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O Acumulador

Published by Paroberto, 2021-01-18 21:00:13

Description: O Acumulador

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Sérgio Medeiros A PRÓXIMA VIAGEM [Eis alguns postais antigos: eu os ofereço aos turistas nostálgicos que irão em breve a Nova York.] – murcho na calçada o rato sorridente se levanta de repente aparecendo enorme acima dos carros estacionados e continua a se encher de ar enquanto mãos o amparam pelas costas até deixá-lo perfeitamente ereto – no totem escuro colado à parede pode-se introduzir o braço pois é inteiramente oco e não toca o chão apenas o teto – a mulher protege a bolsa e o braço ......... esquerdo sob o guarda-chuva mas estica para fora dele o braço que 149

. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 7]

Sérgio Medeiros segura o cigarro aceso batendo nele para fazer a cinza cair na calçada molhada pela garoa – em cada carro estacionado ao lado do parque é colocado sobre o capô um grande cone colorido como um chifre de unicórnio – passada a chuva o sol brilha ao meio-dia enquanto na calçada um funcionário limpa com um pano o corrimão dourado do departamento de polícia da cidade de Nova York – táxis amarelos passam juntos na sombra que as árvores do parque lançam amplamente na Avenue of the Americas 151

[ilustração “voos sobre kurt schwitters” 8]

SEGUNDO LIVRO: Pé de magnólia Texto mixomiceto (2014) Para a Helena Ignez

[ilustração “voos sobre kurt schwitters” 9] [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 10]

Sérgio Medeiros Qué extraña manera de estarse muertos. Quienquiera diría no lo estáis. Pero, en verdad, estáis muertos. César Vallejo The soul, he said, is composed Of the external world. Wallace Stevens 155

[ilustração “voos sobre kurt schwitters” 11]

Sérgio Medeiros A PRIMEIRA MAGNÓLIA PERSONAGENS DESTA E DE OUTRAS MAGNÓLIAS Uma señora anciana de 98 anos (sem nome) Um ator e performer de 23 anos (Ex) A árvore da vida (pé de magnólia) Alguns figurantes Cenário: inicialmente, a Cidade Morena (Campo Grande); depois, a Ilha da Magia (Florianópolis). Dia 3 de dezembro em pleno bafo Faz 40o 41o 42o ........ 157

.. [ilustração “voos sobre kurt schwitters” 12]

Sérgio Medeiros (muito mais!) 46o E a señora anciana De 98 anos se levanta no meio da manhã Com o cabelo molhado e pede Estendendo a mão Uma toalha de rosto Ela se seca cuidadosamente Seca vagarosamente a cabeça De um branco levemente lilás Parece que abundante Seca-se completamente Vem vento Não nela! Mas na ponta do seu nariz Na ponta dos dedos dos pés Pois ela teme os malefícios do ventilador Ar que considera gelado .........– Agora sim! – exclama o Ex gozando o vento que vem quase todo sobre ele. 159

. [ilustração “folhas para paul cézanne” 1]

Sérgio Medeiros – Não me faz bem! – insiste a señora anciana. E cala-se. A mosca Uma mosca enorme no azulejo Nos azulejos Sempre a mesma sempre enorme Mas agora como nunca se viu Até que a mosca É embrulhada Gesto único Num papel-toalha Está quente como chipa ......... Recém-tirada do forno Diz a cozinheira Com o pacotinho branco na mão úmida 161

[ilustração “folhas para paul cézanne” 2]

Sérgio Medeiros – Está com fome? – pergunta ela. – Acabei de me levantar – diz a señora anciana. Estão todos tinindo na Vila Alba como panelas no fogo. A imagem Na loja atrás do ônibus Que chega Junto com outro E outros mais No terminal Tem uma estátua azulada De Iemanjá perto da porta Quase flutuando – Um quarto abarrotado de santos – o Ex diz pensando em voz alta. A anciã pergunta apertando os olhos fortemente: – De onde será que vieram? .........– Me deram um quarto que é um depósito de imagens. 163

