Sérgio Medeiros albina a névoa permanece do lado de fora do bar lançando espadas brandas nas costas e no peito dos transeuntes – 6) COBIÇA a noite avança mais com novas estrelas e pouquíssimo verde 99
[ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 6]
Sérgio Medeiros ... NÚMERO 12 O EXÍLIO DO ESCULTOR DE TOTENS – Ele tropeçou num pedaço de mármore que se ergueu do chão. Desequilibrou-se. De bruços na areia. Comia a fruta sumarenta. Estava sedento. A fruta saltou longe e rolou no chão. Ele cuspiu tudo sem querer. E rapidamente ergueu a cabeça. Olhou irritado para trás. Olhou para trás. E logo se sentou na areia. Estava um pouco afastado do pedaço de mármore. Uma cabeça polida se erguera do chão. Feito cabeça de cobra. A cabeça olhava para ele. Fixamente. Ele lhe estendeu as pernas. E se lembrou de uma estranha sensação na sola do pé. Uma cobra sonsa passava... Lentamente. Sua perna estava enterrada na lama. Ele sentiu aquilo na sola do pé e depois puxou arrepiado a perna para fora da lama. Ficou sem a sandália. Mas não ferido. Talvez naquele dia escaldante andasse descalço. Numa lama morna e fria... Talvez as tiras da sandália tivessem rebentado. Sentiu algo liso na sola do pé. Enquanto .......se lembrava disso foi aproximando mais as pernas da cabeça da ave que se erguera do 101
... [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 7]
Sérgio Medeiros chão. E que agora o olhava fixamente. O pescoço hirto. O sol da manhã esquentou. E ele sedento... Foi esticando a perna na direção do pescoço da ave. Pois era certamente uma ave. A cabeça ficou mais elevada. Mais lisa também. Agora o seu pé quase tocava o bico aberto da ave. Ele ergueu um pé no ar. Deixou a sandália cair no chão. A ave não se assustou. Alerta apenas. Ergueu-se e olhou para a ave do alto. Deu dois ou três passos na sua direção. Esfregou na sua cabeça empoeirada os dedos úmidos do pé. Tentou delicadamente empurrar a ave para o lado. Mas ela continuou no mesmo lugar. Parecia bem-enterrada no chão. Embora não fosse grande. Não era grande. Mais rechonchuda talvez do que uma garça. E branca igual. O suor dele pingou na cabecinha polida quando se inclinou e tentou com ambas as mãos puxá-la para fora da terra seca. Sem sucesso. O pescoço exposto era curto. Devia ser longo. Mas bem-enterrado no chão. Com o seu bastão ele começou a cavar buracos em volta da ave. Agiu com sofreguidão. Com brutalidade. Então se conteve. Não queria danificar a ave. Gostaria de guardá-la para si. Intacta. Como o mais precioso dos bens. Logo conseguiu vislumbrar todo o ........pescoço e o dorso da ave. 103
.. [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 8]
Sérgio Medeiros Ele não sabia dizer se a escultura era frágil. Temia que ela rachasse. Que a ave perdesse o bico. Ou que o pescoço perdesse a cabeça. Ou que o corpo ainda enterrado perdesse o pescoço. Ele decidiu que arrancaria cuidadosamente a ave do chão. Intacta. Se possível sem um arranhão. Um corpo polido. Sólido? Claro? Que não se mexia. Empurrou-o com as mãos sujas. Queria fazê-lo se inclinar. Suava e tremia um pouco. Mas não conseguiu inclinar a ave. Era como se raízes muito fortes agarrassem suas patas para não deixá-las sair do chão. Não viria à tona. O sol queimava-lhe as costas. Mas não desistiria fácil. Descansaria um pouco. E depois retomaria o trabalho de escavação. Sentou à sombra de uma árvore próxima e ficou olhando para a ave enterrada. Ela parecia gritar. Era dessas aves agressivas que chocam seus ovos no chão. Ao relento. *** Ele boiava na água fria. Sentiu que o espiavam. Virou de repente o rosto de uma margem para a outra. Não viu nada. Gente ou bicho. Girou o corpo nu na água. Queria sondar as coisas ao seu redor. Desconfiava de algo. Pensou que atrás daquela mata fechada na .........margem do rio... 105
. [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 9]
