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coloquioNEA30anos-OK2016x

Published by Paroberto, 2016-10-15 21:16:57

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Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  301No passado o luto envolvia detalhes que aos poucos se amenizaram,quer entre lusos, quer entre alemães, quer entre italianos. Em SantaCatarina os lusos atendem mais do que os alemães. O luso é mais visuale mais sentimental. Ao luto se chama ‘Sinal de sentimento’ (expressãoverificada em Sombrio, 1950). Falecendo-lhes os pais, o luto dos filhosé de um ano. Muitos homens, nem todos, ao lhes morrer o pai, oumãe, deixam crescer a barba, algumas semanas, às vezes vários meses(observado, em 1950, no interior de Araranguá). Para aliviar as despesasdo luto, apela-se ao tingimento. É o que se faz sobretudo no primeirodia do falecimento. O excesso do luto, quando decorre do simplismodas pessoas, tende a diminuir com o desenvolvimento cultural. Areligião dos simples se concentra no culto aos mortos. Mas o culto aosmortos não é o principal em religião. As exterioridades do luto foramdiminuindo, sobretudo nas cidades. (PAULI, s/d, p. 3).A prática da coberta d’alma para além da cultura ditaaçoriana A cultura dita açoriana, assim como qualquer outra cultura, é umainvenção, faz parte do processo de construção de identidades. A própria ideia de um passado ou de uma memória como dado relevante na construção das identidades pessoais ou coletivas é por natureza conservadora e reacionária. Neste sentido, é inventado um conjunto de tradições com o objetivo de criar e comunicar identidades (BARBOSA; ESPINDOLA, 1992, p. 6). De acordo com Hobsbawn e Ranger (1984. p. 9): As tradições inventadas são um conjunto de práticas de natureza virtual ou simbólica, que visa inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com o passado histórico apropriado. Os africanos nos deixam legados também no âmbito espiritual, sendoum deles a questão da finitude, com seus rituais de passagem como relata aHistoriadora Mary de Priore (2006, p. 35): A existência de práticas fúnebres, assim como a consciência frente a finitude, definia, no passado de nossos ancestrais africanos, categorias simbólicas e práticas sociais que só recentemente começam a ser

302  Colóquio NEA 30 anos de História repertoriadas. [...] a história da região que vai do Senegal a Angola, de onde veio a maioria de nossos ancestrais africanos, revela a presença de povos, desde a muito, conhecedores da agricultura, do ferro e, sobretudo, de rituais fúnebres. Podemos vislumbrar o rito de passagem da coberta d’alma como umritual africano e prestar atenção em suas semelhanças com o cerimonial queveio para o litoral catarinense, mostrando que a morte para o africano era maisque uma passagem. [...] um ritual que o próprio defunto preside o funeral vestindo das mais belas vestimentas, com o falecido sentado na sala, onde os familiares, os membros da linhagem se reúnem para comer, beber e cantar louvações ao desaparecido, que constituem uma maneira de prolongar sua existência aqui. Sacrifícios são realizados para ajudar o espírito do morto a passar ao mundo dos espíritos sem causar problemas aos que aqui ficam. [...] Entre os iorubas (Nigéria e Daomé) e os mosi (Alto Volta), ocorre de um parente do defunto – sua mulher de preferência – vestir-se com as roupas dele, imitar-lhe os gestos, a maneira de falar e as eventuais desgraças físicas, usando sua bengala ou lança. Os filhos do morto chamam ‘Pai’; as esposas, ‘Marido’. [...] Nossos ancestrais sabiam que deviam morrer para que a alma e espírito pudessem começar uma nova aventura; para eles, a morte não era mais que uma passagem. (PRIORE, 2006, p. 53). A cultura africana está chegando às terras portuguesas, trazendo umareligiosidade diferente. A escravidão na África começa com seu próprio povo,as tribos brigavam entre si, e as populações derrotadas nessas guerras serviamcomo recompensas. Aqui segue um extrato da obra de José dos Reis, contandoque africanos e portugueses mantinham laços com relação à prática de bementerrar seus mortos. Há evidências de que os africanos mantiveram no Brasil muitas de suas maneiras de morrer, mas sobretudo incorporaram maneiras portuguesas. Isso se deveu em grande parte à repressão da religião africana no Brasil escravocrata, mas também a que a dramaticidade ritualista dos funerais portugueses permaneceram fiéis a estilos funerários ligados ao catolicismo do reino (REIS, 1999, p. 91). Em muitos lugares de Santa Catarina, os costumes ultrapassam fronteirasreligiosas ou não, como conta o filósofo Evaldi Pauli, em suas visitas a campocomo professor pelo estado.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  303 Em Santa Rosa, denso povoado lusitano do sul do estado, com uma igreja de grande movimento, o uso da Coberta D’Alma, os anos de 1950, era mantido em cerca de 95% das famílias. Entretanto se dizia que os Emerim (anteriormente Emmerisch, de meia ascendência alemã), aos lhes falecer o pai, foram talvez os únicos a resistir ao hábito (PAULI, s/d, p. 2). O filósofo e escritor Evaldo Pauli, quando professor da UniversidadeFederal de Santa Catarina, escreveu um texto, para o site do Centro de Filosofiae Humanas, intitulado desafio dos olhos azuis, no qual conta a história relatadapor moradores de São Pedro de Alcântara, município de São José (SC), estetexto nos diz que alguns militares alemães que lutaram juntos com o Brasil naGuerra Cisplatina obtiveram êxito, foram vitoriosos, sendo assim, receberiamdo governo brasileiro alguns lotes. Depois de algumas burocracias, cercade 50 soldados foram viver na comunidade alemã. Durante esse período deconvívio na Colônia Alemã de São Pedro de Alcântara, um desses soldados foiconvidado a viver o ritual de passagem da coberta d’alma. [...] Pompeu anda triste. Que sentes? – pergunta-lhe o próspero Harbele, seu tutor. – Que isto de Coberta D’Alma? É coisa que os alemães não ouviram falar, meu caro. – Uma roupa nova, para entrar no céu, respondeu Pompeu, com a voz cantante de açoriano. A gente dá a Coberta D’Alma a uma pessoa pobre, que a vestirá ao assistir a missa de sufrágio. No outro mundo, a Coberta D’Alma ela serve de roupa no céu. – E se não se der a Coberta D’Alma? Pois os alemães nunca a deram. – Então o defunto aparece nu, sinal de que está aguardando. Pois a murrinha me aparece de quando em quando, diz Scwanz, como bruxa feia e nua. Quem sabe? Uma Coberta D’Alma?... Pois sim, que fique esperando pelada... Uma cerimoniosa missa, encomendada por Harbele (protestante), ao Arcipreste da Província, Pe Joaquim de Santana Campos, e a Coberta D’Alma vestida quase gaiatamente por Schwanz... pôs termo as dificuldades de Pompeu (PAULI, s/d, p. 5). A escritora Lélia Nunes de Souza (2011) da Academia Catarinense deLetras nos conta, em sua crônica/homenagem, o quanto é relevante manteras tradições e homenagear no mundo dos vivos aqueles que nos deixam umlegado de histórias, casos e alegrias. Abaixo reproduzimos a sua homenagemao “Mané Seu Arante” (+25/12/2012) do Ribeirão da Ilha de Santa Catarina. Um enterro à moda antigo, alertará seu filho arantinho (um apaixonado pelos Açores e zeloso guardião das nossas tradições) ao comunicar o falecimento do pai na noite de Natal. Fiquei pensando o que seria o tal

304  Colóquio NEA 30 anos de História ritual antigo para os meus amigos do Pântano do Sul, onde o passado sobrevive nos usos e costumes como a doçura da mesa dos inocentes, as benzedeiras. Os buxedos, a farra do boi, a malhação do Judas, o entrudo, o carnaval, o pão-por-Deus, a Festa do Divino Espírito Santo e a mítica coberta d’alma, será que eles também costumam fazer? Costumam e será trajada por um filho na missa de sétimo dia. O velório foi na casa da família e varou a madrugada. O enterro seguiu a pé até o cemitério lá no alto do costão, mas antes passou na Igreja para a missa de corpo presente (SOUZA, 2013, p. 1). O historiador Machado (2013) afirma que a coberta d’alma fazia parteda vida do josefense e via no escolhido alguém que amenizasse a sua dor ediminuísse a saudade sentida. No ano de 1969, na localidade de Ponta de Baixo em São José, uma comunidade típica de oleiros e de pescaria artesanal, registrou-se um dos últimos acontecimentos da Coberta D’Alma, onde a família de Isaura Tasca (Nasceu em 1918) doou as roupas de seu falecido marido Hermínio Tasca, a Otacílio Ramos, mais conhecido como Tatá, que cumpriu todo o ritual da tradição. Embora se tratando de uma tradição cultural remota e de segmentos de gerações, meses depois, familiares relembravam a dor e a saudade sentidas, quando o Senhor Tatá passava pela frente da rua em frente de suas casas com as roupas do pai. (MACHADO, 2013, s/p).A prática da coberta d’alma no município de PauloLopes (SC) No que se refere ao rito de passagem da coberta d’alma, no municípiode Paulo Lopes, abaixo reproduzimos alguns trechos dos entrevistadosexpressando como esta prática ocorria. A entrevistada Pereira nos dá a noçãode vivência em família, a partir da religiosidade popular e da espiritualidadecatólica, pela experiência vivida na missa de 7o dia: Quando meu pai faleceu, na sala (velório), a gente que chamou o irmão dele, um só que ele tinha e se chamava Arthur, um dia a gente pediu a ele se ele podia vestir a roupa, aí o tio disse: visto a roupa com muito prazer, que ia vestir a roupa porque eram irmãos, aí quando chegou dali a sete dias, aí ele veio, a gente tinha comprado calça, camisa, sapato e meia, colocamos tudo em cima da cama e chamamos um que era cunhado dele (mestre de cerimônia) para vestir a roupa. (PEREIRA, 2014, p. 1).

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  305 Toda comunidade tinha uma pessoa como referência, que conduziaas celebrações de coberta d’alma. Essa pessoa era respeitada e muitas vezestratava-se de um amigo(a) do falecido(a), a quem se destinava a cobertad’alma. Após abençoar os presentes, aquele que veste a coberta d’alma seráconvidado a abrir janelas e portas da casa, que estavam fechadas em respeitoà alma do falecido. [...] eles fechavam a casa toda, no dia que saia o que morria, que sai para sepultar, fechavam toda a casa, só iam abrir quando fazia 07 (sete) dias, a pessoa que usava a Coberta D’Alma que abria a casa toda, isso era guardar o luto. (SANTOS, 2014, p. 2). Agora, com a casa respirando novos ares, todos são convidados a fazerum café reforçado, com as roscas, doces e salgados de que o falecido gostava. Quando terminou o rosário (terço), a gente pediu o João Severino (nome do falecido) abrir as janelas, 07 (sete) dias as janelas ficaram fechadas, aí a pessoa que veste a coberta, abre as janelas, as portas e depois veio, e foi servido um café com rosca, bolo, café com leite, tapioca, a gente servia um café do que ele (falecido) mais gostava. (PEREIRA, 2014 p. 2). Os moradores conviviam com a coberta d’alma e agiam com naturalidadequando mudavam de cidade e ficavam diante de pessoas que viviam essaespiritualidade, que acreditavam na missa de sétimo dia; assim, por respeitoao novo vizinho, aceitavam esse ritual fúnebre. O respeito é uma das maioresvirtudes do açoriano descendente e, para manter o bom relacionamento entrefamília, é ali o berço da escolha para o uso da coberta d’alma. Dei para os sobrinhos, o sobrinho mais velho ganhou roupa, usou nas missas, roupas boas, calças boas que ele tinha. Quantas vezes que este sobrinho usou roupas na missa, eu via, olhava, era a calça dele (esposo). O relógio eu dei para o sobrinho mais velho, ele usou o relógio muito tempo. Também dei roupas para outras pessoas, mas as melhores, tipo o relógio dei para este sobrinho, que era pobre, ele nunca tinha usado um relógio, por causa do tio que veio a falecer ele usou. (CÂNDIDO, 2014, p. 2). Dar uma roupa nova, um relógio, uma arma, uma ferramenta ou atéuma herança a quem usasse a coberta d’alma era uma prática comum emPaulo Lopes. Muitas vezes era o desejo do falecido, que já deixava determinadoquais seriam as roupas da sua última viagem, e assim era feito, como relata aentrevistada Pereira.

