num fôlego, vendo um vulto afastar-se correndo e esgueirar-se no mato. Empurrou a porta num impulso agitado, encontrando a irmã de pé no centro da sala, dando displicentemente retoque à pintura do rosto, com a maior f leuma, como se ninguém estivesse em sua presença. — Olá, também por aqui? Isabel estava terrivelmente pálida e apostrofou: — Que faz aqui, Márcia? — Ora, que pergunta! Estou passeando. Deu-me vontade de co- nhecer esta casa, de que contavam maravilha, aí está! Penso que tenho esse direito. Isabel espantou-se da calma aparente da irmã e revidou com voz extremamente excitada. .238.
— É mentira, você não estava só! A outra sentiu-se insegura. — Mesmo que estivesse acompanhada, que mal há? — Não haveria nada, se não saísse correndo como um cão, pen- sa que não vi? — a sua voz atingiu o auge da agitação. — Viu nada... — tentou ainda a irmã. — Alceu? — Deixe-se de calúnia, Isabel. — Vi quando saiu. Márcia já não tinha mais dúvida e resolveu adotar atitude di- ferente. — Então, por que pergunta? — É o cúmulo, Márcia! Onde está o padrão moral e a honora- bilidade da família que você e nossa mãe defendem com tamanho orgulho? Para acabar terminando nessa pantomima? Márcia tornou-se atrevida e insolente: — Quer saber que mais? Não tenho nenhuma satisfação a dar- -te! Tenho um marido e somente a ele, só a ele, cabe o direito de interpelar-me, entendeu bem? — Repito, Márcia, o que veio fazer aqui? — Ora, a santinha! Você é que tem de explicar a sua presença. Deixou todo mundo lá na chácara assustado com as suas loucuras, e na companhia de quem? Desse tão falado e fa-mi-ge-ra-do senhor Nazário, cujas aventuras amorosas andam na boca de todo o mun- do! Pensa que não o vi pela janela? Não pôde continuar. A mão de Isabel estalou com incrível vio- lência na face da irmã. Viu-a afastar-se sem a mais leve reação, na .239.
direção do automóvel, pondo-o a funcionar. Chegou até os seus ou- vidos o resfolegar do motor, até perder-se ao longe. Não mais conseguiu reprimir os nervos e atirou-se numa pol- trona, desatando em pranto convulsivo. Nazário entrava nesse instante e acercou-se dela, afagando-lhe as espáduas e os bastos cabelos, com carinho, pensando: “Pobre menina! A provação foi muito forte para a sua idade!” Lá fora, o Meteoro balouçava altaneiro ao sopro da brisa, aguar- dando o momento de prosseguir viagem. .240.
XXIII Passava de dez horas e Isabel se conservava ainda no leito, sob as cobertas. As cortinas continuavam cerradas, deixando o quarto imerso em penumbra. Sentia os membros entorpecidos e lassos, a cabeça pesada, como dentro de um torniquete, sem conseguir con- catenar as ideias. A cena da casinha amarela dançava em sua mente como um pe- sadelo terrível. Não mais avistara a irmã depois daquela ocorrência e tentou conjecturar em que circunstâncias se desenvolveriam suas relações com ela, daí por diante. Não podia conceber tamanho desli- ze por quem possuía um marido tão bom e dedicado, como Renato. O dia anterior passara todo sem sair do quarto e da cama, inva- dida por incontido sentimento de angústia, com náuseas e intensa dor de cabeça. Pretextara enxaqueca, não permitindo abrissem a janela, pranteando algumas vezes em silêncio. Nem mais se lem- brou do prometido encontro com Marcelo, certamente cansado de esperar por ela e abandonando a chácara desapontado. Ifigênia abriu a porta do aposento mansamente e entrou pela terceira vez. Ao ouvir o ruído cerrou os olhos e aguardou. A mãe acercou-se do leito, contemplando-a, colocou a mão em sua fronte e a chamou. .241.
