TERRAS DE BARROSO ORIGENS E CARACTERISTICAS DE UMA REGIÃO O AUTOR DOMINGOS VAZ CHAVES 1.ª Edição
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região REGRESSO Regresso às fragas de onde me roubaram Ah!... Minha serra, minha dura infância!... Como os rijos carvalhos me acenaram, Mal eu surgi, casado, na distância!... Cantava cada fonte à sua porta: O poeta voltou!... Atrás ia ficando a Terra morta Dos versos que o desterro esfarelou. Depois o céu abriu-se num sorriso E eu deitei-me no colo dos penedos A contar aventuras e segredos Aos deuses do meu velho paraíso.. Miguel Torga “Ser transmontano é uma Honra!... Ser Barrosão são duas”… 2
Domingos Vaz Chaves PREÂMBULO Será difícil, a quem demanda hoje as terras de Barroso, imaginar com alguma profundidade, aquilo que a mesma foi desde os primórdios, ou mesmo até aos anos 50 das migrações para o litoral ou para os grandes centros urbanos, ou ainda para o tempo em que se iniciou o processo de emigração para França nos anos 60. Só os mais antigos, aqueles que contam para além dos 50 e que calcorrearam abaixo e acima, as ruas das aldeias desta região, ou as íngremes ladeiras das suas vastas serranias, poderão ter uma ideia sui-generis, daquilo que foram as Terras de Barroso no passado «recente», já que quanto aos tempos mais longínquos, muitas dúvidas subsistem. No que diz respeito ao primeiro mote, posso afirmar com toda a clareza, que a diferença é uma coisa impensável!... Naqueles tempos, não havia jornais que ali chegassem, não havia rádio, não havia televisão. Noticias era uma nulidade e Barroso não passava de um «mundo» fechado, envolvido pelas suas casas de colmo, por uma civilização pré-industrial e comercial, tão edénico e bucólico, que a medida da fortuna, não se fazia pelas cifras da lotaria, mas pelos alqueires de pão «colhidos», pelas quilos de batatas arrancados à terra, ou pela unidade «cabeça de gado», que cada um tinha e por quem se jurava: «nem que me desses uma vaca cum bezerro». Mas esse mundo morreu... só vive, como disse, nos microcosmos dos filhos da terra, que contam para além do tal meio século, e com eles desaparecerá para sempre, a não ser, que alguém dedique algum do seu ócio, a registar tanto quanto possível, vivências passadas, velhos monumentos, costumes e tradições. Alguém, bastante inserido nessa sociedade de antanho, pela paixão das pessoas e coisas da sua criação e ao mesmo tempo com capacidade de confronto dessa realidade, da realidade civilizacional de então com a de hoje. Os nossos filhos, os nossos netos, as gerações vindouras, têm o direito de conhecer, aquilo que foi a vida dos seus progenitores, da sua terra, dos seus costumes, e das suas tradições. Até aos 7 anos de idade, fui criado – com meus avós -, num ambiente familiar de puro regime patriarcal, auferindo como qualquer outra criança, da «riqueza» da vida comunitária produzida na aldeia. O comunitarismo, era o expoente máximo desse viver eminentemente social. Comunidades de «patrões» e «empregados», partilhavam o trabalho árduo, a mesma mesa, o mesmo respeito e a mesma prece ao fim do dia, após a ceia. À volta da lareira, poderosa de calor e aconchego, que conjuntamente com a candeia, iluminava as amplas casas, desprovidas que eram de luz eléctrica, brotava a alegria reinante dos serões, que antecediam as longas noites de inverno. A desoras que fosse, se alguém batesse à porta, lá tinha a sua tijela, o seu copo de vinho, o seu naco de conforto. Cumpriam-se assim as leis da hospitalidade, que a tradição mandava. Generosamente. Simplesmente. Durante aqueles sete anos - e com o decorrer do tempo, durante os periodos de férias -, aprendi a gostar do meu torrão natal, que nunca esqueci. Vivi os trabalhos e os dias na translação anual do labor agrícola, desde o «meter» dos fenos, às 3
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região segadas, desde as carradas, às malhadas, desde a matança dos porcos, que constituíam autênticas festas de familia, até ao «carrar» do estrume, desde a sementeira do centeio, até ao quotidiano cuidado com as «fazendas» (terrenos), desde a alegria de quem ama a vida e por ela é amado, até aos «motes» (quadras de escárnio e mal dizer), tudo numa sociabilidade intensa quase sem privacidade. Era uma riqueza imensa de experiências de vida, em contacto com a natureza. Através desta pequena obra, recorrendo a fontes, a informação prestada pelos mais idosos e a todos os meios documentais de que possa dispôr, procurarei relatar aquilo que foi e são as Terras de Barroso. Fá-lo-ei com a paixão natural de quem aí nasceu, sem pretensiosismos e apenas com um objectivo: Dar a conhecer às gerações vindouras, aquilo que foi e que é Barroso, mergulhado no orgulho transmontano e na condição de Barrosão. O AUTOR ... 4
Domingos Vaz Chaves O AUTOR DOMINGOS VAZ CHAVES, nasceu a 3 de Agosto e foi registado a 16 do mesmo mês, do ano de 1954, na freguesia de Gralhas, concelho de Montalegre. Viveu com os seus avós maternos até aos 7 anos de idade. É filho de José Fernandes Chaves e de Teresa Vaz Chaves, neto paterno de José Fernandes Chaves e de Maria Dias e materno, de Domingos Vaz e de Maria da Glória Gonçalves Carneiro, todos naturais da dita freguesia de Gralhas, do concelho de Montalegre. Na sua aldeia, iniciou a instrução primária, tendo rumado a Lisboa, onde actualmente vive, quando frequentava a 2.ª classe e se juntou a seus pais, que aí residiam e trabalhavam. Em 1965, após concluir a 4.ª classe e efectuado o então necessário e obrigatório exame de admissão, para acesso ao ensino secundário, inicía os seus estudos no extinto Liceu Nacional de Gil Vicente, também em Lisboa. Sempre apegado às suas origens e inadaptado ao ambiente da capital, em 1969 regressa à sua terra e aí passa a frequentar o Colégio de Montalegre. Após reprovação no então chamado exame do 2.º ciclo (actual 9.º ano), é-lhe imposto o retorno a Lisboa, facto que o leva à recusa de continuar os estudos. Começa então a trabalhar num escritório sediado também na capital. Anos mais tarde, trabalhando e estudando alternadamente, veio a concluir o Curso Geral dos Liceus em Julho de 1974, no também já extinto Liceu D. Dinis em Lisboa. Tinha então 19 anos de idade. 5
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Em termos profissionais, ingressou na Policia de Segurança Pública no ano de 1981, a qual surgiu no seu percurso através de um concurso público. Após a respectiva candidatura e a prestação das necessárias provas, deu entrada na Escola Prática de Policia em Outubro desse mesmo ano, tendo frequentado o Curso de Formação de Agentes na cidade de Torres Novas. Concluído o mesmo, é colocado em Lisboa, local onde permanece até Outubro de 1985, data em que regressa à Escola Prática de Policia, para frequentar um Curso de promoção a Chefe. Após frequência do mesmo com aproveitamento, regressa de novo a Lisboa, onde volta a ser colocado. A partir daí reíniciou os seus estudos e após conclusão do 12º. Ano no antigo Liceu D.Pedro V em Lisboa, no ano de 1989 entra na Faculdade de Direito de Lisboa, onde frequentou o respectivo curso. Sindicalista desde os tempos do Estado Novo, foi um dos principais activistas da causa sindical na PSP, e enquanto co-fundador, ainda na clandestinidade, da primeira Associação na Instituição – a Associação Sócio Profissional da Policia -, foi um dos principais intérpretes e impulsionadores da chamada “Batalha de Lisboa”, revolta ocorrida em 21 de Abril de 1989, que colocou Policias contra Policias, no Terreiro do Paço em Lisboa e que levou à demissão do então Ministro da Administração Interna, Silveira Godinho, do Governo de Cavaco Silva. Em finais de 1994, deixa a actividade operacional da Policia e passa a desempenhar funções na área da formação. Em Novembro de 1996, através de sufrágio directo, é eleito para vogal do Conselho Superior de Justiça e em 1999, no Parlamento Europeu em Bruxelas, faz a denúncia junto da Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, da violação de direitos sindicais e constitucionais por parte do Governo português. Conta no seu curriculo, com 1 medalha de ouro, 1 medalha de prata, 1 medalha de cobre, 1 medalha 1 estrela, 1 medalha 2 estrelas, 1 medalha 3 estrelas, 1 medalha por serviços distintos e 4 louvores, o último dos quais por “serviços distintos” prestados ao país. Paralelamente à sua actividade profissional leccionou na Universidade Lusiada, tendo nos últimos anos dedicado algum do seu tempo à escrita. ... 6
Domingos Vaz Chaves OUTRAS OBRAS DO AUTOR: 50 Anos de História/Auto-Biografia – 1954-2004 Gralhas-Minha Terra Minha Gente-Monografia da Aldeia de Gralhas Direitos Fundamentais História do Ultimo Enforcado em Montalegre História da Policia em Portugal-Formas de Justiça e Policiamento O Sagrado no Imaginário Barrosão General Humberto Delgado-Um Crime Sem Castigo Direito do Trabalho História da Policia para Crianças Moralidade e Ética Policial Raios e Coriscos Relatos e Crimes do Arco da Velha. 7
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Introdução Desde Fafião até Santo André a norte, zona que marca a confluência do Gerês e do Larouco com terras galegas, até à região dos vales fundos e escavados dos rios Tâmega, Beça, Terva e Covas a sul de Boticas, é o espaço que marca o começo e o fim das Terras de Barroso, através do qual se estende uma fronteira, de todas a mais periférica pelas características geográficas da região que a delimita. São as TERRAS DE BARROSO. Compõem-nas dois sectores distintos: um voltado a Norte, que intersecta as agrestes serranias das ditas serras do Gerês e do Larouco até aos limites do concelho de Montalegre, e o outro, os vales fundos a sul do Rio Tâmega no município de Boticas. Barroso, é por assim dizer um “mundo”!... Um mundo tal como era definido por Miguel Torga: “um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe porque telúrica contrição. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve; serras sobrepostas a serras, e montanhas paralelas a montanhas”. Terra de povoamento e disputa durante os primeiros séculos da monarquia portuguesa, entre próceres locais ou delegados do rei, altos dignitários do Clero, Ordens Militares e Conventos ou Mosteiros de um e de outro lado da fronteira, terra de coutos de homiziados e de refúgio de judeus exilados durante todo o século XV, espaço de exclusão e desterro desde sempre, para naturais e forasteiros dedicados à pequena agricultura, à criação de gado, ao comércio e contrabando transfronteiriço e a actividades artesanais ou de pequena indústria, sobretudo para consumo interno, Barroso, à medida que foi aprendendo a viver e a conviver com níveis de desafogo a rondar muitas vezes, o limiar da mera sobrevivência, foi vincando, também, no carácter das suas gentes, as marcas de uma terra de origem, afeiçoada e tratada a pulso, ao longo de gerações, e por isso mesmo, um espaço de afirmação identitária que se herda com orgulho, se preserva com convicção e se deixa, finalmente aos vindouros como leira de família. Terra agreste, de serranias e vales encaixados, com extremos climáticos e ainda hoje com difíceis comunicações, na defesa tradicional de Barroso aplicavam-se duas máximas: “Na guerra dos países montanhosos a vantagem pertence ao primeiro ocupante”. Contudo, isto não impediu de aqui se edificarem fortificações e de as adaptarem e reforçarem ao longo do tempo, como ocorreu com os castelos da Piconha e de Montalegre. Um dos traços mais originais desde sempre, desta fronteira, a que o Tratado de Limites de 1864 pôs termo, era a existência dos “Povos Promíscuos”, isto é, de localidades situadas sobre a própria linha de separação dos dois países, fazendo com que chegasse a haver casas com uma parte voltada para Espanha e outra para Portugal. Destes três lugares – Soutelinho, Cambedo e Lama de Arcos – localizados próximo da cidade de Chaves, muito embora com o primeiro encaixado em terra barrosã, 8
