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coloquioNEA30anos-OK2016x

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Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  51para integrar o corpo de pesquisadores do museu. Tais resistências foramsuperadas, e Cascaes incorporou-se à UFSC. O Reitor da época (1972-1976), Roberto Mundel de Lacerda, meu amigodesde o tempo do Congresso da História Catarinense, e do qual fui aluno, foipor mim contatado e se prontificou a trazer Cascaes para a UFSC. De outrolado, a Prefeitura de Florianópolis, em 1974, administrada por EsperidiãoAmim Elou Filho, colaborou com a UFSC, oferecendo uma bolsa para Cascaese preparando um projeto para que ele fosse até aos Açores. Como um apêndice, registro que, naquele momento, eu exercia aDireção do Centro de Ciências Humanas, e Amim emprestava apoio ao Museudo Ribeirão da Ilha. Vejam, senhoras e senhores, como as coisas começarama se amarrar: o Professor Franklin Cascaes assinando um convênio daUniversidade Federal de Santa Catarina e, por iniciativa da PMF, é confirmadanossa ida aos Açores, entre abril e maio de 1979. Em 1974 inicia-se o Mestrado em História na Universidade Federal,e vou ser professor nesse curso da disciplina de Sistemas Econômicos naHistória de Santa Catarina, sendo uma das alunas desse curso a ProfessoraSara Regina dos Reis, a qual, como sobrinha do Cabral, tinha pendores pelosestudos açorianos e, sob minha influência, acabou tendendo para desenvolvera sua dissertação sobre a arquitetura açoriana na Ilha de Santa Catarina. Convidou-me ela para ser o seu orientador. Durante minha orientação,foi ela aos Açores, no ano de 1977, colher subsídios para sua dissertação.Estaria ela sendo a primeira professora da Universidade Federal a ir aos Açoresaprofundar seus estudos, e sua ida me desafiou e me colocou em xeque, vistoque, se minha orientanda teria ido ao Arquipélago dos Açores, como ficariasendo o seu inspirador. Lá ainda não funcionava uma universidade e, por isso, não lhe foipossível abrir caminho para um intercâmbio específico para a troca de estudosuniversitários aprofundados. Esse episódio que estou relatando serve para se ter noção da importânciade como os fatos vão se amarrando. Em 1979, se consuma efetivamente a minha ida aos Açores, assessorandoFranklin Cascaes. Lá, na época, estava sendo instalado o Instituto Universitáriodos Açores, como embrião da universidade. Nossos contatos foram mantidoscom o Reitor da futura universidade, o Senhor Professor Doutor AntonioMachado Pires. Tivemos oportuna e decisiva conversa com ele. A universidadeem implantação nos deu todo o apoio para correr as ilhas e fazer as pesquisas.Durante esses contatos, surgiu o convite para que o Reitor Machado Piresviesse até Florianópolis. Em nossa volta para Florianópolis, nos deparamoscom a campanha para a eleição de um novo reitor da UFSC.

52  Colóquio NEA 30 anos de História Lançamo-nos candidatos e entramos firmes na campanha, que tinhacomo previsão de vitória o Professor Ernany Bayer, com o qual estabelecemosos primeiros contatos acerca das perspectivas de um acordo ou convênio coma Universidade dos Açores, ideia à qual ele se mostrou favorável. Naquele momento, entre 1979 e 1980, vai se desenrolando o processoeleitoral, e esperava contar com apoios que, aos poucos, foram esmorecendo,e o pleito caminhou favorável ao Professor Ernany Bayer, que tomou posseem 1980, ano em que estávamos programando a Primeira Semana de EstudosAçorianos. Assim que tomou posse, Ernani Bayer, sabendo dos meus interessessobre os estudos açorianos, me chamou para conversar sobre a questão. Propusa ele que procurássemos organizar um congresso, em nossa universidade, quebuscasse ter por base o Primeiro Congresso da História Catarinense. Trocamosideia acerca de enviar convite ao Reitor da Universidade dos Açores, o Prof. Dr.Antônio Machado Pires, para que viesse a Florianópolis e, se possível, assinasseum termo de convênio técnico e científico entre as duas universidades. Nossoscontatos se estenderam até o ano de 1982. Ernany Bayer assumiu a ideia e designou um grupo de professores, sob aminha coordenação, para programar esse evento no qual receberíamos a visitado Reitor Machado Pires. Nascia a Primeira Semana de Estudos Açorianos, que seria programadapara 1984, e não 1983, já que estava muito próximo e precisaríamos de tempopara assegurar a presença do Professor Machado Pires.Figura 5 – Cartaz da Primeira Semana de Estudos Açorianos 1984