[ilustração “folhas para paul cézanne” 3]

Sérgio Medeiros Mas o Ex se cala. A anciã vai achar que ele quer outro cômodo. Talvez num hotel. Ficará naquele antro mesmo. Tem pelo menos ar-condicionado. Ele sempre viveu rodeado de imagens. Afinal, não é ele que vende efígies? Formas? Ex-votos? Outra imagem A estátua em pé Sob a garoa fina Diante da igreja Dois olhos negros Negros arredondados Até arregalados Se é Nossa Senhora Falta-lhe José José talvez tenha saído Correndo feito um qualquer entre os raros transeuntes .........Em busca de uma capa 165

.[ilustração “folhas para paul cézanne” 4]

Sérgio Medeiros De plástico transparente E/ou de um guarda-chuva – Minha ex é essa estátua – confirma o artista quando lhe pedem notícias dela. – Dessas que ficam na rua. – Bem branquinha? – indaga a enfermeira que veio dar remédio para a señora anciana. – Albina – brinca o artista. – Quantas horas ela aguenta parada em pé? – indaga a enfermeira sorridente. – Depende muito das circunstâncias... – Fica em pé numa esquina? – Num calçadão ou na porta de uma igreja. A mão e a luva – Então do ônibus vi a estátua saindo do seu antro escuro O Ex contou aos que estavam reunidos à sua volta – Ela estava em pé atrás de vários vidros esfumaçados pois havia vários ônibus chegando e estacionando entre mim e a loja de artigos religiosos .........Foi há dois anos 167

.[ilustração “folhas para paul cézanne” 5]

Sérgio Medeiros – Então o ônibus deixou o terminal – Então a estátua ficou para trás mas parecia ter saído para a calçada pois voltei a cabeça para vê-la mais uma vez e eu a vi agora nitidamente e como que iluminada – Flutuava sob o sol em vez de andar como gente – Já longe do terminal comecei a sentir a estátua perto de mim em pé no corredor do ônibus – Não olhei para trás mas senti a estátua em pé e era quase do meu tamanho – Aproximou-se deslizando – Imaginei que ela pousaria no meu ombro a sua mão – Mas era uma mão enluvada e eu não vi o seu braço porque a manga do vestido era ampla e longa – Como uma mulher árabe e não a estátua de Iemanjá – E não chegou a pôr exatamente a mão no meu ombro Cochilos A cabeça branca é levemente lilás A cabeça branca levemente lilás tomba para a frente de olhos apertados e testa franzida .........Como se agora sim cochilasse 169

. [ilustração “folhas para paul cézanne” 6]

Sérgio Medeiros Mas de repente faz perguntas sobre a ex do Ex Bem desperta apesar de inclinar para a frente a cabeça meio lilás Depois volta a perguntar sobre a ex e a cochilar e a perguntar de novo sobre ela Estão sós – Você disse uma estátua? – ela indaga de repente. Temendo que ela tomasse a coisa ao pé da letra ele trata logo de esclarecer: – Uma artista. – Ouvi você falar uma estátua – ela insiste. O Ex dá o braço a torcer. – Dessas brancas paradas nas ruas. – Você disse uma artista? E encerra-se ali aquela discussão sobre a estátua catarinense que estaria agora subindo num pedestal no calçadão da Ilha da Magia ou parada na porta de uma igreja de lá. O Ex se arrepia! Por causa do bafo do Centro-Oeste, que suga a energia dele como um vampiro. (No silêncio da tarde ele anseia pelo rumor do velho ar-condicionado que ficou ligado a noite toda no seu antro cheio de imagens em pé, ajoelhadas, sentadas e também deitadas.) De repente o Ex vê nitidamente o seu amigo José vir correndo para junto de Maria. Entre a areia clara e ........ 171

.. [ilustração “folhas para paul cézanne” 7]