Sérgio Medeiros Sabia que atrás daquela mata fechada estava a ave. Ainda enterrada no chão. Por um momento temeu que ela houvesse alçado voo e pousado no topo da árvore mais alta. Olhou para o topo das árvores. Não viu nada que lembrasse uma ave branca. Mas o fato é que se sentia observado. Antigamente teria interpelado as árvores. Teria interpelado o rio. Teria interpelado os urubus voando em círculos lá no alto. Riu de si mesmo. Chegou a gargalhar. Mergulhou. Antigamente teria interpelado os peixes. Voltou à tona. Deu umas braçadas vigorosas e ficou boiando à toa. Ainda o observavam. Olhavam-no intensamente. Era alguém na margem. Entre as árvores altas. Atrás delas estava o pássaro branco. De peito inchado. De peito polido. Enterrado na areia. Se ainda fosse criança teria feito uma pergunta. Por que me olha tanto assim? A essa pergunta... Talvez o pássaro saísse voando. Ou se partisse em pedaços como barro seco. Cada pedaço se dissolveria. Desapareceria. Depois todos os pedaços retornariam ao mesmo lugar e o corpo se recomporia. Mas não acreditava mais que tivesse esse poder de desfazer e refazer... Nada de mais aconteceu. As árvores continuavam no lugar. O rio fluía. O sol cegava. ........Discretamente ele moveu os pés e os braços e foi se aproximando da margem. O rio não 107
.. [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 10]
Sérgio Medeiros era fundo. De repente ele ficou de pé. Viu na margem um caimão2. Todo negro. O rabo de escorpião... O rabo hirto estava erguido. As patas do caimão pousavam na areia branca. Sua cabeça também erguida encarava o rio. O caimão se manteve imóvel. Quase um arco voltado para cima. Os dois ficaram frente a frente. Ele deu uns passos para trás rindo. Por que me olha tanto assim? Perguntou em voz alta. Retumbante. As margens ecoaram a pergunta. A pergunta espantou os pássaros. Eles fugiram dos galhos que pendiam sobre a corrente. Depois voltaram. Mas o caimão continuou imóvel. Ele se atirou de costas na água fria. Ainda ria muito. Parecia não temer que o caimão se lançasse no rio vindo atrás dele com os olhos enormes à flor da água. Mas o fato é que o caimão negro não tinha olhos.3 Era uma madeira lançada à margem do rio. Mas parecia um caimão. Todo negro. Opaco. Sem papo amarelo. Apenas negro. Ele saiu da água e examinou melhor o caimão. Gostou dele. Achou-o interessante. Quase tão bonito quanto a garça enterrada na areia. Nas últimas horas dois seres curiosos ......haviam 2 O narrador desta lenda usou a palavra caimán, pois a narrou em espanhol. Nesta adaptação da lenda ao por- tuguês adotamos, por sugestão de Dirce Waltrick do Amarante, a palavra caimão (semelhante à original) e não jacaré-de-papo-amarelo, mais comum no Brasil. 3 O narrador da lenda hesitou nesta passagem. Algumas versões afirmam que os olhos do caimão (e da ave) eram impressionantes. 109
.... [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 11]
Sérgio Medeiros vindo à tona. O caimão era surpreendentemente leve. Não muito grande. Ele o puxou pelo “bico”. Lavou-o bem. Depois ganhou a margem. E caminhou entre as árvores. Levando o caimão nos braços. E assim foi examinando cada detalhe do corpo do negro animal. Do rabo à cabecinha chata e bicuda. Não era polido como a ave de mármore. Mas tampouco era um monstrengo... Não era monstruoso. Não era um caimão de verdade. Era esbelto. Mais liso. Um arco negro. Que ficaria bem ao lado da ave de peito estufado. Ele ainda puxaria a ave do chão sem danificá-la. Sem lascá-la. Mas de modo algum usaria o caimão para escavar buracos em volta da ave. O caimão gostava só de olhar. Não servia para nada. Ele havia juntado vários galhos grossos. E uns bastões pontiagudos. E umas pedras. Trabalharia sem pressa. A ave estava fixa num pedestal. E o pedestal era longo. Uma coluna enterrada no chão. Como o eixo da Terra. *** A ave estava fixa num bloco de calcário. De longe parecia apenas em pé no chão. Olhava alerta. Tinha a tendência a erguer mais a cabeça. Como se assim desse o primeiro ........impulso 111