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  53 O grupo organizado para tratar do assunto foi por mim estruturadoe dele participariam também Walter Fernando Piazza, Oswaldo Ferreira deMelo, Max Muller, Zuleika Mussi Lenzi e Luis Carlos Halfpap.Figura 6 e 7 – Programação da I Semana de Estudos Açorianos Este grupo elegeu o Prof. Walter Piazza para a coordenação da PrimeiraSemana de Estudos Açorianos, não só pelo seu nível de experiência acadêmica,mas também pelo fato de estar exercendo a presidência do Instituto Históricoe Geográfico de Santa Catarina. Foi escolhido o mês de março de 1984 pararealização da Semana de Estudos Açorianos, com a informação do ReitorErnani Bayer de que estava assegurada a presença do Reitor da Universidadedos Açores, o Professor Doutor Antônio Machado Pires. Para enriquecer ogrupo, a ele foram incluídos outros professores, como o Professor VitorAntônio Peluzzo Junior, a Professora Lelia da Silva Pereira Nunes, Paulo deAraujo Lago e alguns servidores administrativos necessários. Vejam o fôlder completo da programação dessa semana, que sedesenvolveu ente os dias 19 e 25 de março, contou com a presença do Reitore de outros professores da Universidade dos Açores e foi muito exitosa.Infelizmente não foi possível imprimir os ANAIS desse evento.

54  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 8 e 9 – Programação da I Semana de Estudos Açorianos. O grupo então formado tornou-se permanente e logo partiu paradeliberar sobre ações futuras e, dentro dessas propostas, retomou-se o quehavia sido proposto em 1983 para ser criado oficialmente um Núcleo deEstudos Açorianos, que estava sendo coordenado pelo Professor Luiz CarlosHalfpap, o qual já tinha sido escolhido pelo Grupo para tomar a iniciativa desua montagem. Com a estada do Magnífico Reitor da Universidade dos Açores, oProfessor Doutor Antônio Machado Pires, foi assinado o primeiro convênio deintercâmbio e permuta de estudos e prestação recíproca de serviços entre ela ea Universidade Federal de Santa Catarina, no ato representada pelo MagníficoReitor, Prof. Ernani Bayer. Ainda em 1984, e antes do término de seu mandato de exercício daReitoria, o Professor Ernani Bayer oficializa o NEA, sem, contudo, oficializara designação de um coordenador, ficando o Prof. Luiz Carlos Halfpap, poralguns anos, nessa função ainda não oficializada. O Reitor Ernani Bayer foi sucedido pelo Professor Rodolfo JoaquimPinto da Luz, que, sendo descendente de açorianos, veio se tornar o maiorapoiador do recém-criado NEA. Devemos ao Professor Rodolfo o êxito e aconsolidação pela existência até hoje do nosso glorioso NEA. Com o NEA em atividade, e já tendo ocorrido a Primeira Semana deEstudos açorianos, passamos a programar a Segunda Semana, que foi realizadaentre 10 e 15 de agosto de 1987.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  55 Vejamos os anais dessa 2a Semana de Estudos Açorianos, realizada naUFSC.Figura 10 – Cartaz da 2a Semana de Figura 11 – Anais da 2a Semana de EstudosEstudos Açorianos. Açorianos. Estamos hoje neste momento comemorando 30 anos do período 1983 e1984 anos nos quais foi marcado o nascimento do NEA. O momento estava a exigir uma oficialização do NEA e, por isso, ébaixada uma portaria, em data ainda não esclarecida (provavelmente em 1993),oficializando a indicação do Professor Vilson Farias como seu coordenador.Lembro que o Professor Luiz Carlos Halfpap, que teria assumido, de formanão oficial, a coordenação, abriu mão de seu nome e acatou a indicação doProfessor Vilson Farias. São esses detalhes que minha memória registrou. O Professor Vilson Farias já vinha participando com bons trabalhoscomo meu aluno no mestrado em História da Universidade Federal de SantaCatarina. Construímos uma boa amizade e um bom convívio. Destaco queele tinha e tem um espírito trabalhador e guerreiro. E daí para cá se observao quanto subiu de valor cultural, porque foi ideia dele criar anualmente umencontro contemplando a cultura de base açoriana, o AÇOR, o qual perduraaté o presente.

