Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 251 Percebi que a trajetória desse meu primeiro livro infantil foi vitoriosagraças à dedicação e competência das escolas e ao nível de interesse e elevadacapacidade das crianças, o que está, inclusive, viabilizando a sua reimpressãoneste ano de 2015, por meio de recursos do Fundo para a Infância e Adolescência(FIA). Mas há muitas outras sugestões de temas literários manifestadas pelasescolas, pois os professores e bibliotecários alegam que a oferta de literaturainfantil que trate das questões histórico-culturais do nosso município e do nossoestado ainda é muito escassa e pode ser abordada com mais destaque, sendotema pedagógico de sala de aula. Segundo esses depoimentos, dificilmenteencontra-se literatura voltada para essas questões. Atualmente existe um campoamplo de literatura infantil, com temas riquíssimos, mas, em contrapartida,a literatura que trata de questões histórico-culturais do nosso município, denosso estado, de nossas origens, de forma tão lúdica quanto a proposta em OVoo da Pandorga Mágica é quase inexistente. Por isso consideraram, essesprofessores e professoras, muito importante apoiar publicações de narrativasinfantis que deem suporte em sala de aula para o professor do 1o ao 9o ano.Alguns alegaram que há carência maior de livros para o 4o e 5o ano com taisenfoques e solicitaram a continuação da narrativa O Voo da Pandorga Mágica,quem sabe, com as crianças personagens mais velhas. Entre as sugestões manifestadas nas escolas eu destaco: estimular apesquisa de espécies de plantas que se cultivam nos quintais das antigasfreguesias, como Ribeirão da Ilha, para fazer um registro botânico para oslaboratórios de ciências das escolas; abordar a chegada de outros povos emSanta Catarina, como a etnia africana, alemã, italiana, entre outras, mostrandoa marca cultural que cada uma deixou de herança para nós. O livro podecontinuar, trazer novas experiências dos seus personagens em viagens deThiago e Raquel em outras cidades, países ou visitando outras escolas, sugerem. O primeiro livro, afirmam algumas crianças e professores, “deixa umsabor de quero mais”. Por isso consideraram importante continuar a históriacom novas aventuras, já que há outras questões históricas, ambientais eculturais que podem ser exploradas e apresentadas às crianças na forma denarrativa infantil. Temas como: os primeiros habitantes da Ilha de SantaCatarina (povos dos sambaquis, os carijós e os itararés), quem foram, comoviviam, como era a relação deles com a natureza. A chegada dos açorianos, acriação das primeiras freguesias, o destino do lixo e os ecossistemas da Ilha –quais são, onde se localizam –, a fauna já extinta e a existente, a importânciada preservação da natureza e dos recursos ambientais. Estes são temas com osquais as crianças se identificam, já que retratam a origem de nossa história,de onde viemos e para onde vamos, se não tomarmos consciência de alguns
252 Colóquio NEA 30 anos de Históriaaspectos, culturais e ambientais. Por outro lado, as crianças fantasiam bastante:gostariam que houvesse uma história com formigas, morcegos, que alguémroubasse a pandorga – um vilão –, que a pandorga fosse ao Egito, sobrevoasseas pirâmides ou contornasse vulcões e castelos, etc. Enfim, dizem algumas professoras sobre O Voo da Pandorga Mágica (magia que tencionamos repetir no segundo livro pretendido): “Essa estória faz parte da realidade da Costa da Lagoa a de nossas crianças e famílias. Este livro foi transformador para nós naquele ano, as professoras encontraram tanta riqueza para trabalhar com ele que não tinha fim, trabalhamos dentro das disciplinas, teatro, artes, entrevistas, passeios, brincadeiras, atividades com as famílias, oficinas envolvendo o ensino fundamental com a educação infantil, o resgate e a valorização da cultura local pelas nossas crianças e suas famílias, com o teatro que criamos sobre a história do livro, apresentamos nos eventos da Prefeitura, e, ainda, com a autora Eliane, realizamos um intercâmbio com os Açores, com a Escola do Castanheiro, da Ilha de São Miguel, que resultou numa videoconferência até no ano passado (2014) trocando saberes e culturas, como também a descoberta de nossos alunos atores que, no ano seguinte, realizaram um filme na Costa da Lagoa.” (Professora Waldirene Garcia Moraes – diretora da Escola Desdobrada e NEI Costa da Lagoa)“Um livro com uma estória simples, mas envolvente, onde foi possívelcriar inúmeras possibilidades, proporcionou um processo de ensino eaprendizagem transcendente, para além da sala de aula, da escola, umensino para vida. Mergulhamos a fundo nas páginas dessa narrativa,visitamos locais tratados ali na história, conhecemos o personagemCláudio, tentamos descobrir quem era Cota, encenamos o hino da Ilha,conversamos com nossos avós, resgatamos suas memórias numa lindapandorga, dramatizamos uma cena da narrativa, teatro que foi umsucesso com descoberta de grandes atores mirins, que em 2014 estrearamo filme Taí ó! (Mostra de cinema infantil). Recebemos Eliane, a carinhosaautora do livro, que nos proporcionou um intercâmbio com o Colégio doCastanheiro, da Ilha de São Miguel, em Portugal, intercâmbio que perduraaté hoje. Foi e é sempre um grande prazer trabalhar com essa literaturaque trata com uma forma tão suave questões tão sérias de pertencimentocultural e histórico.” (Carolina Kuhnen – Professora dos anos iniciais naEscola Desdobrada e NEI Costa da Lagoa)Muitas escolas têm projetos de incentivo à leitura, e neles circulammuitas obras. Os professores e bibliotecários afirmam dar preferênciaa obras cujos escritores e escritoras podem estabelecer algum contatocom as crianças: “Isto fez diferença na vida escolar e de alguma
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 253 maneira, pode despertar o gosto pelas histórias, sejam elas quais forem. Os resultados incluem: investimento das famílias na aquisição de obras literárias, pois compreenderam que elas precisam circular; mudança na rotina de algumas famílias, pois algumas crianças relatam diálogos estabelecidos entre e sobre o que se lê na escola e em casa; ampliação vocabular; construção de sintagmas; apropriação da escrita derivada das leituras realizadas. Exercício de catarse, pois algumas crianças associam comportamentos, atitudes e vivências a algumas descritas em certas obras: elo de ligação e referências positivas. Mas a principal motivação para ter ‘escolhido’ a obra O Voo da Pandorga é a necessidade de dinamizar as aulas, ressignificar o espaço da escola e aproveitar uma área imensa de que dispomos e promover uma tarde/período/dia/evento para desfrutarmos da brincadeira com pipas e pandorgas. (Rute Albuquerque Albuquerque – Professora da Escola EF São Miguel, em São José) Assim, justifico que, a partir da manifestação das crianças leitoras daprimeira história e da opinião dos seus professores, cheguei à definição de umtema importante para a segunda narrativa sobre a pandorga mágica, livro cujonome provisório é: O Voo da Pandorga no Vale do Itajaí. Essa nova históriaterá, além dos dois personagens principais mais crescidos, alguns elementos-chave que vêm da primeira história: a pandorga, o bilro de fazer renda e astrês pedrinhas da praia nos Açores. Não haverá necessidade de conhecer aprimeira história para entender a segunda. Essa vai tratar de uma viagem sobrea pandorga mágica para o Vale do Itajaí e para o século XIX. Está lançadoo roteiro prévio e o tom da narrativa, que será ilustrada pelo mesmo artistatalentoso que desenhou a primeira história e soube captar tão bem a essênciados personagens. Além disso, se tudo der certo, ainda poderá haver, no futuro, um novolivro para o epílogo, um terceiro conto e, com ele, por onde andará a pandorga?Tudo depende da imaginação... Basta sonhar, acreditar e realizar!
254 Colóquio NEA 30 anos de História
O reacender da chama açoriana em um município multiétnico Elza de Mello Fernandes Para falar do Núcleo de Estudos Açorianos (NEA), em seus 30 anos deexistência, e da emoção que ele inspira, é necessário ir às nossas origens, falarde tempos idos e vividos, de saudades acalentadas e de valores latentes emnossa formação. Nasci em Ausentes, um pequeno povoado do município de Içara,imersa em uma cultura de base açoriana. Vivi minha primeira infânciacom a curiosidade natural de toda criança. Brincávamos de roda ciranda,amarelinho, chicote-queimado, pernas de pau, bonecas de pano etc., enquantoos adultos estavam nas capinas de roças ou nas lidas de engenhos de farinhade mandioca. À noite, ouvíamos os causos contados pelos adultos, fazíamosas orações, pedíamos aos pais a sua bênção e íamos dormir. Meu avô maternoconfeccionava canoas, peças de engenhos e móveis artesanalmente. A casa demeu avô paterno era a extensão de nossa casa, e a sua presença constante nosacompanhou até o primeiro ano escolar. Só após a conclusão do meu cursoprimário é que saí desse primeiro mundo para a cidade de Içara. Meu pai jáera mineiro. Içara, uma pequena vila emancipada do município de Criciúma, há trêsanos, abria-se ao êxodo rural rumo à urbanização. Habilitei-me ao magistérioe voltei ao meu lugar de origem. Alfabetizei duas gerações nesse tempo deatividade profissional. Conheci, por intermédio da administração municipal,Vilson Francisco de Farias, professor da UFSC e coordenador do NEA, quenos convidou a fazermos pesquisa de campo. Seria a possibilidade de coletardados e validar o conceito de açorianidade içarense e, ainda, contribuir como NEA. Ser reconhecida em minhas origens era tudo o que eu queria. Lancei-me em pesquisa de campo e mapeamos os focos principais de cultura de baseaçoriana e suas manifestações populares. Fizemos um corpus valioso. Fui
256 Colóquio NEA 30 anos de Históriaconvidada a contar nas escolas as histórias ouvidas e vividas e reproduzir ummaterial para o município. No ano seguinte, fui convidada a ir ao Arquipélagodos Açores para o curso A descoberta das raízes, em 1997. O NEA indicavaas pessoas que trabalhavam nos seus municípios de origem, e eu fui uma dasagraciadas. Foi maravilhoso conhecer quatro ilhas açorianas: Terceira, Faial,Pico e São Jorge. Içara sediou o 5o AÇOR no ano seguinte, e recebemos a visita do grupoSete Ribeiras, da Ilha Terceira. Márcia Beatriz Fernandes praticou um minicursode Danças açorianas com o Grupo Doze Ribeiras, no Balneário Rincão, ondeestavam alojados. Assim, diante de tanta generosidade, decidimos que a chamaaçoriana reacendida pelo NEA jamais se apagaria em Içara. Quando saí da rede municipal de ensino, agreguei-me a outros zelososda cultura de base açoriana, organizando, registrando e fazendo recolhasda memória de nossos ancestrais em seus cantares, folguedos, crenças eartesanatos. Fundamos a Associação Cultural Açoriana de Içara (ACAI), e onosso trabalho autônomo continuou firme. Em 2013, uma segunda edição do AÇOR foi realizada em Içara, o 20oAÇOR. As ruas da cidade tiveram um colorido todo especial, e as modasaçorianas, acompanhadas pelas violas de corda e das rabecas, evocaram assaudades de nossos cantadores ancestrais. E, para coroar nosso zelo pela culturade base açoriana, Içara, na minha pessoa, foi agraciada, como pesquisadora,com o troféu Ilha da Graciosa. Na Associação Cultural Açoriana, nos dedicamos a todas as manifestaçõeslatentes em Içara, divulgando-as em uma coluna semanal no Jornal Içarense,no primeiro sábado de cada mês, participamos de um programa de rádio naFM 104.9, na qual há a divulgação do andamento da cultura de base açorianano município, com os associados Marcionei Fernandes e Jorgemar JoséFernandes, atual presidente da ACAI. E lá se vão 30 anos de vida do NEA, a fonte de integração de municípioscatarinenses que se dizem fundados por múltiplas etnias e reconhecem, hoje, oser e fazer de base açoriana na principal matriz formadora de seu povo. O NEAfez florescer trabalhos e obras por todo o litoral catarinense, particularmenteem Içara, e, nesta terceira década de vida e trabalho, colocamos a adesão devários içarenses ao trabalho de base açoriana, como um mimo que ofertamosao NEA neste reacender da chama cultural açoriana em Içara, um municípiomultiétnico: ■■ grupo de dança infantil Aurora Açoriana, coordenado pela professora Márcia Beatriz Fernandes, diretora da EEFM José Fernandes Silveira, em Sanga Funda, que representou Içara por duas décadas. Hoje o
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 257 grupo Aurora Açoriana faz parte do projeto Etnias nas Escolas, idealizado pelo secretário de educação Antônio de Mello e mantido pela ACAI; ■■ Associação Cultural Açoriana de Içara (ACAI), fundada em 1994 para preservar e divulgar a cultura de base açoriana no município de Içara. É a ACAI que dialoga com seus associados e preserva a chama cultural orientada pelo NEA. Atualmente a ACAI é presidida por Jorgemar José Fernandes; ■■ edição de livros com embasamento cultural registrando os feitos e fatos, em especial do povo içarense: Içara: nossa terra nossa gente (pesquisa); Raízes do saber popular: mitos, ritos e o folclore (pesquisa) e O náufrago: saga açoriana no Brasil meridional (pesquisa genealógica em coautoria com Nabor João Teixeira); entre outras edições poéticas ou infantis; ■■ contribuição de matérias de divulgação da cultura de base açoriana para a Décima Ilha Açoriana, revista editada em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; ■■ monumento dos 500 anos de descobrimento do Brasil, onde registramos Urussanga Velha como o berço de emigrantes açorianos e origem das matrizes étnicas dessa formação sociocultural, uma parceria com a Diocese de Tubarão, a comunidade de Urussanga Velha e a administração municipal de Içara no ano 2000; ■■ dissertação de mestrado com o título: Terno de reis e boi de mamão em Içara (SC): as relações dialógicas na linguagem folclórica do ciclo natalino num município multiétnico, uma contribuição científica na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em 2004; ■■ criação do Grupo Folclórico Carreiro, que baila as modas do folclore açoriano; ■■ fundação do grupo de mulheres artesãs Matizes, que preserva a arte de linhas e agulha de tradição de base açoriana e é presidido por Maria de Mello Ferreira. É... já somos muitas mãos a tecer a rede cultural açoriana. Queremosagradecer ao professor Vilson Francisco de Farias pelo primeiro convite e aoNEA, na pessoa do coordenador Jói Clétison Alves. O NEA é o propulsor dagrande rede cultural em Santa Catarina, e podemos dizer-lhe: conte conosco!