Domingos Vaz Chaves apenas um tinha mais espanhóis do que portugueses, razão porque quando aqui se reuniu a primeira comissão mista de limites em Agosto de 1856, a secção portuguesa propôs, para resolver esta questão já antiga, que o maior número de casas de um ou de outro lado ditaria a sua pertença futura. Cambedo acabaria porém por ser trocado nas negociações diplomáticas pelo Couto Misto, de que adiante se falará. O contrabando era também aqui, como de forma generalizada ao longo da fronteira, um motivo particular de preocupação de ambas os países, dado que os seus habitantes não desfrutavam de prerrogativas especiais, como os daquele Couto. É das Terras de Barroso, das suas origens, da sua História, dos povos promíscuos, do Couto Misto e de todas as características desta região, que me proponho falar na presente obra, recorrendo para o efeito a fontes, a informação prestada pelos mais idosos e a todos os meios documentais de que possa dispôr. ... 9
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região CAPITULO I A REGIÃO DE BARROSO DOS SÉCULOS XVIII E XIX 10
Domingos Vaz Chaves SINTESE HISTÓRICA A região de Barroso, reparte-se actualmente por duas zonas distintas: o Alto e o Baixo Barroso, a que correspondem administrativamente dois concelhos:a sul, o de Boticas, que ocupa a região dos vales fundos e escavados dos rios Tâmega, Beça, Terva e Covas - é o chamado Baixo Barroso. A norte, onde se incluem as serras do Gerês, do Larouco e do Barroso, formando uma zona natural de serras, carvalhais, rios e ribeiros, o de Montalegre – o qual se designa como o do Alto Barroso. Por estas terras, habitaram Lusitanos, Celtas, Visigodos, Suevos e Romanos, que deixaram um importante património arqueológico, tendo sido posteriormente uma terra importante na Idade Média, dado a sua localização estratégica. Talvez pelo seu passado - a que porventura não serão alheias razões históricas -, para os barrosões, são indiferentes estas divisões e classificações. Sejam do “baixo” ou do “alto”, todos são de Barroso, e quanto ao resto, fale-se de politica, de agricultura, de bruxas, de bois ou de vacas, nada os fáz mudar de opinião. Mas porque esta a “estória” não acaba aqui, é justo que se diga também, que além de Boticas e Montalegre, as terras de Barroso ainda cobrem a freguesia de Soutelinho da Raia, no concelho de Chaves, bem como algumas freguesias dos concelhos de Vieira do Minho e de Cabeceiras de Basto. Esta identidade geográfica barrosã, actualmente apenas histórica em função da Reforma Administrativa operada a partir de 1836, tem porém uma grande tradição autonómica regional: corresponde à antiga terra de Barroso, dotada de foral em 1273 por D. Sancho II, aí se incluindo o actual concelho de Montalegre e de Boticas, mas também o antigo concelho minhoto de Vilar de Vacas - do qual faziam parte as terras de Arco, Botica, Espindo, Frades, Paradinha, Ponte, Quintã, 11
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Roca, Soutelos, Santa Leocádia, Vale, Vila e Zebral - localidade hoje designada por Ruivães, uma freguesia situada na margem esquerda do rio Rabagão, nas fraldas da Serra da Cabreira, parte do concelho de Vieira do Minho. Como todas as regiões, também a “região natural barrosã” tinha e tem ainda nos dias que correm, tradições, características, psicologias próprias e hábitos ancestrais, herdados e transmitidos tantas vezes de viva voz, através das sucessivas gerações. Desde as terras flavienses de Soutelinho da Raia, até à minhota Ermida, fronteiriça a Fafião, passando por terras de Ruivães até à região de Basto, muito próxima da vila montalegrense de Salto, o modus vivendi deste povo tradicional e em muitos casos ainda comunitário, depara-se-nos com uma cultura secular, um «falar» próprio e uma sabedoria que se arrasta desde tempos imemoriais que urge preservar, reavivar e transmitir às gerações vindouras. Uma singularidade de usos e costumes, de crenças, de superstições, de certos rituais, e de um “falar local” que dentro da própria região, incluindo o léxico, mesmo variando de aldeia para aldeia, de concelho para concelho, não pode ser apagado da memória barrosã. Entre outros, os hábitos ancestrais de vida comunitária agro-pastoril, o folclore, os romances medievais, os provérbios do povo sábio, as cantigas de amigo e saudade e até a pronúncia a que já tive oportunidade de me referir, formam um conjunto de manifestações culturais, que devem ser preservadas e tomadas na devida conta. Em termos económicos, Barroso foi sempre uma região pobre!... Como principais actividades, predominou em toda a sua vasta área e desde tempos longinquos, a 12
Domingos Vaz Chaves agricultura de subsistência, realçando-se o cultivo da batata e do centeio, a criação de gado bovino de raça preferencialmente barrosã, ovino, caprino, suíno, e só mais recentemente, a construção civil, a pequena e média indústria, o comércio, os serviços e o turismo, começaram a dar os primeiros passos. Os trabalhos árduos no campo, de sol a sol, com a ajuda dos animais, deixavam pouco tempo aos habitantes das aldeias para grandes folias, já que o lema do homem desta região sempre foi o de trabalhar para viver e viver para trabalhar. Porém, ao domingo, dia de ócio e de “ida à missa”, realizavam-se de modo recorrente e entusiasta, as tão apreciadas “chegas de bois”, que ontem como hoje, ainda que nos nossos dias com uma prática bem mais reduzida, constituíam uma forma de reunião e convívio entre os barrosões. Um povo trabalhador, humilde, unido, recto, bom anfitrião e leal às suas raízes culturais e que persiste em falar dos saberes e práticas ancestrais através dos tempos, suscitando mormente a curiosidade, o interesse e a atenção de estudiosos, jornalistas e escritores. Um povo também essencialmente crente e arreigado, que segue fielmente os costumes e as tradições herdadas, estritamente católico e pioneiro na instituição do comunitarismo, hoje em vias de extinção, e que era visível nas fainas agrícolas, designadamente no arranque das batatas, carretos da lenhas, desfolhadas do milho, vindimas, malhadas, segadas do centeio e do feno, que de certo modo contribuiam para a manutenção do folclore local, bem como para a rega, conservação de caminhos, dos moinhos, das vezeiras, do forno, ponto de encontro entre os habitantes das aldeias, hoje ultrapassado pelos cafés e também do “boi do pobo”, sinal particular e supremo de cada aldeia. Como já se afirmou, desde as terras - hoje flavienses de Soutelinho da Raia, passando por terras de Ruivães até à região de Basto, pela fronteira com o Couto Misto – um “país” agora abandonado com 800 anos de História -, até à minhota Ermida, fronteiriça a Fafião, tudo era Barroso. Definir a sua cultura, será por isso um pouco como “olhar para a nossa alma, a nossa identidade, a nossa maneira de ser, de viver, de estar no mundo” e de dizer – nós somos Barrosões com muito orgulho. Este livro, é pois o resultado de um processo histórico, é o povo Barrosão em movimento, são as nossas raízes e como se espera, seja também o “passaporte válido para o futuro”... ... 13
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região CAPITULO II ASPECTOS GERAIS 14
Domingos Vaz Chaves A História Ainda que as perspectivas não sejam unânimes entre os vários estudiosos relativamente à génese do topónimo Barroso, dado que enquanto uns remetem para uma origem celta, outros advogam que “está, não em nomes próprios ou derivados, mas sim no material de construção – barros – com que a maior parte das casas dos nossos antepassados eram feitas”, e outros ainda, para uma proveniência do repovoamento basco de parte da Península Ibérica a partir de “Vale de Barrueso” no País Basco. Rui Guimarães, defensor desta última tese, conclui: “fica a certeza da sua origem pré-romana muito antiga, tal como o éthos socio-cultural e linguístico dos seus habitantes”. Seja qual for a sua origem toponímica, a realidade é que desde a Pré-história esta região montanhosa foi povoada pelo homem, ainda que não se tenham encontrado vestígios do seu modo de viver, devido talvez, à força do tempo que tudo apaga. Região Barrosã Os documentos mais antigos que se conhecem dos habitantes das Terras de Barroso datam da Idade da Pedra como o comprova a existência de dólmenes repartidos pela região, como afirma João Gonçalves da Costa: (…) “é extraordinariamente grande, o número de dólmenes no Alto Barroso, o que nos revela uma região muito povoada, nessa remota era pré-histórica.” Sabendo que os dólmenes são monumentos funerários, depreendemos que os habitantes desta época eram um povo vinculado à sua terra, aos seus antepassados e às suas tradições religiosas, manifestando preocupações com o além morte, erguendo rudes monumentos funerários para prestar culto aos seus mortos. 15
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Estes vestígios juntam-se a tantos outros que provam que a área do Barroso já era povoada na época dos metais, a acreditar nos vestígios que nos chegam da pré-história, se bem que a Idade da Pedra deixou mais vestígios que a Era dos Metais, sendo a maior parte dos achados metalúrgicos pertencente à época do bronze. Há conhecimento de diversos machados de bronze encontrados no termo de Cervos, Fírvidas, Medeiros, Cambeses do Rio, Solveira e Montalegre; de duas pontas de lança e um instrumento com forma de garfo de dois dentes, descobertos a sul da referida povoação de Solveira; e ainda duas fivelas, também de bronze, achadas em Carvalhelhos, aldeia do concelho de Boticas. Estes achados encaminham-nos assim para a amostragem do povoamento neste planalto barrosão há cerca de 3000 anos, onde predominava a utilização do bronze no fabrico de instrumentos de trabalho e nas armas de guerra, e demonstram o progresso nesta região bem como do povo que aqui habitava. Por volta do ano mil antes de Cristo, segundo Cuevillas, esta região foi habitada pelos Oestrímios, povo de origem ainda desconhecida, que ocupava o Nordeste Peninsular. Durante os cinco séculos que se seguiram, a região foi invadida por diversos povos indo-europeus, mais conhecidos pela nomenclatura de Celtas. A actual Galiza, com o território situado ao Norte do rio Douro, dominaram-na os Sefes, povo de filiação celta, que deve ter aqui chegado pelos fins do século VII antes de Cristo, ou nos princípios do século seguinte. Sepultura antropomórfica Os Oestrímios viviam nesta região há muito tempo, possuíam uma tradição multissecular de usos e costumes, eram detentores de uma cultura e de um modo de viver que se projectaram para os dias tormentosos da invasão Sefe. Sefes, ainda que menos numerosos, eram portadores de um talento exímio a trabalhar com um novo tipo de metal, o ferro, metal esse que permitia a elaboração de novas formas de utensílios bélicos e de alfaias agrícolas. Os Sefes dominaram o povo nativo, após longas lutas sangrentas, mas não aniquilaram os seus usos e costumes e os dois povos compreenderam que a 16