306  Colóquio NEA 30 anos de História Tudo roupa da venda, a gente comprou com o dinheirinho que sobrou da herança dele. O dinheiro que ele tinha, com este dinheiro compramos a roupa, até tem a camisa do meu pai, foi a afilhada dele que deu (Maria Jacinta). (Quanto ao enterro) Aí ele disse assim, essa camisa guarda para minha última viagem, e assim foi feito, guardamos a camisa. Ele foi para o céu com uma camisa bege e um terno marrom para a viagem, e uma meia marrom. (PEREIRA, 2014, p. 2). Fazer uma viagem, era assim que muitos, em Paulo Lopes, compreendiama morte, até que o paulo-lopense teve contato com outras comunidades ereligiões, e aos poucos foi se afastando da religiosidade popular, ignorando acoberta d’alma e fazendo somente uso da missa. Se algum amigo queria ir ia. E da família eram todos convidados, a família ir, alguns sobrinhos, se as pessoas quisessem ir ia, mas a gente acha que depois a gente acha ia na igreja e rezava a missa de sétimo dia. Eu acho que era assim, que foi assim, de sétimo dia, como hoje a gente faz. Então hoje não se veste aquela roupa. Do Domingos (esposo) eu não fiz a roupa, eu não fiz nada, fiz si, a missa de sétimo dia. (CÂNDIDO, 2014, p. 2). O convite era aberto a todos os familiares, amigos e vizinhos. Assimera missa de sétimo dia, um ritual feito após a família passar uma semanarefletindo, chorando e repensando como começar a nova jornada sem o entequerido. A missa de sétimo dia se apresentava como um começo de vida novaaos familiares e uma demonstração de respeito, em forma de luto, e a viúvausava preto por um ano e depois ia amenizando as cores. Nos sete dias de luto até ser dada a coberta d’alma, ficava-se 07 (sete) dias sem varrer a casa, sem ir a pescaria, sem ir a lavoura, sem amassar os pães e sem dar comida (trato) aos animais. No tempo de luto, a família enlutada era alimentada e cuidada pelos parentes e vizinhos próximos, que muitas vezes ficavam com as lidas do dia a dia. (COELHO, 2014, p. 1).Considerações finais Quando realizamos a pesquisa para execução do Trabalho de Conclusãode Curso, ficou explícito que os entrevistados e praticantes da coberta d’almasão, em sua maioria, praticantes da religião católica, que frequentam as missas,batizam os filhos, acreditam em pedidos feitos aos santos, em benzeduras,crendices e nas religiosidades populares, deixando a entender que continuarãoprestando homenagem aos mortos, segundo os cerimoniais de sua religião.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  307 Algo com que nossos entrevistados concordam é que a coberta d’almareunia pessoas, em momentos para rezar, dar apoio aos familiares e gerarum ambiente propício ao perdão e ao bom relacionamento entre vizinhos,amigos e familiares. O entrevistado Coelho relata que, para vestir a cobertad’alma, a pessoa elegia alguém já em vida, em geral um amigo mais chegado.Ser escolhido era sinal de muito respeito entre os familiares e a comunidade.Quase um prêmio para quem a recebia. Segundo os entrevistados, as pessoas mais jovens não têm interesse emaprender sobre a coberta d’alma, um rito de passagem que fora muito utilizadopor seus pais, avós ou pessoas mais idosas da comunidade. As pessoas quedeixam a comunidade e vão trabalhar nos centros urbanos acabam perdendoo costume do luto. Percebemos que a coberta d’alma é de importância como ritual depassagem para a cultura dita açoriana, em que rememorar é preciso, sabendoguardar o passado, preservando a memória da cultura açoriana no municípiode Paulo Lopes. Muitos entrevistados disseram que fazer a coberta d’alma é umabesteira, por não ter fundamento bíblico, e a família não ver sentido no ritual,por falta de crença e ver que a missa de sétimo dia já cumpre esse papel. É oque nos relata a entrevistada Cândido: “A Coberta D’Alma não precisa. Achoque aquilo é besteira, não precisa aquilo não vale nada para a alma. Acha quevale? Pra mim, não! [...] Mas, missa 7º dia, eu quero” (CÂNDIDO, 2014, p. 2). Na secularização as “coisas” da igreja vão perdendo espaço. Dessaforma, o povo deve se conscientizar da sua efetiva participação nas tomadasde decisões de políticas públicas do município e da Igreja. “Os ritos, e mesmoas cerimônias, tem tendência a cair em desuso em situações modernasurbanas” (SEGALEN, 2000, p. 35). É o povo trocando a espiritualidade (missae religiosidade popular) por outros compromissos, tipo lojas, salão de beleza,futebol, praia, internet e redes sociais. A cultura dita açoriana na cidade de Paulo Lopes vem, com o passardos anos, diminuindo. Isso é perceptível entre os habitantes mais antigos, e,durante as entrevistas, percebemos que os moradores e familiares da cidadenão estão conseguindo passar a tradição da coberta d’alma de pai para filho. Enos perguntamos por quê. A cidade invade o campo procurando o turismo rural, um silêncioque a cidade não produz, é o retorno do paulo-lopense ao campo, depoisde aposentado, trazendo um nova leitura da sua cultura e espiritualidade,a partir daquilo que ele viveu nos centros urbanos. O campo foge para acidade procurando um mundo moderno, esse foi o êxodo rural ocorrido nadécada de 1970 e 1980, época em que as pessoas procuravam loteamentos

308  Colóquio NEA 30 anos de Históriasem infraestrutura no entorno da Grande Florianópolis. Em busca de umaeducação de excelência, o morador de Paulo Lopes (SC), com o auxílio daPrefeitura Municipal, envia seus filhos para procurar ensino técnico e superiornos grandes centros. Os ilustres filhos dessa cidade começam a absorver novasperspectivas, escolares, profissionais, espirituais, namorando e casando-se compessoas de outras religiões, gerando, assim, novos valores e uma diversidadecultural. Poucos padres hoje aceitam a religiosidade popular. Alguns a veem comoutros olhos, outros enxergam pecado em tudo, especialmente no combate àsbenzedeiras. O ditado popular, verbalizado por um de nossos entrevistados:“praga de padre pega” (COELHO, 2014, p. 3), é intimidador. Nas localidadesmais distantes da cidade de Paulo Lopes, o padre é uma pessoa de prestígioe credibilidade. Quando ele afirma que a coberta d’alma faz parte do mundoprofano, o povo tende a acreditar, contribuindo, assim, para que a prática desserito seja interrompida. A oferta maior de espiritualidade, através de novas igrejas protestantes,tais como: Deus é Amor, Assembleia de Deus, Adventistas do 7o Dia, alémde algumas pessoas de umbanda e candomblé, alteram consideravelmente aprática religiosa antes estabelecida. Elas trazem um maior número de líderesreligiosos, oferecendo pregadores no momento do funeral e de dor da famíliaenlutada, não havendo mais necessidade do ritual da coberta d’alma. Alémdisso, observa-se também que os jovens casam-se com pessoas de credodiferentes, dificultando a manutenção das práticas religiosas absorvidasdurante a sua sociabilidade anterior. Mesmo com a chegada da modernidade, a memória religiosa nãofoi apagada, o católico e as pessoas em geral encontram novos e diferentescaminhos para chegar ao destino final, chamando este dia por dia da viagem.As maneiras de cultuar as religiosidades populares foram se alterandoconforme as transformações sociais, mesmo assim as celebrações ritualísticaspermanecem mesmo que resignificadas. Os cristãos de Paulo Lopes ainda sepreocupam com a passagem para o paraíso, o caminho para a salvação. As possibilidades de estudos sobre o tema pesquisado não se esgotamaqui, além do que, há muitas outras questões latentes, para pesquisas futuras,relacionadas à coberta d’alma. Um estudo que tivesse por finalidade mapearessa prática no litoral catarinense seria de fundamental importância. Aampliação da escala, através de comparativos da prática desse rito de passagem,entre as diversas localidades, estabelecendo nexos, similitudes, diferenças,continuidades e descontinuidades, com certeza, daria uma melhor amostragempara que essa prática não se perca nas malhas do acaso e descaso do passado.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  309ReferênciasALBERTI, Verena. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.ARIES, Philippe. O homem diante da morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1989. Volume 1.AZZI, Riolando. A cristandade colonial: um projeto autoritário. São Paulo: Paulinas,1987.BARBOSA, Carlos Henrique; ESPÍNDOLA, Marcos Aurélio. Identidade açoriana:um horizonte teórico – subsídios para o estudo de enquadramento de indivíduose comunidades. 1992. Trabalho de Conclusão de Curso (História) – UFSC,Florianópolis: 1992.BARCELOS, João Maria Soares de. Dicionário de falares dos Açores: VocabulárioRegional de Todas as Ilhas. Coimbra, PT: Editora Almedina, 2008.BRUNO, Norma. Coberta d’Alma. Blog O espírito da cidade. Florianópolis, 2 nov.2011. Disponível em: <http://normabruno.wordpress.com/2011/11/02/coberta-d-alma/>. Acesso em: 7 set. 2014.COSTA, Sandro da Silveira. Santa Catarina, história, geografia, meio ambiente,turismo e atualidades. Florianópolis: Postimix, 2011.CROATTO, José Severiano. As linguagens da experiência religiosa: uma introduçãoà fenomenologia da religião. Trad. Carlos Maria Vásques Gutiérrez. 3. ed. São Paulo:Paulinas, 2010. (Coleção Religião e Cultura).DALL’ALBA, João Leonir. Laguna antes de 1880. Porto Alegre: Meridional, 1979.DURKHEIN, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico naAustrália. Ed. Paulus, São Paulo, 1989.ELIADE, Mircea. O Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.FARIAS, Vilson Francisco de. São José: 250 anos ‒ natureza, história e cultura: SãoJosé: Ed. do Autor, 1999.FERREIRA, Ernesto. Ao espelho da tradição. Açores, PT: Gráfica Regional, 1943.FERREIRA, Sérgio Luiz. Nós não somos de origem. 2006. Tese (Doutorado emHistória) ‒ Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2006.GENNEP, Arnold Van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977.GERLACH, Gilberto; MACHADO, Osni. São José: da Terra Firme. São José. Clubede Cinema Nossa Senhora do Desterro, 2007.HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1984.LACERDA, Eugênio Pascele. O Atlântico açoriano. 2006. Tese (Doutorado emAntropologia) ‒ Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2003.LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2007.LEAL, João. As Festas do Espírito Santo nos Açores: um estudo antropológico social.Lisboa: Dom Quixote, 1994.

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A história do NEA em seu acervo fotográfico Leonardo Hermes LemosResumo: Este artigo pretende abordar os temas da preservação e salvaguardado acervo fotográfico do Núcleo de Estudos Açorianos da UniversidadeFederal de Santa Catarina (NEA/UFSC). Foi realizado durante a disciplina deEstágio Obrigatório do Curso de Graduação em Museologia e mostra comoa história e memória institucional está diretamente ligada com a constituiçãodo acervo referido, bem como o processo de conservação preventiva emacervos fotográficos auxilia na preservação destes. Dessa forma, busca-seexplanar sobre a preservação das fotografias tanto no seu aspecto físico comoinformacional, mostrando, assim, que ambos estão interligados e de que formaconstitui a salvaguarda desse patrimônio para a instituição.Palavras-chave: Preservação; Salvaguarda; Fotografias; NEA/UFSC. Podemos dizer que nossas vidas são feitas de registros, os quais muitasvezes se tornam um pequeno congelamento de certo tempo. É isso que fezo Núcleo de Estudos Açorianos (NEA) com a constituição do seu acervofotográfico. O NEA, criado no ano de 1984 pela portaria no 483/GR/84, durante seus30 anos de história registrou, através de fotos, vários momentos do qual fezparte, criando, assim, um acervo com mais de 3.000 fotografias, que mostramos eventos realizados, as palestras ministradas, as reuniões do seu conselhodeliberativo, os eventos para os quais foram convidados. Enfim, uma gamade imagens que, por um instante, foram congeladas e que hoje fazem parte datrajetória do núcleo. Antes de iniciar especificamente sobre o acervo do NEA, cabe lembrar ahistória da fotografia e qual a motivação de se registrar momentos, e como foie é trabalhada a questão da imagem na sociedade humana.