56  Colóquio NEA 30 anos de História A Terceira Semana de Estudos Açorianos foi realizada nos Açores, em1989, e foi conduzida pela universidade de lá.Figura 12 – Fôlder da 3a Semana de Estudos Figura 13 – Anais da 3a Semana de EstudosAçorianos. Açorianos.Figura 14 – Correspondência da Universidade dos Açores sobre a 3a Semana de EstudosAçorianos.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  57 Depois de 1988, apareceu um vazio quanto aos aspetos científicos emrelação aos estudos da açorianidade catarinense, e ficou parado o processodas Semanas de Estudos Açorianos. Considerava-se que o AÇOR já estariacumprindo todas as perspectivas. O AÇOR tornou-se um magnífico evento de cultura açoriana, mas nãotinha objetivos de estudos e pesquisas científicas em nível acadêmico. Algoestava faltando.Figura 15 – Fôlder da 4a Semana de Estudos Açorianos. O ano de 1996 marcava os 250 anos do lançamento do edital de chamadados casais açorianos que desejassem vir para a Ilha de Santa Catarina. Paracomemorar a data, o professor Vilson Farias realizou um evento comemorativo,o qual teria por objetivo a apresentação de manifestações culturais de baseaçoriana em Santa Catarina e buscou envolver nele todos os municípiosque tiveram por base a colonização açoriana. O fulgor e brilho do eventofocalizou o surgimento da festa anual da colonização açoriana, que passa a serdenominada de AÇOR.

58  Colóquio NEA 30 anos de História Vejam na sequência, algumas imagens registrando os semináriosresultantes das propostas do Prof. Vilson Farias.Figura 16 – Fôlder do Curso História e Cultura Açoriana.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  59Figura 17 e 18 – Fôlder do I Encontro Interinstitucional de Cultura Açoriana do Litoral Cata-rinense

60  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 19 e 20 – Fôlder do II Encontro Interinstitucional de Cultura Açoriana do Litoral Cata-rinense A festa de 1996 foi o primeiro Açor, se bem que na época não se lhe deuesse nome, mas foram-lhe assentadas as bases.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  61Figura 21, 22, 23 e 24 – Cartazes do Açor.

62  Colóquio NEA 30 anos de História O NEA, sob o comando do Prof. Vilson Farias, começa a buscar aagregação, ao seu então criado colegiado, de representações das Prefeiturasmunicipais dos territórios colonizados pelos açorianos, como Palhoça, SãoJosé, Itajaí, Biguaçu e outros. E um bom primeiro Açor foi realizado em Itajaí,no ano de 1994, dando início a um belo ciclo de festas da cultura açoriana, quejá alcança a cifra de 22 eventos.Figura 25 – Cartaz do 10o Açor

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  63Figura 26 – Cartaz da 5a Semana de Estudos Açorianos. Entre 1989 e 1998, o grupo responsável pelas semanas de estudosaçorianos se desperta e toma a iniciativa de motivar a Universidade dos Açoresa realizar uma quarta semana em suas dependências, porém foram fracassadosos esforços.

64  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 27 – Crachá do II Curso de Cultura AçorianaFigura 28 – Convite da 5a Semana de Estudos Açorianos

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  65Figura 29 – Fôlder de divulgação da V Semana de Estudos Açorianos. Hoje nós estamos aqui festejando esses 30 anos do NEA e seus exitosostrabalhos no resgate, na divulgação e na defesa das manifestações culturais debase açoriana, que persistem entre nós com muito brilhantismo e muita alegriahistórica.