258 Colóquio NEA 30 anos de HistóriaMesmo estando um pouco longe de Florianópolis, continuaremos fazendoparte dessa chama alimentada por muitos ideais e por um amor incondicionalaos nossos ancestrais, que nos legaram tão bela cultura. Elza de Mello Fernandes é graduada em Pedagogia, pós-graduada em Didática e do Ensino Superior, Mestra em Ciência da Linguagem. Professora aposenta Municipal de Ensino e atualmente Orientadora Pedagógica na Rede Estadual de En na EE.B.AntônioGuglielmi Sobrinho, em Vila Nova, Içara. Secretária da ACAI – Associação Cultural Açoriana de Içara, coordenador folclórico Carreiro e do grupo Matiz, das mulheres artesãs. Acadêmica Nº8 da AILA – Associação de Letras e Artes da Içara. É também pe estudiosa da cultura de base açoriana e do folclore regional, contribuindo com a Ensino Fundamental.
Uma etnografia sobre Moacir de Souza1 e seu trabalho com a matéria-prima mágica, que encanta São José até os dias atuais Fabiana KretzerTrabalho de campo: São José, início do século XXI Percorrer o fabrico dos artefatos de barro neste início de século XXIem São José é como ter a oportunidade de se deparar, pelo menos, comtrês realidades específicas que se relacionam com o barro enquanto rotinaprofissional. As observações e registros, durante a pesquisa de campo iniciadaem 2010, seguiram essa rotina, de anotar três estilos comportamentaistotalmente diferentes e concomitantemente glosar o respeito e entusiasmo quetodos eles têm ao manusearem tal matéria-prima que os encanta, o barro. Diante das pesquisas de campo, é plausível afirmar que as pessoasque trabalham com o barro em São José, no início do século XXI, o oleiro,o professor de cerâmica e/ou escultor, não enunciam uma norma cultural naprática de suas atividades: Define-se norma como o modo de comportamento que compõe a cultura de qualquer sociedade e que resulta da generalização da conduta da maioria dos membros dessa sociedade. Podem-se distinguir entre as normas culturais algumas que devem cumprir todos os indivíduos, outras que só parte da população está obrigada a cumprir e outras que são mais ou menos aconselháveis segundo as circunstâncias.21 Moacir de Souza, nascido em 20 de abril de 1960, oleiro tradicional, filho de José de Souza.2 BARRIO, Angel-B. Espina. Manual de Antropologia Cultural. Recife: Ed. Massangana, 2005,
260 Colóquio NEA 30 anos de História Mas nem sempre foi assim, no século XIX e em boa parte do séculoXX, por exemplo, comportamentos específicos eram atribuídos aos oleiros,entendidos como um grupo coeso que exercia suas funções nas olarias.Esse grupo coexercitava práticas cotidianas muito privativas, a famíliatrabalhava num mesmo ambiente (casa-olaria), os homens tinham afunção de mestres e o direito/dever de irem trabalhar na roda, as mulherestinham obrigações com a casa, e na olaria lhes era permitido brunir aspeças, modelá-las e/ou pintá-las, ou seja, a divisão sexual do trabalhoera uma regra comportamental. Dentro desse contexto, a identificaçãodessas situações diárias com o conceito de subcultura3 parece satisfazer oentendimento histórico desses oleiros de São José. Eram homens e mulheresque conviviam numa cultura mais ampla, mas que tinham comportamentospróprios, diferentes da maioria. Para tornar visíveis esses três modos de vida que praticam em seu diaa dia o manuseio com o barro, explicitando o seu conteúdo antropológico,elabora-se a construção de uma leitura daquilo que acontece, narrando anormalidade das ações vividas sem reduzir suas especificidades,4 “uma boainterpretação de qualquer coisa [...] leva-nos ao cerne do que nos propomosinterpretar”.5 Com a consciência de anotar a profundidade cotidiana do trabalho como barro desses três perfis apresentados nessa tese, é que se baseia a narrativasobre o modo de vida de Moacir de Souza e a sua amizade com José GeraldoGermano e Valdo Santeiro. A pesquisa desenvolvida nessa tese de doutorado se restringe a adentrarpelo universo de um dos últimos oleiros tradicionais de São José, Moacir deSouza, através de entrevistas, e, por esse meio, obter os relatos orais da suahistória de vida. No decorrer das entrevistas, pude perceber que eu estavaenvolvida com três pessoas que se dedicam ao barro até os dias atuais, opróprio Moacir, o Valdo Santeiro e o Geraldo. Todos os três têm mais de 40anos, trabalham com a mesma fonte, o barro, são amigos, mas o resultado dotrabalho é completamente diferente, assim como os seus modos de vida. p. 31.3 Normas especiais: comportamentos próprios de um subgrupo ou classe social determinada, diferentes dos do resto do conjunto social (ex.: modelos de relação entre jovens, determinados tabus dos feiticeiros etc.). Estas regras poderiam chegar a conformar uma subcultura, termo que não carrega nenhum sentido pejorativo, apenas designa uma cultura específica dentro de outramais ampla. p. 31.4 GEERTZ. A interpretação das culturas. p. 10.5 Idem, p. 13.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 261 Estava diante de três pessoas com características distintas que trabalhavamcom o barro no início do século XXI, em São José, mas não tinha possibilidadereflexiva, nesse momento, para considerar todas essas falas e readequá-las soba teoria antropológica. Diante da limitação apresentada, a etnografia que apresente pesquisa sustenta é a de que Moacir de Souza representa o modo devida do oleiro tradicional; mas a fala de seus amigos Geraldo e Valdo Santeirose constitui num repertório importante para se entender, ou melhor, para sevisitar, a complexa relação entre o sujeito Moacir de Souza e suas interaçõescom os ambientes sociais construídos historicamente. Sendo assim, todos os acentos culturais apreendidos, por meio dasentrevistas, têm o foco etnográfico em Moacir de Souza, e as entrevistas deGeraldo e Valdo Santeiro são referências para se entender os códigos simbólicosentre São José da Terra Firme e o seu trabalho ininterrupto (desde a chegadados açorianos) de fabricação de louças de barro e suas variações no final doséculo XX e início do século XXI. Iniciamos nossa conversa com Moacir de Souza de forma descontraídae, ao mesmo tempo, capaz de resultar em várias ramagens comportamentaisque precisarão do olhar atento para perceber a pluralidade de seus desenhos.Antes, porém, gostaria de narrar como conheci Moacir de Souza. Numa dessas tardes frias de inverno, em julho de 2010, naqueles diasque o gris resolve apresentar todo seu potencial, lá estava perdida no bairroPonta de Baixo, para fazer uma entrevista com Valdo Santeiro1, sugestão deum colega de trabalho, para investigar sobre um projeto que estava ocorrendona cidade em relação aos oleiros, chamado “Rota de Oleiros”. Procurando,então, pela casa de Valdo, eis que entro numa casa para pedir informações,e simplesmente estava com Moacir, oleiro tradicional, que me recebeugentilmente e logo me convidou para entrar, pois o frio era intenso no ladode fora, eu nem acreditava que estava mergulhada naquele cenário protegidopor telhas Eternit pretas pintadas pela natureza. Lá dentro da olaria, fiquei emfrente a um forno a lenha, forno tradicional de queima das peças, coisa rarahoje em dia, e, mais à frente, o barro, ainda úmido, desenhava-se em panela.Moacir parou esse trabalho para me atender. Ele conhecia Valdo e me ensinouo caminho para chegar à casa do seu amigo. Eu, encantada com tudo o queestava se revelando na minha frente, inevitavelmente tinha perdido a pressa. Saí de lá com um sorriso falante, porque tinha acabado de encontrar otal amigo sobre o qual Geraldo sempre me falava. E lá fui eu à procura da casado ceramista e artista plástico, Valdo Santeiro.1 Nome de batismo de Valdo Santerio: Valdair Correa da Silva
262 Colóquio NEA 30 anos de HistóriaModo de vida 1: Moacir de Souza,2 o “Ci” – oleirotradicional Filho do oleiro Zequinha,3 aprendeu o ofício com o pai e hoje, juntoda mulher, Rose,4 vive da venda de suas panelas e de outros elementos, todosutilitários. Segundo a pesquisa de campo, iniciada em 2010, pode-se dizer que setrata da única olaria que resistiu ao tempo, e por isso é considerada o exemploda olaria tradicional no bairro da Ponta de Baixo, na cidade de São José, litoralde Santa Catarina. A olaria tradicional é sempre envolvida com a família. As relações deparentesco são fundamentais para que o ofício se perpetue, assim foi comMoacir. E hoje é ele e sua esposa Rose que desenvolvem essa atividade. Como diz Moacir: “Trabalho eu e minha esposa, né. Eu faço as peças, eela passa a pedrinha, pra ficar lizinho, faz o acabamento”. Esse hábito de bruniras peças é muito antigo, os índios da América Latina já bruniam as suas peças,com auxílio do engobo,5 como menciona Geraldo em entrevista realizada emfevereiro de 2015: Os perunanos, os colombianos, em geral os índios da latino América, trabalhavam o engobe, passavam o engobe; a gente meio que adaptou, mesmo não usando o engobe, a gente bruni a peça, bruni pra quê? Impermeabiliza a peça, vai fechando todos os poros, pra facilitar também na limpeza das panelas. Até as pedrinhas que soltam, a gente bruni, pra ficar a peça bem lisinha. Os índios bruniam tanto que as peças reluziam, eu acho tão lindo.2 Moacir de Souza, nascido em 20 de abril de 1960, oleiro tradicional, filho do José de Souza, o seu Zequinha.3 José de Souza: oleiro tradicional, conhecido como seu Zequinha, nascido em 4 de abril de 1927 e falecido em 19--.4 Rosimar Luz de Souza, nascida em 18 agosto de 1965. Nas entrevistas, de 2010 a 2013, Moacir e Rose estavam casados. Em fevereiro de 2015, numa entrevista, descobri que o casamento havia sido desfeito.5 Engobo é uma mistura de argila líquida, óxido e outros componentes que pode ser aplicada em uma peça antes da esmaltação.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 263 Mesmo que esse hábito seja tão antigo, conforme narrativa acima deGeraldo, o brunimento nas olarias nem sempre acontecia, quando haviatempo, as peças eram brunidas pelas mulheres, “oleiro não brune peça, demoramuito, tem que ter muita paciência e a encomenda, principalmente na época dopai, era muita”, diz Moacir. O lavor na olaria obedece às peças, o que significa dizer que a jornadade trabalho não está fragmentada em horas, em salários, em carteira assinada,não se troca de roupa para ir ao trabalho, não se pega ônibus ou qualquer outrotransporte, enfim, o trabalho dentro da olaria do Ci segue a rotina de seu pai,o mestre Zequinha, pois aprendeu observando o ofício dele. O conhecimentoadquirido pelo Ci dessa função profissional foi através da observação e daoralidade,6 como era comum para as crianças e/ou aprendizes que queriamexercer o domínio de toda a produção da louça de barro. Os fornos são personagens muito importantes para que o resultadodas peças tenham a qualidade desejada. Geralmente a rotina é a seguinte: faz-se a louça na roda de oleiros, que é executada por homens (hoje, nas escolasde oleiros de São José: Joaquim Manoel de Medeiros e Olaria Beiramar, essatécnica é ensinada não só a homens como também a mulheres); depois, essaslouças ficam expostas ao sol, para iniciar-se o processo de retirada da água e, nasequência, vão para os tendais, que são madeiras em forma de tábuas de pínusou caixaria, onde as peças ficam delicadamente colocadas nessas plataformas. Antes de as peças irem para o forno, precisam ficar expostas parasecagem. Na olaria tradicional, a secagem é feita nos tendais, desde a épocade seu Zequinha. Geraldo,7 encantado com a utilização desse processoremanescente, afirma que: “A produção é tão grande, que é colocada a peça na tábua, e eles pegam nas costas e já colocam no tendal, pra facilitar quando o vento bate, já vai secando as peças; só depois que vai pro forno”. Moacir completa, “fica uma semana nos tendais, pra secagem, depois coloco no forno, pra queima”. Essas tábuas, que são conhecidas pelos oleiros como tendais, ficamsobrepostas no forro da olaria, entre o telhado e o forro, e ali, suspensas nas6 Revista do Folclore Brasileiro, Ano 1, n. 1, 1961.“A modalidade de comunicação oral que, aparentemente, seria um processo dispersivo e tumultuoso de esquecimento, é uma forma plástica mas indeformável de conservação e continuidade da cultura popular”, Luis da Câmara Cascudo, p. 11.7 José Geraldo Germano, professor de cerâmica da Olaria Beiramar e amigo particular do Moacir.