Domingos Vaz Chaves melhor maneira de conviver, seria interagindo e partilhando conhecimentos que levariam ao enriquecimento de ambas as partes. Esta colaboração e interacção de conhecimentos alteraram a atitude de todos os habitantes da região do Barroso, dando origem à cultura dos castros devido a factores extrínsecos. As frequentes invasões e lutas tribais causavam medo e inquietações permanentes, que levaram à construção de aldeias altamente fortificadas de forma a se protegeram das ameaças exteriores. Estas aldeias eram povoados fortes que ficaram na história com o nome de Castros. Os Castros eram normalmente erigidos no cimo de serras, que lhes facultavam a visão dos inimigos ao longe e dificultavam a sua conquista. Geralmente eram formados por um recinto protegido por muralhas, fossos, ou por um dispositivo de defesa natural. Dentro dos muros construíam-se as casas, que por norma, eram circulares e feitas em madeira, em pedra ou num material parecido com barro. Crê-se que a cobertura era feita com palha, tradição que se manteve ao longo dos séculos e que ainda recentemente era possível observar em certas casas barrosãs, a que se dá o nome de colmo. A cultura castreja teve assim larga difusão no Barroso e é extraordinariamente grande o número de castros encontrados nesta região. Braga Barreiros tentou inventariá-los e só no concelho de Montalegre registou cinquenta e três, mas sabe-se que esse número é muito maior, embora muitas destas memoráveis fortalezas tenham desaparecido, sendo só recordadas pelas toponímias que as evocam . Por sua vez, no concelho de Boticas conhecem-se actualmente vinte e sete castros, dos quais quatro, foram estudados sumariamente por Santos Júnior até 1951. Pelo estado de conservação e pela sua importância, de entre os ditos vinte e sete castros existentes, destacam-se dois - o de Carvalhelhos e o de Lesenho. O primeiro é uma das mais conhecidas estações castrejas do Noroeste Peninsular e está situado na aldeia de Beça, no cimo de um monte sobranceiro à estância termal de Carvalhelhos. O segundo, situado nas proximidades da aldeia de Campos, freguesia de S. Salvador de Viveiro, é classificado como imóvel de interesse público e considerado como o mais importante santuário castrejo lusitano existente em Barroso. Como já se referiu, foi precisamente o Professor Santos Júnior o descobridor e o principal estudioso de um dos Castros mais importantes das Terras de Barroso - o Castro de Carvalhelhos. Carvalhelhos é uma aldeia barrosã que faz parte da freguesia de Beça; assenta na vertente leste da Serra das Alturas de Barroso, a cerca de 800m de altitude e fica a 27 km de Chaves, para Sudoeste. No ano de 1950 fizeram-se as primeiras escavações e ainda nesse mesmo ano, foi classificado como “imóvel de interesse público” pelo Decreto n.º 38.941 de 6 de Novembro de 1951. O outro castro de extrema importância, já sendo considerado o mais importante castro em Portugal, classificado como imóvel igualmente de interesse público - D.R. n.º 29/90 de 17 de Julho -, situa-se no lugar de Campos, próximo da aldeia de S. Salvador de Viveiro, e é denominado por Castro do Lesenho. 17
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Neste castro, foi encontrado “O Guerreiro Calaico”, juntamente com outro exemplar, provavelmente no século XVIII, tendo sido posteriormente encontradas já no século XIX, mais duas estátuas acéfalas. Estas estátuas, segundo Santos Júnior, foram posteriormente transportadas para o adro da igreja de Covas do Barroso, tendo em 1782 seguido duas para Lisboa e outras duas levadas para Viana do Castelo e classificadas como estátuas de “guerreiros galaicos de Viana do Castelo”, não possuindo alguma referência que demonstre a sua proveniência barrosã. Essas duas estátuas que seguiram para Lisboa, são hoje o ex-libris do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia. Guerreiro Calaico As estátuas dos Guerreiros Calaicos ou castrejos são actualmente o expoente máximo da museologia nacional e representam, segundo os melhores especialistas nesta matéria, a imagem da divindade e o carácter guerreiro das civilizações castrejas que habitaram esta região. O Guerreiro Calaico consiste num monólito antropomórfico esculpido, erecto e em posição de parada, apresentando-se vestido com um sagum, com decote em V e manga curta, cingido por um cinturão com quatro nervuras paralelas. A cabeça é proporcionada, exibindo um cabelo curto e com pomo discoidal, introduzido numa 18
Domingos Vaz Chaves bainha com o conto de perfil circular e linhas transversais de possíveis travessas. Usa no pescoço um torque - peça de ourivesaria típica dos guerreiros da época, com aro aberto e em cada braço, uma víria de três toros. Do que se sabe com o achamento destas estátuas, os habitantes de Barroso, na época dos castros, vestiam possivelmente uma túnica de lã ou de linho, que descia do pescoço até um pouco acima do joelho, era relativamente larga e tinha mangas curtas. Também utilizavam um saião curto. Protegiam-se da chuva com uma capa negra de lã, semelhante ao sagum celtibérico. É provável que a esta capa se adaptasse um capuz, do qual pode ter derivado a actual capa de burel barrosã. O historiador Moisés Espírito Santo, acredita que as estátuas se referem ao guerreiro hebraico-púnico, guerreiro Viriato que significa invicto, como lhes chamavam os romanos, com o escudo como símbolo de independência. Este tipo de estátua foi mais difundida no norte de Portugal em contraposição à estátua do romano de toga, difundida no sul. Capa de burel Segundo Rui Guimarães, foram ainda descobertos dois bustos desta época, um de homem e outro de mulher, esculpidos no mesmo bloco de granito, assim como figuras labirínticas. Face a opiniões tão divergentes, acredita-se que a civilização 19
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região castreja barrosã, provavelmente do estrato Zelo dos Astures, deverá ser mais estudada. Com a chegada dos romanos, a região é atravessada pela via imperial e suas pontes, altura em que são também romanizados alguns castros, inicialmente pelas legiões imperiais e depois confirmados por administradores hábeis. Os romanos legaram para a posterioridade grandes marcas culturais como a língua, as letras, os costumes, a legislação, as instituições políticas, administrativas e sociais do Império que ainda se podem verificar de forma vincada no povo e na cultura, bem como nos vestígios arqueológicos. A presença do Império Romano em Barroso, ficou assinalada até hoje, pelas vias romanas, pelas pontes, pelos marcos miliários, pelas moedas imperiais, pelos monumentos funerários, pelas esculturas, pela exploração mineira, pelos mosaicos e ainda por diversos utensílios de artesanato que vão surgindo em várias escavações um pouco por toda a região, sendo mais tarde catalogados e expostos no Museu de Chaves, que outrora foi apelidada de Aquae Flaviae, sendo uma das cidades mais importantes, para os romanos, no norte de Portugal. Existiram, nesta região Barrosã, outras cidades romanas: Praesidium - em Vila da Ponte, chamada popularmente como Sabaraz, e Caladunum - em Gralhas, das quais há alguns vestígios. Estas cidades eram atravessadas pela via romana que ligava Braga a Chaves, com três variantes ou itinerários diferentes em épocas possivelmente diferentes. Em certo sentido, poder-se-à afirmar que Barroso no tempo dos Romanos, era atravessado por três vias imperiais. A primeira é-nos indicada por Jerónimo Contador de Argote, que registou o seguinte itinerário: Braga, diversas povoações até Ruivães, Santa Leucádia, Vilarinho dos Padrões, Codeçoso de Arco, Porto dos Carros, Lama do Carvalhal, Currais, Subila, Breia Gea, Cambela, Pisões, Cruz do Leiranco, Penedones, Travassos da Chã, S. Vicente da Chã, Peireses, Codeçoso, Ciada, Solveira, Soutelinho, Castelões, Seara Velha, Pastoria, Casas dos Montes e Chaves. O Bispo de Uranópolis, que mandou observar e medir as vias romanas da diocese de Braga, registou duas estradas entre Braga e Chaves, com itinerários diferentes. De Braga a Ruivães seguem caminho idêntico; depois, uma delas entra em Barroso por Vilarinho dos Padrões e segue por Codeçoso do Arco, Porto dos Carros, Lama do Carvalhal, Subila, Breia, Pedreira, Gea, Vila da Ponte, Cruz do Leiranco, Penedones, São Vicente, Peireses, Portela da Urzeira, Casais, Viduedo, Castelões, Ervedelo e Chaves. A segunda via indicada pelo Bispo de Uranópolis passa pela região de Salto em direcção a Boticas e Chaves, servindo as seguintes localidades barrosãs: Zebral de Ruivães, Bustelo, Linhares, Cruz de Penascais, Amear, Bezerrinhos, Covelo do Monte, Atilhó, Carvalhelhos, Quintas, Boticas, Granja, Sapiãos, Casas Novas, Ribeira de Curalha, Casas dos Montes e Chaves. Realmente a maior obra pública, mais útil e mais magnífica, em que os Romanos se mostraram soberbamente famosos, foi a das estradas reais chamadas vias militares distribuídas não só por Itália, mas por todas as terras do seu vasto Império. Ao longo do seu percurso, as vias romanas tinham marcos miliários que marcavam a distância de mil em mil metros por monólitos geralmente cilíndricos, 20
Domingos Vaz Chaves que por vezes também indicavam os nomes, a filiação, os cargos exercidos e os títulos honoríficos dos imperadores. Fala-se ainda da construção e reparação da mesma via e dos títulos honoríficos de quatro imperadores: Adriano, Cláudio, Tibério e Trajano. São ao todo doze marcos, que testemunham a presença actuante de Roma em Barroso. Daqui se pode depreender, que a região do Barroso era um importante local de passagem para as legiões romanas, bem como um local desenvolvido em que já existia uma hierarquização no povo. Ainda do tempo da romanização, tem-se conhecimento de duas localidades do concelho de Montalegre, onde foram encontradas moedas romanas, a saber, Penedones e Paredes (Salto). Já no concelho de Boticas podem-se salientar as moedas dos Imperadores Constantino Ducas, encontradas em Covas de Barroso em 1880, e a de Adriano, achada em Pinho em 1900 e relatadas por João Costa. Em Penedones apareceram 15 moedas, dos imperadores Trajano e Vespasiano. Vários autores se lhes referem, mas não se encontrou descrição pormenorizada. Marcos Romanos O achado monetário de Salto compreende cerca 3000 moedas, descoberto em 11- 2-1954 nas Fragas do Piago, próximo das Minas da Borralha, freguesia de Salto, por um grupo de trabalhadores que pesquisavam volfrâmio na propriedade de Domingos José Martins, da Casa de Barroso, de Paredes. É provável que este tesouro constituísse o pecúlio de algum proprietário local ou pertencesse a pessoa influente da região, rica em minérios de estanho e outros, e portanto naturalmente conhecida e porventura explorada pelos Romanos. Com efeito, era a Península Ibérica que mais contribuía para encher os cofres do império romano, uma vez que os principais jazigos auríferos se situavam no Noroeste Peninsular, desde as Astúrias a Trás-os-Montes. No limiar do século V, enquanto a Espanha romana se debatia em lutas internas, quatro povos bárbaros de origem germânica invadiram a Península Ibérica, a saber, Alanos, Vândalos, Suevos e Visigodos. Os primeiros anos são tempos de 21
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região violência e de destruição até que entenderam que precisavam viver em paz uns com os outros e com os nativos. Por tal motivo resolveram compartilhar as terras conquistadas. Os Suevos ficaram com a Galiza, que naquele tempo compreendia todo o território do noroeste peninsular situado ao norte do rio Douro. Fundaram um reino com sede em Braga e foram alargando os seus territórios até Lisboa. Após 174 anos de poder são tomados por Leovigildo, rei dos Visigodos. Entrando na Península Ibérica em 414, os Visigodos fundaram um reino cuja capital se veio a fixar em Toledo. Chegaram a dominar toda a Hispânia durante 126 anos até à invasão árabe. Os Mouros entraram na Península Ibérica em 710. No ano seguinte, vencendo os Cristãos na batalha de Guadalete, deram golpe de morte à monarquia visigótica. A campanha de ocupação durou cerca de sete anos e as milícias árabes foram conquistando sucessivamente as povoações espanholas e portuguesas. A Terra de Barroso, região situada na via de ligação entre Braga e Astorga, deve ter caído nas mãos dos Mouros em 716. Como aconteceu em diversas localidades, também os barrosões sofreram o ódio e a perseguição mourisca. Entretanto, submetendo-se aos invasores, viveram em relativa paz com eles, pagando-lhes pesados tributos. Dos Mouros, não há indícios documentais que atestem a sua presença, exceptuando a tradição oral que lhes atribui tudo quanto de extraordinário e antiquíssimo existe. De 716 a 753, nada se sabe acerca do Barroso. Nessa altura porém, o rei Afonso I de Oviedo organiza uma investida contra os sarracenos, tomando-lhes Chaves, Braga, Viseu e Porto e o norte do Douro nunca mais foi dominado completamente pelos mouros. Ainda que a ocupação mourisca tenha sido breve, bastou para marcar de forma profunda a mentalidade desta região, como se pode comprovar tantos séculos depois, através dos numerosos topónimos que recordam aquela passagem por estas paragens: Terra de Mouros, Fonte da Moura, Castelos dos Mouros, Fornos dos Mouros, Eira dos Mouros, Pedra da Moura, entre outros. Dos mouros ficaram ainda numerosas lendas relacionadas com mouras encantadas e mouros que esconderam preciosos tesouros em castelos abandonados e escondidos. Desde 753 até ao surgimento da nacionalidade portuguesa em 1143, o Barroso pertenceu à monarquia neo-gótica fundada por Pelágio. Foram anos de ardente cruzada entre os cristãos e os infiéis que pretendiam reconquistar a independência política e religiosa. Esta luta constante exigia um enorme contributo de homens, dinheiro e mantimentos que eram fornecidos pelos diversos povos da região. Para evidenciar as várias vitórias dos cristãos sobre os infiéis, foram construídos mosteiros e igrejas entre os quais se destaca o Mosteiro de Santa Maria das Júnias em Pitões, supondo-se que remonta ao século IX, seguindo de início a Ordem de São Bento, e a partir do século XII a Ordem de Cister e a Igreja de São Vicente da Chã, presumivelmente também do século IX. Com o nascimento da nacionalidade, D. Afonso Henriques doou porções de terra ou coutos onde floresceram albergarias (Salto), hospitais (Vilar de Perdizes e Dornelas) ou mosteiros (Pitões). 22