.. [ilustração “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 12]
Sérgio Medeiros para sair voando pelo campo. Ele estava à sombra de uma árvore e podia ver o pedestal despontando... Cor de areia úmida. Era a base. A ave parecia mais branca sob o sol da tarde. Ele trouxera água do rio e lhe dera um banho. Limpa ficara perfeita. Ele esfregara carinhosamente as mãos nela. Como para polir ainda mais o seu corpo liso de cima a baixo. O rabo duro caído. O rabo colara-se às pernas eretas. As asas não eram visíveis. Estavam repousadas. Asas indiscerníveis. Mas inchavam o corpo da ave. A ave inflava. E queria gritar. A ave gritava o tempo todo. Ou cantava. Não fechava o bico. Sedenta ou faminta. Alguma coisa começou a subir... Pela sua garganta. O caimão se refestelava no chão. Mantinha o rabo empinado. A cabeça curiosa se erguia também. Afilada e negra. Apoiava-se nas patas dianteiras. Não tinha as outras patas. Elas não eram visíveis. Estavam ali pousadas no chão. Invisíveis como as asas da ave. A ave se esquentava ao sol. O caimão ouvia atento. Não dava o bote. Se o caimão se aproximasse a ave sairia voando. Não estavam juntos. Ainda se estranhavam? Ele os ........observava da sombra. Já se acostumara ao grito da ave. Um grito branco contínuo. Bom. À luz do sol... 113
[ilustração “luasdeluas” 1] ..
Sérgio Medeiros Contemplava a ave. Horas a fio. Sentado diante dela. Raramente se postava atrás ou ao lado. Mas caminhava a sua volta admirando a lisura do corpo. Decidira cavar um metro em volta da base. Então puxaria a ave para cima. Talvez o pedestal balouçasse frouxo. Ele o extrairia fácil do chão. E se a base fosse uma coluna sem fim? Uma coluna que mergulhasse profundamente no chão? Mesmo que pudesse contar com a força de uma fera não conseguiria remover o pedestal dali. Então teria de fazer incisões nele. Cada vez mais precisas. Até que ele se partisse em dois... A ave ficaria num bloco não muito grande. Então poderia transportá-la a outro lugar. Bem longe. Se quisesse. Mas talvez não quisesse. O rio corria perto. A sombra era densa. As frutas sumarentas. Decidiu permanecer naquele recanto. Não se enjoava de ver os seus bichos lá fora... Talvez não valesse a pena retirar do chão o pedestal do pássaro. Talvez o pássaro pudesse ficar ali mesmo. Cantando noite e dia. O caimão ouvia o grito infinito sem enfado. Curvava-se de prazer. Quando o vento soprava forte ele oscilava um pouco. Menos negro na poeira. Ele trazia água do rio e lavava o caimão. Na verdade o caimão não estava fixo num lugar. ........Não tinha base. Ele o levantava do chão. Puxava-o de um lado para outro. Certo dia o 115
[ilustração “luasdeluas” 2] ..
Sérgio Medeiros colocou atrás da ave branca. Que havia tomado banho também. Ele gostou desse arranjo. Da sua sombra observou a cena. Podia ver os dois de frente. O caimão no chão. Com a cabeça empinada. Negro como um tição. E diante dele a ave. Que gritava e parecia prestes a sair correndo. O caimão correria atrás. A ave se aproximaria da sombra. Talvez alçasse voo e pousasse num galho sobre a sua cabeça. Nem sempre imaginava uma animosidade entre os dois. Foi por isso que recolocou o caimão ao lado da ave. Mas não colado ao pedestal infinito. Colocou-o um pouco afastado. Porque assim lhe pareceu melhor. E ambos ficaram olhando para ele. A ave mirava as árvores... O caimão encarava-o mais diretamente. Sem olhos. Mas a ave tampouco tinha olhos. No entanto ambos olhavam fixamente para a frente. Ele se sentiu observado. Pelos dois. A ave o observava gritando. Por isso esticava o pescoço. A cabeça elevada. O caimão parecia sempre sorrir. *** Descansava no alpendre da choça. Mastigava uma rodela de cana. Ao seu lado estava a .........ave. No pedestal. Que era pesado. Porém bem menos infinito do que havia imaginado. 117
[ilustração “luasdeluas” 3] .