264 Colóquio NEA 30 anos de Históriatábuas, as peças ficam alguns dias até a água evaporar (com a ação da luz e dovento) completamente do barro. Só depois disso, a produção vai para o forno,sendo necessário um tempo para a preparação do fogo. Se o forno for muitogrande, segundo Moacir, leva-se praticamente um dia inteiro preparando a lenhapara aquecer, e só no outro dia, ou depois de muitas horas, é que ele conseguecolocar as peças. É um processo tão sofisticado e rico em detalhes que o próprioMoacir narra a sensível ligação da produção com o fogo nos fornos: Depende do esquente né. Se quiser ficar o dia todo esquentando é até melhor, pra eliminar a água, pra não estourar nenhuma peça. O esquente é que manda muito, não pode apurar muito, tem que ter a “manha” do fogo, não é só colocar a lenha [...] O dia que a gente faz a queima, não se fabrica as peças, não se trabalha nisso. É só na queimada, tem que cuidar do forno, ontem apurei demais e estourei peças, não pode deixar pegar fogo demais. Tem que saber do fogo, e também tem que colocar as peças mais firmes embaixo, as mais pesadas têm que ficar embaixo.8 E continua sua explicação sobre o forno: Ontem ainda foi um dia que fiquei até duas horas da manhã queimando os dois fornos. O oleiro é assim, não tem parada, daí a gente queima hoje, apura o forno, pra entregar a louça no outro dia.9 Os fornos da olaria são a lenha, “tem o maior, pega mais peças, e o menor,que é pra menos peças. O forno maior é da época do pai, têm uns 40 anos”.10 Ao voltar à olaria, em 2015, pude observar que continuava tendo doisfornos a lenha, mas Moacir tinha acabado de desmanchar o forno que seupai havia construído. A atual fotografia dos fornos é de um menor, que medeaproximadamente um metro de largura, por um metro de profundidade euns sessenta centímetros de altura, para peças menores e em quantidadediminuta. Ao lado deste, o Ci construiu, em janeiro de 2015, um forno maior,que comporta aproximadamente 400 peças pequenas e umas 50 a 80 peças deporte grande. Especificamente esse forno foi construído em substituição aoforno que havia na época do seu pai, Zequinha. Ele desmanchou esse fornoe construiu um novo do lado direito da porta de entrada da olaria; o antigoficava no lado esquerdo.8 Entrevista com o oleiro Moacir de Souza foi feita em 18/8/2010.9 Moacir de Souza, entrevista em maio de 2010. Nascido em 20 de abril de 1960.10 Entrevista com Moacir em 2010.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 265 O modo de vida tradicional vai, ao longo do tempo, adaptando-se às novas expectações e, nesse processo de transformação, ele pode tanto resistir quanto desaparecer. A olaria do Ci é um reduto importante desse estilo de vida, pois, ao mesmo tempo que é um componente para a sua identidade é um contraponto com a vida social que se estabelece, como um refúgio de resistência. Acompanhando o sentido dessa flecha,11 nos deparamos com a única Acoolmaripaatnrahdaicnidonoaloexissetennttied, oaindeashsoaje,fnleocbhaair1r6o3 Pnonotsa ddeeBpaairxaom. Boasirrocoemsse a única que já foi referência das olarias, dos oleiros e dos artefatos de barro. E tivetradicionalopeoxrtiusnteidnatdee daeinsdegauirhaojiendincaoçãobadiarrpolacPa,opnotias jádceonbhaeicxiaoe.ssBe caaimrrionheosse quereferência dSdaeansdsteeoiroloa,dreiiamaqsju,ueldheoomsdmeo2lee0pi1re0or.dsi enodboasirarortàefpartoocusrdaedabcaarsraod.oEcetriavmeiostpaoVratludnoidade dea indicaçãoa tdraabapNllhaeascrsaen,adpiraooddisae dajágeoocsltoeoin,rohesuecceosimtaaveoaspasaceiodmcoapmsaenuihnMahdooaacddieer,Gsodemeraeolsdtorde,iqaZueqequaupeinrehmnade, nepuaerdi no bprocura dadcécaasdaadeo1c9e6r0a. FmaçiostuamVaapladraodaSnaannteariraot,iveamdesjsuelahgoosdtoep2a0ra1q0u.e o conceito de mestre seja evidenciado. Segundo Gilberto João Machado, pesquisador do Netsesmea odliaariadeetamagbéomstooleierou: estava acompanhada de Geraldo, que apretrabalhar na rodAainddeúsotrliaeidraomsacnuofmaturoa dpaas iloudçoassdeeubaMrroo, eamcbiorr,aodemfoermstarreúsZticeaq, uinha, na déc1960. Faço umatarlacdapniacçirooaundapiasropcnaedsasroõnsesadeerrmeavotodiluvelçaoãso,dpneearssfsipsee, çsiaamsgqeoturesiatp,oreosmdpueazrrioaa,edqqeufuianeliiddoaodsepc,ePoloInSsceito de mesevidenciado. Segundo Gilberto João Machado, pesquisador do tema olaria e toleiro, defi11n eEse:ssraeffeorteo da placa é de 2010, anterior Lei no 4.953. Foto atual está no capítulo 2, que ao “circuito de Oleiros”. Contrariando a referida lei, que intitula-se “Rota dos oleiros”. A indústria da manufatura das louças de barro, embora de
266 Colóquio NEA 30 anos de História chegavam as copas, cozinhas e mesas de uma grande parte da população. Essa evolução, promordialmente; passava por experimentos práticos através de misturas do barro que resultavam plasticidade, firmeza para boa modelagem, peças fortes, resistentes, inclusive a umidade da água. O aprendizado do ofício na roda de oleiros passava pela fiscalização do mestre, que recusava as peças fora dos padrões exigidos, amassando-as ou furando-as com os dedos ainda moles para o reaproveitamento do barro. A complementação da qualificação acontecia no forno, como enfornação de louças cruas, pontos de queimação, vidração e preparação do litargírio ou zarcão, a base de água do barro e areia monazita, que certamente resultavam em boas fornadas de louças vidaradas (fainaça).12 No texto do Dossiê do IPHAN sobre o ofício das paneleiras de Goiabeiras,também se tem a definição de mestre(a) como aquele(a) que detém todo oconhecimento, do início ao fim do trabalho. A produção das panelas de barro de Goiabeiras compreende inúmeras atividades, praticadas em várias etapas. Todas elas são de pleno domínio das mestras do ofício, que até pouco tempo as realizavam diretamente.13 Nos dias atuais, é mais difícil encontrar essa pessoa que domine todasessas etapas. No ofício das paneleiras de Goiabeiras, por exemplo, a atividadefoi fragmentada, e várias pessoas desenvolvem as partes, cada grupo umafunção específica, Hoje são desempenhadas por diferentes executantes, ficando o trabalho de coleta e transporte das matérias primas mais freqüentemente a cargo dos homens. Continuando a narrativa da tarde de agosto, o frio havia se recolhido e oSol manifestava seu aconchego espalhando luz por toda a olaria, e eu e Geraldoadentrávamos a olaria do Moacir. Nos dizeres do seu Moacir: “Aqui na Ponta de Baixo ou se era pescador, como meu avô, ou se era oleiro, como o meu pai. Eu puxei o meu pai”. Geraldo completa, “a única olaria que hoje ainda perdura é a olaria do Zequinha, que é o Ci que comanda, junto com a mulher, Rose”.12 MACHADO, Gilberto João. São José: O caminho da Ponta de Baixo dos oleiros e das olarias – cultura de base açoriana.Florianópolis: Bernúncia, 2011. p. 38.13 Dossiê IPHAN 3 Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, p. 31. Disponível em: <www.iphan.gov.br>.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 267 A conversa nessa tarde de agosto invadiu o relógio e permanecemosvárias horas por lá. Para mim, vários questionamentos vieram a tona, assimcomo outros esclarecimentos e conhecimentos novos sobre o ofício. Aprenderobservando, aprender conversando, aprender convivendo. Ensinamento dosoleiros que utilizei na íntegra. As tais telhas pretas ornamentadas pelas várias conversas com os sóise chuvas de anos afora, revelam que ali de baixo houve muitas histórias, queentonações de trabalho se mantinham colossais, imperativas, mas ao, mesmotempo, tinha espaço para brincadeiras, pros namoros, para a vida amiúde,atitudes que coabitaram esse sítio casa-olaria. São muitos os momentos queMoacir e Rose têm nas lembranças, e as anotações dessas vidas motivam apercorrer esses vários fonemas e comportamentos travados no chão batido, embaixo dessas telhas pintadas pela natureza. Pensar o modo de vida como componente da identidade de sujeitos quecompõem o coletivo é autorizar a interpretação de significados em torno dasociedade pós-moderna, pós-industrial e considerar as suas heterogeneidades. Uma edificação diferente A olaria possui construção simples, chão batido, sem portas conven-cionais, e sim uma abertura, com duas folhas grandes de madeira, que serve deentrada e saída, onde o uso de chaves fica desproporcional à construção. Alarmes,grades, campainhas ou interfones são interferências sem conectividade com oambiente de trabalho do oleiro Moacir de Souza. Há também várias prateleiras rústicas que acompanham a olaria toda.São pranchas de madeira de pínus ou similar que acomodam as peças secasou quase secas. Além disso, muitas louças também são cuidadosamenteenfileiradas e/ou empilhadas pelo chão, quando há encomendas contínuas. No início de 2015, quando retornei à olaria do Ci, já não havia louçasespalhadas pelo chão, isso significa que a produção da louça utilitária está cadavez menor, porque as encomendas ficaram raras, a procura por esses objetosnão tem a mesma expressão. Abaixo do telhado, pode-se ver os tendais, que são várias tábuas demadeira de pínus ou caixaria, também colocadas na parte de cima da olaria,para que as peças possam, gradativamente, desidratar. Nessa rotina profissional, não se utiliza transporte para ir ao trabalho, aroupa com que se vai trabalhar é a mesma que se está em casa. A área da olariapode também ser transformada em espaço de convívio social, ou seja, muitosamigos são recebidos dentro do ambiente oleiro. Também não se bate ponto,
268 Colóquio NEA 30 anos de Histórianão se liga nenhum computador, não tem mesinha com café, nem bebedourod’água e não tem banheiro. A mesa que tem é para o Moacir amassar o barro epreparar a argila para levá-la à roda. Há três rodas de oleiros, duas tradicionaise uma elétrica. Nesse quintal que abriga a olaria e a casa, as relações familiares, detrabalho, afetivas, sociais, são arranjos engendrados dentro de uma lógicacíclica de cotidiano, uma espécie de estilo temporal vivido dentro da olariade Moacir, que é completamente distinta daquela temporalidade vivida nocontexto social, mais amplo, mais geral, e, portanto cronológico, não cíclico. Esse contexto que acontece com o Ci, uma temporalidade “de dentro”(olaria) e uma “de fora” (social) é uma característica da subcultura, ou seja, háacúmulo de saberes diferentes fora de sua olaria, mas, mesmo convivendo comesses valores universais, o acervo cultural do Ci é igual ao das suas geraçõesanteriores, na parte de dentro da sua vida, da sua casa, da sua olaria. A idéia de tradicional pode ser, grosso modo, associada a certas qualida- des que nossos olhos “modernos”, por vezes cansados, identificam como positivas. Entre elas estão a passagem do tempo mais lenta; um universo de relações sociais pessoalizadas e face-a-face onde os mecanismos de controle social se exercem de modo informal; formas de comunicação que privilegiam a oralidade muitas vezes direta; a participação mais restrita dos meios de comunicação de massa no processo social.14 Sendo assim, o tradicional e o moderno (atual) se imbricam, sãoconstruções históricas, e exatamente por isso estão em constantes mudanças,adaptações, rupturas, permanências, ou seja, estão vivas dentro das organi-zações sociais. Na olaria do Ci, tudo acontece em solo privado, a confecção das peçasna roda, o esquente dos fornos, a secagem nos tendais, o acabamento das peçaspor Rose. Há a evidência da estrutura familiar no trabalho e da divisão sexualdesse trabalho. Eles não são assalariados e vivem como seus antepassados, da vendadas peças. Em outras palavras, o modo de comportamento, tradicional e desubsistência, permanece, mesmo com as transformações urbanas e sociaisocorridas na cidade de São José nesse período. Para as pessoas que desenvolveram/desenvolvem esse ofício, a vida era/éum conjunto, não separavam/separam vida profissional de vida pessoal, umaera/é prolongamento da outra. Essa característica também pode ser encontrada14 Revista Tempo Brasileiro. Patrimônio Imaterial. Org. Londres, Cecília. Rio de Janeiro, n. 147, out./dez. 2001. p. 6.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 269em outros lugares, como em Portugal Continental, mais especificamente noAlto Alentejo, Aqui em S. Pedro do Corval as olarias estavam instaladas nas residências dos mestres oleiros, nas suas habitações familiares, persistindo e continuando através das várias gerações de oleiros a exercerem o seu ofício no mesmo local.15 Como já foi mencionado, os oleiros entendiam a vida profissional efamiliar interligadas, os espaços doméstico e profissional não se separavam,eram imbricados, casa e quintal, olaria e cozinha, comida e horta, pai e oleiro/patrão. Tudo isso eram atividades feitas ao mesmo tempo, no mesmo local ejunto com a família. Para o Ci e a Rose, a vida profissional e a particular são integradas,compactadas. A olaria do Ci fica dentro do quintal, na parte da frente dessepátio está localizada a casa e nos fundos fica a olaria.Divisão sexual do trabalho: “o ciúme de oleiros eoleiras” O barro em sua estrutura natural, chão do céu, pés para os manguezais,borda para água salgada, encosto para as montanhas, se modifica quandoé usado na construção social de grupos humanos, que o transformam emsuportes para a sua vivência, como recipientes para o carregamento e/ouarmazenamento de água, peças resistentes ao fogo, para que possam aguentaros cozimentos, etc. Para explicar essa transformação do barro em potes, em coisa fabricada,muitos grupos de índios da América, por exemplo, criaram mitos para codificaressa fusão entre o humano e a natureza. O antropólogo Levis-Strauss, audazpesquisador do sistema de mitos, faz reflexões desse raciocínio e o associa atemas universais da personalidade humana, sobretudo da personalidade damulher, como o ciúme. Qualquer que seja o seu nome ‒ Mãe-Terra, Avó da argila, Senhora da argila e dos potes de barro, etc. ‒, a padroeira da cerâmica é uma benfeitora, já que os homens lhe devem, dependendo da versão, a preciosa matéria-prima, as técnicas cerâmicas ou a arte de decorar os15 MONIZ, Manuel Carvalho. As Olarias de S. Pedro do Corval, 1990, p. 17.