312  Colóquio NEA 30 anos de História O homem por si só já registra fatos desde seus primórdios, issoexplica o fato de existirem as chamadas artes rupestres com desenhos deanimais em pedras e cavernas. Com a nossa evolução, e juntamente com aevolução da sociedade da qual hoje fazemos parte, os modos de se registrarum determinado fato foram sendo modificados. Desde os hieróglifos egípciosretratando histórias de faraós, passando por toda evolução social e troca deculturas, as sociedades humanas registram fatos e suas histórias.2 A fotografia foi, quem sabe, o passo mais importante no registro deacontecimentos que se teve na história. Afinal, antes de ela existir, o modomais convencional para registrar paisagens e retratos era as pinturas. Com acriação da fotografia, ficou muito mais fácil e rápido fazer tais registros. As primeiras experiências na captação de imagem que utiliza o princípioda fotografia ocorreram no século XVIII,3 mas foi apenas no século XIX queela surgiu e se espalhou para o mundo todo. As primeiras imagens são feitascom nitrato de prata, e não existia um negativo, então elas facilmente eramdissolvidas no tempo, por não haver um aglutinante que as fixasse. Em 1802, T. Wedgwood e Hunfrey Day tentaram produzir silhuetas pela ação da luz [...]. Eles utilizaram uma solução de nitrato de prata [...] e tentaram expor o papel emulsionado numa “câmera escura”. [...] O sucesso foi obtido quando se repetiu a experiência substituindo-se o nitrato de prata por cloreto de prata. OLIVEIRA (1980, p. 10). Com o passar do tempo e a realização de novas pesquisas sobre afixação de imagem através de luz, além de serem substituídos alguns produtosquímicos, a fotografia começou a ser melhorada enquanto experiência, o quea fez evoluir. Não apenas deveria ser criada a fotografia, mas ela precisaria serreproduzida de modo a gerar mais cópias além da original. Afinal, o queaconteceria caso a única imagem fosse perdida ou até mesmo destruída?Dessa forma, em 1841, com o cientista Fox Talbot, surgem as primeirasfotografias com negativos; ele troca o nitrato de prata por cloreto de prata e2 No livro “Introdução à análise da imagem” (2012), Martine Joly explana sobre todo o contexto que envolve a imagem e como ela se desenvolve com a humanidade como forma da comunicação e informação.3 Em 1727 T. H. Schulze realizou experiências com compostos de prata. Ele tentava obter uma impressão numa superfície coberta com uma mistura de gesso, prata, ácido nítrico e outros químicos. Ele descobriu que o cloreto de prata (um composto do elemento prata combinado com o elemento cloro), enegrecia sob a ação da luz. O cloreto de prata é o mais importante composto usado em fotografia. (OLIVEIRA, 1980, p. 9).

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  313cria uma solução que gera uma imagem na superfície de uma câmara escura,sensibilizada pela luz por um curto tempo. Essa exposição na luz faz surgiro negativo, isso porque as imagens ficavam invertidas nas suas cores, os tonsescuros ficavam claros e vice-versa. Após isso, o negativo conseguiria fazersurgir novas imagens. Com a sua evolução passando do preto e branco para o sépia, e futu-ramente ao colorido, as imagens fotográficas começam a se popularizar e seremutilizadas em vários contextos, desde um retrato de família até na utilização depublicidades. Ela torna-se, no século XX, uma importante aliada à imprensa, eos jornais começam a articular suas reportagens com as imagens. As fotografias que retratam diferentes aspectos da vida passada de um país são importantes – segundo o conteúdo documental que encerram – para os estudos históricos concernentes às mais diferentes áreas do conhecimento. [...] O caráter de reprodução literal e icônica de fragmentos da realidade inerente à essas fontes são indispensáveis enquanto meios de conhecimento dos diferentes tipos de história. (KOSSOY, 1980, p. 19). Vemos, assim, que a fotografia contém uma carga informacional dentroda sua pequena imagem, e que essa carga, além de ser um pequeno registro notempo, é um registro de pessoas e culturas que se convergem em informaçãopara o futuro. O NEA busca, além de registrar sua história, fazer com que ela sejapesquisada e difundida, tendo como propósito a preservação da cultura debase açoriana no estado de Santa Catarina. Isso se reflete pela forma comoo núcleo atua com municípios e instituições do litoral catarinense, buscandosempre estreitar laços, a fim de fomentar e preservar a cultura açoriana noestado. Juntamente com isso vem a conservação do seu acervo fotográfico;afinal, são cerca de 3000 fotografias que mostram momentos dos 30 anos dainstituição na UFSC, bem como dos eventos realizados e dos quais participou. Muitas dessas fotografias mostram momentos não só de importânciapara o próprio núcleo, mas também de relevância nacional, como o registro dacriação da Casa dos Açores de Santa Catarina. São registros tão importantesque cabem a sua salvaguarda não apenas como memória e história insti-tucional, mas também que possam servir como fonte de pesquisa para darprosseguimento à preservação da açoranidade em Santa Catarina. A ideia de preservar o acervo de fotografias se deu no ano de 2014,precisamente no segundo semestre, durante a realização da disciplina deEstágio Obrigatório, momento em que viu-se a necessidade de intervir no

314  Colóquio NEA 30 anos de Históriaacervo para preservá-lo. Dessa forma, o núcleo preocupou-se em conservarcerca de 10% do acervo, ou seja, 300 fotografias. Num primeiro momento, foi analisado todo o acervo, para futuramenteser feito um diagnóstico das condições em que as fotos estavam. Assim, foramobservadas as características das imagens, como as datas, o fotógrafo, o eventoregistrado e tantas outras. A ideia de preservar vem ao encontro de teorias do campo do patrimôniocultural, tanto imaterial como material. Especificamente a museologia Ferrez(1994) nos mostra que os objetos têm em si informações extrínsecas eintrínsecas; ou seja, a primeira diz respeito a toda característica material doobjeto, e a segunda a toda a história e informação que ele tem. Exemplificandomelhor, as informações intrínsecas de uma fotografia seriam seus aspectosfísicos como dimensões, tonalidade, etc. Enquanto a informação extrínsecaseria tudo o que informa a imagem, como as pessoas que estão presentes, suatrajetória até o NEA, mais precisamente seria uma historicidade do objeto. De qualquer forma, pensando nisso, foi tomada uma série de medidaspara preservar o acervo fotográfico do NEA, sendo o primeiro o diagnósticodas 300 fotografias. Nesse diagnóstico, foram colocadas informações nas 300 fotografiastrabalhas. Características que futuramente ajudarão em trabalhos e pesquisasque poderão ser utilizadas tanto no meio acadêmico ou não. Durante a etapa de diagnóstico, foram elencados campos numa ficha quedizem respeito às características físicas e informacionais das imagens. Comocaracterística física tem-se: tamanho da imagem, tipo de papel, se possui furos,cortes, rasgos, manchas, resíduos e qual o grau de deterioração do suportematerial da fotografia. Já para os campos das características informacionaisforam selecionados: a data em que foi tirada a fotografia, o local, o fotógrafo euma pequena descrição da imagem. Tudo isso foi feito para que fosse possível preservar, de maneiraadequada, o acervo fotográfico, percebendo assim particularidades de cadafoto para que futuramente seja mais bem trabalhado e pesquisado o acervo. Essa etapa revelou que grandes partes das fotografias do NEA estãovoltadas a eventos externos que o núcleo promove, sendo caracterizadamassivamente por fotos do AÇOR,1 ou seja, diz respeito à preservação nãoapenas do evento que o núcleo desenvolve, mas de toda a comunidade1 O AÇOR – Festa da Cultura Açoriana de Santa Catarina, foi criado no ano de 1993 pelo NEA, em parceria com o seu Conselho Deliberativo, e se propõe a valorizar a cultura de base açoriana em Santa Catarina, sendo realizadas nessa festa: apresentações culturais e folclóricas, estandes culturais e gastronomia típica. (N.T.).

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  315envolvida. Aqui podemos constatar a questão da memória coletiva2, tratadapor Halbwachs (1990), em que a união de memórias individuais cria umamemória coletiva, que tende a se tornar a memória histórica. A memóriacoletiva torna-se, dessa forma, uma questão fundamental para caracterizaralgo, tratando-se aqui não somente do NEA, mas de todos os envolvidos napreservação da cultura de base açoriana em Santa Catarina. Dessa forma, após os diagnósticos realizados, as próximas intervençõesno acervo seriam dos processos de higienização e acondicionamento, paraque as fotografias ficassem provisoriamente estabilizadas, evitando-se maioresdanos. O primeiro processo, o de higienização, tem por objetivo “limpar”a fotografia. Esse processo envolve a retirada de toda a sujidade que há nafotografia, como pó, resíduos e manchas. A etapa de higienização consiste da utilização de métodos tradicionais mecânicos como a aplicação de pincéis macios, borrachas especiais e pó de borracha em originais avulsos ou em álbuns históricos. Também são utilizados solventes, aplicados em equipamentos como capelas de exaustão, devido à toxidade de alguns produtos. (BARUKI, p. 111). Dentro do NEA foi utilizada apenas a higienização mecânica, porqueas fotografias trabalhadas não necessitavam de produtos químicos para seremhigienizadas. Assim, foram utilizados apenas pincéis, borrachas e bisturi noprocedimento. Posterior a isso, foi feito o processo de acondicionamento, para quea fotografia se mantenha estável, preservando suas características físicase informacionais. Para isso, foram feitos envelopes com papel alcalino paraacondicionar as fotografias, que foram introduzidas numa caixa de poliondabranca, para, posteriormente serem colocadas dentro de um armário, ondeficam isoladas da luz, principal causador de danos nos acervos fotográficos. A preservação de fotografias está diretamente relacionada às estabilidades física e química específicas dos objetos/documentos e também às condições de uso e armazenagem. O acondicionamento das fotografias deve ser considerado como um dos fatores de proteção física e química das fotografias, considerando a sua natureza delicada. As embalagens cumprem papel fundamental na preservação destes documentos. (BARUKI, 2007, p. 115).2 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

316  Colóquio NEA 30 anos de História Todos esses procedimentos estão, portanto, vinculados a um únicofator: preservar a história e a memória institucional do Núcleo de EstudosAçorianos, afinal o NEA, durante seus 30 anos dentro da Universidade Federalde Santa Catarina, consegue mostrar que, além de ser uma parte integrante dainstituição, é um núcleo que se preocupa com a história da UFSC. Assim sendo, o NEA tem, em sua trajetória, importância fundamentaldentro da UFSC e fora dela, pois é um núcleo fundamental para a preservaçãodo patrimônio cultural açoriano, destacando-se sempre nos seus trabalhos coma comunidade e por estar aberto para que todos possam, também, trabalhar acultura açoriana e sua preservação em Santa Catarina.ReferênciasBARUKI, Sandra. Conservação e preservação de fotografias. In: Mast ColloquiaMuseu de Astronomia e Ciências Afins, 2007, Rio de Janeiro. Mast Colloquia Museude Astronomia e Ciências Afins. Rio de Janeiro, 2007. v. 9.FERREZ, Helena Dobb. Documentação museológica: teoria para uma boa prática.Cadernos de Ensaio, n. 2, Estudos de Museologia, Rio de Janeiro: MinC/IPHAN,p. 64-74, 1994.HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. 190 p.KOSSOY, Boris. A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa einterpretação das imagens do passado. São Paulo: Secretaria da Indústria, Comércio,Ciência e Tecnologia, 1980. 51 p.OLIVEIRA, João Socrates de. Manual Prática de Preservação Fotográfica. São Paulo:Secretaria da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, 1980. 47 p.

Gênero do discursivo oral: cantoria da ratoeira Luzinete Carpin NiedzielukResumo: Esta comunicação traz o resultado de parte de um projeto elaboradopela professora/pesquisadora sobre literatura/tradição oral e costumes trazidospelos imigrantes dos Açores, muitos deles adaptados ao litoral catarinense.Neste caso, especificamente, apresentaremos o gênero discursivo oral dacultura popular açoriana – Cantoria da Ratoeira. A pesquisa foi desenvolvidapela professora juntamente com alunos/as do Curso de Extensão da Faculdadeda Maturidade na Faculdade Municipal de Palhoça, em 2010. Como objetivogeral, buscamos mapear e elucidar questões a respeito da citada literatura ede recuperar essa tradição objetivando elaborar material didático-pedagógicopara que o referido gênero seja trabalhado nas escolas, perpetuando, assim,a cultura no município. Consequentemente, pretendemos contribuirpara o resgate e valorização da cultura oral e artística de tradição açorianae palhocense, ainda pouco publicada no município. Para tal finalidade,utilizamos como metodologia pesquisa etnográfica, revisão bibliográfica,observação participante, entrevistas abertas e depoimentos de moradores deorigem açoriana da comunidade em questão. Controlamos variáveis como:idade, sexo etc. Como referências teóricas, nos apoiamos em Bakhtin (1999),Farias (2000), Coelho (2009), Pereira (2003), Piazza (1956), Silva (2010), entreoutros autores. Os resultados desta pesquisa atingiram os objetivos propostos,pois, além de contribuírem para a difusão dessa tradição oral entre os alunos/asde terceira idade e o envolvimento com seus familiares, ainda culminaram napublicação de um pequeno livreto: Caderno da cultura folclórica palhocense– Cantoria da Ratoeira (2010), lançado na Feira da Cultura Palhocense(FECAP) e distribuído em todas as escolas do município, como também emdemais instituições públicas e privadas. Este evento ocorreu entre os dias 24e 26 de setembro de 2010, houve também a participação dos/as alunos/as do