66  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 30 – Cartaz do 1o Encontro Sul Brasileiro de Comunidades Luso-açorianasFigura 31 e 32 – Crachá e Fôlder do 1o Encontro Sul Brasileiro de Comunidades Luso-açorianas

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  67Figura 33 – Programação da Comemoração dos 250 anos de presença açoriana em SantaCatarina

68  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 34 – Cartaz do I Encontro Sul Brasileiro de Comunidades Luso-Açorianas

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  69Figura 35 – Fôlder do I Encontro Sul Brasileiro de Comunidades Luso-Açorianas

70  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaFigura 36, 37 e 38 – Documento final do III Encontro de Cultura Açoriana do Litoral de SantaCatarina

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  71

72  Colóquio NEA 30 anos de História Antes de terminar, porém, devo recordar outras duas promoções doNEA pela direção do Professor Joi Cletison Alves. Refiro-me à 4a Semanade Estudos Açorianos e ao Primeiro Congresso Internacional das Festas doDivino Espírito Santo.Figura 39 – Anais do I Congresso Internacional das Festas do Divino Espírito Santo

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  73 Foram realizados dois eventos culturais entre 1999 e 2002, sendoos Congressos do Espírito Santo abraçados pela Direção Regional dasComunidades, que os tem organizado em vários países e cidades. Mais uma vez, peço desculpas por ter feito todas essas longas digres-sões, mas eu as considero importantes quando se comemora o êxito dos trintaanos de existência do NEA e, assim, tornar sua história mais viva, conhecida eregistrada mediante estes meus escritos. Para terem uma mais viva consciência da importância do NEA, quecongrega representações de vários municípios de Santa Catarina, quase todosaqui presentes, relato episódios de 1979 para compará-los com o que temos hoje. Lá, nessa época, falar-se nos Açores sobre Santa Catarina e nossa herançaaçoriana era levantar um tema desconhecido e sem nenhum interesse. Brasilsó Pelé e América só Estados Unidos e Canadá. Na construção de uma transformação desse quadro com o estreitamentode nossas relações e intercâmbios de hoje, essa história que conto e escrevo éde fundamental esclarecimento. Nós cá também estávamos esquecidos e desprezando o contributoaçoriano, e eles lá estavam perdidos no tempo e no esquecimento do feito deseus antepassados. Quando lá estivemos, em 1979, a Universidade dos Açoresficou surpresa com nossos registros. Vejam que também tinham eles perdido a memória e a imagem deseus feitos no Brasil. Tive, pois, uma participação-chave nesse processo dereaproximação e redescoberta. Já havia sido oficializada pelo governo dos Açores uma instituiçãogovernamental ‒ que eles chamam de Departamento de Imigração ‒, a qualera dirigida por um diretor que fazia ponte com açorianos no resto do mundo,porque a diáspora açoriana foi fantástica e teve direcionalidades para todo omundo. Contudo, as atenções nesse órgão dirigido pelo Dr. Duarte MendesBettencourt se preocupavam em manter contato com a América do Norte emuito pouco com o Brasil. Esse diretor soube da minha participação e dasmetas do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), entãoprogramou sua primeira visita em 1992, direcionada especialmente para oIHGSC, e convidou para irem aos Açores Walter Fernando Piazza e OsvaldoFerreira de Melo. Em sequência, o Maestro Hélio Teixeira da Rosa e eu para lá fomos como patrocínio do Departamento de Imigração do Governo Regional dos Açores. Nesse momento histórico, dois Presidentes de Governo Regional dosAçores para cá vieram com recepção oficial do Governo de Santa Catarina.Foram momentos muitos especiais, dos quais participei ativamente, mas não épreciso aqui detalhá-los.