— Isabel... Ela entreabriu as pálpebras, tinha os olhos pisados e vermelhos. — São quase onze horas, minha filha. Vai levantar? A jovem alçou o busto, beijando-a. — Não estou ainda muito boa, não sei o que sinto. Tenho a cabe- ça atordoada como uma casa de marimbondos, assim uma espécie de tambor de ressonância, doendo... doendo... — Não será insolação? Você esteve velejando muito tempo no domingo, tomando sol na cabeça, além disso não comeu nada on- tem. Procure levantar e descer para alimentar-se, depois veja os jor- nais; eles trazem fartas e interessantes reportagens da nossa festa. Tenho certeza de que vai gostar. Correu as cortinas das janelas, inundando o aposento de luz, retirando-se a seguir, enquanto a filha saltava do leito, procurando equilibrar-se nas pernas meio trêmulas, ainda estonteada. Levou muito tempo a aparecer na copa, onde Joana tinha disposto o café da manhã. Não sentia vontade de comer. A governante não demorou a acercar-se. — Bom dia, dona Isabel, está melhor? — Não muito, Catarina. Sinto-me como se eu estivesse embria- gada, apesar de não ter bebido. Não tenho fome nenhuma; vou to- mar alguma coisa para não ficar com o estômago vazio. — Quer uns ovos com presunto? — Não tenho nenhum apetite, obrigada. — Quando terminar, a patroa pede para a senhora fazer o favor de ir ao escritório. ❧ .242.
Vendo a filha aproximar-se, Ifigênia tomou o matutino que es- tava a sua frente, estendendo-o com um largo sorriso de satisfação. — Uma reportagem magnífica da nossa reunião, tanto na igre- ja como na represa. Não podia ter saído melhor! Foi realmente um sucesso! Isabel pegou o jornal, já dobrado a propósito, observando a gran- de quantidade de fotografias da cerimônia religiosa, como também do almoço campestre, todas bastante nítidas e bem cuidadas. Exa- minava-as em silêncio, sem emitir comentários e a mãe falou: — Veja como todos saíram bem. Clarinha com o marido, nossa prima Henriqueta com o Carlos, o representante do Governador, Patrícia e Lúcia, os pais dela... principalmente você ao lado de Mar- celo, como estão espetaculares! Não deixe de ler depois a crônica do Salomão Oliveiros na outra página, ele é efetivamente o mais per- feito e refinado cronista da nossa sociedade. A jovem examinou atentamente os instantâneos e acabou viran- do o jornal. Não foi difícil encontrar as duas colunas do Salomão Oliveiros, publicadas com especial destaque. Começava ele pondo em relevo... “as duas grandes figuras da nossa sociedade, Rogério Peçanha, o notável e conhecido capitão da indústria moageira do país, com assinalados serviços prestados à causa pública, e Ifigê- nia, nobre filantrópica dama, presidenta da Associação Feminina de Assistência, dispensando sua permanente presença em obras as- sistenciais, descendente de uma das mais antigas e nobres famílias, com raízes no Império.” Ia por aí afora, tecendo os mais rasgados elogios ao seu vestido azul-turquesa, “realçado ainda mais pelo seu porte majestoso e in- confundível”. Isabel não deixou de sentir íntimo remoque ao recor- .243.
dar o profundo desgosto e desespero materno diante da costureira, ao experimentar o vestido. Continuou lendo, ele mencionava a elegância e fidalguia dis- pensada pelos anfitriões aos seus convivas na casa à beira do lago, que chamava de “garden-party”. O remate do colunista deixou-a terrivelmente perplexa: termi- nava transmitindo em primeira mão a grande novidade da festa e eram os comentários dos amigos e conhecidos, da próxima oficia- lização do noivado da filha do casal com um dos mais destacados esportistas da cidade, filho de conhecido banqueiro e cujo nome se dispensava mencionar. O choque recebido por Isabel foi tão intenso que deixou-a mo- mentaneamente paralisada, sem poder articular palavra. Ifigênia viu-a largar o jornal e subir a escada quase correndo. Interpretou essa atitude como decorrente da natural surpresa, de- pois se acalmaria, aceitando a realidade da situação. Estava agindo em benefício da filha e era o que mais importava. Isabel trancou-se no quarto com o coração em desespero. Sentia agora não mais amar Marcelo e considerava tudo aquilo como uma violação da sua vontade, estava resolvida a não mais aceitá-lo, ain- da que isto pudesse desgostar sua mãe. Atirou-se de bruços no leito, desalentada e em prantos. No meio de seu desânimo lembrou-se de Frei Bibiano, o tio que estimava. Somente ele saberia compreendê-la em semelhante con- juntura, somente ele encontraria uma solução e um lenitivo as suas preocupações. Assim pensando, saiu furtivamente, encaminhan- do-se à basílica, à procura do tio. Dirigiu-se ao parlatório, pedindo para anunciar a sua presença. .244.