318  Colóquio NEA 30 anos de Históriacurso de extensão da maturidade, que apresentaram a dança Cantoria daRatoeira, envolvendo, assim, várias gerações.Palavras-chave: Literatura oral açoriana; Cantoria da ratoeira; FECAP.Introdução A pesquisa procura mostrar o resultado de um projeto desenvolvido pelaprofessora/pesquisadora, em suas aulas na Faculdade Municipal de Palhoça(FMP), em 2010, com alunos do curso de extensão denominado de Faculdadeda Maturidade. Surgiu da observação da professora de que no município haviapouquíssimo material publicado sobre literatura oral açoriana, especificamentesobre o gênero oral Cantoria da Ratoeira. Este projeto objetiva mapear e elucidar questões a respeito do gêneroem questão e recuperar essa tradição, com a finalidade de elaborar materialdidático-pedagógico para que a essa tradição seja trabalhada nas escolas,perpetuando a cultura no município. O resultado da pesquisa foi publicado em um pequeno livreto, intituladoCaderno da Cultura Folclórica Palhocense – Cantoria da Ratoeira, lançado naFesta da Cultura Açoriana (FECAP), nos dias 24 a 26 de setembro de 2010,no município de Palhoça. Nessa ocasião, também foi apresentada a roda daCantoria da Ratoeira pelas alunas no evento. Esse caderno foi distribuído atodas as escolas do município, como também a outras instituições.Aspectos teórico-metodológicos Para desenvolver a pesquisa, especificamente com relação à concepçãodo gênero de tradição oral, nos apoiamos em Bakhtin (1999). Já no que se referea questões da cultura de tradição açoriana, nos apoiamos em Farias (2000),Coelho (2009), Pereira (2003), Piazza (1956), Silva (2010), entre outros. Utilizamos como metodologia pesquisa etnográfica, revisão bibliográfica,observação participante, entrevistas abertas e depoimentos de moradores deorigem açoriana da comunidade em questão, controlamos variáveis comoidade e sexo, entre outras, e foram coletadas e transcritas as quadrinhas.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  319Gênero de tradiçao oral: cantoria da ratoeira Cantoria da ratoeira A cultura açoriana é rica em cantorias ou cantigas. O ilhéu, marcadopelo isolamento do mar, sente como nenhum outro a saudade. Saudade do quepassou, saudade dos que partiram, saudade dos que ficaram. Assim, cantam-se por todos os Açores diversas modas populares sobre saudade, que têm emcomum, apenas, serem tristes e que variam bastante na sua estrutura rítmica. Tradicionalmente, nos Açores essas cantigas animavam quaisquertrabalhos domésticos ou de roça, e algumas tornaram-se “clássicos” conhecidospor várias gerações e em vários locais. Ressaltamos a riqueza poética dasquadras expressas por pessoas humildes, geralmente lavradores, rendeiras epescadores. A cantoria, ao ser trazida para o litoral catarinense, sofreu algumasalterações. Piazza (1951, p. 165) descreve a cantoria como: Um grande círculo formado por moças e rapazes de mãos dadas. No centro da roda fica um rapaz ou uma moça que canta uma quadrinha, enquanto os do círculo avançam repetindo a quadrinha. Nessas ocasiões desabafam os corações cantando declarações de amor ou desafio aos rivais. Assim, a ratoeira é conhecida como uma dança de roda, ou roda de cantoria,voltada para conquistar um namorado ou uma amizade, em que os participantescantavam direcionando versos que podem ser de amor ou de provocação aos queestavam presentes, e versos preparados também para os ausentes. Esses versosapresentam rima, ritmo, andamento e melodia predefinidos. Ratoeira de ferro e ratoeira simples Segundo Coelho (apud SILVA, 2010), há dois tipos de ratoeira: a ratoeirade ferro e a ratoeira simples. A ratoeira de ferro é uma brincadeira de rodana qual um dos participantes vai para o meio e puxa a cantiga, que pode seruma cantiga tradicional da ratoeira ou um improviso, geralmente envolvendoalgum outro participante, em tom de amor, piada ou provocação, depois outroparticipante entra na roda e faz a réplica, isto é, responde com outra quadra,é assim que a brincadeira tem o seu desenrolar, há um revezamento entre osparticipantes. De acordo com o pesquisador, atualmente esse tipo de ratoeiraé o mostrado em apresentações folclóricas geralmente por grupos de terceiraidade no litoral de Santa Catarina.

320  Colóquio NEA 30 anos de História A expressão “de ferro” significa que a pessoa fica presa dentro da rodaaté o final da cantoria e da dança. É relevante mencionar que, nos Açores, oshomens nunca entravam na roda para brincar, e aqui em Palhoça, apesar denão gostarem muito, alguns brincavam. Quanto à ratoeira simples, esta é maisespontânea, não precisa da roda para acontecer, e ocorria com mais frequênciae vigor em outros tempos. A ratoeira simples acontecia em qualquer ocasião ou situação do dia,podia ser nos encontros das mulheres que teciam a renda, enquanto os maridospescavam no mar, ou quando uma pessoa queria fazer uma declaração de amorà outra (cantava um verso de ratoeira enquanto passava na frente da casa dapessoa desejada, pois em outras épocas não se podia namorar publicamente).Outros faziam versos cantados em tom de crítica a alguma pessoa, um desafeto,uma caçoada. Enfim, era utilizada para muitas situações do cotidiano, comoforma de expressão e também de divertimento. A cantoria da ratoeira de ferro também é uma das poucas expressõesfolclóricas que acontecia espontaneamente, não era programada. Em qualquerreunião, seja na igreja ou em festas e nas casas, um grupo de gurias se juntavae formava uma ratoeira, espécie de roda de mulheres que, aos poucos, foramintroduzindo os homens, ligados uns aos outros pelas mãos. Então formavamum círculo, sendo escolhido alguém do grupo para ficar no centro (a ratoeira)e este devia puxar a cantoria, cantando um verso de improviso para alguém daroda. O grupo canta o estribilho e aquele a quem foi dirigido o verso substituiuo anterior e responde com outro verso. Nesse tempo, a roda gira para a direitae para a esquerda. Esses versos eram cantados em quadrinhas que obedeciama uma rima, dentro de um ritmo, andamento e melodia predefinidos. A cada verso o grupo todo canta o refrão: “Ratoeira bem cantada faz chorar, faz padecer, também faz um triste amante do seu amor esquecer” ou “Meu galho de malva, meu manjericão, dá três pancadinhas no meu coração” ou, ainda, “Meu galho de rosa, meu cravo encarnado, não posso viver sem te ter ao meu lado” ou também “Meu galho de malva, meu ramo de aurora, não posso passar sem te ver toda hora”. Assim é uma cantoria típica de roda, ao som de versos de improviso,com a participação sucessiva de seus integrantes, que iam ao interior da rodatirar seus versos, seja espontâneos, seja em resposta a versos provocativos aeles dirigidos.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  321 Era brincada geralmente nos feriados, aos domingos à tarde, nas festas,nas reuniões de famílias. Às vezes, a roda ficava tão grande que se devia montaroutra. As quadras eram tiradas de improviso, sempre havia a obrigação de sefazer as quadras com inteligência, jogava-se para a pessoa escolhida na roda, eesta tinha de responder com outra quadra. Quando se falava de amor, paixão,amizade ou gratidão, não havia problema, mas, quando alguém lançava umepisódio a um rival ou resolvia lembrar algo de outro componente da roda eainda torná-lo público, a roda pegava fogo, e as quadras tornavam-se sarcásticasou satíricas. As cantigas de ratoeira fazem parte da herança lusa que a culturaaçoriana, integrada à vida catarinense de Palhoça, legou a seus filhos. É umaforma de cada pessoa expressar seus sentimentos, seja ele de tristeza, amor,alegria, saudade; também é uma forma de expressar namoro, pois cantavamversinhos com a intenção de dizer algo para seu amor, dizendo coisas quesempre se dirigiam a alguém, em geral àquele seu pretendente. Nessas rodasquase sempre predominavam, em maior número, moças. Essas encantadoras modinhas, feitas em quadrinhas e tiradas deimproviso, atualmente apresentam adaptações e acréscimos que se lhes deram,por exemplo, observamos que as senhoras atualmente repetem quadrinhasantigas, não as tiram de improviso, mas em alguns casos acrescentam algodiferente. Essas modinhas constituem interessante gênero literário oral dacultura folclórica açoriana mantido por escolas, na época do folclore, no mêsde agosto e por vários grupos tradicionais de terceira idade, em várias regiõesde Santa Catarina, preservando, dessa forma, sua cultura e estendendo-a aosseus filhos e a gerações vindouras.Depoimento de dona Maria Medeiros Santos Dona Maria Medeiros Santos nasceu na Enseada do Brito, em 1o demaio de 1932, é filha de Alfredo Vicente de Medeiros e de dona DorcelinaMaria de Souza, também nascidos no mesmo local. Narra ela que seu avô,o senhor Vicente Miguel Fernandez, veio na primeira leva de açorianos quechegou a Enseada, por isso, sente-se muito orgulhosa. Sua mãe, dona Dorcelina Maria, ensinou-a a cantar as cantigas deratoeira. Naquela época, quando as pessoas trabalhavam juntas na lavoura ouem outros serviços como lavar roupas no rio, cozinhar juntas na domingueira(festa que ocorria em casa com cantoria ao vivo e danças para diversão daspessoas), cantavam cantigas de ratoeira tiradas espontaneamente ou jádecoradas.

322  Colóquio NEA 30 anos de História Quando mocinha, dona Maria, com quinze anos, teve febre tifóide. Apóscurar-se, entre dezesseis e dezessete anos, participava da roda da ratoeira coma intenção de namorar. A roda era feita sempre depois da missa de domingo oude festas tradicionais e, ainda, depois da novena, às quartas-feiras. Na verdade,o depoimento de dona Maria vai ao encontro das informações coletadas narevisão bibliográfica e dos demais depoentes. Dona Maria narra, ainda, que os moços não gostavam muito de entrarna roda para cantar, mas mesmo assim as moças os convidavam, e algunsentravam na roda. Certa vez, diz ela que se apaixonou por um soldado e fez aseguinte cantiga para ele. “Meu amor quando se veste Com a roupa que tem Não há soldado na praça Que se apresente tão bem.”Quadrinhas de ratoeira As quadrinhas de ratoeira que apresentaremos, a seguir, foram retiradasda bibliografia consultada e outras foram cantadas pelas nossas depoentes. “Ratoeira bem cantada faz chorar faz padecer também faz um triste amante do seu amor esquecer.” “Meu galho de malva meu manjericão da três pancadinhas no meu coração.” “Ratoeira não me prenda que eu não tenho mais quem me solte eu já tenho arrebentado outras correntes mais fortes.” “Caiu no enxuto caiu no molhado caiu nos teus braços meu cravo encarnado.”

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  323 “Meu cravo encarnado Meu bouquet de flor nasceste no mundo pra ser meu amor.” “Senhora Dona Maria faz favor de entrar dentro da roda diga um verso bem bonito diga adeus e vá embora.” “Sei que não olhas pra mim com bons olhos como antes mas sei que gostas de mim pois somos dois amantes.” “Ratoeira não me prende, que eu não tenho quem me solte; a prisão da ratoeira é como a prisão da morte.” “Lá em cima daquele morro, tem um pé de carriola; quem quiser casar com as moças, prende as velhas na gaiola.” “Joguei com a morena por cima do lírio não chora morena que eu caso contigo.” “Passei pela manjerona lancei a mão na semente eu passei pelos seus olhos fiquei preso para sempre”. “Seu fosse um peixinho eu sabia nadar levava a morena pro fundo do mar, levava a morena pro fundo do mar, Seu fosse um peixinho eu sabia nadar”. “Estendi meu lenço branco na ramada da suscena meus olhos gostam de olhar a menina da cor morena”.

324  Colóquio NEA 30 anos de História “A folha da cana a geada matou lembrança pro velho que a velha mandou lembrança pro velho que a velha mandou a folha da cana a geada matou”. “Vou fazer a minha casa lá no alto da vigia só pra ver o meu amor quando vem da freguesia”.“Ratoeira não me prendeque eu não tenho mais quem me solteque eu já tenho arrebentadooutras correntes mais fortes.”“Perguntaste o que é saudadePois então vou te dizer;Saudade é tudo o que ficaDepois de tudo morrer.”“São tantas as saudadesQue nem as posso contar;São tantas como as estrelasComo as areias do mar.”“Tenho tantas saudadesComo folhas têm o trigo;Não as conto a ninguémTodas consumo comigo”.“Sou rendeira, faço renda,faço renda de biquinhopra botar na camisado meu amor que é o Chiquinho”“Um engenho de farinhaocupa três trabalhadorum na prensa, outro no fornoo melhor no cevador.”“No cafeeiro trepadaeu canto muitos versinhospara os moços eu canto muitoe também para os velhinhos.”