Sérgio Medeiros Conseguira arrancá-lo do chão numa manhã. Banhara a escultura. Deixara o pedestal limpo e fresco. O caimão também estava no alpendre. Num pedestal de pedra. Um amplo pedestal... Como uma trouxa de roupa. Que ele descobrira ao lado da choça. Agora o caimão sorria de fato. Mas a ave quase tocava o teto do alpendre. Abria o bico. Parecia prestes a engolir uma libélula4... Que fora trazida pelas trovoadas. Então algo reluziu dentro da choça escura. Ele pulou da rede. Talvez surpreendesse um malandro ali... Mexendo nas suas coisas. Um bicho que estivesse fugindo dos raios. Uma fêmea que tivesse vindo ali para dar cria. Viu uma cintilação. Duas. Algo reluziu. O brilho roçou a terra socada. E se extinguiu. Então ele viu de novo a cintilação. Mas do lado de fora. Atrás da choça. Na mata enlouquecida. Ele atravessou a frágil parede feita de galhos. O reflexo ia longe. No alto de um galho. Saltava de um galho para outro. Ele entrou correndo na mata. Não sabia do que se tratava. Viu um brilho na penumbra. .........Que se afastou. Era como se um macaco levasse um espelhinho na mão. Espalhando 4 Uma formiga-leão adulta, segundo o narrador. 119
[ilustração “luasdeluas” 4] .
Sérgio Medeiros reflexos na mata à medida que ia pulando de um galho para outro. O reflexo às vezes se arrastava no chão... O brilho se deslocou pelo chão. Genioso. Uma breve cintilação. Um fino reflexo. Ou muitos. Parecia estar fugindo. Como se temesse ser capturado. Ou talvez lhe acenasse. Queria levá-lo a algum lugar. Longe. Ele foi atrás. Correu atrás cada vez mais. Temia que a chuva borrasse o reflexo. O reflexo era como um fogo. Que o vento avivava. E às vezes ameaçava apagar. Estendeu um braço na sua direção. Fechou os dedos da mão direita. Algo reluziu longe. Não era uma tocha que se pudesse agarrar e levar de volta para a choça. Estava escuro. As nuvens se avolumaram... Queria se apossar daquela coisa polida que reluzia. Chama prestes a se apagar. O que quer que fosse... Que saltasse diante dele! Como um raio. Um zigue-zague luminoso. Seu coração disparou. Ele foi separando com as mãos e os pés a confusão de cipós negros que desciam dos galhos... Os cipós pareciam decididos a barrar-lhe os passos. Mas o fato é que a chuva desabou. Ele decidiu voltar. Não viu mais nenhum sinal luminoso entre os galhos. Ouviu os trovões. Distantes e próximos. Esperou um raio. Que caísse diante dele! Arrepiou-se. Talvez ........sentisse frio apenas. 121
[ilustração “luasdeluas” 5] ..