Frei Bibiano não demorou aparecer, dirigindo-se à jovem no tom brincalhão com que costumava saudá-la: — Então, querida sobrinha, veio matar saudade do tio? Algum pecadinho para contar? Notando a fisionomia grave e inquieta da moça, acrescentou: — Nunca vi esse lindo rosto com expressão tão sombria! Que aconteceu? algum problema sério? — Sim, tio. Tenho a alma deprimida e venho ouvir os seus con- selhos. Quem me dera desfrutar a paz que o senhor deve ter neste convento. O monge sentou-se ao lado da sobrinha, no banco de madeira da pequena sala, depois de fechar a porta. — Efetivamente, vivo em perpétua paz, afastado das provações do mundo. Cumprimos nossos deveres para com Deus e a socieda- de, nada tolhe a nossa consciência, o que está em consonância com meu temperamento. E você, minha filha? Nada como despejar as mágoas para aliviar a alma... vejamos o que podemos fazer... Isabel entrou no assunto que a torturava. — Ah, meu tio! Estão querendo apressar meu casamento com Marcelo... mamãe está me pressionando... — É um belo moço, digno, de uma família cristã. Há muito es- tou esperando a oportunidade de abençoá-los. — É que, tio... — Ambos combinam muito bem, então qual o problema? Isabel torceu as mãos, sem esconder a af lição. — É que, tio, acabo de descobrir que não o amo! Não acha peno- so casar nessas circunstâncias? O frade calou-se para ref letir e depois disse: .245.
— Percebo... não deve fazer uma coisa que o instinto repele; é melhor esperar que o coração possa decidir. — Não nego uma parcela de culpa de minha parte em tudo o que está sucedendo. Eu adorava Marcelo, nossa amizade vem de al- guns anos sem o desanimar, acho ele um excelente partido e sei que dará um ótimo marido, paciente e carinhoso. Permiti que nossas famílias encarassem a possibilidade dessa união e agora... — a sua voz tornou-se emocionada, — sinto que não mais o amo e não quero casar com Marcelo! — Mas por que af ligir-se? Tudo tem conserto. — Meus pais fazem empenho nesse casamento, especialmente mamãe, que até notícia de nosso próximo noivado permitiu sair no jornal! Sei que minha mãe tem a melhor intenção ao me ver am- parada por essa união, mas estou agora num beco sem saída, sem saber como me descartar desta complicação, sem força para lutar contra a evidência dos fatos. Por favor, tio, peço que me ajude, — terminou com a voz embargada pela emoção. O monge tomou-lhe a mão, acariciando-a. — Não se deixe af ligir, minha sobrinha. Você é tão devota da virgem e Ela não abandona os que creem. Que deseja que eu faça? — Não sei, meu tio... talvez conversando com mamãe, ou mes- mo com papai, fazendo-os compreenderem... O franciscano olhou a sobrinha, preocupado. — Alguma coisa me diz porque sofre esse coraçãozinho; não é normal uma atitude dessa... deve ter acontecido um fato novo para renunciar a um casamento que viria proporcionar um futuro tran- quilo, creio que começo a entender o motivo... um outro? Os olhos da jovem se encheram de lágrimas, ao fazer que sim, com a cabeça. .246.
— Confie em mim; conheço esse outro? — Conhece-o bem, desde quando morava em Campinas. É um médico. O monge sorriu. — Já não precisa dizer quem é, estou percebendo de quem se trata, de um moço meu amigo, igualmente digno. — Estou decidida a não me casar com Marcelo e vou ter de re- sistir a minha mãe. Quero que o tio a faça compreender esta minha situação... é tão difícil enfrentá-la... — Acalme-se, querida, farei o que for possível. Ifigênia é uma criatura determinada mas acabará se conformando. Conheço-a bem, é dotada de bastante critério e irá compreender que não se deve violentar a natureza humana. — Mamãe é muito teimosa. — Mas possui bom senso. Trate de ser humilde diante dela, não esqueça o ensinamento do evangelho, quando diz que os exaltados serão humilhados e os humildes exaltados. Espere com paciência e o tempo se encarregará de trazer a solução justa, assim como as águas retornam ao leito, depois dos rios transbordados por ocasião das enchentes, ao passar a tempestade. Não deixe o desespero to- mar conta desse coraçãozinho e tenha fé na nossa Mãe Amantíssi- ma. Ela jamais desampara os que sofrem e confiam. Vamos juntos suplicar suas preciosas graças. Tenho certeza de que tudo termina- rá bem, para a sua felicidade. Levantaram-se, caminhando na direção da nave central, se- guindo juntos até o altar-mor, prostrando-se aos pés da Imaculada Conceição, lado a lado, em fervorosa prece. .247.