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  325 “A espiga do milho verde nunca dá quinze carreiro se você um dia achar você será o primeiro.” “Eu queria ser balaio na cultura do algodão moça que não tem balaio, sinhá bota a costura no chão.” “Oh! que praia tão comprida tão custosa de se andar já se fora as passadas que meu amor dava por mim.” “Eu entrei na ratoeira mas não foi para cantar quem o meu coração queria na ratoeira não está.” “Ratoeira de ferro que não há de brandear enquanto eu for viva não há de arrebentar.” “A açucena quando nasce toma conta do jardim mas também quer tomar conta de mim.” “Estendi um laço branco na ramada da açucena os teus olhos me prenderam menina da cor morena.” “Plantei um pé de malva no caminho do sertão a palma me deu no rosto e a raiz no coração.” “Da minha casa pra tua é um passinho de cobra inda hei de chamar a tua mãe de minha sogra.”

326  Colóquio NEA 30 anos de História “Samacaio era um navio no mar alto a navegar; Ia dentro o meu amor com pena de me deixar.” “Samacaio era velho era velho e marinheiro; andava sempre perdido por causa do nevoeiro.” “Samacaio deu a costa deu a costa na fundura; quebrou-se-lhe o tabuado ficou só na pregadura.” “O manjericão é sono quem tem sono vai dormir; eu tenho sono e não durmo para bem te assistir.” “O manjericão da serra é comprido não faz moita também vós menina, sois uma e pareceis outra.” “Rua abaixo, rua acima não sei quantas ruas são; uma de cravos e de rosas outra de manjericão.” “Ei, você que está tão longe Venha aqui mais para perto A minha vista está cansada De te ver neste deserto.” “O nome do meu amor Lagoa da Conceição 1995 Se escreve com quatro letras Fechado com quatro chaves.” “Ratoeira bem cantada Dentro de quatro gavetas Ai faz chorar, faz padecer Também faz um triste amante Do seu amor esquecer.”

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  327 6. FOTOS DA RODA DA CANTORIA E DAS ALUNASFotos da roda da cantoria e das alunas ILUSTRAÇÃO 1: RODA DA CANTORIA DA RATOEIRAFigura 1 – RodaFdEaCcaAnPtor(i2a0d1a0r)atoeira – Fecap (2010)Figura 2 – Ensaio – roda da cantoria da ratoeira ILUSTRAÇÃO 2: ENSAIO – RODA DA CANTORIA DA RATOEIRA ILUSTRAÇÃO 3: ALUNAS – ESTANDE FECAP (2010) 309

328  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 3 – Alunas – estandeIFLeUcaSpT(2R01A0Ç) ÃO 3: ALUNAS – ESTANDE FECAP (2010)Considerações finaisACO“cNaSnItDorEiaRAdaÇÕraEtoSeFirIaN”,AoIuS “cantiga de ratoeira”, ou, ainda, “roda deratoeira”, como é chamada pelos descendentes de açorianos no municípiodesecoPlaalshomçau,néicApipo“aCuisca.ontEocnroicanohdneatcrRiadamatoopesie,rlaae”snotpuree“ssCoosaansgtirgeuaptadomesRbdéaemtoteepirroac”euicoroau auiditnialdidazea“,dRaaodnsuaaasde Ratoeira”utilizaçcãoom, opoérécmhamosadvaerpsoelsocsadnetsacdeonsdnenãtoessãdoe iançoovraiadnoorsesnooumtuirnaidcíopsiodedecaPbaelçhaoça é poucoc(soenghuenccdiodonohasse.cdEidenaptropeeenlaatssesdp,eecsposoorearnes-teesesta,omhrbáiésamcoapfdioreumceoarçruaãtroil)i,zdmaedaaqsun, eassiamesR,csaoãtlooaesrimerpauenétiicadilopgsaoiesd.joEáncontramospassadeon, tereoosqugeruepnocsodnetrtaemrcoeisraatiudaaldme eantseuaé uqtuiliezaeçlaãoé, pporraétmicaodsa,vnerasoms aciaonrtiaados não sãodas vezes, por senhoras idosas relembrando sua juventude. Isso mostra umamudança de significado no gênero, o que é saudável.S ugerimos às escolas trabalhar com esse gênero discursivo de tradição 310 oral, estimular os alunos, propor concursos literários de organização dos versose ensaiar a roda da cantoria com os alunos, apresentar em festas folclóricas ouem outras ocasiões e procurar conscientizar tanto os alunos como suas famíliasdo valor de sua própria cultura, aproximando, assim, as gerações e retomandoesta tradição.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  329ReferênciasAs cantigas de ratoeira. Disponível em: <http://www.pmf.sc.gov.br/turismo/lazer_cultura/folclore/roteiro.htm>. Acesso em: 25 jun. 2010.Cantoria da ratoeira. Disponível em: <http://www.manezinhodailha.com.br/CantoCantorias.htm#>. Acesso em: 25 jun. 2010.Açores. Disponível em: <http://assisbrasil.org/acores.html>. Acesso em: 5 jul. 2010.BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad.Michel Lahud e Yara F. Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.Cantos. Disponível em: <http://www.velhobruxo.tns.ufsc.br/Canto03.html>. Acessoem: 25 jun. 2010.CARUSO, Mariléia M. Leal; CARUSO, Raimundo C. Mares, e longínquos povos dosAçores. Florianópolis: Insular, 1996.Como ocorreu a imigração portuguesa no Brasil. Disponível em: <http://www.cantadoresdolitoral.com.br/e/a/a2/a2-9.htm>. Acesso em: 25 jun. 2010.COUTINHO, Ana Lúcia. Danças: resgate das modas no município de Biguaçu.Florianópolis, 1998. Disponível em: <http://www.nea.ufsc.br/palestras_coloquio/ANA%20LUCIA%20COUTINHO.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2010.FARIAS, Vilson F. de. Palhoça: natureza, história e cultura. Florianópolis. Ed. doautor, 2004.FORTES, João Borges. Os casais açorianos. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1978.MOTA, Alisson. Canções do Folclore da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: EditoraInsular, 2001.NIEDZIELUK, Luzinete Carpin. Depoimentos de alunos do curso de extensão:Faculdade da Maturidade da Palhoça. Jun. e jul. 2010.NIEDZIELUK, Luzinete Carpin. (Org.). Lendas, Causos, Pasquins, Benzeduras eDitados Populares de Palhoça. Florianópolis: Ledix, 2010.PEREIRA, Nereu do Valle. Contributo Açoriano para a Construção do MosaicoCultural Catarinense. Florianópolis: Papa-Livro, 2003.PIAZZA, Valter F. Boletim Catarinense de Folclore, Ano 6, n. 22, Florianópolis,janeiro de 1956.Povos açorianos. Disponível em: <http://www.ocarete.org.br/povos-tradicionais/acorianos/>. Acesso em: 25 jun. 2010.Ratoeira. Disponível em: <http://www.reocities.com/Athens/Sparta/1350/msicae.htm#São Macaio>. Acesso em: 2 jul. 2010.

330  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaRoteiro das manifestações culturais do município de Florianópolis. 3 ed. rev.Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2008. Disponível em: <http://www.pmf.sc.gov.br/turismo/lazer_cultura/folclore/roteiro.htm>. Acesso em: 6 jun. 2010.SILVA, Rodrigo Moreira. A ratoeira e seu contexto sócio-cultural. Disponível em:<http://www.nea.ufsc.br>. Acesso em: 2 jul. 2010.SOARES, Doralécio. Cantigas de Ratoeira. Boletim da Comissão Catarinense deFolclore. Florianópolis, ano 33, n. 49 dez. de 1997, p. 21.

Penha: relicário do Divino Maria do Carmo Ramos Krieger O município de Penha, localizado no litoral Norte do Estado, guardacaracterísticas singelas sobre uma festa de cultura de base açoriana: a Festa doDivino Espírito Santo. Por abrigar um ícone religioso de tanta importância,tornou-se Relicário do Divino. Por sua vez, o Divino, designativo que se dá ao Espírito Santo nas festaspopulares, têm uma tradição histórica de culto a 179 anos no município –herança de açorianos transmigrados do Desterro (atual Florianópolis),quando da invasão espanhola à Ilha de Santa Catarina, em fevereiro de1777. O primeiro mapa em que se tem notícia sobre o lugar indica a Pontade Tapocoróia, em 1778, pelo italiano Francisco João Roscio, um ano após achegada dos açorianos a Penha. Uma aquarela de Debret, em 1827, apresenta num primeiro plano,barcos arrastando baleias, tendo ao fundo a praia de Armação de Itapocorói,com a edificação da armação baleeira, mais ou menos 50 anos depois dachegada dos açorianos ao local. Na atualidade, quase dois séculos de tradição, a Festa do DivinoEspírito Santo tem início com a Missa do Envio, a qual acontece na 6a feirada Quaresma. Ela marca a abertura do Ciclo do Divino, ocasião em que oPadre Vigário da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha abençoa a bandeirada peregrinação e o casal imperador do referido ano, a fim de que sigam oscaminhos da bandeira sob a luz do Espírito Santo. A visita da bandeira segue um ritual organizado por pessoas dos locais(bairros, municípios) a serem visitados. As refeições nas visitas da Bandeira vão desde o café da manhã até ojantar, passando por lanches, almoços, sobremesas, cafés da tarde. Só com umreforço assim para aguentar a peregrinação! Em tais visitas, são feitos os convites para empregados de bandeira e devara – pessoas que levarão seus estandartes nas cerimônias religiosas, além de

332  Colóquio NEA 30 anos de Históriaformarem, com as varas, o quadro do imperador e família imperial no domingoda coroação do imperador, Dia de Pentecostes. Nessa manhã, a comitiva segueda casa do pouso até a igreja matriz. A casa do pouso é uma residência no centro de Penha, cuja famíliaproprietária oferece o espaço da sala para abrigar os pertences dos imperadoresdos referidos anos, como a coroa, cetro, varas que formarão o quadro, adereçosdiversos como os objetos que as meninas dos sete dons levarão na procissão,além as bandeiras da peregrinação e a branca, levadas por jovens à frente dacomitiva imperial na procissão, que tem à frente as meninas dos sete dons,as quais representam os dons do Espírito Santo: fortaleza, sabedoria, ciência,conselho, entendimento, piedade e temor de Deus. Tal grupo foi introduzidopor uma imperatriz no cortejo imperial na década de 1990 e na sequênciados anos continua, firmando-se como tradição. Nesse momento tambémseguem os pagens, crianças ligadas por grau de parentesco ou amizade ao casalimperador. Todos chegam à igreja precedidos pelos foliões do Divino – cantadores etocadores que mantêm a unidade dos encontros em torno da alegria dos cantos.Durante a missa da coroação, há momentos de muita emoção vivenciados porfiéis, devotos do Divino. A ela segue-se o almoço festivo, lembrando o banquete que a RainhaD. Izabel oferecia aos pobres (ela foi quem introduziu em Portugal o culto aoDivino, o qual chegou aos Açores). Na parte da tarde, na missa das 17 horas,acontece o sorteio do novo imperador. São doze candidatos que aguardamo resultado. O povo festeja o novo nome e reencontra-se no almoço de 2afeira, feriado em Penha e considerado a 8ª. do Divino. É quando o município,envolvido em questões ligadas à presença dos açorianos e seu legado, vive ofim do ritual e aguarda a próxima edição da Festa do Divino Espírito Santo.

Brasil – Descobrimento, “achamento” ou invenção? Uma reflexão! Paulo Ricardo Caminha A partir de uma conversa com o amigo e Prof. Luís Filipe Tavares deMelo de Aguilar, da Universidade de Montreal, este me fez uma inquietantecolocação. Desde então não paro de pensar nessa perspectiva. Dizia ele quemeu país não havia sido descoberto, como dizemos nós, brasileiros, não haviasido achado, como dizem os portugueses, e afirmava diante de uma irreverentegargalhada: “Paulo, teu país foi inventado!”. Começo a analisar essa afirmação, com uma perspectiva histórica,num olhar de engenheiro e sem formação acadêmica em História, junto osfatos daqui e de lá e só me resta concordar com tal afirmação. Ou fatos queaparentemente estão relacionados teriam sido mera obra do acaso? Sinto que existem dois momentos marcantes na história, em que fatosaparentemente isolados, quando combinados, contribuem para sustentar ateoria de que a formação territorial do Brasil não é obra do acaso, e sim de atospremeditados e bem executados. Quando tomei conhecimento do Tratado de Madrid de 1750, no qualo princípio básico era o direito do utipossidetis, surgiram algumas dúvidas, asquais entendo merecer um estudo mais aprofundado em relação à invençãodo Brasil e, em especial, à contribuição açoriana nesse processo. Por exemplo: ■■ Qual a relação existente entre o Edital de Alistamento de 1747e esse tratado? ■■ Por que Portugal não aceita a Bula Inter Coetera e exige o deslocamento da linha de 100 léguas para 370 léguas a oeste de Cabo Verde? ■■ Era conhecimento a existência de terras a oeste de Cabo Verde? (A carta de Pero Vaz de Caminha diz que sim.)