Sérgio Medeiros A enxurrada o desequilibrou. Mas não caiu. Foi em frente. Sabia como se orientar naquele dilúvio. Chegou ofegante à choça. Entrou precipitadamente por trás. Arrebentando a parede. Rearranjou os galhos e a folhagem. No escuro sentiu que algo lhe faltava. A superfície dourada... O dourado. Era como se naquela mesma tarde alguém lhe tivesse roubado uma estatueta. Uma estatueta que guardara no fundo da choça. E emitia reflexos. Cintilações. Fugira. Escapara como um bicho. E ele não pôde mais agarrá-la. Estava perdida na mata. A chuva a embaçaria. A chuva foi cessando... Um raio iluminou a cabana. Ele saiu para o alpendre. Sentiu a aragem. O vento. O horizonte retumbava. Os raios brotavam tortos. Às vezes juntos. Lado a lado. Levantavam-se como os pelos de um monstro. Furioso. Faminto. Todo o corpo peludo rosnava. *** Um bloco de pedra. E outro de carvalho assentado no chão. Coluna roliça. Ambos marcavam agora dentro da choça o local onde surgira o brilho antes do temporal. Como um banco. Ou mesa. Mas era o pedestal da estatueta. Ainda ausente. Ou à espreita. ..........Voltaria. E pousaria no pedestal. 123
[ilustração “luasdeluas” 6]
Sérgio Medeiros Ele pediu ao reflexo que retornasse rápido a sua base. Construíra a base dupla com esmero. Escolhera uma pedra quase quadrada e uma coluna roliça de carvalho. Continuamente ele polia a obra. E espanava a madeira. Alisava a pedra. Então acendeu uma fogueira na choça. As labaredas cresceram atrás do pedestal. A choça foi se enchendo de fumaça. Ele se afastou para apreciar o efeito. Queria imaginar a escultura dourada escalando a base de pedra. Então a sua superfície reluziria em cima. Uma luminosidade muito intensa. O fogo estalava no chão. Ele sufocava............................................................................................................................................ .................................................................................................................................................................. .................................................................................................................................................................. A cinza se acumulou em volta da base dupla. Ele varreu o interior da choça. Sem remover o pedestal do lugar. Mais de uma vez se perguntou se não devia também colocar na choça as esculturas que permaneciam no alpendre. Seriam um chamariz para a outra que se mantinha a distância. O caimão era leve. Arrastou com dificuldade a base arredondada para o interior da choça. Depois colocou em cima o tição negro. Ele decidiu que o caimão ficaria um pouco ........afastado da base dupla. Vigiando-a. Com sua cabeça empinada. Um toco apagado. Opaco. 125
[ilustração “luasdeluas” 7] ..
Sérgio Medeiros Ele acreditava que essa escultura atrairia a outra. Desconfiava de uma forte atração entre a ave e o caimão. Primeiro a ave foi se erguendo do chão. Expôs a cabeça. Em seguida o caimão se expôs na margem do rio. Trazido pela correnteza sabe-se lá de onde. E desde então... As duas esculturas conviviam bem. Ele só não arrastou a ave para dentro da choça porque julgou que ela estaria melhor no alpendre. No dia em que o espelho voltasse refletiria primeiro a ave. E depois o caimão. E pousaria na base dupla. Pedra e carvalho. O sorriso franco do caimão... Ele apostava no bom entrosamento entre as três obras. Apreciavam-se. Sem dúvida. A ave cantava bem. O caimão se balançava feliz. A estatueta brilhante esvoaçara ali. Veloz como um beija-flor. Desejava a companhia do caimão e do pássaro. Por isso voltaria à choça. Para ficar. Veio como um beija-flor. Entrou na choça. Reluziu no escuro. Uma cintilação. Uma asa dourada. Foi-se por algum motivo. Ele fizera um gesto abrupto? Afoito demais? Talvez o beija-flor tivesse partido porque lhe faltara o pedestal. Bem ali. E ele meditou nisso. Antes de voltar à mata. Ao local onde vira a estatueta reluzir na penumbra pela última vez. E ali encontrara a ........pedra e a madeira que depois carregou rolando até a choça. Polira a pedra. Polira a 127
[ilustração “luasdeluas” 8] ..