Domingos Vaz Chaves Sendo uma zona de fronteira com o reino da Galiza, são erguidos com preocupações defensivas os castelos do Gerês e da Piconha e mais tarde do Portelo e de Montalegre. O castelo de Montalegre foi erigido sobre um castro, tem quatro torres e uma enorme e profunda cisterna no terreiro central. É circundado por duas rodadas de muralhas parcialmente destruídas e a sua Torre de Menagem dionísia, tem 28 metros de altura que permite vislumbrar as altas serranias que a rodeiam. Sem certezas, pensa-se que este castelo foi mandado construir no reinado de D. Afonso III por volta de 1273 e reedificado em 1331, no reinado de D. Afonso IV, o Bravo. Mosteiro de Pitões das Júnias Ainda nesta região, são atribuídos forais a Tourém, provavelmente por D. Sancho I em 1187 como cabeça das Terras da Piconha. Só em 9 Junho de 1273 é que D. Afonso III em carta de foral, funda a vila de Montalegre e o respectivo Alcácer tornando-se cabeça das Terras de Barroso. Este foral é depois confirmado por D. Dinis em 1289, D. Afonso IV em 1340, D. João II em 1491 e D. Manuel em 1515 converte-o em foral novo. Na sequência da Guerra da Independência, no reinado de D. João I, as Terras de Barroso são oferecidas a D. Nuno Álvares Pereira, Condestável do Reino, que casou no Concelho de Montalegre, na freguesia de Salto, com D. Leonor Alvim, viúva de um senhor de Barroso, de avantajado património territorial. Foi, segundo a lenda, no Monte da Corneta, que foram treinadas as tropas que haveriam de combater depois em Aljubarrota. As Terras de Barroso só voltariam às páginas da história portuguesa após assistirem à passagem do exército napoleónico, em princípios de 1808, sob o comando de Soult, e no seu regresso, dois meses depois, este exército foi ferozmente perseguido pelo exército luso-inglês, tendo escapado por pouco pela ponte da Misarela, isto sem que antes tenham travado violenta luta com os barrosões que lhes provocaram problemas de monta em 1809. 23
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Conta-se que por ocasião das invasões francesas em 1808, os moradores de Boticas tiveram necessidade de esconder todos os seus haveres a fim de se protegerem das pilhagens dos invasores. O vinho não fugiu à regra!... Foi engarrafado e de seguida enterrado. Mais tarde e após a partida dos invasores, o vinho foi desenterrado e para surpresa e gáudio das pessoas, este adquiriu qualidades excepcionais, mais apurado e agradável ao paladar, antes desconhecidas. Tornou-se tradição enterrar o vinho que perdura até aos nossos dias e é actualmente conhecido como vinho dos mortos. No seu recolhimento, afastados dos grandes centros populacionais e políticos do país e separados da Galiza por montanhas pouco acessíveis, as gentes do Barroso, excluídas algumas correrias e escaramuças, foram sempre poupadas a lutas fronteiriças sangrentas. Castelo de Montalegre Os poucos conflitos militares aqui registados revestiram preponderantemente o carácter de acções isoladas, por vezes de tipo guerrilha, ou limitaram-se a incursões pontuais com objectivos limitados. OS POVOS PROMISCUOS Do mesmo modo que só na década de noventa do século vinte se rasgou o véu do silêncio sobre os acontecimentos da aldeia do Cambedo no rescaldo da Guerra Civil espanhola, também a memória da existência e extinção do Couto Mixto, uma singular entidade organizativa, situada na raia seca galaico-portuguesa, só nessa altura foi resgatada e se deu de novo a conhecer. A história da aldeia de Cambedo 24
Domingos Vaz Chaves está intimamente ligada ao fim daquela experiência de organização comunitária, por mútuo acordo entre os estados português e espanhol. A aldeia do Cambedo, tal como as vizinhas Soutelinho da Raia e Lamadarcos, foram “povos mixtos” até 5 de Novembro de 1868, momento em que as três passaram a ser integralmente território português, na sequência da aprovação do Tratado de Limites, no qual eram designadas por “povos promíscuos”, depois de anos de negociações entre Portugal e Espanha. Até então, estes povoados eram divididos pela linha de fronteira política entre os dois Estados, dando-se a situação interessante de muitas casas serem divididas pela linha de fronteira, podendo a cozinha estar num país e o “sobrado” no outro, o mesmo é dizer, podia entrar-se por uma porta desde Portugal e sair-se por outra para Espanha. A moeda de troca nestas negociações foi a integração do “Couto Mixto”, até ali uma entidade política singular, por muitos considerada uma república democrática independente, no Estado espanhol. Contudo, esta troca aparentemente justificada para tornar mais difícil o contrabando, esconde uma decisão política com maior alcance, que era de interesse comum para os dois Estados: pôr fim à “anomalia” com sete séculos de história designada por Couto Mixto. 25
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região O COUTO MISTO – UMA “REPÚBLICA” COM 800 ANOS Vários autores situam a sua constituição formal no século XII, entre os anos 1143- 1147, e a sua origem no processo de independência de Portugal do Reino de Leão, numa época em que a divisão fronteiriça não estava definida. O Couto Mixto era um enclave com vinte e sete quilómetros quadrados de superfície, situado na Galiza, entre as serras do Pisco e do Larouco, limitado a sul pela fronteira portuguesa, com três povoações (Santiago, Rubiás e Meaus), que nunca tinham formado parte de qualquer um dos países desde a formação de Portugal, onde viviam entre seiscentos e mil habitantes. São várias as teorias sobre a origem do Couto Mixto!... Entre elas está a que sustenta que a sua fundação deriva de um foral concedido por Sancho I, outra defende que se tratou de um “coto de homiciados”, isto é, “uma jurisdição territorial donde os criminosos que não tivessem sido autores de falsificação de moeda, delito sexual ou religioso, poderiam redimir as suas penas” , e outra assente ainda na lenda da princesa desterrada, que teria sido salva por habitantes do Couto de morrer quando dava à luz, depois de ter sido apanhada ao cruzar a serra por um nevão, e que agradecida, lhes concedeu a independência e os privilégios. Diz-se que os habitantes do Couto Mixto desfrutavam de uma série de privilégios: tinham direito a decidir se queriam ser espanhóis ou portugueses ou não optar por nenhuma nacionalidade; não pagavam impostos nem a um país nem ao outro, nem podiam ser recrutados pelos respectivos exércitos; não necessitavam licença para portar armas; podiam cultivar o que quisessem, incluído tabaco, cujo cultivo estava estrictamente controlado, tanto em Espanha como em Portugal; não tinham a obrigação de usar papel selado oficial para nenhum tipo de acordos ou 26
Domingos Vaz Chaves contratos, obrigatório nos dois países; tinham permissão para transportar o que desejassem, sem risco de serem interceptados pelos agentes de autoridade de nenhum dos dois países, por um caminho neutral de seis quilómetros, o “Caminho Privilegiado”, que unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal. Dentro do perímetro do Couto Mixto, as autoridades portuguesas e espanholas não podiam entrar em perseguição de ninguém. Este privilégio talvez fosse uma reminiscência das suas origens, contudo, este direito de asilo nem sempre teria sido respeitado pelas autoridades dos dois países. Do mesmo modo, nem sempre foi cumprida a regra de recusar alojamento e passagem de forças militares pelo território do Couto ante a superioridade numérica destas. Foi o que aconteceu aquando das invasões francesas comandadas pelo Marechal Soult; com o contingente militar português de 700 soldados, seguidos por 300 mulheres, comandado pelo General Saldanha, em 1851, na sua retirada para a Galiza durante as Guerras Liberais, que pernoitaram uma noite no Couto Mixto a caminho de Lobios, ou com a ocupação por pequenas unidades militares galegas ou portuguesas, por ocasião das destruições das plantações de tabaco. Estas decisões, a integração dos povos promíscuos em Portugal e do Couto Mixto na Galiza, é pois a “estória que se segue para melhor compreender a verdadeira História desta “república” que durou 800 anos. No entanto, pouco se fala de uma república democrática, com os governantes eleitos directamente pelo povo, que existiu durante cerca de sete séculos, do XII ao XIX, em plena Península Ibérica, região pouco afeita à democracia nesse período e que mesmo no século XX passou por breves hiatos de liberdade na sua triste história de sangrento totalitarismo, só conhecendo a democracia há menos de meio século. 27
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região Essa república, que o historiador galego Luiz Manuel García Mañá chama de “Unha República Esquecida”, foi um Estado independente de Portugal e Espanha situado no vale do Rio Salas, na região fronteiriça entre a Galícia, nos Concelhos de Calvos de Randin e Baltar, na Província de Ourense, e as terras portuguesas de Barroso, no Concelho de Montalegre. O “Caminho Privilegiado” unia as três povoações do Couto Mixto com a localidade portuguesa de Tourém, atravessando território de Espanha e Portugal Era formado por três aldeias, Santiago, Rubiás e Meaus, que teve os seus direitos e privilégios reconhecidos por Foral outorgado por Sancho I possivelmente em 1187, ainda no século XII, quando Portugal lutava para ser reconhecido como nação independente do reino de Castela e Leão. Muito embora não se tenha certeza da origem dos privilégios concedidos à população do “Couto Mixto”, imagina-se que tenha relação com a proximidade do Castelo da Piconha, uma fortaleza construída sobre um velho castro luso-romano de fundamental importância na defesa da fronteira entre Portugal e a Galiza quando este último reino era dependente de Castela e Leão. O Foral foi renovado por Afonso II (1185 – 1233) e Afonso III (1210 – 1279), sendo que este último condicionou os privilégios à obrigação dos habitantes do Couto de ajudarem na defesa da Piconha em caso de ataque inimigo. A relação entre a obrigação da defesa do Castelo da Piconha e os inusitados privilégios dos habitantes do Couto é reforçada pela confirmação do antigo Foral por D. Denis (1261 – 1325), que o faz quando da restauração da fortaleza, e por D. João I de Avis (1357 – 1433), que manda reconstruí-lo após sua completa destruição pelos castelhanos em 1388. Assim também fez D. Manuel (1495 – 1521), que concedeu novo Foral em 1515, quando mais uma vez a fortificação foi ampliada. Mas, se os privilégios dos habitantes do “Couto Mixto” se originaram na defesa do Castelo da Piconha, continuaram existindo durante o período da União Ibérica (1580 – 1640) quando já não fazia sentido a defesa das fronteiras dos dois reinos unificados sob a Dinastia Filipina dos Habsburgos, e mesmo depois da completa destruição da fortaleza em 1650, 28