❧ Regressando à casa, Isabel encontrou a mãe conversando com sua tia Camila, no recinto interno que dava para a escada. Ia subir, quando ouviu-a chamar: — Venha cá, Isabel. Estávamos justamente falando a teu res- peito. Acercou-se suspeitosa, procurando aparentar a maior tranqui- lidade. — Está abatida, com olheiras fundas. Espero que te sintas me- lhor hoje. Onde esteve? — Fui à igreja rezar. — Sente-se. Queremos conversar coisas muito sérias. Isabel obedeceu, volvendo o olhar na direção da tia, vendo-a reconcentrada, a seu lado, sem nada vislumbrar em seu semblante contraído. Voltou a vista para a mãe, aguardando. Esta iniciou e sua voz se revestia de excepcional mansuetude, ao dizer: — Minha filha, quero te prevenir que estamos nos preparando para um dia memorável para todos nós e em particular para você, o momento que todos aguardamos impacientes, por muito tempo. Ele vai marcar um acontecimento importante, a união de duas fa- mílias de nobres tradições, já unidas por sólida amizade. Temos acompanhado a grande afinidade existente entre você e Marcelo, o que nos enche de imenso júbilo. Aproxima-se o momento de você iniciar vida nova, que promete ser feliz e abençoada, já que ambos dispõem de todos os requisitos indispensáveis a uma ventura com- pleta. Está tudo preparado para concretizarmos a cerimônia do noivado. Espero que te sintas contente. .248.
Search
Read the Text Version
- 1
- 2
- 3
- 4
- 5
- 6
- 7
- 8
- 9
- 10
- 11
- 12
- 13
- 14
- 15
- 16
- 17
- 18
- 19
- 20
- 21
- 22
- 23
- 24
- 25
- 26
- 27
- 28
- 29
- 30
- 31
- 32
- 33
- 34
- 35
- 36
- 37
- 38
- 39
- 40
- 41
- 42
- 43
- 44
- 45
- 46
- 47
- 48
- 49
- 50
- 51
- 52
- 53
- 54
- 55
- 56
- 57
- 58
- 59
- 60
- 61
- 62
- 63
- 64
- 65
- 66
- 67
- 68
- 69
- 70
- 71
- 72
- 73
- 74
- 75
- 76
- 77
- 78
- 79
- 80
- 81
- 82
- 83
- 84
- 85
- 86
- 87
- 88
- 89
- 90
- 91
- 92
- 93
- 94
- 95
- 96
- 97
- 98
- 99
- 100
- 101
- 102
- 103
- 104
- 105
- 106
- 107
- 108
- 109
- 110
- 111
- 112
- 113
- 114
- 115
- 116
- 117
- 118
- 119
- 120
- 121
- 122
- 123
- 124
- 125
- 126
- 127
- 128
- 129
- 130
- 131
- 132
- 133
- 134
- 135
- 136
- 137
- 138
- 139
- 140
- 141
- 142
- 143
- 144
- 145
- 146
- 147
- 148
- 149
- 150
- 151
- 152
- 153
- 154
- 155
- 156
- 157
- 158
- 159
- 160
- 161
- 162
- 163
- 164
- 165
- 166
- 167
- 168
- 169
- 170
- 171
- 172
- 173
- 174
- 175
- 176
- 177
- 178
- 179
- 180
- 181
- 182
- 183
- 184
- 185
- 186
- 187
- 188
- 189
- 190
- 191
- 192
- 193
- 194
- 195
- 196
- 197
- 198
- 199
- 200
- 201
- 202
- 203
- 204
- 205
- 206
- 207
- 208
- 209
- 210
- 211
- 212
- 213
- 214
- 215
- 216
- 217
- 218
- 219
- 220
- 221
- 222
- 223
- 224
- 225
- 226
- 227
- 228
- 229
- 230
- 231
- 232
- 233
- 234
- 235
- 236
- 237
- 238
- 239
- 240
- 241
- 242
- 243
- 244
- 245
- 246
- 247
- 248
- 249
- 250
- 251
- 252
- 253
- 254
- 255
- 256
- 257
- 258
- 259
- 260
- 261
- 262
- 263
- 264
- 265
- 266
- 267
- 268
- 269
- 270
- 271
- 272
- 273
- 274
- 275
- 276
- 277
- 278
- 279
- 280
- 281
- 282
- 283
- 284
- 285
- 286
- 287
- 288
- 289
- 290
- 291
- 292