74  Colóquio NEA 30 anos de História Um pouco mais à frente, o Departamento foi transformado em DireçãoRegional das Comunidades, sendo empossada como sua Diretora a DoutoraAlzira Serpa Silva, a qual se entusiasma com nossos trabalhos e veio a secaracterizar como uma eficiente colaboradora e valorizadora do NEA. Em verdade, essa nova Direção Regional das comunidades davasequência a um curso iniciado por Duarte Mendes Bittencourt, cujo propósitoera levar pessoas das comunidades açorianas do além-mar para lá, durante 15dias, estudarem os Açores e descobrindo suas raízes culturais.Figura 40 – Assinatura do Presidente do Governo Regional dos Açores Entendo que devemos divulgar a relação completa de quantoscatarinenses foram até os Açores (se é que o NEA já possa ter esses dados),fortalecendo ainda mais os nossos laços de amizade e de herança cultural.Esses frequentaram o curso que já se denominara de Descoberta das Raízes. Foram inúmeras as vezes que a Doutora Alzira nos visitou, sempretrazendo os melhores e mais significativos apoios ao NEA. Mediante a intermediação do Cônsul Honorário de Portugal paraSanta Catarina, o Professor João Eduardo Pinto Luppi, o Governo portuguêscontribuiu financeiramente para a construção, no Campus da UFSC, de umasede para o NEA, aliás uma bela e útil arquitetura. Com a aproximação da Universidade dos Açores, a professora VilcaMerísio foi a primeira aluna de Letras a fazer um doutorado nos Açores.Meu filho Francisco lá esteve, e outros estudantes mais, ampliando umquadro de reciprocidades e interesses de estudos e de congraçamento entre osdescendentes de açorianos de cá com os açorianos naturais de lá. Estávamosassegurando uma nova e positiva imagem do valioso contributo açorianopara a nossa formação geopolítica, e por isso o nosso NEA deve se orgulhare agradecer tanto à UFSC quanto à Universidade dos Açores e seu GovernoRegional. Estas são ligeiras linhas que traçamos sobre a história do NEA, compassagens especialmente colhidas de minha memória para enriquecer estasolenidade e constatar que a criação do Núcleo de Estudos Açorianos daUniversidade Federal de Santa Catarina superou, em seus trabalhos até

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  75aqui desenvolvidos, os resultados apresentados pelo Primeiro Congresso daHistória Catarinense realizado em 1948 pelo centenário Instituto Histórico eGeográfico de Santa Catarina. Agradeço a atenção e apresento desculpas pelas delongas na minhaabordagem, a qual considerava oportuna, em especial para ficar essa históriaindelevelmente registrada nos Anais deste encontro frutuoso. Tendo dito emuito obrigado pela atenção de todos.



A circulação da memória: os açorianos de Santa Catarina João Leal A metáfora da circulação tem ganho um peso crescente na teoria socialcontemporânea. A partir dela generalizou-se uma particular sensibilidaderelativamente à importância dos fluxos de pessoas, de ideias e de formasculturais nos processos de produção das culturas e das identidades. Essaimportância da circulação é muitas vezes vista como uma consequência dacompressão contemporânea do tempo e do espaço, ligada à chamada terceiraglobalização (INDA; ROSALDO, 2002); ou, nos termos de Hartmud Rosa(2010), como uma consequência da aceleração como característica central dasobremodernidade (ou da modernidade tardia). Será verdade. Mas também éverdade que a circulação sempre acompanhou a história dos grupos e culturasdesde o começo da humanidade. Ao lado dos que ficavam, o mundo sempreteve aqueles que partiam. O que mudou foi, por um lado, a intensidadedesses movimentos. E também a sensibilidade da teoria social – que antessobrevalorizava a estabilidade e o fechamento – ao movimento como dimensãoconstitutiva da cultura.Os açorianos em Santa Catarina: amnésia e lembrança A história dos açorianos em Santa Catarina – e de uma forma maisgeral no Sul do Brasil – não pode ser contada sem o recurso à metáfora dacirculação e ao tema da viagem. Há, por um lado, a grande viagem, situadaem meados do século XVIII, de 6.000 açorianos dos Açores para Florianópolis(na altura denominada Nossa Senhora do Desterro). Há, depois, as mais