Domingos Vaz Chaves nas guerras que se seguiram à Restauração. Assim, os habitantes do Couto continuaram elegendo os seus governantes que tinham poderes administrativos e judiciais, tanto na esfera cível como penal, ao mesmo tempo em que legislavam sobre todos os temas de interesse da população, independentemente das leis espanholas ou portuguesas. A autoridade máxima local era denominada “Juiz”, escolhido em eleição directa pela população das três aldeias para um mandato de três anos, período após o qual ele próprio deveria convocar novas eleições. O Juiz era auxiliado por seis ajudantes, também eleitos, dois por cada uma das aldeias, chamados “homes de acordo”, que tinham competência para resolver os litígios mais simples e aplicar penas leves. Caso houvesse recalcitrância na submissão às penalidades sentenciadas pelos “homes de acordo”, estes requisitavam a actuação do “vigairo de mes”, pessoa escolhida para executar as decisões e que tinha o poder de nomear ad hoc dois homens do povo para ajudá-lo na tarefa. Além dos “homes de acordo” e do “vigairo de mes”, o Juiz era auxiliado pelos “homes bos” escolhidos pelos Conselhos de cada aldeia (“Concellos dos Pobos”). Muito embora a capital administrativa do “Couto Mixto” fosse a aldeia de Santiago de Rubiás, a eleição do Juiz a cada três anos era realizada em campo aberto, no vale do rio Salas, em local equidistante das três aldeias, onde os candidatos apresentavam suas propostas e planos de governo ao eleitorado antes da votação. Confirmando o “Nihil novi sub sole” do Eclesiastes, as regras eleitorais seculares do “Couto Mixto” já previam o instituto do recall ao determinarem que o Juiz eleito poderia ter o seu mandato cassado pelos eleitores, caso não fizesse 29
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região uma boa administração, o que era feito através de um plebiscito. A legislação do Couto, com base no direito consuetudinário, era guardada numa arca de madeira com três fechaduras, a “Arca das Três Chaves”, depositada na igreja de Santiago de Rubiás, sendo que só podia ser aberta com o uso simultâneo das três chaves, cada uma guardada por um representante de cada aldeia, o que significa que todas as decisões eram tomadas por unanimidade, já que o Juiz eleito, que ficava com a chave da sua aldeia, não podia abrir a arca sem a concordância dos demais. Além disso, a arca só podia ser aberta na presença, além dos detentores das chaves, de quatro homens de cada uma das aldeias, e com a presença dos “homes de acordo” eleitos nas mesmas. Infelizmente, muitos dos documentos seculares mantidos na Arca foram destruídos pelos soldados franceses do Marechal Soult em 1809, quando fugiam das tropas portuguesas e inglesas comandadas por Lord Wellington. Mas, segundo Luís Manuel García Mañá, no seu magistral “Couto Mixto-Uma República Esquecida”, nem tudo se perdeu, uma vez que “mais algúns dos documentos “deberon de ser agochados e protexidos, xa que anos despois se atopaban de novo na arca”. Dentre os documentos guardados na Arca estavam os Forais que desde o século XII garantiam aos habitantes do Couto diversos privilégios que iam muito além da inusitada possibilidade de auto-governo em plena idade média: o direito de livre comércio com Espanha e Portugal sem pagamento de impostos, podendo vender os seus produtos nas feiras e mercados dos dois países; o direito de possuir armas sem licença das autoridades; o direito de não contribuir com homens aos exércitos em caso de guerras; o direito de conceder asilo tanto a portugueses quanto a espanhóis fugitivos da justiça dos seus países; o direito à liberdade de cultivo e comércio, mesmo de produtos submetidos ao monopólio (“estanco”) das coroas vizinhas, como o tabaco (à época chamado “herba santa”); e o mais que inusitado direito ao “Camiño Privilexiado”, uma espécie de servidão internacional que saía de Rubiás, passava por Santiago e entrava em território português até Tourém, num percurso de aproximadamente seis quilometros por terrenos de Portugal, onde os habitantes do “Couto Mixto” não podiam ser incomodados pelas autoridades portuguesas por qualquer motivo, só podendo ser detidas por flagrante delito em caso de homicídio. A junção do direito de asilo a qualquer fugitivo dos dois países vizinhos com o direito ao Caminho Privilegiado dentro de Portugal, como era de esperar, transformou o antigo “Couto Mixto” num verdadeiro “depósito” de perseguidos da justiça, o que levou os dois reinos a se preocuparem com as consequências da manutenção dos privilégios feudais do Couto, principalmente depois da legislação que decretou o fim dos privilégios constitucionais dos coutos em Portugal (1834) e da “desamortización de Mendizábal” (1836) em Espanha, que estatizou todos os bens oriundos das obrigações feudais da igreja e dos mansos comuns. Ademais, o “Couto Mixto” estava geograficamente situado na região dos “pobos promíscuos”, aldeias galegas situadas na raia seca entre Portugal e Espanha, onde a fronteira cortava pelo meio três lugares - Soutelinho da Raia, Cambedo e Lamadarcos -, fazendo com que algumas casas tivessem algumas partes num país e e outras no outros, já que a linha fronteiriça não obedecia a acidentes naturais, mas pelo contrário, 30
Domingos Vaz Chaves passava por dentro de ruas e prédios residenciais, o que significava que a cozinha de uma habitação poderia estar sediada em terreno português e o “sobrado” em lugar da Galiza. Em 1864, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Lisboa estabelecendo novos limites na fronteira entre os dois países, ignorando o direito histórico-jurídico dos habitantes do Couto e anexando as suas aldeias ao território espanhol. Portugal, por sua vez, ficou com as três “aldeias promíscuas”, também ignorando a milenar tradição galega dos seus habitantes. A história dessa interessante experiência democrática ficou esquecida por mais de um século, já que não interessava aos governos ditatoriais dos países ibéricos a sua lembrança, só começando a ser resgatada após a democratização de Portugal e Espanha, já na quadra final do século XX. A DEMARCAÇÃO DO COUTO A Norte de Montalegre e para Oriente do local onde a fronteira se torce e a terra portuguesa avança pela regiões espanholas como um dedo, situa-se a aldeia de Tourém. O Couto Misto constituía outro dedo maior, paralelo ao anterior. Entre os cerca de 1200 habitantes (1857) que detinham privilégios especiais, uns eram espanhóis e outros portugueses, escolhendo qualquer deles livremente a nacionalidade que pretendiam: no momento da boda, colocavam um P (Portugal) ou G (Galiza) junto à porta de casa e bebiam à saúde de um dos reis (o que parece só ter sido verdade até à década de 40 do século XIX, altura em que receando serem incomodados pelas respectivas autoridades, fizeram desaparecer as letras substituindo-as por vários outros símbolos). Nos 2650 hectares por onde o Couto se entendia - segundo Vasconcelos e Sá que em 1861 levantou a planta dessa área, conjuntamente com D. José de Castro - eles viviam em três aldeias, comportando 250 fogos no conjunto, separadas pelo rio Salas: Meaus a Norte e Rubiás e Santiago, a Sul. A uni-las entre si e a Tourém existia uma “vereda privilegiada” ou caminho neutro, por onde circulava o comércio que se fazia 31
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região livremente. Esta situação muito antiga, foi unanimemente reconhecida tanto por parte de Portugal como de Espanha, que não se poderia manter, por ser particularmente propícia ao contrabando, e nesses terrenos se acoitarem também bandos de malfeitores, embora o próprio Presidente da segunda comissão mista reconhecesse, que à altura já não era assim e que as duas autoridades ali intervinham. Além disso, os seus moradores não pagavam impostos, nem tão- pouco os “tributos de sangue”, havendo no entanto e desde há muito, alcavalas dadas a um e outro país e à Casa de Bragança, seu senhorio e donatário. Até 1834, o juiz ou alcaide eleito pelos habitantes do Couto, era ratificado pelo juiz de Montalegre. Várias autoridades de ambos os lados, aí reunidas em 1819 haviam confirmado a sua pertença portuguesa, em virtude do foral que possuía a Casa de Bragança pelo sítio chamado Castelo da Piconha, pelo que ao nosso país pagariam também as multas por cultivarem tabaco que não fosse para uso exclusivo dos moradores. Do ponto de vista da jurisdição eclesiástica, dependiam de Espanha, tal como Tourém. A resolução da questão do Couto Misto, em cuja partilha o governo de Madrid nunca transigiu durante a demarcação preparatória do Tratado de 1864, foi talvez a que mais embaraços causou à comissão mista: nem a mais justa proposta portuguesa de divisão pelo rio Salas que fora apresentada desde o início, nem outras, demoveram a secção espanhola, apesar dos direitos provados, incluindo também o usufruto já muito antigo das pastagens do Couto por parte de três 32
Domingos Vaz Chaves localidades junto a Montalegre - Padroso, Donões e Sabuzedo, ou tãopouco, o desejo de muitos habitantes serem portugueses. Nos acertos diplomáticos, Portugal acabaria por renunciar a favor de Espanha, como esta sempre pretendeu, a “todos os direitos que possa ter sobre o terreno do Couto Misto e sobre os povos nele situados, os quais (…) ficam em território espanhol” - Tratado de Limites, 1864, art.º 7.º, tendo-se ainda acordado - art.º 22.º do mesmo Tratado, que os habitantes do Couto Misto que fossem súbditos nacionais, pudessem, se lhes conviesse, conservar a sua nacionalidade, pelo que tinham de o declarar no prazo de um ano perante as autoridades locais. A expressão popular provou que afinal a proposta portuguesa de demarcação havia sido a mais ajuizada. A ARCA ERA A LEI Uma imponência de pedra|... A igreja paroquial de Santiago tem paredes lisas, com excepção dos vitrais que enrubescem um altar opulento, talhado do chão ao tecto em dourado. Tem um enorme crucifixo ao centro, uma figura de São Tiago à direita e uma Senhora do Pilar à esquerda. Mas o que é verdadeiramente surpreendente, é que galgando o púlpito e contornando o altar, se encontra uma escadaria invisível aos olhos dos fiéis, que desce até uma câmara escondida no subsolo. Nessa cave, um espaço bafiento e mal iluminado, existe uma relíquia, uma arca antiga de madeira de carvalho e com três fechaduras. Dentro dessa arca estão reunidos os principais documentos que garantiram durante séculos a autonomia ao Couto Misto. Cartas 33
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região dos reis de Portugal e Espanha. Mas também as actas de todas as resoluções tomadas pelos juízes da lei, os representantes eleitos de cada aldeia e governadores do Couto Misto. Esse cargo continua a existir, embora hoje tenha um papel meramente simbólico. Mas, tal como no passado, cada um dos três homens tem em seu poder uma das chaves que abrem a arca. Só as três chaves conseguem abrir o baú. O mesmo é dizer que nenhuma resolução era tomada se não fosse por unanimidade. Nas aldeias ainda há várias casas com um P, um E ou um X, esculpido na pedra, por cima da porta. As famílias decidiam se queriam ter nacionalidade portuguesa, espanhola ou mista (mixta, em galego) de uma maneira muito simples: no dia do casamento, o homem tinha de fazer um brinde a um dos reis, diante de todos os vizinhos. A maioria, no entanto não brindava e marcava o X na parede, porque em caso de delito, seriam julgados pelos três juízes do Couto. “A prisão era aqui, no forno do povo”. “Os ciganos eram logo detidos, sem acusação nenhuma. Por isso é que existia um vigário de mês, que era um cargo de rotatividade mensal entre os homens do Couto, com função de vigiar o caminho privilegiado. O PAÍS DA MEMÓRIA Entre Meaus e Santiago há um enorme lameiro, a que toda a gente chama “a veiga”. Foi ali que o povo do Couto Misto votou a integração na coroa espanhola em 1864. O referendo foi cumprido segundo as leis do Couto. Um voto por família de pau no ar. Muitos queriam ficar do lado português mas desde logo ficou decidido que as três aldeias haveriam de permanecer juntas, para preservar a identidade. Outras 34