270 Colóquio NEA 30 anos de História potes. Mas, ao mesmo tempo, os mitos considerados mostram que ela tem um temperamento ciumento e rabugento.16 As relações do fazer cerâmico com estruturas da personalidade humana,em destaque o ciúme, é uma análise instigante para se mergulhar nos ambientesde trabalho. Num exercício de pensar a ideia do ciúme e sua associação aodesempenho com a argila, como uma possibilidade de se perpetuar o papeldo ceramista, é uma provocação reflexiva que perpassa várias temporalidades,a ponto de, se adentrarmos agora (década de 10 do século XXI) na olariatradicional do Moacir, no bairro Ponta de Baixo, em São José, vamos nosdeparar com o ciúme como essência para a preservação do conhecimento detodo processo do barro. A sabedoria dessa indústria, passada de geração parageração, está centrada na figura masculina, no homem, no oleiro, no patrão, nomarido, detentor das técnicas. A representação do ciúme na divisão sexual do trabalho assegura apassagem desse comportamento para futuras gerações, como segurança apossíveis ameaças de distribuição inequívoca do conhecimento adquirido.Essa conotação de emulação como uma presumível associação entre ciúme edivisão sexual do trabalho pode sugerir que todas as informações obtidas sobreo processo de execução dos afazeres sejam uma amálgama para transformar-seem mais gerações. Na olaria de Moacir, o saber passado pelo seu pai sobre afabricação das peças na roda e suas consequentes formas, de panela, potes, etc.,é exclusivamente um saber dos homens. Em outras oficinas de cerâmica, a fabricação dos objetos (importanteaqui ressaltar que essas peças não estão desprovidas de seu valor cultural) estáassociada ao conhecimento da mulher oleira e à sua relação de “ciúme” coma perpetuação dessa prática. Esse ciúme, assim como o do oleiro tradicionalde São José, é uma ampla e complexa relação de amor e posse daquilo que ésabido, como se a sua proliferação didática, fora da tradição, trairia os valoresculturais do ofício. No trabalho com o barro no Espírito Santo, por exemplo, A fabricação artesanal de panelas de barro é o ofício das paneleiras de Goiabeiras, bairro de Vitória, capital do Espírito Santo. A atividade, eminentemente feminina, constitui um saber repassado de mãe para filha por gerações sucessivas, no âmbito familiar e comunitário. A técnica cerâmica utilizada é de origem indígena, caracterizada por modelagem manual, queima a céu aberto e aplicação de tintura de tanino.1716 STRAUSS-LEVI, Claude. A Oleira ciumenta. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 40.17 IPHAN. Ofício das Paneleiras de Goiabeiras. Brasília, DF: Iphan, 2006. Dossiê Iphan, 3. p. 13.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 271 Nessa análise, o domínio do processo tradicional do fazer cerâmico,como foi dito, está associado ao ciúme, e a garantiada reprodução do sistemahierárquico intrínseco a esse modelo forma um consistente nylon esticadocomo mais um ingrediente para não abrir fendas, para não ter a variação comouma força atuante nos valores culturais até então conservados. Nos dois casos ‒ os oleiros tradicionais de São José e as paneleirasde Goiabeiras ‒, destaca-se a oralidade como uma forma“indeformável deconservação e continuidade” (CASCUDO, 1961). A sensação de onipresença em todas as práticas que envolvem otrabalho com o barro torna os mestres e mestras uma espécie de elo entre anatureza (retirada da matéria-prima, mistura química com outros elementos,domínio do fogo, do ar, da água e da terra) e a sua transformação em coisafeita totalmente impregnada de valores simbólicos, ou seja, não são feituras depeças meramente comerciais. No pensamento mítico que envolve a cerâmica e oleiros, muitos gruposhumanos apresentam a mesma visão, A idéia de que o ceramista e os produtos de sua indústria desempenham um papel mediador entre as forças celestes e as forças terrestres, aquáticas ou subterrâneas, pertence a uma cosmogonia que não é exclusiva da América.18 E o mito, como entendê-lo? Simplesmente perguntando com frequênciase o pensamento mítico representa as reflexões em torno da significação.19Entendendo que o homem é o único animal que conta com a “capacidade dasimbolização [...] que lhe permite evocar ações, situações e objetos, emboranão estejam presentes [...]”.20Corpo e trabalho O trajeto que os corpos de Rose e Ci percorrem no dia a dia oleiropressupõe o traçado da casa-olaria, prevendo, claro, exceções, ida aosupermercado, à padaria, a uma festa ou outra, atitudes executadas combastante inibição.18 STRAUUS-LEVIS,Claude. A oleira ciumenta. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 18.19 Idem, p. 22.20 BARRIO, Angel-B. Espina. Manual de antropologia cultural. Recife: Ed. Massangana, 2005, p. 33.
272 Colóquio NEA 30 anos de História Essa demarcação dos passos requer uma sofisticação para disfarçar arotina, embair a convenção ordinária e sucessiva dos dias que imbricam, semférias, sem feriados, sem viagens programadas, a relação de trabalho e de vidafamiliar que os dois levam. O lazer, assim como as fugas do ocre impregnando suas manchas noscalendários desse ano e do ano passado, exigem estratégias para disfarçar asensação de trabalho. Esse “faz de conta” se dá dentro da olaria e paradoxalmenteem pleno exercício do trabalho. E como isso é possível? Simplesmente é possível trabalhar com uma noção relativa da labutaatravés de muitos goles de cachaça. A sensação é que esse corpo está libertodo trabalho, mas está trabalhando sob outro foco, o da relatividade, o daembriaguez. Nesse momento, esse corpo (entendido aqui apenas o corpo do homem,pois o corpo da mulher continua o exercício das funções determinadasculturalmente) está “liberto” do trabalho, e aproveita o fogo utilizado para aqueima das peças para assar um peixinho ou qualquer outra carne. A noção delazer, de suspensão das obrigações, se destina à olaria-casa, e esse é momentoque se torna ápice, prazeroso. O envolvimento com álcool era diariamente, pois guardavam a cana dentro de potes para refrescar o aguardente. Aproveitavam a lenha do fogo da queima para assar peixe ou carne acompanhados da bebida.21 Para não perder essa relativa noção de trabalho, era comum ter acachaça armazenada em potes de barro especialmente feitos para manter a suatemperatura e aproveitar outros efeitos do dia a dia. Nesse modo de vida, nãoé raro encontrar registros de alto número de oleiros adictos. Além desse hábito de fragilizar os corpos com o consumo exageradoda cachaça, havia outra prática comum entre eles, o uso de uma substânciaextremamente tóxica, o litargírio (óxido de chumbo), também chamada pelosoleiros de zarcão, ou zalcão. Essa substância era utilizada para vidrarem as peças. Eles mergulhavamas peças nesse líquido e depois a levavam para queima em alta temperatura.Esse processo era também chamado de “lambuzar as peças” antes de irem aoforno. Lambuzar, prática artesanal dos oleiros e das olarias que consiste em banhar, revestir as peças depois de queimadas com produtos químicos21 José Geraldo Germano, entrevista abril de 2014.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 273 diluídos que, levados ao forno, alcançam o ponto de fusão. Nas olarias do Caminho Novo da Ponta de Baixo, louças utilitárias como alguidares, panelas, tigelas, leiteiras, e outras eram lambuzadas com litargírio ou zarcão, prática centenária que chegou até início da década dos anos 90 do século passado. O preparo, a diluição do litargírio ou zarcão, dava-se num caco, o recipiente de barro com espessura grossa e alças, feito na roda pelos próprios oleiros. No caco dez quilos do produto eram diluídos por dois potes grandes de água de barro, feita da goma do próprio barro. Essa goma ou lama, em parte, é produzida pelo oleiro, quando da modelagem das peças na roda. [...] Nessa homegeinização é adicionado ainda um prato de areia monozita, que facilitará a não colagem das peças sobrepostas quando do ponto de fusão. Uma cuia feita da casca de côco é utilizada para banhar as peças e também para homogeinizar os produtos dentro do caco durante a prática de lambuzar.22 Além de banharem as peças nesse líquido tóxico, sem uso de luva oumáscara, era comum saírem dali e tomarem café com pão. Essas mãos estavamimpregnadas de química, mas não percebiam a gravidade do manuseio e, semnenhum asseio, tomavam normalmente o seu café com pão. É relevante destacar que, durante as queimas, os oleiros tiravam acamisa, devido à alta temperatura que invadia a olaria, essa prática era feitaindependente das estações do ano, o que contribuía para debilitar, ainda mais,esses corpos, os quais desenvolveram muitas doenças de pulmão. Nesse ofício, o frio e o quente são rotinas para os corpos que seambientam na configuração oleiro tradicional. A água fria serve para molharo barro e ajustar a modelagem no torno, o vento que percorre o teto da olariapor sobre os tendais serve para secar as peças, ou melhor, retirar o excesso deágua antes de irem ao forno, e o forno é outro extremo, o calor inicia outraetapa, a queima.Processo da retirada da matéria-prima: 1960 Na época de infância, Ci tinha uma tarefa bem diferente na olaria do seupai, o seu Zequinha. Quem nos conta é Geraldo:2322 MACHADO, Gilberto João. São José: o caminho da Ponta de Baixo dos oleiros e das olarias – cultura de base açoriana. Florianópolis: Bernúncia, 2011, p. 155-156.23 José Geraldo Germano, professor de cerâmica da Olaria Beiramar, foi aprendiz do mestre Zequinha (José de Souza), pai de Moacir de Souza.