Sérgio Medeiros madeira. Pensou em esculpir-lhe dentes. E colocou a base roliça no chão. E em cima dela a base de pedra. *** Cada vez que via o pedestal dentro da choça chamava em voz alta a estatueta. Fingia que a obra ainda não estava pronta. Era como se o escultor precisasse polir mais o bronze. Pois só com o polimento a estatueta reluziria inteira. Um espelho. A ser colocado no seu pedestal. Ele sabia que o processo de polir o bronze era lento. Tão árduo quanto arrancar do chão um pedestal bem-enterrado. Não cansava de repetir que não fora nada fácil trazer à tona o pássaro branco. Trabalhara sem resmungar. E finalmente o pássaro e o pedestal foram desenterrados sem danos. É claro que não pretendia ficar olhando de braços cruzados para o pedestal vazio. Ou quase vazio. O que ele chamava de polir o bronze não consistia nisso. Então entrava e saía da choça. Sentou-se no alpendre ao lado do pássaro branco. Inquieto. Não sabia se devia sair já ou... Andava. Sentava. Levou o caimão para o sol. Depois o recolocou no alpendre. E finalmente .........o devolveu à choça. Colocou-o atrás do pedestal. Em cima das manchas de 129
[ilustração “luasdeluas” 9] .
Sérgio Medeiros cinza no chão. Então decidiu deixá-lo junto à parede. O cheiro da cinza não lhe devia ser nada agradável. Era um dia parado. De céu alto. Ele entrou na mata. Não refez o percurso da estatueta dourada. Tomou o caminho oposto. E foi se afastando cada vez mais. Da ave. Do caimão. Cruzou dois riachos. Pulou um ou outro tronco apodrecido. Afastou com as mãos os cipós emaranhados... Cruzou dois riachos. Atravessou uma clareira imensa sob o sol a pino. Um vazio. Entrou de novo na sombra. Foi ao encontro de um tronco calcinado ainda em pé. Não se deteve. Pulou um lamaçal. Afastou cipós com os braços e as pernas. Não parecia buscar com os olhos nenhum sinal... Nenhum sinal. No chão. Na água. Na teia de aranha. Nos olhos dos animais que cruzaram o seu caminho. No grito dos pássaros que esvoaçavam ou se empoleiravam nos galhos sobre a sua cabeça. Ele simplesmente avançava cego. E se afastava da choça. Talvez quisesse mostrar ou... Talvez quisesse avisar que eles agora podiam tomar posse da sua choça. Queria avisar que a ave e o caimão já estavam lá. Cada qual na sua base. Duas ou três esculturas prontas e acabadas. E mais outras... Ainda chegariam. Aos montes. Trazidas pelo vento. Ou se levantariam do pó. 131
[ilustração “luasdeluas” 10]
Sérgio Medeiros A VIAGEM NÚMERO 13 O XAMÃ OU A PEREGRINAÇÃO DO XAMÃ OU O XAMÃ QUE CAÇOU O TOTEM – 1. Os ancestrais Então os pássaros também fazem belas surpresas! Desejando voltar à Terra, os ancestrais se reencarnam em animais, pois é assim que visitam os seus descendentes e lhes proporcionam alívio do ennui ...........No seu diário Aurélia, o escritor francês Gérard de Nerval afirma mais ou menos isso5 5 “[...] il devenait clair pour moi que les aïeux prenaient la forme de certains animaux pour nous visiter sur la terre, et qu’ils assistaient ainsi, muets observateurs, aux phases de notre existence.” 133
[ilustração “luasdeluas” 11] .........