Domingos Vaz Chaves aldeias da raia passaram pelo mesmo processo, já que as linhas de demarcação fronteiriças eram ténues até ao século XIX. E na verdade, só uma povoação escolheu ficar do lado de Portugal. É por isso, que olhando para o mapa, Tourém parece ficar na ponta de um dedo, rodeado de Galiza. Os mistos, optaram por Espanha. Mas uma parte do antigo território, a encosta do Gerês, passou para as mãos de Lisboa. Os lameiros na zona de fronteira sempre foram pastados por vacas galegas e barrosãs”, garante quem por ali andou uma vida inteira passada em Tourém a traficar contrabando entre Portugal e Espanha. “Ninguém conhece aquela zona tão bem como os contrabandistas. Durante décadas, o usaram o caminho privilegiado (que já não oferecia outro privilégio senão o de um certo recato e do difícil acesso às autoridades) e os terrenos do que um dia foi o Couto Misto para carregar volfrâmio, azeite e bacalhau. A encosta do Gerês, que foi mista e hoje é portuguesa, nunca deixou de ser usada pelos rebanhos de Rubiás e Santiago, ao contrário dos de Meaus por estarem mais longe. Na aldeia de Rubiás e durante toda a vida, os pastores sempre levaram as vacas para Portugal e a fronteira nunca deixou de ser um marco pouco natural, para os “mistos”. “Há quantos anos ninguém me perguntava pelo Couto Misto”, constata Enrique Veloso durante uma visita feita à aldeia, depois de uma passagem por Tourém. “Sabe: o meu avô falava desses tempos, mas a partir dos anos de 1930 foi uma conversa proibida, porque havia a Guerra Civil e esse assunto ia contra a unidade nacional.” “Ia contra o cabrão do Franco, essa é que é essa”, riposta logo Aníbal Alvárez, sentado num caixote e apoiado numa bengala, boina galega a cobrir a cabeça calva. “Em minha casa sempre me disseram que eu era misto, que 35
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região o meu pai era revolucionário.” E o pai dizia-lhe que mesmo não sendo do seu tempo, ouvira as histórias dos homens que vinham de fora casar e estabelecer-se. “O meu avô falou de muitos assassinos espanhóis que vieram para aqui esconder- se, a pensar que não lhes acontecia nada”, comenta José Rodríguez. “Mas vinham todos enganados, porque com um crime desses aos ombros eram logo recambiados para Espanha. Ou para Portugal, se fossem portugueses.” Hoje, dizem os meus interlocutores que gostariam de voltar a ser mistos, como antigamente. “Rapaz, nós somos mistos, sempre fomos”. Aníbal outra vez: “Na nossa terra mandamos nós.” O terramoto de Lisboa destruiu os arquivos da fundação do Couto Misto e os primeiros relatos escritos datam do século XIII. Estas eram as terras da Piconha, incluíam as três aldeias do Couto, mais Tourém e um castelo construído no Gerês, cuja localização exacta permanece uma incógnita. É certo que D. Manuel I mandou reconstruir a fortaleza em 1515, e que três anos mais tarde, as populações de Rubiás, Santiago e Meaus se sublevaram contra o governador local António Araújo, por causa da imposição de imposto no caminho privilegiado. O corregedor de Riba Côa, António Correia, e o alcaide-mor da Galiza, José Escalante, condenaram o governador português do castelo da Piconha e também o espanhol do vale do Salas, e acordaram que a partir desse momento, o povo misto teria o direito a privilégios de autonomia para não ser vítima de novos abusos. Até ao século XIX, a pequena república de pastores manteria as suas regras medievais inalteradas. Em 1810, a Junta de Armamento do Reino da Galiza recebeu uma carta do prior de Celanova, que está guardada no Arquivo Histórico da Província de Ourense, acusando o território do Couto Misto de acolher um “número infindável de moços fugidos à tropa e de criminosos de toda a espécie”. E essa queixa desencadeou o processo que levaria ao fim do Couto Misto, com a assinatura do Tratado de Lisboa em 1864. Hoje, o vale do Salas esqueceu a história dos homens e regressou ao seu estado primitivo, o de uma criação esmerada da natureza. É uma república esquecida, uma Andorra que nunca o chegou a ser, como um dia disse o padre Lourenço Fontes. E no entanto, ao falar com um grupo de velhos, homens nomeados juízes, contrabandistas ou empresários, percebe-se que a mística dos mistos ainda não sucumbiu totalmente. É fim da tarde de junho, o sol presta-se à despedida e inunda agora o vale do Salas de um tom dourado. Escalam-se as fragas a meio caminho entre Tourém e Pitões das Júnias, aquelas que garantem a melhor vista do Couto. E nessa altura, no exacto momento em que uma águia plana majestosamente ao longo do rio, percebe-se que a fúria de fronteiras e a cobiça territorial acabaram com um país, para construir no lugar dele coisa nenhuma. ... 36
Domingos Vaz Chaves CAPITULO III A TERRA E A GENTE 37
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região A REGIÃO PÓS SÉCULO XVIII A Terra de Barroso, como sempre foi conhecido o território confinado entre a margem esquerda do Tâmega a Este, a Galiza a Norte, o Minho a Oeste e Sul, abrigava no seu seio várias terras com identidade jurídica e administrativa distintas. Caracterizava-se esta terra de Barroso, por uma paisagem marcada pelos amplos terrenos incultos, onde em vales e encostas abrigadas, se desenvolviam matas de carvalhos, encimadas por montes decorados de cabeços de granito, com matos de urze, carqueja e tojo. Nos vales onde corriam o Cávado, o Beça e o Rabagão, assim como os inúmeros ribeiros e regatos abundavam as lamas e os lameiros onde pastava o gado graúdo e miúdo, particularmente o gado bovino da raça barrosã. Nas encostas dos montes e terrenos mais agrestes surgiam as searas do centeio, pastavam os rebanhos de ovelhas e cabras. A Terra de Barroso é assim desde tempos imemoriais, um topónimo que ajuda a plasmar a identidade integradora de um povo, correspondendo ao nível do governo central – a Coroa e/ou a Junta da Casa de Bragança – a um território único e institucionalizado. Razão porque muitas vezes, se confundiam nos meandros da política régia e senhorial, conduzida a partir dos paços do Rei e dos paços do Duque da Casa de Bragança, as diferentes unidades territoriais e administrativas com a autonomia municipal dos concelhos. A partir de 1836 a administração e organização concelhia foi profundamente reestruturada para ir de encontro à nova ordem político-constitucional e responder ao quadro de poderes e competências que lhe eram atribuídos. O novo enquadramento jurídico- institucional pretendia exactamente colocar as câmaras ao serviço dos povos e do concelho, e abolir e cercear o poder da ordem senhorial nos municípios. Esta nova reorganização territorial dos concelhos, permitiu que pudessem ser levados a cabo os grandes ideais reformistas liberais, a caminho de uma uniformização do poder e do exercício de governo, permitindo conseguir e realizar os meios para tal fim: os meios populacionais e com eles os económicos, que proporcionassem condições de natureza social e política e também os recursos financeiros que lhes permitissem cumprir e corresponder aos novos desafios, poderes e competências que a reforma liberal lhes cometia. E também a implantação de um novo sistema eleitoral para as câmaras, mais aberto e participativo das populações. O decreto de 20 de Março de 1827, um dos documentos principais que serviu para reestruturar a reforma administrativa e territorial de 1832-1836 já alinhava as ideias centrais que propugnava para o município liberal estabelecendo os novos objectivos e enquadramentos: “por um lado atendendo à comodidade dos povos é necessário que as divisões, cada uma em sua espécie não sejam demasiado grandes, por outra parte, a economia da Fazenda, a boa proporção dos ordenados, a capacidade dos funcionários públicos e a facilidade no desempenho dos seus deveres nos obriga a dar-lhes uma certa expressão”. Conseguir encontrar o ponto certo entre os interesses dos povos e os do Estado em conjugação com a capacidade do novo aparelho administrativo, era o que estava contido nas propostas da reforma administrativa. O mapa dos concelhos transmontanos saído da Reforma de 1836 e reformas pontuais posteriores, veio assim apresentar uma realidade institucional, demográfica e territorial concelhia muito mais equilibrada e dimensionada. Só para se ter uma ideia, em Trás-os- 38
Domingos Vaz Chaves Montes dos 81 concelhos existentes passou-se para um total de 27. Ficou profundamente alterado e simplificado de acordo com a nova filosofia institucional, criando uma rede concelhia mais equilibrada, assim como uma melhor racionalidade administrativa do território transmontano. A Província de Trás-os- Montes, que estava dividida em quatro comarcas, passou a estar dividida em dois distritos - Bragança e Vila Real, ficando este último com 14 concelhos demograficamente mais equilibrados, ainda que do ponto de vista da extensão do território, permanecesse algum desequilíbrio, que se justifica pelo perfil montanhoso do Distrito, destacando-se ao lado dos grandes concelhos de Montalegre, Boticas, Chaves ou Vila Real os pequenos concelhos de Mesão Frio, Santa Marta de Penaguião ou Peso da Régua. Facto mais assinalável desta nova composição concelhia e distrital, foi em primeiro lugar, a extinção definitiva das mais pequenas e inorgânicas unidades administrativas municipais e a sua integração nas unidades maiores. Tratou-se sem dúvida, da mais drástica redução do número dos concelhos e por ela da mais profunda afectação de quadros de vida social e moral da população portuguesa, nalguns casos verdadeiro «quadro natural» da sua existência. Sem dúvida a mais radical machadada no Portugal velho e tradicional e cuja extinção afectaria profundamente o quadro das referências políticas, sociais e até afectivas das populações que dificilmente aceitariam tais medidas e se congratulariam com o novo Regime. Dificilmente elas integrariam nos novos quadros político-administrativos a que foram anexadas, aos quais sempre resistiriam em luta pela restauração dos seus concelhos, constituindo em muitos casos, ainda hoje, suportes de um relativo modo de estar nos concelhos e de personalidades políticas ainda latentes e activas nos territórios. As mais pequenas unidades foram extintas logo no primeiro momento e abrangidas no Decreto de 6 de Novembro de 1836: Água Revés, Atei, Barqueiros, Dornelas, Ervededo, Fontes, Galegos, Godim, Gralhas, Lordelo, Meixedo, Couto Misto (de Barroso), Moura Morta, Padornelos, Parada de Pinhão, Ribatua e Tourém. Outras unidades administrativas não resistiram à segunda fase da reforma do século, plasmada no Decreto de 31 de Dezembro de 1853: Alfarela de Jales, Canelas, Carrazedo de Montenegro e Vila de Failde, Cerva, Ermelo, Favaios, Guiães do Douro, Monforte de Rio Livre, Goivães do Rio e Provesende. Estas pequenas unidades extintas – concelhos, coutos e honras – integraram e compuseram os novos e alargados concelhos que se criaram e sobreviveram às reformas administrativas e territoriais de 1836 e 1853. Outras foram extintas e restauradas. É o caso de Mesão Frio, extinta em 1836 e restaurada posteriormente; Sª Marta de Penaguião, extinta em 26 de Setembro de 1895 e restaurada a 13 de Janeiro de 1898; Carrazedo de Montenegro, extinto em 1836 foi restaurado e definitivamente extinto em 1853. Nesta reforma destaca-se a fundação de três novos concelhos. Logo em 1836 foi a fundação do concelho Boticas, constituído na sua grande parte, com freguesias do concelho de Montalegre. Concelho que veio a passar por alguma instabilidade, resultado do período político conturbado por que passou o Reino, de tal forma que foi extinto em 26 de Outubro de 1895, vindo a ser restaurado definitivamente a 13 de Janeiro de 1898. O concelho de Boticas é, assim, no plano histórico uma terra ancestral com uma história antiga que os vestígios arqueológicos evidenciam e os diversos 39