274 Colóquio NEA 30 anos de História A olaria do seu Zequinha era assim, não tinha separação da casa. Ela ficava no fundo do quintal, era extensão da casa, era tudo ali, a gente tomava café tudo ali. Eu me lembro, ainda peguei essa época, que ele tinha no meio do quintal, entre a casa e a olaria, existia uma almanjarra, que era movido a cavalo, porque o oleiro, depois que a gente passou a estudar essas coisas, era detentor de todas as técnicas, desde a extração, que ele vinha em Barreiros, por isso o nome Barreiros24. Levava esse material todo pra casa, colocava numa vasilha de madeira, socava o barro, e depois ele colocava essa vasilha dentro de uma haste, é uma espécie de haste de madeira que dava numa cangalha. Essa cangalha rodava, tipo um engenho. Esse tipo de mecanismo tinha na olaria do seu Zequinha, que era onde ele triturava o barro, misturava água, e ia misturando o barro com aquela tração animal. Hoje isso não acontece mais. Hoje existe um local onde a gente vai comprar a argila. Que hoje é separado da olaria, porque antigamente se usava esse tipo de processo por causa da energia. Hoje o processo diminuiu. Moacir fala do seu trabalho como oleiro: Sempre trabalhei na olaria, sempre aqui, nesse mesmo lugar. Aprendi com o meu pai, né. Éramos em 7 ou 8 irmãos, mas ninguém quis aprender, só eu. Mas eles trabalharam comigo, quando a gente era pequeno, era amassando barro, botando louça pra rua, mas depois desistiram, só eu fiquei. Amassar o barro era ruim, era na almanjarra, que o cavalo puxava. No verão era no sol quente, e no inverno a gente passava frio. Hoje o barro chega amassado, vem no cilindro, mas antes eu amassava o barro pro pai, e o pai é que fazia a louça. Nessa época se saia da olaria para ir pegar a matéria-prima, podia ser nacidade ou nos arredores, e a trituração do barro era feita por tração animal. Esseprocesso era feito dentro do quintal. Hoje o barro já vem pronto em barras, empacotes, o que facilitou a rotina de fabricação das louças. Do processo longode outrora, atualmente na olaria do Ci não se tem mais a almanjarra, o barroé comprado em pacote, ou seja, houve a redução do processo. Geraldo chamaatenção para a extração do barro nos dias atuais: Como a população aumentou, a comunidade cresceu, então não tem muitos lugares onde pode se pegar o barro. Antes se pegava na terra fraca, na Palhoça. Mas, com a quantidade de loteamentos, estamos vivenciando a escassez das jazidas, também as covas que eram feitas não24 Barreiros é nome de um dos bairros da cidade de São José. Nome relativo à retirada do barro.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 275 eram cobertas com nada, o que acabou ficando perigoso. E também tem as questões ambientais que envolvem a extração.25 O que permanece do mesmo modo como era na época do seu pai, oZequinha, é a venda. O cliente é que vai até a olaria, e as suas peças não estão àvenda em lojas, ou similares. O oleiro não sai da olaria quase nunca. Os corpos, nesse sentido, constituem o ambiente da olaria junto comos corpos estáticos de barro espalhados pela oficina afora. Eles são parte dafisionomia da cerâmica, seus corpos são magros, sem a certeza da colunaereta, a curvatura desses corpos se dá pela repetição do exercício diário, sejano movimento com a roda, ou no constante trabalho de alisamento das peçasfeito por Rose.25 Entrevista Geraldo fevereiro de 2015.
Criação do grupo de cantadores e brincadores de boi de mamão da EEB Maria Rita Flor Franciele Coelho BezResumo: A EEB Maria Rita Flor tem como um de seus objetivos fomentaras manifestações culturais de base açoriana. Neste artigo, será apresentado odesenvolvimento de um projeto de intervenção, ainda em execução, aprovadopelo Ministério da Cultura, através do programa Mais Cultura nas Escolas,para a criação de um grupo de brincadores e cantadores do folguedo boi demamão. Diversas ações, como a construção das personagens da brincadeira, jáforam realizadas e várias ainda serão, a exemplo da gravação de um compactode áudio com as músicas tradicionais utilizadas para brincar. A interação entreescola e comunidade tradicional é a base deste projeto.Palavras-chave: Cultura tradicional; Folguedo; Coletividade; Brincadores; Boide mamão.Introdução “Uma rima que vem falar para quem puder ouvir da ideia de se construir‘sujeito’ ao se construir grupo. [...] Boi de mamão rima com educação?”(GONÇALVES, 2006, p. 161, grifos nossos). A Escola de Educação Básica Maria Rita Flor, cenário destainvestigação-ação, teve sua fundação em 1938, no município de Bombinhas,SC. Disponibiliza, atualmente, os segmentos de Ensino Fundamental ‒ SériesFinais, Ensino Médio Inovador (EMI) e Ensino Médio Integrado à EducaçãoProfissional (EMIEP), com cerca de 700 alunos. Sendo Bombinhas uma cidade turística e com forte relaçãomarcada na cultura de base açoriana, marca roteiros de turistas nacionais
278 Colóquio NEA 30 anos de Históriae internacionais, propiciando aconchego aos visitantes e migrantes que aelegem como sua nova moradia, em parte devido às suas belezas naturais e àlocalização privilegiada. O problema que originou este projeto de intervenção pedagógicaconsiste em saber como o Projeto mais Cultura na Escola, promovido peloGoverno Federal, pode movimentar a cultura na Escola de Educação BásicaMaria Rita Flor, tendo como atores os alunos dos primeiros anos do EnsinoMédio Inovador e Integrado à Educação Profissional em Hospedagem, no anode 2014. O objetivo geral deste projeto (pois ainda está em execução) é criar umgrupo de brincadores de boi de mamão. Como objetivos específicos para concretização deste projeto, foramdeterminados: ■■ escolher turmas do ensino médio para formação de brincadores do folguedo local de boi de mamão; ■■ construir um grupo e as personagens; ■■ integrar comunidade local, principalmente a tradicional, com os alunos, promovendo o intercâmbio cultural de ideias e vivências; ■■ pesquisar as cantorias (letras e pautas) utilizadas pela comunidade tradicional e gravar um compacto de áudio com as músicas levantadas; ■■ investigar as histórias vividas pela comunidade em relação ao folguedo; ■■ promover no imaginário dos alunos o folclore da comunidade na qual está inserido. O método utilizado para a execução do projeto-intervenção (pesquisa-ação) é a pesquisa qualitativa, com entrevistas individuais e grupais, para queos educandos tenham contato direto, interativo, entendam e compreendamos fenômenos relacionados ao objeto de pesquisa a partir da perspectiva dosparticipantes tradicionais no caso em questão (NEVES, 1996). No campo educacional, essa modalidade de pesquisa é bastante enfatizada, devido à relevância de seu caráter pedagógico: os sujeitos, ao pesquisarem sua própria prática, produzem novos conhecimentos e, ao fazê-lo, apropriam-se e resignificam sua prática, produzindo novos compromissos, de cunho crítico, com a realidade em que atuam. Nesse tipo de pesquisa, a prática é compreendida como práxis. Tanto pesquisador como pesquisados estão diretamente envolvidos em uma perspectiva de mudança. (CAMPOS; SCHEIBE, 2015, p. 2)
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 279 O processo de investigação-ação traz consigo uma situação deaprendizagem para todos os envolvidos. O projeto-intervenção iniciou em 2014 e está em execução, tendo sidorealizados apenas alguns dos seus objetivos propostos. A criação do grupode cantadores e brincadores ainda não foi efetuada, por acreditarmos sero último passo, pois, para a criação do grupo, o amor, o conhecimento e oreconhecimento ao folguedo são intrínsecos ao processo. É necessário: Um boi de mamão que vive presente dentro de nós, ainda que sua concretude, representada nos seus bonecos, nos seus instrumentos e na constituição de um grupo, ainda que seja um sonho. A brincadeira do boi de mamão, no momento da escuta, veio morar no coração, movendo um desejo que foi sendo partilhado pelos integrantes [...]. Uma voz que veio de fora e se alojou dentro de cada um daqueles que puderam escutar, refletir e agir. (GONÇALVES, 2006, p. 158).A gênese do projeto-intervenção Compreendendo o mundo que nos cerca nos compreenderemos.Visando inserir o educando na cultura local, este projeto, aprovado peloMinistério da Cultura, prevê pesquisa historiográfica, teatralização, rodas deconversa, integração com a comunidade, seminários, saídas de estudo, registroliterário, palestras, oficinas, confecção de vestimentas e estandarte, criação defôlderes, produção de vídeo e CD, aquisição de instrumentos musicais (sendoalgumas dessas ações já executadas), resgatando, assim, as manifestações ecriando um grupo de cantadores e brincadores do boi de mamão. O município de Bombinhas, através da Fundação de Cultura, temintitulados mestres da cultura tradicional, reconhecimento este concedido apersonalidades de referência na cultura local. Alguns desses mestres e outraspessoas da comunidade estão envolvidos neste projeto, pois, como sensibilizarpara a ideia, senão através dos jeitos de fazer, exemplos, participação e amorque pertencem à comunidade tradicional, localmente conhecidos comonativos, possuem por esse pedaço de chão e sua história? Fase exploratória do projeto-intervenção Entendemos que “patrimônio não é somente o que podemos tocar, esim o que nos toca” (Rosane Luchtenberg). A identidade cultural, o folcloree a história local precisam ser pesquisados, interpretados, preservados,
280 Colóquio NEA 30 anos de Históriasignificados, ressignificados e transmitidos para os educandos, moradores e,em segundo plano, aos visitantes, lembrando o quanto a cultura é dinâmicae o quanto se produzem adaptações significativas. Manter as manifestaçõesculturais tradicionais de base açoriana é um dos objetivos de nossa instituição,e um desafio em tempos de globalização, importação de culturas de massa,além da questão da formação de professores. Eu não sei cantar” diriam os educadores que se lançam a brincar de boi de mamão. Os cantadores de bois de mamão, fazendo valer sua voz, vão dizer que também não sabiam. A consciência de saber que não sabem, para os cantadores, é o marco a partir do qual começam a buscar o saber. Uma busca, para os educadores que a fazem, que desemboca na transformação de sua própria prática de educador: partir da tomada de consciência de que não sabem para a busca pelo saber. (GONÇALVES, 2006, p. 150). Identificados inicialmente os problemas e as pessoas interessadas, depoisforam sendo discutidos os objetivos do projeto-intervenção, as expectativas, ametodologia e a divisão das tarefas, sento esta última muito importante, pois,conforme a citação de Gonçalves acima, os professores não são imbuídos detodo saber, e cada área do conhecimento tem suas especificidades. Além disso,nem todos os professores das áreas afins ao tema proposto tiveram formaçãoespecífica no objeto de estudo ou residem há muito tempo na região, o que nosleva a crer que, assim como os educandos, nem todos os professores conhecema cultura e o folclore local. Tendo designados o tema e o problema, os envolvidos (professores,pessoas da comunidade tradicional, equipe gestora da escola e alunos)iniciaram seminários para o andamento da pesquisa-ação e estudos paraaprofundamento técnico, os quais visam à interação e ressignificação com aspráticas culturais da comunidade.
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 281Figura 1 – Encontro entre professores, gestores e representantes da comunidade tradicionalFonte: Professor Fabiano Quito Ettore.1 Quito Ettore.178FONTE: Professor FabianoObservações e interações(2G.1ONOÇObAsfLeoVrlgvEuSae,dçoõ20ed0so6e)b. IoBnirtdienercamarçaõmsoeãzsointheomneãmo si a coletividade e o diálogo é possível, e isso confere àbrincadeira uma característica especial, devido às necessidades humanas decompartilhar aflições, entusiasmo, dedicação, felicidades, frustrações, enfim,sentimenOtos pfaorlagoucerdesocimdeontobpoesisodalee comleatimvoã(ocomteumnidaedme e sosiciedaadce)o. letividad(GON[Ç...]AoLdVesaEfiSo,de20vi0ve6r)c.riBticraimncenatre snoszsianehxiostênnãcioa. éPepnsoasr soívievlid. oT, endo esta facum tooemparneeassleipsnaterec. piÉarodlf,eupdnodesaivtmairdennotoeaoasutnerxoepsceueraisêsnsecisdipaaerddaeençspaashrdtuielmhuaamr nufaamzseardhceioslcteóotrivimao, partilhar afliçdedicpfaaoçzdeãerojvu,inrftoae.lf‘iaMczieodrd.aifÉidceaursm,o pmfrriuumnsdetiorr’oançpãõoaseéssoa,çqãueoenrqfeuriemms,oumdsaeernntoetiummmueanndpoteo.s[s.s.o.]a.para o crescipesso(aGOe NgÇruApLVoE(Sc, o20m06u, np.i1d5a6d).e e sociedade). [...] o desafio de viver criticamente nossa exis vivido, o presente. É depositar no outro suas e fazer coletivo e analisar profundamente a1 Todas as fotos foram produzidasppaelrotmilehsmaro auumtor.a história, fazer junto. ‘Modificar ação que somente uma pessoa pode vir a fazer passo querer mudar o mundo.[...]. (GONÇA
282 Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 2 – Construindo os “bichos” Figura 3 – Construindoos “bichos” IIbichos’. FIGURA 3 – Construindo os ‘bichos’ II.