Sérgio Medeiros Meu propósito é comentar essa citação do século XIX, enriquecendo-a, se possível, com exemplos do século XXI, que agora vê o totemismo ressurgir no Brasil e no mundo 2. O pássaro que nos visita Podemos imaginar esta cena: um xamã num quarto com janela baixa, aberta para um canteiro florido, numa manhã de sol O xamã senta-se a uma mesa para ler música xamanística, os manuscritos virtuais se empilham a sua frente, na tela do computador Afasta às vezes os olhos da tela, distraído ou cansado De repente, ao voltar o rosto para o canteiro ensolarado, vislumbra um pássaro no peitoril da janela, um filhote redondo Os dois se encaram, o xamã na penumbra fresca do quarto, o pássaro de perfil numa ..........faixa de luz amarela que banha a madeira pintada de azul 135
[ilustração “luasdeluas” 12]
Sérgio Medeiros O xamã parece paralisado, mas é um amável convite para que o pássaro fique ali calmo, como uma imagem congelada Ao dirigir aparentemente o olhar para o xamã, o pássaro arredonda mais o perfil, e permanece mudo Estão ambos no mesmo lugar, os olhos do xamã e o olho do filhote ainda de perfil se buscam, mas nenhum dos dois parece particularmente tenso ou apreensivo 3. A invasão do quarto O peitoril da janela está vazio (Não se conclua que o pássaro tenha desaparecido para sempre, como uma imagem que o xamã, com um toque impensado, tivesse deletado abruptamente!) O pássaro voa velozmente até o teclado do xamã, desejando aquecer-se talvez sob a lâmpada acesa, debruçada sobre o computador ........Redondo 137
.. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 1]
Sérgio Medeiros De perfil, o pássaro fixa o olhinho destemido no xamã, que é só um menino de oito ou nove anos O xamã talvez se considere quase tão pequeno quanto o pássaro, embora magérrimo e não redondo como ele Vê o filhote abrir as asas e, sem motivo aparente, esvoaçar pelo quarto, buscando um poleiro longe da luz 4. O pânico do pássaro Sem motivo para pânico, o pássaro começa a girar pelo quarto, voo desesperado Não percebe a janela ensolarada, por onde poderia escapar, nem tampouco a porta aberta do quarto Perplexo ante essa movimentação louca, e não desejando que o pássaro se fira nas quinas das estantes, o xamã gira a cadeira e levanta-se de pronto ........Ergue as mãos, decidido a agarrar o filhote no ar, se possível 139
.. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 2]
Sérgio Medeiros Nesse instante, sem que o xamã tivesse dado mais do que um passo na sua direção, as duas mãos vazias alçadas, cessa o voo turbulento do pássaro, que subia até o teto para em seguida descer até o chão, em círculos O pássaro agora desapareceu por completo, como deletado O pássaro havia girado pelo quarto até esgotar-se, até evaporar-se 5. Ossos esmigalhados Acreditando que o pássaro, exausto, ainda poderia estar no quarto, pousado numa das prateleiras, o xamã prefere manter as pernas completamente imóveis, movendo discretamente a cabeça de um lado para outro, sob o lustre apagado Dez da manhã, calcula, ouvindo o som de costura que faz o computador operoso (e antiquado) às suas costas Atônito, atordoado, o xamã baixa os olhos para o piso de madeira, preparando-se .........cautelosamente para dar dois ou três passos pelo quarto 141
. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 3]
Sérgio Medeiros Silenciosamente afasta para o lado o pé direito, calçado num sapato novo, reluzente, que o desagrada Depois, quase abruptamente e sem nenhum motivo, puxa um pouquinho o pé para trás, evitando, porém, arrastá-lo no piso É só então que vê surgir, de sob o solado, o corpo achatado do pássaro, a cabeça de perfil esmagada Mas..., balbucia, e a mãe?! Trêmulo, pálido, não compreendia mais... 6. A fragilidade Sentindo-se extremamente leve, como um galho seco numa corrente veloz, o xamã foge do quarto, levando o corpo esmagado do pássaro embrulhado numa folha de jornal Sentindo-se menos leve, ergue a tampa da lixeira de plástico com a mão esquerda e, sem hesitar, com a direita, deita nela o embrulhinho 143
[ilustração “voos sobre kurt schwitters” 4]
Sérgio Medeiros O PASSEIO NÚMERO 13 AGONIA EM PRAÇA PÚBLICA (PRIMEIRA VERSÃO) – uma palma verde enlouquece no vento e parece querer chifrar alguém ou puxar algo com a boca ou curvando-se muito vomitar na pracinha alguma coisa presa na sua garganta pois há horas ela se contorce ali em vão – uma pesada calça jeans azul ......... toma sol largada num banco sem se mexer sob o olhar de uma gaivota pousada num poste como que petrificada 145
. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 5]
Sérgio Medeiros o vento agita as ondas da enseada e os galhos barulhentos da pracinha AGONIA EM PRAÇA PÚBLICA (SEGUNDA VERSÃO) – deitada de costas na escadaria ............. da pracinha uma barata amanhece coberta por formiguinhas como por um lençol negro estreito que suas patas inertes parecem puxar eternamente sobre si mesma 147
[ilustração “voos sobre kurt schwitters” 6]
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