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região castros testemunham, e no plano administrativo é uma realidade e instituição muito recente de um Portugal novo saído das Reformas Liberais. Ele é uma criação do Liberalismo Português do século XIX emergindo com as grandes reformas da administração e da divisão territorial portuguesa desencadeadas pela segunda Revolução Liberal de 1832. A nova legislação, instituiu no quadro da divisão administrativa territorial os Distritos de Vila Real e Bragança, divisão que em grande parte assume em termos territoriais, o ordenamento espacial, que no Antigo Regime, era desempenhado pelas comarcas. Do ponto de vista da divisão concelhia o facto mais assinalável na reformulação da carta dos concelhos da banda ocidental da Província transmontana, foi sem dúvida, a criação e institucionalização do concelho de Boticas, que integra o elenco dos concelhos do decreto de 6 de Novembro de 1836. Trata-se em grande medida de uma criação inesperada. Com efeito, de um modo geral, a criação de novos concelhos em 1836 é o resultado de uma longa luta de reivindicação autonómica, assente em fundamentos que os mentores da proposta de criação sempre apresentaram aos poderes políticos, assentes até muitas vezes em actos de rebeldia e resistência mais ou menos activa, relativamente às unidades administrativas de que se querem separar, o que não parece ter-se verificado para Boticas. A criação do concelho de Boticas não aparece, a título de exemplo, na proposta do novo desenho concelhio para a comarca de Chaves, elaborado em 1796 por Columbano Pinto R. de Castro, como solução para o redimensionamento territorial do concelho de Montalegre, que se pretendia reduzir em extensão para melhoria da sua administração. E também relativamente ao território (no todo ou em parte) que virá a configurar o futuro concelho de Boticas, convém referir que por agora não se lhe conhece também nenhuma marca de distinção, princípio político- administrativo activo ou actuação e movimentação que promova a diferenciação deste espaço no conjunto do território de Montalegre. Nem se conhecem, por agora também, reivindicações sociais ou políticas vindas do seu território, de algumas das suas paróquias ou de alguns dos seus agentes sociais mais dinâmicos que se manifestassem e exprimissem com evidência pela criação do concelho no período que antecede 1835/36. O concelho de Boticas aparece-nos, pois, claramente, mais como a criação de uma unidade política em resultado do espírito e dos objectivos que presidem à reforma administrativa de 1836, levada a cabo pela Revolução Setembrista marcada por um cunho social e político mais radical e descentralizador, naturalmente favorável à criação de novas unidades administrativas. Ao seu encontro irão naturalmente as forças vivas das terras sedeadas em Boticas, que viram nela a possibilidade de afirmação de um novo espaço político-administrativo, minorar sem dúvida os custos de uma articulação a um concelho, cuja sede se encontrava demasiado longínqua, e por ela promover o desenvolvimento do novo território. Como já vimos o concelho de Boticas passa mesmo assim por um período de convulsões próprio de uma instituição jovem que tem que criar caminho, consolidar instituições e ganhar espaço político de afirmação. Nos termos do decreto que o criou, o concelho de Boticas ficou com 17 freguesias, a saber: Alturas do Barroso, Anelhe, Ardãos, Beça, Bobadela, Canedo, Cerdedo, Cervos, Codeçoso, Covas do Barroso, Curros, Dornelas, Eiró, Granja, Pinho, Sapiãos, e Vilar de Porro. Em 1836 o concelho de Boticas surge com uma 40
Domingos Vaz Chaves população aproximada de 7 684 habitantes para 1 921 fogos, que no cotejo com os outros concelhos o coloca em 4º lugar à frente de Montalegre com 1778 fogos, Vila Pouca de Aguiar com 1891, constituindo uma unidade institucional equilibrada do ponto de vista territorial e demográfico. Esta formação não é definitiva, vindo ao longo dos anos a perder e anexar novas freguesias, surgindo ainda algumas dúvidas a partir de alguns documentos. É o caso de Fiães do Tâmega, que em 1834 tinha sido criada paróquia vindo a fazer parte do concelho de Ribeira de Pena para mais tarde se fixar no concelho de Boticas. As freguesias de Anelhe, Canedo e Cervos deixaram de fazer parte do concelho, vindo porém a ser criada a freguesia de S. Salvador de Viveiro em 28 de Janeiro de 1967, sendo o concelho de Boticas, hoje, constituído por 10 freguesias, com sede na Vila de Boticas e cujo nome antigo era Eiró. A CULTURA BARROSÃ NESTA ÉPOCA Uma cultura é um modo diferenciado de estar na vida por parte de um grupo de pessoas, num local e num tempo específico. A cultura abarca todas as influências que emanam dos valores, normas e crenças. O território está organizado em pequenas comunidades, com uma economia de subsistência fortemente baseada em valores, como o interesse colectivo a solidariedade e entreajuda, a propriedade individual, o trabalho, as relações familiares, a ética e a religião. São sentidas ainda as reminiscências da cultura celta, nomeadamente na prática da defesa da família, da propriedade e do entendimento da aplicação da justiça. O volume V do Guia de Portugal dedicado a Trás-os-Montes e editado pela Fundação Calouste Gulbenkian refere-se a Barroso com \"uma grande unidade geográfica que estabelece uma transição entre o Baixo Minho e Trás-os-Montes oriental. No ponto de vista humano apresenta profundas semelhanças com o Minho montanhoso. A pobreza do solo e a aspereza do clima não permitem uma cultura remuneradora dos cereais. Por outro lado, a abundância das precipitações explica a extensão dos magníficos pastos naturais designados por lameiros, que garantem o sustento de numeroso gado. São as condições excepcionais de solo e de clima que fazem de Barroso a região por excelência de pecuária. As pastagens ocupam os fundos e as vertentes dos vales, ou seja, as terras mais ricas humedecidas pelas águas, que conduzidas por um sistema de canais rudimentares escavados na terra, dão à erva uma frescura constante. Mesmo no mês de Agosto, as lamas conservam um tom verde e tenro que não se encontra senão raramente no resto da província. A percentagem de cabeças de gado por hectare - 15 por 100 hectares – no concelho, dá-nos uma ideia exacta da importância dos bovinos na região, isto muito embora o boi de Barroso, de pequena estatura, sóbrio e resistente, tenha deixado de ser na actualidade um animal de trabalho. As vacas, ao fim de dois ou três anos podem servir ainda para o trabalho ou hoje mais usualmente para reprodução. Ao contrário da vaca mirandesa, a barrosã é também leiteira. O seu rendimento, porém, nesse aspecto, é pouco elevado, porque, aqui, pretende-se sobretudo, fazê-la reproduzir ao máximo. Os lavradores de Barroso, essencialmente criadores, vendem os vitelos normalmente aos lavradores do Minho. É aí que o animal dá toda a sua medida, 41
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região servindo para o trabalho, a reprodução e fornecimento de leite. Os pastos irrigados de Barroso são um dos traços mais característicos da rude paisagem de planaltos, que eles contribuem fortemente para alegrar. Separados quase sempre por biombos de carvalho e muros de pedras soltas, encontram-se em geral perto das aldeias, mas estendem se com frequência também, até bastante longe, a par dos riachos. Aqui não se conhecem as pastagens temporárias de semeadura, alternando com outras culturas, como é o caso do Minho. Na região montanhosa de Barroso, a criação de gado faz-se independentemente do cultivo agrário e limita-se quase exclusivamente a certas pastagens irrigadas que fornecem erva abundante. Deverá no entanto acrescentar-se, que a batata, os nabos e as sobras das culturas dos milhos também servem para o sustento do gado. Nos terrenos mais secos das encostas e dos planaltos, a vegetação pobre que aí se encontra, a custo pode também servir para o sustento do gado bovino. Essas pastagens, que constituem o que se chama o monte, não servem em regra, senão para as cabras e ovelhas. O gado caprino, em face da hostilidade dos Serviços Florestais, diminui de dia para dia, tendo já desaparecido de muitas aldeias. Quanto às ovelhas, de raça pequena ou meã, não dão senão uma lã de fibra curta, grosseira e de má qualidade. Em regra, cada proprietário toma conta individualmente do seu gado, embora os hábitos comunitários, tão espalhados nos antigos tempos, não tenham de todo desaparecido. Aqui e além, ainda se vêem rebanhos comuns, guardados, à vez pelos lavradores, segundo o número de cabeças que cada um possui. Ao amanhecer, ao som da corneta, que nos faz lembrar os longínquos hábitos dos povos pastoris de ascendência indo-europeia, convocam as diferentes parcelas do 42
Domingos Vaz Chaves rebanho. Este, no regresso da pastagem, ao cair da noite, aproxima-se da povoação, fazendo ecoar os balidos e os timbres dos chocalhos na solitude destes vastos planaltos. O habitante do Barroso, por vocação criador de gado, começou a consagrar-se a pouco e pouco à agricultura. O centeio de afolhamento bienal, era o cultivo quase exclusivo e típico da região. Mas o milho exótico acabou por fazer a sua aparição nas alturas de Barroso. Introduzido naturalmente nos vales profundos, mais em contacto com a ribeira, intensificou-se o seu cultivo em virtude do acréscimo contínuo de população, em função da qual se tornou necessário aumentar a produção de cereais. Em muitas aldeias de Barroso, o milho alcançou tal importância, que o centeio já não ocupa senão um lugar secundário. Nas Alturas colhe-se actualmente tanto milho como centeio, quando há uns trinta anos, somente aquele era por assim dizer inexistente. Os espigueiros, que hoje 43
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região dominam quase todas as aldeias de Barroso, são um claro índice do acréscimo desta cultura. Em Vila da Ponte - a dois passos de Pisões - onde graças a condições excepcionais se cultiva uma enorme quantidade de milho, vê-se um espigueiro de nove compartimentos, verdadeiro símbolo da prosperidade da terra. O povo do Concelho de Montalegre e do planalto de Barroso, em geral, conserva ainda embora de forma crescentemente esbatida, uma estrutura social comunitária. Os coutos mistos, conjuntos de aldeias fronteiriças gozando de vincada autonomia até à marcação de fronteiras entre Portugal e Espanha em 1864, dão-nos, por certo, a expressão acabada e sistematizada da forma mais primitiva e original da organização social e dos costumes destes povos. Feira em Montalegre - 1940 Na Igreja de Santiago, no antigo Couto Misto de Rubiás já aqui referido, poderá o leitor colher ainda esta informação: \"No banco do adro da igrexa (igreja) de Santiago, se reuniam as autoridades do Couto Mixto, para decidir dos assuntos que lhes eram próprios. ... 44
Domingos Vaz Chaves CAPITULO IV O COMUNITARISMO EM BARROSO 45