(vestimentas, personagens, figuras) para a brincadeira do bo Escola e os Mestres do saber tradicional. Cabe ressaltaPreservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina fomento da Secre2ta8r3ia de Po proveniente do investimento ecionadToCesnuodlsot“u-bsriecadhaaodst”ora(ivnveíécstisiomdaeoonpteraosd,jeiptteaor-lsionMnteaargvieesnnsCç,ãfuiog,luetrumars2a)0p1Na4ra,afsoarbEarmsincccooalndaefesirc,a-e que otdroadbicoiioddneeala.mcCaoambrdãeoor,escnsuoamlmtaarapqsaurescoeorliciacuisettneatiçroeõdeaossesdmcooaltsaermeiaieosssftomrieepssr.torevsendioensteabdeordinavCesutlitmurean,taotreafvoSémsedenondteoodditfaaulSn“eMçcrõaeietsasCriuadltdouerafPonollaígstiuEcasecsdoColausl”at,uerdqaiuisvedetoarissMãmionaitseetréiraaiiossátira sforam sceanrdaocatdeqruísirtiidcoassdecaríctoircdaosc,omexatsrasovlaicgitaçnõteessd,oes smtesrtereóst.ipos sociais,Sendo funções do folguedo a diversão e a sátira social, as personagensapresenftiagmurcaasrascãteorísvtiacraisávcreítiisc,as“, [e..x.t]raCvaagdanategs,ruepstoerecórtipao, sdesocaicaios,rdo comridicularizantes... O número e as figuras são variáveis. “[...] Cada grupocria, denaocvoardsoecoamjuasstcaadpaascidaaodetsecmriaptoivacsu, flitguurasl neovaaosse eajsupstaaçdoassagoeográfictempo 9cu1l,tu2ra0l1e0a)o.s espaços geográficos determinados.” (PEREIRA, 2010,p. 91).Figura 4 – Visita ao “rancho” dos mestres FIGURA mestres.
284 Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 5 – Visita ao “rancho” dos mestres II Durante a construção dos bichos houve visitas dos FIGURA processo estava ocorrendo. Foram sendo construídos laços ent mestres II. troca de conhecimentos e admiração pelo saber fazer. Foram mais importantes ao folguedo: “[...] As básicas humanas são: O Cham Doutor, Curandeiro ou benzedor (algu uma bruxa benzedeira), e as de animais a Bernunça e a Maricota.” (PEREIRA, pFigura 6 – Visita ao ‘rancho’ dos mestres III Durante a construção dos bichos houve visitas dos processo estava ocorrendo. Foram sendo construídos laços en troca de conhecimentos e admiração pelo saber fazer. Foram mais importantes ao folguedo: “[...] As básicas humanas são: O Cham Doutor, Curandeiro ou benzedor (algu uma bruxa benzedeira), e as de animais FIGURA 6 – Visitaa Baoern‘urannçcaheo’a Mdoasricota.” (FPIEGRUERIRAA,7 mestres III. mestres IV.
andeiro ou benzedor (alguns grupos colocam a figura de 285enzedeira), e as de animais – o Boi, a Cabra, o Cavalinho,e a MaricoPtraes.”erv(aPndEo aRheEraInRçaAcul,tupral.a9ço2ria,na2e0m1S0an)t.a Catarina Figura 7 – Visita ao ‘rancho’ dos mestres IVo’ dos DFuIrGanUteRa cAonstr7uçã–o doVs biischitoas, hoauove v‘irsaitanscdhoos e’ducdaonsdos ao rancho omnedsetreoms peeroossctaerlseusosnoIessVtcao.vma ocorrendo. Foram sendo construídos laços entre os troca de conhecimentos e admiração pelo saber fazer, e os alunos aprenderam sobre as figuras mais importantes do folguedo: As básicas humanas são: O Chamador, o Mateus, O Vaqueiro, o Doutor, Curandeiro ou benzedor (alguns grupos colocam a figura de uma bruxa benzedeira), e as de animais – o Boi, a Cabra, o Cavalinho, a Bernunça e a Maricota. (PEREIRA, 2010, p. 92). Os cantadores e os músicos também são elementos básicos na brin- cadeira. As interações foram sendo mediadas igualmente com a disciplina de música. O Museu Comunitário Engenho do Sertão, localizado em Bombinhas, sedia o Projeto Boimamão do mesmo modo, sendo visitado pelos educandos, que, em contato com o saber tradicional, podem interagir com as narrativas, observando os objetos da época do povoamento açoriano,2r6ev4iv endo práticas que marcaram a comunidade e reinterpretando o passado. “[...] Assim, como não existe homem sem cultura, não há povo sem folclore, pois esse é a alma do povo.” (PEREIRA, 2010, p. 26).
cultura, não há povo sem folclore, pois esse é a alma do povo282601 0). Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 8 – Visita técnica ao Museu Engenho do Sertão e Projeto BoimamãoFIGURA 8 – Visita técnica ao Museu Engenho do Sertão e Projet Coleta e exposição de dados2.2 [tCr..a.]boaellnhetorteadaeeteeoEdruixcaapeçãoaosaidtiçavsãidocaodnedspceirêáDnticciaaasdt,roadnsesfoorrgmaandizoarçaãose insere um dos meios materiais e planos concretos de ação; tudo isso como passagem indispensável para desenvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido uma teoria é prática na medida em que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só exi[st.i.a.]ideeanlmtreentea, ctoemoorcioanheecaimaenttiovdida ade prática tra rCeAalMidPadOeSo; uSCanHtEecIiBpEa,ç2ão01i5d,epa.lu9d)me. suatrtarabnsafolhrmoaçdãoe. (VeAdZuQcUaEçZãaopudd as consciênciade entrTeevnisdtoasdienfidnivididouoaifsoormu agtroupdmpaaaisecs,oisaloeastsgaciendmmecoadattiuednrormdisaiacsisospmfoeorenaqmsupáadlvlaeietfnailntoiivpdsoaasarct(arodaunvdaécsserseetnovs odlveerdoregEanMizAIaperóitasrmêssepdrreadEiirMscauIcEtaiPdm)o,pcooa.dfaorqmumNaalteoacstoedsmaericaiinnlsviceezosnatei,gtqiaudaçiãptoroeascvdouéemmsedaodusceaantlueudomnoosr,asi,qauesesétéseresie prática de medsolicitaram que fossem definidos mexaiisstteimaas pidareaaqlume aenextpeo,siçãcoodmosodadcoos,nhecimeniosssos,emcoinnfáorrimoseeaossovpíidneiõoessadseelreesm, mpaarniosdt“euincztiiedproeasssçfaoãnstoseesm”.i2mdSeeagiasuldnidvodereNsiefivcseasud(oa1s9e9t,6rp)a,oanr sformação CAMPOS, Roselane Fátima; SCHEIBE, L2 De acordo com as discussões, os educandos preferem trabalhar com temas diversos, poisTendoterão mais interesse em cdoemfpianrtiildhaor suaos defsocorbmertaastcoom dosacolecgoasldeetvaido da ceuriodsiaddadoe s como qpelo novo ou diferente.entrevistas individuais ou grupais as cinco turmas foram definida
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 287pesquisa qualitativa nos dá a possibilidade de, e geralmente costuma ser feito,direcionar a investigação (adequar o projeto) ao longo do processo. Dessaforma, mais temas relacionados à cultura de base açoriana foram inclusos nasinvestigações, e definiu-se que cada uma das equipes ficaria com um dos temas,a saber: boi de mamão, consertada,3 engenhos de farinha, pão por Deus4 e ternode reis. Cabe destacar que deixamos claro que nosso objetivo principal era queeles conhecessem, reconhecessem e quisessem participar do folclore do boi demamão, através da criação de um grupo de cantadores e brincadores do ‘boi’. Definidas as interações e a exposição dos dados coletados, comoseminários em cada sala, a equipe recorreu a uma mudança: a socialização daspesquisas através de uma manhã cultural, onde os alunos pudessem partilharvídeos, músicas, gastronomia, o folguedo do boi de mamão, enfim, os dadoscoletados durante a investigação com toda a comunidade escolar, inclusive osmestres da comunidade tradicional. A socialização tornou-se significativa, devido aos grupos de pesquisaacerca do mesmo tema terem sido orientados a trabalharem para a realizaçãode uma apresentação conjunta (única), através de seminários conduzidos erealizados por eles, o que os fez avaliar os dados coletados, definir as informaçõesa serem partilhadas, escolher o vídeo5 mais interessante e planejar ações quedespertariam o interesse da comunidade escolar durante a apresentação. Chegado o dia das apresentações, “surgiram” bolinhos do pão por Deus,beiju feito com a farinha dos engenhos, a brincadeira do boi de mamão (todarealizada por alunos, desde os músicos, os cantadores, até a encenação com asfiguras construídas pelos mestres), além dos vídeos e discursos sobre os temas. [...] Assim, em nossa ação sobre o mundo, alternamos a criação com a permanência, pois a própria dinâmica da atividade humana faz conviver o ato criador como imitativo, criação com reiteração. A práxis criadora supõe uma íntima relação entre as dimensões subjetivas e objetivas – entre aquilo que planejamos e realizamos. Criar significa idealizar e realizar o pensado. Todavia esse processo é simultâneo, pois, sendo indissociáveis, não se conhecem de antemão seus caminhos, seus resultados. Assim, o projeto e a sua realização sofrem mudanças, correções, ao longo de seu caminho. Por isso afirmamos que é um “processo”. (CAMPOS; SCHEIBE, 2015, p. 10).3 Bebida tradicional de Bombinhas, criada nesse município, que tem como base o café, ao qual se acrescentam condimentos e cachaça.4 Expressão cultural de base açoriana que se traduz em uma forma poética (versos) transmitida oralmente ou através de cartões decorados, nos quais, geralmente, se faz um pedido.5 Cada equipe produziu um.
288 Colóquio NEA 30 anos de HistóriaConsiderações finais “[...] fazer boi de mamão implica gostar de boi de mamão e gostar muito.[...]” (GONÇALVES, p. 158, 2006). Tendo-se objetivado a criação de um grupode cantadores e brincadores do boi de mamão, é imprescindível que, se aindanão houver, sejam desenvolvidos o apreço e o amor pelo folclore em questãoatravés da participação e interação de todos os envolvidos no projeto. Comesse intuito têm sido desenvolvidas as ações deste projeto. Temos percebido expressiva interação entre as equipes e com acomunidade, relevantes formas de ressignificação dos temas discutidos,e, na socialização das pesquisas, a brincadeira do boi alcançou seu objetivoprimeiro: o lúdico. Ainda são muitas ações a serem desenvolvidas: rodas de conversa,registro literário, palestras, oficinas, confecção de estandarte, criação defôlderes, produção de vídeo e CD, aquisição de instrumentos musicais, criaçãodo grupo Brincadores e Cantadores de boi de mamão da EEB Maria Rita Flor. Um dos cursos oferecidos pela escola, o EMIEP, incluído neste projeto,tem como viés a questão turística. Muito se debate sobre o resultado daeconomia relacionada à cultura e ao folclore local, sendo discutidas ações paraque não haja descaracterização das manifestações culturais. Convém lembrar,como segue citação, que o folclore é vivo, se modifica e adapta-se e, muitasvezes, é utilizado como apresentação ou demonstração (PEREIRA, 2010). Neste ano, 2015, será realizado o 22o Açor na cidade onde se localizaessa escola, no qual participarei, com muito grado, levando ações e resultadosdeste e de outros projetos relacionados à cultura de base açoriana, emdesenvolvimento nessa instituição. Este projeto é fruto de coletividade e, do mesmo modo, objetiva-a.Assim, agradecemos aos mestres da cultura tradicional que são parceirosincomparáveis e ao Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC, pela formaçãorealizada em Bombinhas, pela oportunidade de participação no Colóquio NEA– 30 Anos de História e pela disposição em nos auxiliar durante o processodeste projeto e de outros que virão. Agradecemos também à equipe gestorada escola, que idealizou o projeto; aos professores, em especial o professorFabiano Quito Ettore, que cedeu os registros fotográficos e nos acompanhouno colóquio, além de ser peça fundamental na relação com a comunidadetradicional, no cronograma, organização do projeto e registros digitais; e,ainda, aos alunos da EEB Maria Rita Flor. “Um povo sem conhecimento da sua história, origem e cultura é comouma árvore sem raízes.” (Marcus Garvey).
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 289ReferênciasCAMPOS, Roselane Fátima; SCHEIBE, Leda. Escola de gestores da educação básica.Disponível em: <http://escoladegestores.mec.gov.br/site/2-sala_projeto_vivencial/apresentacao.htm>. Acesso em: 9 maio 2015.GONÇALVES, Reonaldo Manoel. Educação popular e boi de mamão: diálogosbrincantes. 2006. 194 p. Tese (Doutorado em Educação) ‒ Universidade Federal deSanta Catarina, Florianópolis, 2006. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/89216/232889.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acessoem: 8 maio 2015.NEVES, José Luis. Pesquisa qualitativa – características, usos e possibilidades.Caderno de pesquisas em administração, São Paulo: FEA-USP , v. 1, n. 3, 2. sem.1996. Disponível em: <http://www.ead.fea.usp.br/cad-pesq/arquivos/C03-art06.pdf>.Acesso em: 8 maio 2015.PEREIRA, Nereu do Vale. O boi de mamão: folguedo folclórico da Ilha de SantaCatarina ‒ introdução ao seu estudo. Florianópolis: Associação Ecomuseu doRibeirão da Ilha, 2010.