78  Colóquio NEA 30 anos de Históriapequenas viagens que dispersaram gradualmente os açorianos pelo litoralde Santa Catarina e os levaram ainda ao Rio Grande do Sul. Associadas aessas viagens de pessoas, circularam também formas culturais. O caso dasFestas do Divino é o mais conhecido. Como sugeriu Lélia Nunes (2007), asfestas foram sendo estabelecidas à medida que se deu a expansão dos casaisaçorianos pelo litoral de Santa Catarina. Mas, para além das Festas do Divino,muitas outras formas culturais de origem açoriana circularam, algumas dasquais razoavelmente bem identificadas pela pesquisa histórica e etnográficasobre a colonização açoriana de Santa Catarina. Com o tempo, entretanto,se os resultados culturais da colonização açoriana de Santa Catarina ficaram(embora continuamente transformados), a memória dos Açores parece ter-se esbatido e foi desaparecendo. Os netos e bisnetos de colonos açorianospassaram a definir-se mais e mais por referência às comunidades locais aque passaram a pertencer do que por referência à “pátria” açoriana dos seusavós e bisavós. E, em gerações posteriores, nem essa referência, cada vez maislongínqua aos Açores, ficou de forma generalizada na memória das pessoas.Com o tempo, os descendentes dos casais açorianos ficaram “brasileiros”. Foi nos anos 1940 que essa amnésia começou a ser contrariada e asorigens açorianas de Santa Catarina resgatadas. O acontecimento decisivoa esse respeito foi o I Congresso Catarinense de História, que teve lugar emFlorianópolis em 1948, e em cuja organização tiveram lugar de destaqueHenrique da Silva Fontes e Oswaldo Cabral. Integrando um conjunto maisalargado de celebrações centradas na colonização açoriana de Santa Catarina,o Congresso não só procedeu à “relembrança” da memória açoriana de SantaCatarina, como contrariou a “lenda negra” que em seu torno havia sidocriada, designadamente entre as elites de origem étnica alemã, que viam osdescendentes dos açorianos como “caboclos”, pescadores “preguiçosos” quehaviam “falhado” na sua missão de colonização de Santa Catarina (Seyferth,1982). Nesse sentido, o I Congresso Catarinense de História marcou não só oinício de um trabalho de resgate da memória mas também de um trabalho deresgate do orgulho cultural. Esse trabalho prosseguiu e aprofundou-se na sequência do Congresso.E desenvolveu-se em duas frentes principais. Na frente da pesquisa histórica,a prioridade foi dada à reconstituição da colonização açoriana. Na frenteetnográfica, sobretudo por intermédio do Boletim da Comissão Catarinensede Folclore, foi dada ênfase à redescoberta e tematização das raízes açorianasda cultura popular de Santa Catarina. Nesse trabalho, destacaram-se váriosautores. Oswaldo Cabral, que havia já sido uma das “almas” do I CongressoCatarinense de História, foi também o primeiro responsável pela ComissãoMaranhense de Folclore (que editava o Boletim). O seu lugar foi posteriormente

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  79ocupado por Walter Piazza, que desempenhou, a partir dos anos 1950, um papelcentral no resgate das origens açorianas de Santa Catarina. Almiro Caldeira foioutra figura de relevo no desenvolvimento dessa perspectiva açoriana sobreSanta Catarina. Além de vários outros intelectuais que também deram o seucontributo – por vezes mais pontual – ao nascente movimento açorianista.Não é demais reforçar a importância da actividade desenvolvida por essesprimeiros açorianistas. Por seu intermédio, deram-se os primeiros passos,significativos e importantes, no resgate da memória das origens açorianas deSanta Catarina. Nos anos 1960 – sobretudo devido à fundação da UFSC, onde sepassaram a concentrar os esforços dessa primeira geração de açorianistas –,houve um momento de pausa no desenvolvimento do movimento açorianista;mas, a partir do final dos anos 1970, e no decurso dos anos 1980, desenvolveu-se aquilo que chamei de “primeira retomada açorianista” (Leal, 2007a). Aosaçorianistas de primeira geração juntaram-se açorianistas de segunda geração,entre os quais Nereu do Vale Pereira e sobretudo Franklin Cascaes, cuja obra,graças ao esforço de Peninha, começou então a ter uma circulação e umadifusão mais vasta (e mais do que merecida). Walter Piazza continuou a terum papel de grande relevo, sobretudo na frente da investigação histórica, emultiplicaram-se as iniciativas de referência açoriana, como a I e a II Semanade Estudos Açorianos, realizadas na UFSC. Foi justamente no quadro dessaprimeira retomada açorianista que foi fundado o Núcleo de Estudos Açorianos(NEA), baseado na UFSC, cujo 30º aniversário é agora comemorado. Já anteshavia sido fundada a Casa dos Açores de São Miguel (Biguaçu) e, em 1987,tinha sido lançado o grupo Arcos, dirigido por Ana Lúcia Coutinho. Um novo fôlego parecia percorrer o trabalho de resgate das origensaçorianas de Santa Catarina. Faltava, entretanto, a esse trabalho ganharuma circulação ampliada, capaz de envolver as próprias comunidades deorigem açoriana, as quais eram tematizadas como açorianas por segmentossignificativos das elites de Florianópolis, mas não se viam, ainda, a si própriascomo sendo de origem açoriana. Foi sobretudo nos anos 1990 que essetrabalho de democratização da narrativa açoriana – a que chamei de “segundaretomada açorianista” (Leal, 2007a) – teve lugar. Nesse período, prosseguiu e ampliou-se a investigação histórica eetnográfica sobre as raízes açorianas de Santa Catarina, mas sobretudo iniciou-se um trabalho de devolução da memória açoriana às comunidades. Esse foium trabalho a várias mãos, envolvendo muitas pessoas e grupos (formais ouinformais); mas nele é mais do que justo salientar o papel fundamental doNEA. Até então com uma actividade muito reduzida, o NEA foi reactivadoe desempenhou, ao longo dos anos 1990, um papel fundamental na