Sérgio Medeiros A água azul agora tem Um pesado mar marrom Usufruído por crianças e Turistas argentinos Que nele mergulham Sob o sol que bronzeia Até a água da Ilha da Magia Menos a estátua branca Em pé Ex-voto Vendo-a imóvel com a cabeça tombada para a frente ele começa a moldar em cera as suas pernas. De tão fracas ela já não se apoiava nelas. Agora precisava de colo. – O que é isso? – pergunta uma freira que aparece de repente segurando uma Bíblia. O Ex logo percebe que ela é curiosa e prestativa. .........– É para levar numa capela e pedir uma graça. 173

. [ilustração “folhas para paul cézanne” 8]

Sérgio Medeiros Então ele revela com evidente orgulho que já teve uma barraca de ex-votos diante da igreja onde a sua ex é agora uma estátua de Maria. – Está decidido a pôr de novo a nossa anciãzinha em pé? – pergunta a freira pousando cuidadosamente uma das pernas de cera na palma da mão. Ele balançou a cabeça afirmativamente. A estranha se prontifica a levar as pernas ao santuário mais próximo. No meio do entulho De ondas de entulho No meio delas a máquina amarela Descansa ao sol Enquanto nos fundos Atrás dos montes de entulho Aguarda ereta Uma meia parede Coberta por exuberante folhagem Verde – Paramos de tremer – suspirou a anciã. .........O chão realmente estava firme. 175

. [ilustração “folhas para paul cézanne” 9]

Sérgio Medeiros A imagem do bebê no seco e um poema confessional Tinha de acontecer. Apareceu uma amiga de priscas eras com um bebê no colo adormecido. Ela o balançou fortemente antes de sentar-se. Todo mundo já sabia que o Ex se formara em artes cênicas. Voltara bacharel à Vila Alba. Ele pegou uma folha de papel e desenhou o bebê dormindo. Ao lado da señora anciana de cabelo meio lilás. A cabeça dela tombara de novo para a frente. Ela e o bebê mexiam de vez em quando a boca. Pingam gotas acesas .......... E compridas Bem compridas Da luminária pública Que ilumina mal a praia De repente coberta Pela neblina Um cenário Armado para O Natal 177

[ilustração “folhas para paul cézanne” 10]

Sérgio Medeiros O poeta entrega os versos à velha amiga. Ela também é artista e compõe polcas para- guaias com letras em português. Depois de ler o poema ela usa o papel para abanar o bebê. – Letra de tango? – indaga o Ex. – Pode ser – responde a compositora. A outra imagem Na mesma calçada por onde passou Um seco cavalo sonoro Passam agora umas múmias lado a lado Uma gesticula E outras duas vão de boca aberta Sem emitir sons Enquanto a anciã sonha ........ Com gente muito mais velha que ela O seu espírito se desgarra Então ela vai enrijecendo A cabeça lançada para trás 179

. .[ilustração “folhas para paul cézanne” 11]

Sérgio Medeiros O remédio é chamá-lo de volta Um espírito indo a galope embora! O jovem criativo tem à mão a sua arte Recortará imediatamente a silhueta dela Pega uma folha de papel e uma tesoura Leu isso num poema de Li Bai Mas o jovem mente: foi num poema de Du Fu! Numa noite escura como breu Ele e os filhos dele são acolhidos por um amigo Famintos e cobertos de farrapos Rapidamente o anfitrião recorta silhuetas e as queima Os espíritos aterrorizados dos recém-chegados vêm de volta Uma criança acorda E Du Fu não ouve mais (talvez) nenhum estrondo da batalha Eis que não podemos negar, disse Ernest Jünger, ainda que alguns o quisessem: O combate, pai de todas as coisas, É também o nosso pai Não importa: o combate não é só nosso pai, É também nosso filho .........Mas tudo o que sobrou do sonho dos soldados, disse Bashô, 181

.[ilustração “folhas para paul cézanne” 12]