A prática da coberta d’alma no município de Paulo Lopes Ibrahim CardosoResumo: Este artigo tem como tema central a prática da coberta d’alma nomunicípio de Paulo Lopes (SC). Esse rito de passagem é uma prática queacontece na missa de sétimo dia do falecido, momento em que um “ilustre”conhecido do morto irá usar um conjunto de roupas doado pela famíliaenlutada. O objetivo do artigo é analisar e entender as rupturas e continuidadesdesse rito de passagem “dito” açoriano. O aporte teórico-metodológico utilizadofoi a pesquisa bibliográfica e a história oral. Foram realizadas entrevistas commoradores e ex-moradores do município de Paulo Lopes e com pessoas,ligadas à área das ciências humanas, que conhecem esse ritual.Palavras-chave: Rito de passagem; Coberta d’alma; Açoriana.Introdução Este artigo busca analisar as continuidade e rupturas do rito de passagemdito açoriano, da coberta d’alma na cidade de Paulo Lopes (SC). A coberta d’alma consiste num ritual, numa celebração, em que omorto é valorizado perante os familiares e amigos, um ritual que apresentacaracterísticas religiosas católicas institucionais (missa de 7o dia) junto compráticas de religiosidade popular (coberta d’alma), oriundas da colonizaçãoaçoriana iniciada em 1748, no estado de Santa Catarina. O trabalho é focadona religiosidade local e na cultura fúnebre da cidade de Paulo Lopes, localizadaao sul de Florianópolis, distante 50 km, seguindo pela BR-101. Para canalizar tais memórias, exploramos a oralidade, muitas vezesguardadas a sete chaves. Os entrevistados, cidadãos com mais de 50 (cinquenta)anos, muitas vezes só tocam no assunto coberta d’alma quando se fala que
292 Colóquio NEA 30 anos de Históriaalguém morreu ou que vai a uma missa de sétimo dia, no mais fala-se que écoisa do passado. As ciências humanas vêm utilizando-se da história oral para, juntocom os referenciais bibliográficos, fazer trabalhos de relevância científica.“A história oral pode ser empregada em diversas disciplinas das ciênciashumanas e tem relação estreita com categorias como biografia, tradiçãooral, memória, linguagem falada, métodos qualitativos [...]” (ALBERTI,2013, p. 24). Com os procedimentos de história oral, pode-se considerar omodo de vida e o posicionamento das pessoas sobre as tradições, os ritosda morte, seus significados e relações. “Toda consciência do passado estáfundada na memória. Através das lembranças recuperamos consciência dosacontecimentos anteriores, distinguimos ontem de hoje, e confirmamos que jávivemos um passado” (LOWENTAL, 1981, p. 75). No que se refere à pesquisa bibliográfica, foram realizadas buscas emdiversos autores que possuem trabalhos ligados à história açoriana, além dareligião e religiosidade dos açorianos no estado de Santa Catarina, bem comoautores que relatam em seus estudos a colonização de Santa Catarina (PIAZZA,1982; GERLACH, 2007; FARIAS, 1999), e historiadores que trabalham noBrasil com ritos de morte (PRIORE, 1997; REIS, 1991).A coberta d’alma A coberta d’alma é um ritual marcado pela procura do divino. Aquivivenciamos um rito de passagem, com duas características distintas: a separação,quando se separa a alma do corpo, e a incorporação. O açoriano descendenteacredita que, nesse momento, a alma do falecido está presente (incorporada)naquele que hora veste a coberta d’alma. É o momento em que o escolhido passaa usar a roupa e reviver o falecido no ritual, nessa hora se ascende uma vela noquarto onde o convidado se veste. O historiador Reis (1991) assevera como seconstituem tais procedimentos: “O morto ficaria no limite entre o aqui e o além,uma espécie de parêntese existencial a ser ritualmente preenchido pelos vivos.[...] rituais de expulsão do espírito morto da casa, da vila, enfim, do meio dosvivos, o luto e tabus em geral” (REIS, 1991, p. 89). O conceito de coberta d’alma aparece na literatura e no dicionárioportuguês, Dicionário de falares dos Açores: vocabulário regional de todas asIlhas, com nomes parecidos, sempre acompanhados da alma. Coberta de Alma, n.f. O m.q. roupa d’alma: Os senhores á deram a coberta d’alma do seu pai? [...]
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 293 Vestimenta d’alma, n.f. O m.q. roupa d’alma: Foram Lá, e o pai dela falou que queria a sua vestimenta d’alma, que eles nunca tinham dado (BARCELOS, 2008, não paginado). Na Ilha dos Açores, existe uma preocupação em deixar registrados oscostumes religiosos, seja por meio de um dicionário regional ou por meio derelatos em livros. Tereza Perdigão (2011), em sua Resenha sobre o livro O povode Santa Maria e suas vivências, do escritor Açoriano Arsénio Chaves Puim(2008), relata uma cerimônia chamada de a cerimônia do vestido d’alma. Eladiz não saber se tem paralelo no continente português, mas vejamos o que oautor nos diz: É chamada assim a missa encomendada por alma de um familiar recentemente falecido, na qual participa, além da família, uma pessoa pobre, do mesmo sexo do defunto, vestida, dos pés à cabeça, a expensas dos herdeiros. Segundo uma crença popular, a esmola feita com a intenção de sufragar a alma do defunto vai ainda garantir que a sua alma esteja vestida de outra vida. A cerimônia do vestido d’alma incluía também uma refeição comum da família, depois da qual, normalmente, se procedia à realização das partilhas dos bens. (PUIM, 2008, p. 81). Terço d’alma é uma expressão utilizada na região de Imaruí (SC),município desmembrado de Laguna. “Era só o terço na casa. Na época eu nãolembro de missa [a do sétimo dia] acho que não tinha, por que era difícil padretambém, quase não tinha para fazer a missa. Quando se precisava não tinhanaquela região” (SOUZA, 2014, p. 1). A igreja tinha conhecimento dos rituais de religiosidade popular comoconsta nos relatos do Padre Evaldi Pauli. “Cabia ao contemplado comparecervestido com a coberta d’alma no dia em que os parentes do falecido fizessemrezar um terço do rosário. Ou uma missa” (PAULI, s/d, p. 2). O homem procura caminhar em direção da vida e à procura daeternidade. Toda coletividade tem seu ritual de passagem/morte (ELIADE,1992). Podemos identificar na cultura dita açoriana um desejo de conduzir seusentes queridos a uma nova morada após a morte através do rito de passagemda coberta d’alma. “Para certos povos, só o sepultamento ritual confirma amorte: aquele que não é enterrado segundo o costume não está morto. [...]ou quando a alma do defunto foi ritualmente conduzida a sua nova morada”(ELIADE, 1992, p. 89). A religiosidade popular, no contexto brasileiro, fez com que os adeptosdo catolicismo ficassem mais perto do sagrado, fazendo promessas a seus
294 Colóquio NEA 30 anos de Históriasantos de devoção e proteção. Como as práticas religiosas, para muitos devotos,advinham de uma não compreensão das normas do catolicismo. Aqui percebemos a dificuldade de entender a língua oficial da instituiçãocatólica (latim); dessa forma acabaram adentrando pelo viés do devocionismo,como: rosário/terço, benzedeiras, rezadeiras e noveneiras. Aqui deixamos claroque essa realidade, isto é, a não compreensão do latim e as suas significações,advém já da Idade Média, época em que existiam muitas comunidades e nãohavia sacerdotes para todas, assim sendo, acabaram fortalecendo a religiosidademais intimista, popular. No livro escrito pelo historiador Vilson Francisco de Farias, há umcapítulo que fala exatamente sobre religiosidade, cenças e mitos. O autorassegura que o homem açoriano tem o seu jeito de ser: seus mitos, suas crençase seus ritos vão além da sua ilha de origem, atravessaram o oceano Atlânticoe foram marcados por sentimentos de religiosidade. Conviviam com seusmedos, as crendices populares, a fé, a esperança, a alegria, a dor e as promessas. Nesse universo de relação com Deus, as festas religiosas, o respeitoaos mortos e ao luto era de grande importância para o açoriano do litoralcatarinense (FARIAS, 2004). O açoriano vive sua religiosidade com muitaalegria e esperança, mantendo as festas e a sua devoção. “As festas religiosastradicionais, com destaque para o ciclo/festa do Espírito Santo, festa doSenhor dos Passos, procissão de Corpus Christi, Finados, a coberta d’alma, e opagamento de promessas” (FARIAS, 2004, p. 362). Em sua tese de doutorado, o historiador Sérgio Luiz Ferreira (2006)relata que a Igreja católica move todos os esforços possíveis para fazer comque seus fiéis sigam o seu catecismo e, assim, se aproximem cada vez mais dosagrado, ficando cada vez mais longe das práticas populares. O esforço para fazer a população abandonar suas práticas de caráter mágico, onde, o que a igreja considerava profano, se interpenetrava com o que ela considerava sagrado não foi tarefa fácil. Mais difícil ainda, foi tentar separar os elementos profanos introduzidos na vida religiosa das populações pela familiaridade quase excessiva com o sagrado. (FERREIRA, 2006, p. 128). A igreja católica romana percebe no ritual da coberta d’alma umasimbologia cultural. De acordo com Croatto (2010), “o rito é um símbolo emação” (CROATTO, 2010, p. 329). Em sua obra intitulada As linguagens daexperiência religiosa, esse autor mostra que o ser humano: “É um ser que está embusca. Esta é uma característica fundamental do ser humano. Daí a ansiedadeexistencial gerada e da qual a vivência religiosa vem socorrer” (CROATTO,
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 2952010, p. 106). Afirma, ainda, que o ser humano está sempre se preparandopara tudo, inclusive para a morte, e o açoriano se prepara conversando comseus familiares, deixando-lhes alguns encaminhamentos, incluindo, entre seuspedidos, a coberta d’alma. A coberta d’alma é uma cerimônia para quem morre. O rito se estabelecedepois de sete dias do falecimento. No momento em que morre uma pessoa,esta já tem alguém em vida para usar a coberta, ou a família procura umapessoa de idade mais próxima do falecido e a convida para fazer uso de talrito, participando do cerimonial com os familiares. Assim, o familiar ouamigo escolhido é levado a uma loja e compram-se todas as peças de roupasnecessárias: roupas íntimas, chapéu e bengala. “[...] a gente fez uma roupa echegamos lá, aquela pessoa vinha naquele dia ali. A gente entrava lá no quarto,vestia ela, tudo com aquelas roupas que a gente tinha comprado, vestido,calçado, toda a roupa que uma mulher usa” (CÂNDIDO, 2014, p. 1). Tinha-se muito respeito e zelo para com a coberta d’alma, e o luto eraum costume que, na medida do possível, era feito com roupas compradas na“venda”, ou feitas pelas costureiras. “Na Coberta da minha vó, eu ainda ajudeia costurar a Coberta D’Alma, porque a gente tinha que comprar o tecido, tinhaque ser uma roupa nova e fazer durante aqueles sete dias. A semana correndoe a gente fazendo a roupa” (SANTOS, 2014, p. 1). Caso a família não tivesse boas condições financeiras, aproveitavamalguma indumentária do morto e vestiam o convidado. Assim, muitas vezesa roupa não cabia perfeitamente. “Depois quando dava as roupas do defunto,o que não era fácil roupa, roupa era uma coisa bem complicada de ter. Nãoé como hoje. Para se ter uma roupa naquele tempo era herdada uma roupa.O mais velho passava para o mais novo” (COELHO, 2014, p. 1). Do mais afortunado ao mais pobre da comunidade, todos tinham a suaroupa de ir à missa, e era normal herdar as roupas de um irmão mais velhoou até de um parente próximo. As brincadeiras e o bom humor em torno damorte são características do homem dito açoriano, como podemos ver nosescritos de Norma Bruno (2011) e na memória do entrevistado Coelho (2014). [...] aí hein o defunto era maior!, quando se dava uma roupa grande, o que quer dizer isso, que o cara falou que o defunto era maior, quando se a pessoa tá com a roupa maior é porque ele herdou de algum defunto que era maior do que ele. [...] Depois quando dava as roupas do defunto, o que não era fácil roupa, roupa era uma coisa bem complicada de ter. Não é como hoje. Para se ter uma roupa naquele tempo era herdada uma roupa. O mais velho passava para o mais novo (COELHO, 2014, p. 1).