334  Colóquio NEA 30 anos de História ■■ Começava aí uma das maiores obras da arquitetura política portuguesa: a invenção do Brasil? ■■ Aresponsabilidadeaçorianaparaaampliaçãoterritorialeconsolidação das fronteiras do Brasil pode ser maior do que pensamos? Fazendo um passeio pela história, observamos não ser novidade queo pioneirismo português nos séculos XV e XVI teve como grande estímuloa conquista de novas riquezas e terras. Portugal e Espanha contavam comcondições históricas que favoreceram o pioneirismo nesse processo de expansãomarítima. Também não é novidade que a Igreja representava o grande poderda época e que sua proximidade com estes dois países da Península Ibéricatrazia benefícios que outros países não tiveram. Temendo uma abrupta ascensão marítimo-comercial espanhola,Portugal ameaça entrar em conflito, e o Rei de Espanha pede intermediação aopapa Alexandre VI para arbitrar a questão. O mundo é dividido em duas partes por uma linha imaginária a 100léguas a oeste de Cabo Verde. Por motivos não muito claros, o rei Dom João IIexigiu a revisão do acordo diplomático e ameaçou a Espanha, caso o pedido derevisão não fosse acatado. Mais uma vez, o papa foi convocado para intermediar novas negociaçõese, em 7 de junho de 1494, é assinado o Tratado de Tordesilhas, que mantinhao mesmo princípio da Bula Inter Coetera, porém a linha é deslocada para 370léguas a oeste de Cabo Verde. Seis anos após a assinatura do acordo em Tordesilhas, em 9 de março de1500, a frota de Pedro Álvares Cabral parte de Belém rumo a Terras de SantaCruz. No dia 14 de março, a esquadra navega a uma distância de 3 a 4 léguasdas ilhas Canárias, no dia 22, está próxima de Cabo Verde e, no dia 21 de abrilde 1500, chega ao Brasil. Considerando a dificuldade na conservação dos alimentos nas antigasnavegações, animais eram transportados vivos para servirem de alimentodurante a viagem. Considerando também a precariedade da higiene e dasdoenças a bordo e diante de tantas outras dificuldades, fica difícil entender oporquê de não terem feito escala para repor água e alimentos, considerandoque buscavam o caminho marítimo para as Índias. Só o conhecimento daexistência de terras seria uma forte razão que justificaria não haver escala nasCanárias ou em Cabo Verde. Analisando um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, não seobserva qualquer manifestação de admiração com os indícios da proximidadecom terras durante a navegação, tampouco quando as terras são avistadas.Observamos, sim, que eles tinham conhecimento da existência de terras

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  335quando relatam vegetações e aves encontradas que indicam a proximidadecom a dita “ilha”. E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça- feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos. Estava marcada a presença ao tomar a posse do que lhes pertenciapor direito pelo Tratado de Tordesilhas. Estava dado início ao projeto de umgrande país? Era o início de um processo, uma obra de arquitetura política, oinício da Invenção do Brasil. Mas foi após a primeira metade do século XVIII que a região meridionalrecebeu a devida atenção. Havia o interesse comercial na Bacia do Prata, ePortugal queria expandir o território. A Ilha de Santa Catarina era o últimobom porto para reparo e aguada das naus, e estava localizada na metade docaminho entre o Rio de Janeiro e a Bacia do Prata. O “projeto” de expansão territorial precisava receber continuidade.Em 1746, quando começaram as negociações diplomáticas em relação aoTratado de Madrid, Alexandre de Gusmão já possuía os mapas mais precisosda América do Sul, que encomendara aos melhores geógrafos do reino. Para aexpansão do Brasil meridional, era necessária a sua ocupação, e o BrigadeiroSilva Paes pedia a vinda de casais açorianos. Se aqui era um imenso vazionecessitando ser povoado, Açores tinha de sobra o que aqui faltava: pessoalpara este povoamento. Lá havia má distribuição de terra e renda, e o dinheiroarrecadado era transferido para Lisboa. No Brasil meridional havia terra desobra. Superpopulação era outra razão apontada para a vinda dos casaisaçorianos, mas não me parece que a retirada de 4% da população da épocarepresentava um grande alívio. De qualquer forma, ali estava a solução para o povoamento do Brasilmeridional, além de aliviar a fome e a miséria em que os habitantes das ilhasviviam. Após diversos pedidos do Brigadeiro José da Silva Paes, em 31 de agostode 1746 ocorre a resolução de El Rei, e são emitidos os editais para seremafixados nas ilhas dos Açores. Em 9 de agosto de 1747, é expedida a ProvisãoRégia ao governador da capitania geral no Rio de Janeiro, comunicando o fatoà capitania subalterna de Santa Catarina, e contratado o transporte.

336  Colóquio NEA 30 anos de História Em 6 de janeiro de 1748, chegam os dois primeiros navios com 85 casaisde açorianos. Nesse período, o Tratado de Madrid estava praticamente consolidado, eo seu redator, Alexandre de Gusmão, foi o idealizador da aplicação do direitodo uti possidetis, segundo o qual era dono da terra quem a ocupasse. Em curto espaço de tempo, entre 1748 a 1756, foram introduzidos nosul do Brasil 6.000 açorianos, dos quais a maioria chegou até 1753. A porta de entrada foi a Ilha de Santa Catarina, cuja população em 1748não contava com mais do que 500 “almas”; a chegada do imigrante representouuma supremacia açoriana e que aqui deixou fortes marcas. Estavam criadas as condições para a expansão territorial. O Tratado deMadrid, cuja base era o direito do uti possidetis, estava assinado e os açorianospara o povoamento começavam a chegar. A situação com a Espanha agravou-se quando Portugal resolveu povoarem definitivo a Ilha de Santa Catarina, para dar sustentação à conquista do RioGrande do Sul (Farias, 1998). A introdução de 6.000 açorianos em um curtoespaço de tempo alarmou a Espanha. Foram diversas as tentativas de ocupaçãoda Bacia do Prata. Ao ver a grande expansão portuguesa, a Espanha resolve colocar emprática sua operação militar e, no dia 23 de fevereiro de 1777, invade a Ilhade Santa Catarina; em apenas quatro dias a ocupa totalmente, não havendonenhuma baixa. Sob o comando de D. Pedro de Zeballos, aquela foi a maiorfrota que já cruzou estes mares; além da Ilha de Santa Catarina, aquelaoperação conquistou também fortificações no Rio Grande do Sul e a Colôniade Sacramento. É o fim do Tratado de Madrid (com apenas 27 anos). A invasão espanholade 1777 obriga que os dois países sentem à mesa de negociação e, através doTratado de São Ildefonso, assinado no dia 1º de outubro do mesmo ano, nacidade espanhola de San Ildefonso, os limites são definidos. A Colônia deSacramento é devolvida para a Espanha e a região das Missões para Portugal.Nesse período, a presença açoriana estava perfeitamente consolidada. Exceto por acertos fronteiriços com a Província Cisplatina (Uruguai)e pela aquisição do território do Acre no Século XX (da Bolívia), trocadopela Ferrovia Madeira-Mamoré, o Brasil não sofre mais mudança em suasfronteiras. O Território brasileiro aumenta em aproximadamente três vezesdesde o Tratado de Tordesilhas até o Tratado de Madri. Para além da formação territorial, por mais quatro séculos, como colônia,como refúgio da monarquia portuguesa ou como monarquia independente, oBrasil continuou a ser construído e organizado sob a tutela da mesma lógicaestruturante, sendo o resultado de atos premeditados e bem executados.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  337Mesmo após a proclamação da república, em especial em seus primórdios, ainvenção que somos como país ainda continuou marcada em seu âmago. Portanto, o meu amigo, Prof. Luís Filipe Tavares de Melo de Aguilar,ao me lançar uma provocação, mexeu mesmo comigo. Hoje, salvo melhorjuízo, só me resta concordar que o Brasil é de fato uma invenção da arquiteturapolítica portuguesa e com expressiva contribuição açoriana.



“Ganchos/SC: a mudança na denominação do município e o reflexo sobre a memória e o patrimônio histórico”1 William Wollinger BrenuvidaResumo: O presente artigo tem por objetivo abordar a mudança nadenominação do município de Ganchos/SC para Governador Celso Ramos/SC e o reflexo sobre a memória e o patrimônio histórico. Emancipado em1963 com o nome Ganchos, o antigo Arraial e Distrito de Ganchos recebenova denominação em maio de 1967, quando a Asssembleia Legislativa deSanta Catarina aprova resolução da Câmara Municipal de Vereadores parahomenagear o ex-governador Celso Ramos. Quarenta e sete anos após amudança, os habitantes do município ainda se reportam à localidade como“Ganchos”. O nome “Ganchos” faz constar de documentos antigos e aindadomina o cenário imagético e cultural de uma cidade fundada por vicentistase com influência cultural ameríndia, africana e europeia, mormente, deaçorianos. De qualquer modo, o atual município de Governador Celso Ramos/SC recebeu um contingente significativo de açorianos e madeirenses a partirde 1750, o que é presenciado nos costumes herdados. O nome “Ganchos” aindahoje é encontrado em festas populares, logradouros públicos, embarcaçõespesqueiras e no gentílico: quem nasce ou mora em Governador Celso Ramosé “gancheiro”. Acha-se o patrimônio material e imaterial em decadência emGovernador Celso Ramos, porém, vivo na memória do povo. São prédiosdescaracterizados e/ou demolidos; ausência de aspectos culturais açorianos1 Artigo realizado para o Colóquio NEA 30 Anos de História: Preservando a Herança Cultural Açoriana em Santa Catarina. A apresentação se deu no dia 27 de março de 2015, no Auditório da Reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, Santa Catarina.

340  Colóquio NEA 30 anos de História FOTOS DO EVENTO – 6 Pgs.e madeirenses na sala de aula e festas populares. O desenvolvimento de umpovo se deve, principalmente, à herança cultural e à forma como essa cultura évivenciada noIsMmAaGisEjNoSveDnEs, AcoPmOoIOum sentimento de pertencimento.Palavras-chave: Patrimônio histórico; Memória; Mudança. Mapa de Governador Celso Ramos. Criação: Almir Alves Junior, geógrafo.Introdução O presente artigo, realizado por ocasião do Colóquio NEA 30 anos deHistória: Preservando a Herança Cultural Açoriana em Santa Catarina, temmlpitouorrdâoanbnEejçeamatiddavnooacddiepesisnatcadoodomrorieendmraeçsoã1Sob9ar6nde3toaMcmCoemuamtnaóiorcriíinBpnaCradioaeoeesmle sãGpPooeoa apR vertoaGer abmniraamnadonnacesôddc/urenohSailrCirotr oa us sr,CoaouberlDtheuiirssaattsórliritdimoaeprdueleimgciaGaoçnaõcnaiedlcs.haddoaesrecebe nova denominação em maio de 1967, quando a Assembleia Legislativade Santa Catarina aprova resolução da Câmara Municipal de Vereadorespara homenagear o ex-governador Celso Ramos. Quarenta e sete anos após

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  341a mudança, os habitantes do município ainda se reportam à localidade como“Ganchos”. Celso Ramos se apresenta como o governante que trará as primeiraslinhas de transmissão elétrica para Ganchos, muito embora seja o mandatárioresponsável pela substituição do modelo de pesca artesanal para o industrial,modificando o cenário político, cultural e econômico gancheiro. O reflexomaior, porém, foi sobre a memória e o patrimônio histórico. O nome “Ganchos” é citado em documentos históricos desde os anos1700 e ainda domina o cenário imagético e cultural de uma localidade fundadapor portugueses vicentistas e que recebeu influência de indígenas, imigrantesafricanos, açorianos e madeirenses. Houve, também, a presença de alemães,holandeses e italianos. O nome “Ganchos” faz constar em festas populares,logradouros públicos, embarcações pesqueiras e até mesmo no gentílico:quem nasce ou mora em Governador Celso Ramos é “gancheiro”. Há outrasimplicações no estabelecimento do nome. Existe outro município no estado deSanta Catarina com o nome “Celso Ramos”, distante mais de 200 quilômetrosdo litoral catarinense. Praças, escolas e hospitais espalhados pelo estado têm amesma denominação, que faz referência ao ex-governador. Passa-se à justificativa do presente artigo. Justificativa Para o historiador francês Jacques Le Goff, especialista em Idade Média,a questão que se impõem como mais relevante, hodiernamente, em relação àmemória são os mecanismos para a preservação da memória. Ainda de acordocom o historiador, “a memória passou a ligar-se menos aos acontecimentoshistóricos e mais aos comportamentos, mentalidades, imagens, ritos e festas(LE GOFF, 2003, p. 466). É nessa perspectiva que o estudo da presente pesquisa tem relevância.A escolha do nome de uma cidade leva em conta o somatório de imagens, ritos efestas. Uma comunidade é uma reunião de comportamentos que se significam.“A cidade nasceu a partir da junção de pequenos grupos que, embora unidos,jamais perderam suas características internas: a forma autônoma com que seorganizaram, constituindo religião e costumes diversos”. (OLIVEIRA et al.,2012, p. 105). Identificar o momento em que a busca pela memória, pelo patrimônio,e até mesmo das genealogias, dá sustentação a uma pesquisa que se permite arediscutir o nome histórico de um lugar, e o conjunto de valores que ainda osustentam. De acordo com Hartog (2014, p. 24): […] os anos 1980 viram o desabrochar de uma grande onda: a da