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região O comunitarismo agrário de Barroso é um dos últimos testemunhos das organizações comunitárias existentes na Europa, lado a lado com a hierarquia social dominante da Idade Média. Na fundação da nacionalidade o aforamento colectivo foi o dominante em Trás-os- Montes, ao contrário do que sucedeu no Minho, onde predominou a fórmula dos casais encabeçados, dando origem a realidades económicas e sociais bastante distintas. Dado o fecho sobre si mesmo, a região conservou práticas seculares que perderam sentido e eficácia noutras regiões mais expostas a novas organizações do espaço e do território. O povoamento é concentrado. A aldeia situa-se por norma a meio da encosta, predominantemente exposta a sul e rodeada de nabais, hortas e lameiros de rega. Nesta primeira cintura é propriedade exclusivamente privada. Depois segue-lhe a veiga de duas folhas uma de batata, outra de centeio, com cultivo alternado. Antes da intensificação da cultura da batata, uma das folhas ficava, em boa parte, de pousio. As terras da veiga são propriedade privada até à ceifa do centeio e de pastoreio colectivo até à próxima sementeira. Os lameiros são propriedade privada, excepto as \"lamas do povo\" ou \"lamas do boi\", que se destinam à pastagem do \"boi do povo\" ou, como retribuição, a quem o guarde isolado ou juntamente com o seu gado. O monte é de pastoreio livre, quer para rebanhos particulares, quer para a vezeira quando existe. Nas proximidades da povoação há uma área designada por couto, onde apenas os cabaneiros podem cortar lenha que transportam às costas para fazer a fogueira e cozinhar. 46
Domingos Vaz Chaves Por cabaneiros entendem-se as famílias que não possuem gado graúdo (vacas ou bois) e por lavradores, aqueles que os possuem. Enquanto estes podem deslocar- se mais longe para cortar e transportar lenha e mato, os cabaneiros transportam frequentemente a lenha às costas, em molhos desde o local de corte até casa. Para garantir o bom estado dos acessos à veiga e à serra é necessário reparar os caminhos, em particular no final do Inverno/início da Primavera. Os estrumes das cortes são levados às terras que vão ser semeadas e é necessário subir às serras e trazer novas camadas de mato para curtir nas cortes, transformando-o em novo e fecundo estrume. A reparação dos caminhos, a limpeza e reparação dos canos de rega, a edificação ou conservação da escola, enfim, os trabalhos de interesse colectivo são objecto de análise e deliberação no \"adjunto\" ou assembleia da povoação. As aldeias apresentam um modelo consistente, depurado ao longo dos séculos, de uma economia de subsistência, onde entroncam admiravelmente o privado e o colectivo. Cultiva-se pouco de cada coisa, em função das necessidades do agregado familiar. A terra não é apenas a propriedade, é mais a extensão vital da corrente sanguínea. Havendo largueza, quanto maior for a família melhor, mais braços há para trabalhar. Se não houver desgraça natural (geadas, chuva em excesso ou seca, doenças ou peste), a vida comunitária do lavrador pode chegar a ser bastante satisfatória e até mesmo feliz. A família patriarcal cresce e no seu esteio sobressai uma espécie de fidalguia rural a vender nas feiras os vitelos, vacas e cavalos do seu contentamento e do seu orgulho. Em Barroso \"a riqueza mede-se pelo número de cornos\", como alguém já afirmou. Mas a vida das aldeias não é esse quadro de felicidade, que ocorre em certas épocas. Ao lado das casas fartas existem muitas famílias com dificuldades, especialmente durante o Inverno, quando o trabalho escasseia. Os \"criados de servir\" atingem uma considerável expressão no mundo do trabalho, especialmente alta no pós- guerra, devido à intensificação da cultura da batata. Com ela, a desigualdade acentuou-se, os lameiros foram arroteados para produção de batata, os bois e vacas de raça barrosã substituídos por juntas de gado mirandês e penato, as malhas da organização tradicional e comunitária abriram fendas irreparáveis. Os anos sessenta sangraram o que restava, através da emigração maciça para França. Os cabaneiros, descontentes, desempregados, juventude ambiciosa largaram tudo e meteram os pés a caminho. Ei-los que partem, velhos e novos. Ficaram os que já tinham uma junta de vacas, pelo medo de as perder. Quatro décadas depois continuam com a mesma vida e envelhecidos, atravessam as aldeias ainda atrás das mesmas duas vacas como fantasmas. A estrutura social, o papel da propriedade da terra, as casas, as ruas, as fachadas, o modo de vida, o sistema de entreajuda, a noção de tempo, os ritmos da vida, os mitos e os ritos, tudo parece pertencer já a um paraíso perdido. Muitas destas aldeias vão por certo desaparecer, se não encontrarem uma saída (e há tantas) para a situação de abandono em que se encontram. Vistas de longe as casas dos povoados estão tão próximas e as pessoas tão ligadas, que dir-se-ia que as suas almas parecem nascidas \"todas do mesmo ventre\" no dizer de Bento 47
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região da Cruz. De Inverno as aldeias distinguem-se a meio da encosta pelos rolos de fumo a soltar se dos beirais de colmo. Na Primavera, pelo cantar dos carros de esterco a caminho da veiga ou pelo andar lento e cadenciado das juntas de bois a rasgar a terra em sulcos. No Verão, pelo ondear das searas, o cantar dos galos, pelas grandes concentrações de ceifeiros e malhadores a absorver toda a energia da aldeia. Em Setembro chega o arranque das batatas, as sementeiras de Inverno, e mais adiante a matança de porco que é o \"dia de festa do lavrador\". Fechados à chave, o palheiro e a tulha do centeio, aguardam-se momentos de intenso convívio, o repouso merecido a que alguns chamam \"as férias do agricultor\". Era um pouco assim que se caracterizava o comunitarismo na região de Barroso!... À semelhança do que se verificava na generalidade dos meios rurais do interior, as condições físicas do território, que se caracterizam por altas montanhas, planaltos e vales profundos, e os rigores de um clima com “nove meses de Inverno e três de inferno” moldaram as (sobre) vivências das populações que fizeram das actividades agro-pastoris o seu modo de vida e a sua forma de subsistência. Festa da Senhora da Assunção (Gralhas 1975) Ao longo dos séculos e no decorrer da sua labuta diária pela sobrevivência, criou- se uma relação muito próxima entre a actividade humana e a natureza, na tentativa de manter em equilíbrio os frágeis ecossistemas. Assim, a vida do aldeão gravitou sempre à volta dos recursos que lhe são preciosos para a sua sobrevivência: a terra, a água e os animais. O espaço territorial das aldeias tinham e têm ainda hoje diferentes funcionalidades conforme o relevo e as características do solo. As zonas de cultivo, mais planas e mais férteis, encontram-se dispostas à volta da aldeia, divididas em parcelas, de área variável e repartidas de forma desigual entre os seus habitantes. As hortas e os nabais junto às casas são as parcelas de menor dimensão, muito férteis e 48
Domingos Vaz Chaves produtivas e as mais intensamente cultivadas. Nelas semeiam-se ainda hoje essencialmente leguminosas para auto-consumo. As lameiros fornecem erva paraos animais. Num território exterior, logo a seguir, muitas vezes em forma de anel rodeando o agregado urbano, localizam-se as parcelas maiores, as leiras ou veigas e os prados (lameiros). As leiras ou veigas são parcelas menos férteis. Terras de sequeiro, exigem uma maior preparação no seu amanho e uma adubação especial. É onde se cultivam, num sistema de afolhamento bienal, as batatas e o milho ou o centeio. Dependendo do tipo de cultura praticada anualmente numa determinada folha, assim se utiliza ou não a água de rega nessa área de cultivo. Os lameiros, servem de pastos para o gado (bovino, equídeo e actualmente também ovino) e para produção de forragem para o Inverno (feno). As parcelas agrícolas são de pequena dimensão e acham-se dispersas pelo termo da aldeia, o que causa sérios constrangimentos à actividade produtiva. Uma exploração agrícola pode ser constituída por parcelas com distâncias muito acentuadas entre si. Como complemento a estas propriedades privadas, que muitas vezes se revelam insuficientes para a subsistência dos agregados domésticos, há recursos e infra-estruturas comunais, que pertencem a todos os habitantes da aldeia. São vários os bens comunais, de que se destacam os baldios ou maninhos, as águas, os caminhos, as veigas e lameiros, o forno e o moinho e muitas vezes a eira. Vejamos as características particulares de alguns destes bens no seio das comunidades de Barroso, que perduraram até aos anos 60 (século XX). AS ACTIVIDADES E AS ESTAÇÕES DO ANO Chegada a Primavera retiram se os estrumes das cortes e levam se às terras de semear e, eventualmente, aos lameiros. Corta se o mato na serra e fazem se camas novas para o gado. Feita a preparação da terra com várias lavouras (decruar, aricar agradar), a semente da batata é lançada nos regos e a terra lavrada em sulcos; isto nas terras maiores e mais planas, porque nas mais pequenas e inclinadas o trabalho é feito à enxada. O mesmo acontece quando se é cabaneiro e não há lavrador que possa emprestar uma junta de gado. Antigamente, feitas as sementeiras da Primavera, ranchos numerosos debandavam rumo a Castela e à Terra Quente, para as \"segadas\", e vinham subindo das zonas quentes da planície, de terra em terra, até chegarem ao Barroso, no momento justo em que os centeios e fenos estavam prontos para a ceifa e o corte. Nesta emigração sazonal as moçoilas novas grangeavam uma pequena poupança para comprar o primeiro fio de ouro, cordão ou o primeiro par de sapatos das suas vidas. Entretanto, muitas vezes, arrecadavam também, no seu ventre, o primeiro de muitos filhos, que iriam marcar a sua existência de sacrifício para o resto da vida. Era normal pernoitarem num mesmo palheiro 40 a 50 pessoas, homens a um lado, mulheres a outro, mas claro, com \"lume ó pé da estopa ... vem o diabo e sôpra\". Estamos então em pleno mês das segadas. Os fenos eram cortados pela manhã fresca pelos gadanheiros. Era um trabalho duro. Faziam se carreios de erva e também, muitas vezes, de suor. A alimentação dos gadanheiros era cuidada, com rojões e assaduras, intervaladas com fatias de pão embebidas em vinho com 49
Terras de Barroso – Origens e Características de Uma Região açúcar. O feno era depois espalhado e virado para secar ao sol. Se o tempo estava de feição, em dois dias ficava pronto para ser engaçado e levado para os palheiros. Se sobrevinha a chuva era um prejuízo quase total. As ervas perdiam o seu valor alimentar e praticamente só ficavam as fibras sem valor nutricional. As segadas eram feitas aqui também em ranchos \"de fora\", isto é, a pagar, ou, mais frequentemente, em resultado de uma entreajuda de vizinhos, com retribuições mútuas de dias de trabalho. Reunião Dominical (Gralhas 1975) Juntos os molhos em pequenas \"medouchas\" e atingido um certo nível de secagem, o centeio é transportado para as eiras onde se ergue uma ou várias grandes medas. A eira é então preparada para a malhada. Recolhe-se a \"bosta\" de vaca em grandes quantidades, é dissolvida em água e espalhada pelo terreiro. Depois de seca faz o efeito de um \"asfalto\" acastanhado. Antes das máquinas de malhar esta tarefa era efectuada a malho e nas casas grandes chegava a prolongar se por um mês inteiro. Hoje as ceifeiras debulhadoras fazem todo o trabalho de modo rápido e eficaz, mas retiram também às aldeias os mais belos e intensos momentos de convívio e sentido de grupo. Depois de dar a volta à chave do palheiro e do tulhão e feitas as sementeiras de Outono, o agricultor do Barroso, às portas do Inverno, entra na \"Primavera do Lavrador\". Limpam se os regos dos lameiros, recompõem se as tornas, e endireitam se as paredes caídas nas propriedades. Se é caçador ou pescador tem agora tempo para os momentos de \"lazer\". Entretanto aproximam se as \"matanças\". Nas casas abastadas matam se oito, dez porcos ou mais. O porco funciona como um \"frigorífico\" natural, que vai transformando, ao longo do ano, produtos que são perecíveis em proteínas e 50
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