296 Colóquio NEA 30 anos de História O escritor português João Leal refere que os ritos de morte surgemigualmente associados a um conjunto de dádivas e contra as dádivas denatureza alimentar. Esta ceia tem lugar cerca de uma semana após a realização do enterro no seguimento da chamada missa do vestido de alma. Esta missa recebe a designação da crença segundo a qual a alma do morto se deve apresentar diante de deus com um vestido novo e de festa. Esse vestido – ou fato – é comprado expressamente para o efeito é envergado durante a missa por um parente próximo do morto, escolhido de acordo com a vontade deste. Muitas pessoas na freguesia consideram que se este ritual não for realizado, a alma do morto “não sobe ao céu”. [...] No qual participam a totalidade dos parentes de primeiro grau destes. (LEAL, 1994, p. 87). Parentes e amigos reúnem-se na casa do falecido e aguardam na sala oconvidado para cobrir esta alma. O escolhido entra num quarto da casa maispróximo da sala, onde os convidados estão reunidos para ouvir e presenciaro rito da coberta d’alma, outro familiar que irá acompanhá-lo no quarto paraser a testemunha ocular, que vai assessorar o convidado, entregando-lhe peçapor peça das vestimentas, dizendo-lhe em bom tom o nome da vestimenta,para que as pessoas convidadas ouçam da sala ao lado o ritual a seguir. Apósacender uma vela diz: veste a camisa, veste a calça e assim por diante, semprecitando o nome do convidado após o de cada vestimenta. Todo o rito é entoadoem voz alta e clara para ser bem ouvida em todas as dependências do recinto.Já devidamente trajado, o agora “familiar” entra na sala, cumprimenta a todoscordialmente e os abençoa, se possível, dizendo o nome e o grau de parentesco.Os familiares que estão esperando na sala recebem a pessoa, que, agora vestidacom a coberta d’alma, se aproxima e há uma transformação. O eleito queveste a coberta d’alma não é mais ele, e sim o outro, o outro que se foi. Háuma espécie de troca, de simbiose, e, nesse processo os familiares irão pedira benção dizendo: “Benção, vô; benção, vó; benção, tio; benção, pai; benção,mãe”. Se for afilhado, pede-se a benção ao padrinho e assim sucessivamente atéo último parente ou amigo que na sala estiver. Se o falecido for um jovem, umacriança, os mais velhos o abençoam; se houver missa de sétimo dia, esta serárezada no templo/igreja. É respeitoso que todos da comunidade participem eleve uma palavra amiga à família. Se a casa que o falecido morava situa-se muito longe da igreja ou dacomunidade, a família enlutada vai arrumar um ministro da eucaristia ouuma rezadeira, a fim de fazer umas orações e rezar o terço. Depois todossão convidados a ficarem para o jantar, no qual são oferecidos os pratos depreferência do falecido. Servem-se porções bem generosas aos convidados,
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 297sempre muito bem recepcionados pelo membro que veste a coberta d’alma, quedeve agradar a todos com alegria e simpatia, como se realmente fosse a pessoafalecida que ali estivesse servindo. “Após a cerimônia todos compartilhavamde uma refeição onde as homenagens tinham continuidade” (BRUNO,2011, p. 2). Se o morto gostava de frutas e verduras, serão servidas as que ele maisgostava. Se o falecido gostasse de charuto, cachimbo ou cigarros, a pessoaque usa a coberta d’alma é convidada a fumar. Além disso, esta pessoa sesentará à mesa próxima ao viúvo(a), no mesmo lugar em que a pessoa sentava.“A cerimônia do vestido d’alma incluía também uma refeição comum dafamília, depois da qual, normalmente, se procedia à realização das partilhasdos bens” (PERDIGÃO, 2011, p. 2). No final do ritual, depois que todos tiverem confraternizado, contadovários causos e contos, muitos dos quais vividos com e pelo falecido, chega omomento do envio. É encerrada a cerimônia, e todos se cumprimentam. Nessemomento, permanece um clima de forte relação entre a família e o convidadoque recebeu e vivenciou tal rito; que passa a ser moralmente um membro dafamília. Como nos diz o cineasta Montanari: No momento do envio, um familiar mais antigo conduzirá o convidado que veste a Coberta D’Alma até junto da porta de entrada da residência e olhando em direção ao portão de entrada, para o horizonte diz em voz alta: dizendo o nome do falecido. Tu já recebeste uma roupa nova. Já ganhastes uma janta. Já estás bem alimentado. Já te demos de beber. Já oramos por você. Já demos tudo do melhor que tínhamos de dar. Então vá com Deus, descanse em paz e nos deixe em paz, (é feito o sinal da cruz) amém. (MONTANARI, 2004, não pagina). O filme de Hique Montanari (2004) mostra a personificação do recém-falecido por um familiar ou amigo escolhido em vida ou pelos familiares apósa morte, que, ao reverenciar a alma do falecido nesse ritual, libera a alma deleno mundo dos vivos em direção ao paraíso. Já o sociólogo alemão Arnold Van Gennep mostra em seu livro Os ritosde passagem, os rituais de separação, entre os quais podem-se citar: os diversosprocedimentos de transporte do cadáver para fora da casa ou comunidade,queima de utensílios da casa, de joias e riquezas do morto, as lavagens, unçõese, em geral, ritos chamados de purificação. Além disso, existem procedimentosmateriais de separação, a saber, fosso, caixão, cemitério, grade, colocação deflores, montes de pedra, etc., os quais são construídos ou utilizados ritualmente(GENNEP, 1977, p. 138). Os procedimentos que Van Gennep cita em seu livroajudam o homem a amenizar a dor sentida com a perda do seu ente querido.
298 Colóquio NEA 30 anos de História A coberta d’alma era uma obrigação que, segundo seus praticantes, nãopoderia deixar de ser feita. Caso contrário, a alma do falecido ficaria vagando enão encontraria a paz, e também não deixaria ninguém em paz. Padre ErnestoFerreira, em suas vivências na Ilha de Ponta Delgada-Azores, relata-nos quedevemos dar a coberta d’alma para que o falecido não vá nu para o outromundo. Quando uma pessoa morre, a família veste uma outra do mesmo sexo da falecida para a alma desta não andar nua no outro mundo. É o que se chama a roupa ou vestimenta da alma, que consiste no trajo completo do defunto, desde a ponta dos pés à cabeça, e que é dado a quem ele em vida indicou ou, na falta desta indicação, a quem os herdeiros querem beneficiar. Com a vestimenta da alma há-de o defunto aparecer na ressurreição dos corpos, no dia do juízo final. (FERREIRA, 1943, p. 234). Era um ritual praticado por várias famílias brancas, negras, ricas epobres do litoral catarinense, as quais procuravam fazê-lo para proporcionara salvação ao seu ente querido. “Vestir o cadáver com a roupa certa podiasignificar, se não um gesto suficiente, pelo menos necessário à salvação” (REIS,1991, p. 124). O padre e filósofo Evaldi Pauli nos conta que, “Quem não dá a CobertaD’Alma, provoca recriminação geral. Mesmo as pessoas que não admitema crença, a dão para evitar conversas. Há os que a dão simplesmente comocostume recebido” (PAULI, s/d, p. 2). Uma coberta d’alma muitas vezes era o momento ou a situação que osherdeiros do falecido esperavam para se organizarem, no sentido da partilhados bens, das ofertas à igreja a qual ele frequentava, da definição de quemtrataria dos gados, das lavouras, das contas do banco, do testamento e até demelhorias no túmulo do falecido; tudo muito bem explicado, muitas vezes poralguém já escolhido anteriormente pelo então falecido. “Os testamentos dãotestemunhos eloqüente de quanto era fervoroso nos antigos micaelenses oculto dos mortos” (FERREIRA, 1943, p. 234). Muitas vezes os filhos consideravam a quem vestia uma coberta d’almacomo se fosse o próprio pai e pedem-lhe conselhos, um ajutório, ouvemopiniões sobre lavoura, casamento, namoro, negócio ou qualquer assuntofamiliar. Colocar seus desejos finais em testamento era o que faziam algunsdescendentes de açorianos, deixando em vida algumas recomendações para suaderradeira viagem. Nesse processo, o relato da entrevistada Cândido evidenciao desejo dela de se cumprir o ritual da missa de sétimo dia, dispensando o
Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina 299ritual da coberta d’alma. Dizendo, ainda, que foi da vontade de seu pai que nãofizessem uso do luto total: [...] eu gostaria, mas agora não se usa mais e agora não vou dar a roupa. Estão espero que façam a missa do sétimo dia. Hoje a família se reúne e faz a missa do sétimo dia. [...] A Coberta D’Alma não precisa. Eu também achava e o esposo achava. Acho que aquilo é besteira [A Coberta D’Alma] não precisa. Aquilo não vale nada para a alma. [...] Pra mim não. Me façam tudo como eu quero, como eu desejo de fazer. Mas roupa isso não. Mas, missa de sétimo dia eu quero. Depois outras missas. (CÂNDIDO, 2104, p. 2). Podemos observar que o açoriano valoriza o momento da morte do entequerido, testemunhando, ritualizando e mostrando perante a comunidadeum ritual que dê importância ao ser humano. O imigrante açoriano temuma família dotada de uma fé católica, vivenciada com práticas populares,sempre enaltecendo seu passado e relembrando seus ancestrais através de ritosreligiosos. “Os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente ao seio dosgrupos reunidos e que destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos estadosmentais desses grupos” (DURKHEIM, 1989, p. 38). Emile Durkheim evidencia que vivemos em grupos e estamos sempreconstruindo relações de coletividade através dos rituais. Uma forma de respeitocom o ente querido em terras portuguesas é evidenciado por Leal: “Os ritos depassagem mais importantes: o casamento e os ritos relacionados com a morte.O luto, em particular é especialmente constrangente nesta área do parentesco,devendo prolongar-se por cerca de um ano” (LEAL, 1994, p. 81). O açoriano cristão procura viver com objetivo na vida eterna. Segalen(2000) nos atualiza dizendo que o mundo moderno vai perdendo seus rituais,vivendo em sociedade em um mundo secular e industrializado, deixando delado suas tradições. Quando mais complexas as sociedades se tornam menos ritualizadas são, uma posição comum por volta dos anos 70. Os ritos, e mesmo as cerimônias, tem tendência a cair em desuso em situações modernas urbanas, onde a base material da vida, a fragmentação das funções e das atividades separam as funções sociais (SEGALEN, 2000, p. 35). O historiador e escritor Vilson Francisco de Farias nos conta que oaçoriano valoriza o momento da morte e do luto de seus familiares, prestandosua homenagem com a coberta d’alma e a missa de sétimo dia. A cultura de base açoriana de Santa Catarina tem uma relação muito forte com a morte. O luto, a coberta d’alma e a crença nos mortos
300 Colóquio NEA 30 anos de História são valores sentimentais ainda presentes em nossa comunidade. “A cerimônia que marcava a despedida do falecido de seus familiares era a coberta d’alma, que ocorria na missa de sétimo dia. Durante a missa, trajando as roupas do defunto, ficava este à frente da assistência, junto à família, marcando a despedida destes familiares”. “Quando morre alguém da família, oferece-se a roupa do morto a alguém de quem mais se gosta, para que ela se apresente junto à família na missa de sétimo dia” (FARIAS, 2004, p. 392).1 A morte pode inspirar temor e que devemos dar a nossos mortos umenterro digno, com rituais de passagem. Reis (1989), em sua obra A morte éuma festa, escreve: “Como é comum nas sociedades tradicionais, não haviaseparação radical, como hoje temos, entre vida e morte, entre o sagrado e oprofano, entre a cidade dos vivos e dos mortos. [...] Enterrando-os segundo osritos adequados” (REIS, 1989, p. 74). A missa de sétimo dia não pode deixar de ser celebrada, é uma forma deapoio à família enlutada; é nesse momento que vizinhos e amigos levam seuombro amigo e suas palavras de apreço ao falecido. A missa de 7o dia, junto com a celebração de corpo presente, é umamissa a fim de valorizar o falecido e trazer seus feitos em vida, na forma deelogios ao final da missa ou na homilia do padre. Os ritos se encarregavam em acompanhar o corpo do leito ao túmulo, muitas pessoas deixavam escrita toda a forma de ritualística mencionada em seu testamento. Muitas vezes o testamento deixava claro a vontade do falecido, de ter uma missa logo após o falecimento, no momento da separação da alma do seu corpo. Pedia-se também que o corpo fosse levado até a igreja, no dia do enterro, a fim de ser realizada a missa de corpo presente (A missa de Réquiem na liturgia romana). No momento da entrada do falecido era muito comum ser cantada a Salve Regina. Logo em seguida vai o corpo direto para o sepultamento, com uma benção no túmulo, seguindo após uma semana; uma missa de sete dias e após uma missa de um ano de falecimento ou aniversário de morte. (ARIES, 1987). Um corpo presente e uma família enlutada, onde o ritual é, sim, parareviver o falecido e manter a tradição religiosa. O luto devia ser respeitado emantido, cada familiar tinha um prazo estabelecido de guarda, segundo padreEvaldi Pauli.1 Nesta citação, o historiador Vilson Farias dialoga com a sua entrevistada: Laura Ombelino dos Santos, residente na localidade de Praia Comprida, São José (SC).
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