342  Colóquio NEA 30 anos de História memória. Com seu alter ego, mais visível e tangível, o patrimônio: a ser protegido, repertoriado, valorizado, mas também repensado. Construíram-se memoriais, fez-se a renovação e a multiplicação de museus, grandes e pequenos. Um público comum, preocupado ou curioso pelas genealogias, pôs-se a frequentar os arquivos. As pessoas passaram a interessar-se pela memória dos lugares […]. Quarenta e sete anos depois da mudança da denominação do municípiode Ganchos para Governador Celso Ramos, algo parece não mudar napenínsula gancheira, um conjunto de vilas de pescadores que surgiu ainda naprimeira metade do século XVIII: a resistência da população em aceitar umnome imposto, em plena ditadura militar, para homenagear um governadorque iniciou o processo de industrialização da tradicional pesca artesanal. ParaSilva (1992, p. 148): No limiar da década de 1960, entretanto, o início de um projeto de industrialização para o setor pesqueiro coincidiu com a emersão de grandes unidades manufatureiras que se estabeleceram ao longo do litoral catarinense. Simultaneamente, o governo “populista” de Celso Ramos implementou medidas em forma de financiamentos, no sentido de fortalecer ainda mais, não só as pequenas unidades manufatureiras, mas, igualmente, a pequena produção mercantil, medidas estas classificadas à época, por amplos setores da sociedade, como uma “assistência democrática”. Investigar e apresentar abordagem que dê parâmetros e subsídios aopresente artigo é o desafio. Além da memória oral, há documentos históricos.A contribuição de historiadores pode, também, conferir valor à riquezacultural que Ganchos ainda guarda. Delimitação do problema Como a mudança da denominação do município de Ganchos/SC paraGovernador Celso Ramos/SC pode afetar a Memória e o Patrimônio Histórico?ObjetivosObjetivo Geral■■ Abordar a mudança na denominação do município de Ganchos/SC para Governador Celso Ramos/SC e o reflexo sobre a memória e o patrimônio histórico.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  343Objetivos Específicos■■ Verificar o motivo para após quarenta e sete anos da aprovação pela Câmara Municipal de Vereadores e promulgação da Lei no 1.065/1967, pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, da mudança da denominação do município de Ganchos/SC para Governador Celso Ramos/SC, os moradores continuarem se referindo ao município como “Ganchos”;■■ Averiguar a razão para o nome “Ganchos” estar vivo na memória dos habitantes do atual município de Governador Celso Ramos, em festividades, embarcações pesqueiras e logradouros públicos.■■ Analisar os conceitos de memória e patrimônio histórico para o desenvolvimento da presente pesquisa.Referencial teórico A fundamentação conceitual, ou referencial teórico, apresenta conceitosde Patrimônio Histórico e Memória, bem como a noção que se faz da histórialocal. Essa abordagem dá consistência teórica ao presente artigo, observandoque a alteração na denominação do município de Ganchos/SC pode ter umreflexo na memória local e transferência desse conhecimento para as presentese futuras gerações. Conforme Oliveira et al. (2012), “é considerado como patrimôniohistórico as escolhas das pessoas do presente a partir de diversas noções”.Ainda de acordo com os autores, entremeada a essas noções, figura a ideia deidentidade: “Na maioria das vezes, a preservação de algo está relacionada àidentidade de determinado grupo, seja local, ou até nacional” (OLIVEIRA etal., 2012). A noção de patrimônio histórico exige compreensão do conceitotradicional e evolução que o conceito abarca: A noção de patrimônio histórico tradicionalmente se refere à herança composta por um complexo de bens históricos. Mas, apesar de ainda pouco conhecido pelos egressos dos cursos de História do Brasil, o fato é que os especialistas vêm continuamente substituindo o conceito de patrimônio histórico pela expressão patrimônio cultural. Essa noção, por sua vez, é mais ampla, abarcando não só herança histórica mas também ecológica de uma região. Assim, em última instância, podemos definir patrimônio cultural (incluindo nessa ideia a de patrimônio

344  Colóquio NEA 30 anos de História histórico) como o complexo de monumentos, conjuntos arquitetônicos, sítios históricos e parques nacionais de determinado país ou região que possui valor histórico e artístico e compõem um determinado entorno ambiental de valor patrimonial. Em sua origem, todavia, o patrimônio tem sentido jurídico bastante restrito, sendo entendido com um conjunto de bens suscetíveis de apreciação econômica (SILVA; SILVA, 2009, p. 324). A memória é a capacidade para guardar informações, propriedades quese referem a um conjunto de funções psíquicas. A partir daí, o indivíduo podeatualizar impressões ou informações passadas, ou ainda reinterpretadas comopassadas (LE GOFF, 2001). O conceito de identidade figura como um desafio presente dahistória nos dias atuais, principalmente dos novos interesses gerados pelainterdisciplinaridade e pós-modernidade (SILVA; SILVA, 2009). Sobre os conceitos de identidade e memória, tem-se que: […] identidade e memória estão indissociavelmente ligadas, pois sem recordar o passado não é possível saber quem somos. E nossa identidade surge quando evocamos uma série de lembranças. Isso serve tanto para o indivíduo quanto para os grupos sociais. (LOWENTHAL, 1998, apud SILVA; SILVA, 2009, p. 204). É preciso, no âmbito desta pesquisa, buscar compreender o estudoda localidade ou mesmo da história regional. Consoante ao pensamento deSchmidt e Cainelli (2009, p. 139): O estudo da localidade ou da história regional contribui para uma compreensão múltipla da História, pelo menos em dois sentidos: na possibilidade de se ver mais de um eixo histórico na história local e na possibilidade da análise de micro-histórias, pertencentes a alguma outra história que as englobe e, ao mesmo tempo, reconheça suas particularidades. Encerra-se a fundamentação conceitual e passa-se ao debate acercada denominação do atual município de Governador Celso Ramos. Sãoapresentados: uma breve narrativa histórica; hipóteses para o nome “Ganchos”;e os reflexos sobre a memória e o patrimônio histórico material e imaterial.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  345Ganchos ou Governador Celso Ramos? A partir de breve narrativa histórica da ocupação e povoamento doatual município de Governador Celso Ramos, este artigo pretende demonstrare apresentar hipóteses para a permanência, na memória local, do antigo nomedo município. Antecedentes históricos O território onde se localiza o atual município de Governador CelsoRamos foi ocupado por grupos caçadores e coletores há aproximadamentecinco mil anos, a partir de migrações do Oeste. Os “chamados povos dosambaqui”,1 ou sambaquieiros, estavam no território do atual município há pelomenos três mil anos, o que fica evidenciado pelas pesquisas do arqueólogo epadre João Alfredo Rhor (1908-1984).2 Esses sambaquis se localizavam nasatuais comunidades de Areias de Baixo, Armação da Piedade, e Palmas.3 Entre os anos 750 e 1.300 depois de Cristo, a região foi ocupada pelosceramistas itararés, do tronco linguístico Jê – comprovado pelas pesquisasarqueológicas promovidas pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). A pedra do letreiro, na Ilha do Arvoredo, município de GovernadorCelso Ramos; as cerâmicas recolhidas e hoje expostas no Museu de Arqueologiada UFSC, em Florianópolis; e inscrições nos costões rochosos, na praia dePalmas, confirmam o fato histórico.1 Dicionário Aurélio (1985, p. 1266): “Sambaqui [do tupi tãba’ki] é a designação dada a antiqüíssimos depósitos, situados ora na costa, ora em lagoas ou em rios do litoral, e formados de montões de conchas, restos de cozinha e de esqueletos amontoados por tribos selvagens que habitaram o litoral americano em época pré-histórica [...].No Pará, cernambi (variação de sarnambi), mina de cernambi ou simplesmente mina; em São Paulo e Santa Catarina, casqueiro, concheira ou ostreira; noutros pontos do país, samauqui, berbigueira, caieira ou caleira, ilha de casca [...]”. Segundo a Enciclopédia Brasil de A/Z (1988, p. 729): “Depósito de refugos, geralmente ossos, conchas e resíduos diversos acumulados pelo homem da Idade da Pedra na faixa litorânea do Sul do Brasil, sobretudo nos Estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Os sambaquis apresentam grande interesse arqueológico porque, no meio desse material, geralmente se encontram restos de utensílios domésticos e instrumentos feitos de pedra, chifre e osso, capazes de fornecer indicações sobre as condições de vida do homem pré-histórico. Explorados predatoriamente desde o século XVIII (fabricação de cal), esses depósitos estão hoje quase desaparecidos”.2 ROHR, João Alfredo. Contribuição para a Etnologia Indígena do Estado de SC (separata do volume II do 1o Congresso de História Catarinense, 1950).3 ROHR, João Alfredo. Sítios arqueológicos de SC (Anais do Museu de Antropologia da UFSC, 1984).

346  Colóquio NEA 30 anos de História Os itarareenses foram sucedidos pelos guaranis, principalmente da etniambyá, que edificaram muitas aldeias ao longo do litoral catarinense, entreelas a Reritiba,4 no atual município de Governador Celso Ramos, extinta em1538 pelas armas do navegador genovês Sebastião Caboto.5 Alguns nomes delocalidades, ainda existentes, como: Tinguá, Anhatomirim, Juréia e Guaporanga,indicam a presença guarani em Governador Celso Ramos. O nome jureia, porexemplo, antigo nome da comunidade Canto dos Ganchos, significa “narizde pedra, ponta que avança sobre o mar”, ainda é comentado entre os antigosmoradores, sobrevivendo aos séculos de ocupação pós-colonial. Armação e Ganchos Em 1806, quando o mineralista inglês John Mawe visitou e fezapontamentos acerca do litoral catarinense, o nome Ganchos era conhecido6.As origens do que hoje se compreende por Governador Celso Ramos iniciouem 1738 com a criação da Capitania de Santa Catarina, desmembrada daCapitania de São Paulo (São Vicente). A caça da baleia atrairia centenas depessoas para Armação Grande, também chamada de Armação das Baleias –e depois, Armação de Nossa Senhora da Piedade: o maior empreendimentodesse segmento no litoral sul-brasileiro de 1738 a 1778. A conquista da Ilha de Santa Catarina e adjacências pelos castelhanos7(1777-1778) vai retirar da Armação da Piedade utensílios para o beneficiamentodo óleo (azeite) extraído das baleias.8 A decadência da pesca e caça; a revoltaarmada de 1784;9 e o fracasso da colônia alemã da Piedade (1847-1856)provoca a evasão da Armação de Nossa Senhora da Piedade para localidadesvizinhas, inclusive para os Arraiais de Palmas e Ganchos. Nessa época, o4 BOND, Rosana. A saga de Aleixo Garcia: o descobridor do império Inca. Rio de Janeiro: Coedita, 2004, P.42.5 SOUZA, Evandro André de. A Ilha de Santa Catarina no século das navegações. Indaial: Uniasselvi; Florianópolis: Insular, 2013. p. 63.6 MAWE, John. Travels in the Interior of Brazil. Tradução de Solena Benevides Viana. Editora Zélio Valverde, 1944. (Edicação original London 1822). Ed. Brasileira (p. 57-65).7 Sobre este episódio ver: FLORES, Maria Bernardete Ramos. Os espanhóis conquistam a Ilha de Santa Catarina: 1777. Editora da UFSC: Florianópolis, 2004.8 Eram caçados: os cachalotes (Physeter macrocephalus ou Physeter catodon Linnaeus) e as francas nesta região. Sobre as características dessas espécies ver: PALAZZO JUNIOR, José Truda. BOTH, Maria do Carmo. Guia dos mamíferos marítimos do Brasil. Porto Alegre:Sagra, 1988.9 Menciona um fato ocorrido aos 30 de julho de 1784, quando o arpoador José Pereira Ruivo lidera uma revolta contra as tropas da Coroa Portuguesa na Armação da Piedade.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  347município conta uma população descendente de indígenas (guaranis), africanos(especialmente de Moçambique), vicentistas, cananienses e francisquenses(provenientes de São Vicente, Cananeia e São Francisco do Sul), alemães,belgas, além de açorianos e madeirenses. A capela de Nossa Senhora da Piedade, um dos prédios10 mais antigosdo estado de Santa Catarina e que conserva as características originais, foibenta em 1745: os açorianos e madeirenses desembarcam em Ganchos, apartir de em 1750. A época da criação do Distrito de Paz, em 5 de setembrode 1861, Ganchos contava com uma população de 698 habitantes. A caça dabaleia enriqueceu muitos homens que se tornaram senhores de engenhos.Mawe, em seu depoimento, afirma que, em 1804, trabalhavam na Armação daPiedade 150 escravos. Com a decadência pesqueira e da caça da baleia, essesescravos serão levados às fazendas de Jacinto Jorge dos Anjos Correia; JoséLopes Jordão,11 e Ignácio Vieira da Cunha,12 entre outros. A Armação Grande, depois chamada de Armação de Nossa Senhora daPiedade foi erigida após a criação da Capitania de Santa Catarina, desvinculadada Capitania de São Vicente, em 11 de agosto de 1738, por ordem de DomJoão III. Foi no governo do Brigadeiro Silva Paes, a partir de 7 de março de1739, que se definiu a ocupação do lugar, bem como a exploração do óleo ecarne das baleias para exportar para Lisboa, Boston, Londres e Nova Iorque.O povoamento da localidade da Armação da Piedade teve início com ostrabalhos de construção da Armação Grande ou das Baleias (1740-1742). Asinstalações construídas em Armação da Piedade numa área de 5.327 m² faziamdaquela armação a maior e a mais importante do nosso litoral e a segunda maisimportante do Brasil Colônia. Aos 18 de novembro de 1745 é benta a Capelade Nossa Senhora da Piedade.13 Os registros históricos apontam como seus10 Havia nessa época, diversos estabelecimentos na Armação, entre os quais, a casa grande do Administrador; a casa dos baleeiros; as senzalas e os tanques; e os armazéns. Das edificações, ainda é possível ver as ruínas do local onde se localizavam os tanques para frigir o óleo das baleias; a capela, consagrada a Nossa Senhora da Piedade e que foi restaurada no início dos anos 2000; e uma bica da carioca – que se encontra próxima à praia e sem acesso para visitação.11 Jordão é o nome de uma comunidade Governador Celso Ramos que se destacou pela iniciativa de missionários americanos da igreja presbiteriana. José Lopes Jordão chegou a possuir 22 escravos.12 A casa erigida por Ignácio Vieira da Cunha, em Canto dos Ganchos, ainda está de pé. Sofreu pequenas intervenções que não alteraram seu estilo. Foi adquirida pelo comerciante tijuquense Bernardino Antonio Furtado Narciso, depois por Francisco Wollinger. Atualmente pertence a um grupo de empresários do Sul do Estado de Santa Catarina. Ignácio Vieira da Cunha foi proprietário de 18 escravos.13 A Igreja da Armação do Itapocorói (Penha/SC), dedicada a São João Batista, é de 1759.