Sérgio Medeiros Foi essa grama Então ele queima a silhueta dela chamando de volta o seu espírito Vê a chama no chão enquanto se lembra também de outras chamas Não nos campos brasileiros mas nos campos do México e dos Estados Unidos Chamas espetaculares de Ana Mendieta Que também queimava silhuetas autobiográficas Ela explodia as suas silhuetas usando pólvora Fogos de artifício à noite Cosmogonia Agora a sua boca se mexe quase o tempo todo Deitada de lado na cama Apenas de lado Sempre de lado Sempre do mesmo lado Parece adormecer imediatamente na penumbra quente .........Um bafo guardado no quarto 183

.[ilustração “somas” 1]

Sérgio Medeiros O bafo íntimo de Campo Grande O bafo do Centro-Oeste por cima da casa Ventiladores meio ocultos Zumbem Ela os detesta pois lançam ar frio nela O bafo é atacado pelos ventiladores E se mexe como uma alga comprida Na penumbra do sono dela O Ex e os urubus do Sul e do Centro-Oeste [No Centro-Oeste] ......... Embora velhos Esses urubus da Cidade Morena Não sabem aparentemente Voar no bafo Pois de asas abertas Balançam-se sem escrúpulo Nos seus giros aéreos 185

[ilustração “somas” 2] .

Sérgio Medeiros Baixos ......... [No Sul] 187 O elegante urubu passeia Num muro diante do mar Mas sem querer enfia Uma patinha num buraco E vacila abruptamente Interrompendo a bela Caminhada matinal Na Ilha da Magia [Na Cidade Morena] Aroma de magnólia? [Na Ilha da Magia] Vem água O aroma da tarde

[ilustração “somas” 3] .

Sérgio Medeiros Na calçada irregular ......... Aparece uma índia moça Com feijão da roça 189 Sob o pé de magnólia Cujo aroma penetra no bafo Até a varanda acanhada Para onde o artista traz No colo a pequena anciã A índia terena sorri À sombra da magnólia As flores amarelas Exalando perfume Sobre a sua trouxa Ou cesto ou bacia E conta quantos são Os deuses e os santos Do seu totem Pois também É missionária

[ilustração “somas” 4] .

Sérgio Medeiros Despertando sem susto ......... A señora anciana diz Que plantou a magnólia 191 E que a ajudou um menino E era uma plantinha apenas Que ela foi cuidando Até virar árvore grande Com flores amarelas E aquela índia embaixo Falando suavemente Não não não A roça dos índios não ficava Na Bolívia Nem na Guatemala Nem no Canadá Não não não Está na ponta da língua Ela encerrou sorrindo Aquela enumeração:

[ilustração “somas” 5] .

Sérgio Medeiros Mas não disse de onde veio O feijão divino recém-colhido Então outra índia Passou na calçada Defronte e bateu Palmas quando Ouviu o rádio De um carro Tocando polca Na garagem Maria e José e oito milhões de deuses [Estátuas natalinas] ......... José e Maria Maria e José [Maria e José nas performances] Casal? Casal! 193

[ilustração “somas” 6] .

Sérgio Medeiros [O totem de uma índia] Deus Buda Enxame de abelhas Iemanjá Furacão Jurupari Jesus Cristo Nossa Senhora Feijão! Decoração natalina ......... Em volta de uma moita de bambus Que estão se tornando mais verdes E sonoros Há várias latas de tinta Amontoadas no chão Latas vazias 195

[ilustração “somas” 7] .

Sérgio Medeiros Latas velhas ......... Latas novas São gigantescas as flores Vermelhas dos hibiscos anões Que estão quase ocultos No fundo das grandes folhagens Que chegam à borda Da piscina serena Sentado com as pernas para fora Do helicóptero que sobrevoa a praia Um policial de camiseta branca dá Alegremente adeus aos banhistas Como um pachorrento Papai Noel Indo embora sem o seu uniforme Oficial Sob a garoa fina a estátua Imaculada de Maria não se move 197

[ilustração “somas” 8] .


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