348  Colóquio NEA 30 anos de Históriaprimeiros moradores os pescadores: Domingos Jorge do Nascimento, naturalde São Francisco do Sul; Raymundo Martins, Manoel Gonçalves e a viúva deum espanhol, chamada Agueda.14 Há, porém, um documento do IBGE, datadode 1989, que dispõe: os primeiros colonizadores de Ganchos foram os lusitanos:João Simão,15 Manoel José de Azevedo, João Pinto, Antonio Lino e ManoelSagaz.16 Essa divergência pode estar relacionada à ocupação da primeira vila:a Armação da Piedade; e depois às demais localidades litorâneas: Ganchos doMeio e de Fora, Calheiros e Canto dos Ganchos, a partir de 1747.17 Aos 26 de março de 1745, o Brigadeiro José da Silva Paes instrui oConselho Ultramarino a enviar, em cada navio que partisse do Arquipélagodos Açores, pelo menos cinco casais açorianos e alguns recrutas. Em agostode 1746, resolve o Conselho Ultramarino acatar a orientação de Silva Paes, etambém o pedido de moradores das Ilhas dos Açores18 para deixar as ilhasem direção ao Brasil. Aos 6 de janeiro de 1748, chegam os primeiros casaisaçorianos a Ilha de Santa Catarina. Nessa época, a população não ultrapassava500 habitantes. Até o ano de 1756 aportam 6.500 açorianos e uma centena demadeirenses a Santa Catarina. Uma pequena parcela desse contingente seguepara o vizinho estado do Rio Grande do Sul. O açoriano e o madeirense praticantes da fé católica trouxeram oscostumes da Santa Sé misturados às crenças e crendices populares. Atualmente,estes resquícios da cultura lusitana identificam uma gente trabalhadora,de índole pacífica e cativante. Os colonos açorianos, inicialmente, foram14 BOITEUX, José Arthur. Dicionário Histórico e Geográfico do Estado de Santa Catarina. Florianópolis : Oficial. v. 2, 1916. p. 33-34.15 João Simão era descendente de Simeão Sandes de Alves, um judeu flamenco que fugiu, em 1660, da perseguição da Inquisição Católica para a Ilha Terceira, nos Açores. É meu ancestral, com raízes nos Arquipélagos dos Açores.16 Fundação IBGE, Notas Históricas – Fevereiro – 1989. Plano Diretor Governador Celso Ramos – Outubro – 1984. SANTUR – Fevereiro – 1989.17 SILVA, Célia Maria e. Ganchos/SC: ascensão e decadência da pequena produção mercantil pesqueira. Editora da UFSC: Florianópolis, 1992, p. 39.18 O Arquipélago dos Açores, ou Região Autônoma dos Açores é um território da República Portuguesa dotado de autonomia política e administrativa. É formado por nove ilhas de origem vulcânica, o Arquipélago está localizado em pleno Oceano Atlântico, a 1.500 km de Portugal a 4.000 km de Nova Iorque e a 8.000 km de Florianópolis. No século XVIII o estado de Santa Catarina recebeu mais de 6.500 açorianos que vieram para cá fazendo parte de um grande projeto da coroa portuguesa para ocupar o Brasil meridional e consolidar a posse definitiva dessas terras. Estes casais açorianos chegaram entre 1748 a 1756 e desembarcaram em Nossa Senhora do Desterro(hoje Florianópolis) e foram redistribuídos ao logo do litoral catarinense. Disponível em: <http://www.nea.ufsc.br/noticias.php?id=89>. Acesso em: 26 jan. 2008.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  349destinados ao cultivo de plantações de subsistência; num segundo momento, apesca assumiu papel preponderante na subsistência. O nome Ganchos, que pode estar relacionado à forma das pequenasenseadas, em formato de ganchos, era um importante Arraial em 1905,fornecedor de peixes ao município de Biguaçu. Em Ganchos atracavam osVeleiros da João Bayer S/A, que na década de 1930 representava 30% dosimpostos recolhidos pela coletoria federal; e navios da Loyd Brasileira quelevavam peixes, madeira e farinha de mandioca, para serem comercializadosem Santos, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul. A lei 98, de 30 de março de 1914, eleva o arraial a distrito; e a lei 929, de6 de novembro de 1963, a município de Ganchos. Nessa época o município jácontava com a terceira colônia de pesca mais antiga do estado de Santa Catarina,a colônia Z-9, fundada em 1920, e estabelecida em Canto dos Ganchos. É noinício da década de 1920, no governo do intendente Hipólito de Azevedo, quecomeçam os trabalhos de abertura da Rodovia Estadual Francisco Wollinger(SC-410): asfaltada em 1983. Por proposição do vereador Patrocínio Manoel dos Santos, um projetode lei é apresentado, em 1967, modificando o nome do município paraGovernador Celso Ramos. Celso Ramos foi quem permitiu a implantação darede de luz elétrica, impulsionando o setor pesqueiro industrial. A mudança,ainda hoje, é motivo de debate entre populares e pesquisadores. Se por umlado, o nome Ganchos guarda a memória das antigas famílias do Arraialde Ganchos; os pesquisadores admitem que Ganchos é um nome maisturístico, simples e exótico.19 O desafio presente é desenvolver o municípioeconomicamente e socialmente; resolver o problema sanitário; e garantir apermanência na terra. Ganchos, atual Governador Celso Ramos, sempre foi considerado umexcelente porto pesqueiro – a bibliografia é riquíssima ao apresentar essacondição. Aponto duas condicionantes nesse sentido. A primeira foi a mesclacultural e o aprendizado obtido com pescadores e mestres construtores navaisda colônia Ericeira, a partir de 1820.20 O outro aspecto foi o declínio daagricultura e os incentivos fornecidos à pesca industrial – que vai substituir apesca artesanal, notadamente a partir da década de 1950.21 Embora a pesca não19 O apontamento é realizado por Jonas Simas Custódio, em dissertação apresentada a UFSC.20 Sobre este tema ver: NUNES, Rogério Pinheiro Leal. A Nova Ericeira. Blumenau: Nova Letra, 2009.21 Ver a dissertação de Jonas Simas Custódio, importante para compreender o declínio da agricultura, da pesca e o advento da maricultura em Governador Celso Ramos/SC.

350  Colóquio NEA 30 anos de Históriaseja o objetivo deste artigo, é notório que a atividade pesqueira, que não é umatradição açoriana,22 atualmente seja patrimônio do povo gancheiro.Resultante étnica e a cultura de base açoriana Em levantamento estatístico realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio àsMicro e Pequenas Empresas (Sebrae), em janeiro de 2006, entre os sobrenomesmais listados estavam: Silva; Santos; Sagás; Oliveira; Costa; Pereira; Souza;Fernandes; Alves23 e Soares. Todos estes sobrenomes, com exceção de Sagás,Fernandes e Oliveira, figuravam no livro de registro de batismo, no períodocompreendido entre 1800 a 1804, da Freguesia de São Miguel da Terra Firme.24O sobrenome Oliveira, por exemplo, consta de um registro histórico relevante.Em 1765, o arpoador Augusto Francisco Oliveira, que vivia na Freguesiada Armação da Piedade, sobreviveu a um naufrágio.25 Atualmente, existem22 Acerca deste debate, observar o capítulo “Evolução econômica e Governo Autônomo”, que integra a 7a parte do livro: Mares, e longínquos povos dos Açores – citado na bibliografia. Nos parece imperioso transcrever o trecho a seguir, instado na página 205: “A população dos Açores viveu sempre e fundamentalmente da agricultura. Embora estivesse rodeada pelo mar, foi no campo que encontrou sua atividade principal, e, secundariamente, alguns serviços de apoio à navegação que passava pelos Açores”.23 Registra-se que a família “Simão Alves”, que descende de Simeão Sandes de Alves, da Ilha Terceira, nos Açores, é a maior de Canto dos Ganchos, o maior bairro em números populacionais de Governador Celso Ramos. Ocorre que, durante a década de 1950 uma cisão na família e outros erros cartorários dividiram a família entre “Simão” e “Alves”. Por essa razão, é muito comum que se ouça a seguinte expressão: “Todo Simão é Alves, mas nem toda Alves é Simão”.24 O historiador Joaquim Gonçalves dos Santos, em dissertação de mestrado denominada: “A Freguesia de São Miguel da Terra Firme: aspectos históricos e demográficos – 1750- 1894”, cita, com base no Livro de Registro de Batismos, 1800 a 1804, da Arquidiocese de Florianópolis, os seguintes sobrenomes: Aguiar, Alves, Andrade, Anjos, Ávila, Azevedo, Bittencourt, Cardoso, Coelho, Coito, Conceição, Correa, Costa, Cota, Cunha, Dias, Espíndola, Espírito-Santo, Fagundes, Ferreira, Fontes, Furtado, Gomes, Jesus, Linhares, Lopes, Luz, Machado, Magalhães, Medeiros, Melo, Pereira, Rabelo, Reis, Ressurreição, Rocha, Rodrigues, Rosa, Rosário, Santos, São José, Silva, Silveira, Simas, Soares, Souza, Teixeira, Vieira, Xavier. O apontamento, constante na tabela 1, página 21, da referida dissertação, ainda menciona a origem dessas famílias em relação a ilha do Arquipélago dos Açores ou da Madeira.25 Consta em um quadro, datado de 1765, no interior da Igreja de Nossa Senhora da Piedade: “Há que fez N.S. da Piedadde ao Timoneiro Antonio Cardoso e a Augusto Francisco de Oliveira que saindo ao mar em lancha de pesca deste anno de 1765 tendo justamente uma Baleia ao de outra que lhe deu com tão grande pancada na lancha a quebrou lançando ao mar todos os que estavam nella os quais nadando seis horas em cima d’água sem esperanças de salvação chamaram pela padroeira a N.S.


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