80  Colóquio NEA 30 anos de Históriademocratização da memória açoriana de Santa Catarina. Vilson Farias foi ogrande dinamizador dessa segunda fundação do NEA e com ele trabalhou umgrupo muito dinâmico de outros activistas, entre os quais – correndo o riscode deixar muitos outros de fora – se destacam Joi Cletson, Peninha, Franciscodo Vale Pereira, Jone Araújo e Eugénio Lacerda. Três linhas de trabalho foram fundamentais nesse processo dedemocratização da narrativa açorianista. A primeira envolveu a combinaçãoda pesquisa com a acção cultural, que passou a ocupar o posto de comando.Não é que a pesquisa não tenha continuado, mas o mais importante foi todoum trabalho de devolução às comunidades dos resultados dessa pesquisa,susceptível de alargar a consciência da açorianidade para segmentos maisalargados da população. A segunda linha de trabalho visou ao alargamentogeográfico do movimento açorianista, até então confinado a Florianópolis.O trabalho do NEA procurou romper esse confinamento e integrar nanarrativa açorianista o conjunto dos municípios situados ao longo do litoralde Santa Catarina que podiam reclamar para si uma origem – mesmo que di-fusa – açoriana. A terceira linha de trabalho do NEA priorizou odesenvolvimento de uma actividade em rede envolvendo municípios, escolas,grupos mais informais de activistas, etc., que se traduziu no surgimentode novos players no desenvolvimento do movimento açorianista. Foi nãotanto uma actividade centralizadora e com uma “narrativa única” mas umtrabalho de suscitação e mobilização de interesses e parcerias capazes dereforçar a diversidade e a densidade institucional do movimento açorianista.A importância dos Encontros Inter-Institucionais da Cultura Açoriana e,sobretudo, do Mapeamento Cultural da Cultura de Base Açoriana de SantaCatarina devem em particular ser sublinhadas. Dotada dessas características, a actividade do NEA envolveuum conjunto de pequenas e médias iniciativas. Mas nela foi essencial aorganização de grandes eventos susceptíveis de criar impacto e, dessa forma,levar a narrativa açorianista a audiências cada vez mais alargadas. Entre esseseventos de grande porte, conta-se, em 1996, o I Encontro Sul-Brasileiro deComunidades Luso-Açorianas. Esse Encontro está para a segunda retomadado movimento açorianista – no decurso dos anos 1990 – como o I Congressode História Catarinense esteve para o seu desenvolvimento inicial – nos anos1940 e 1950. Em 1999, por seu turno, teve lugar I Congresso Internacionaldas Festas do Divino Espírito Santo, primeiro de um conjunto de Congressosque se continuaram a realizar até hoje e cuja importância deve ser sublinhada:eles tornaram-se num ponto de encontro regular de activistas açorianos edescendentes de açorianos provenientes de várias partes do mundo. Que tenhasido do NEA a iniciativa do primeiro Congresso é revelador da importância

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  81e relevo da sua actividade. Em 1994 foi também lançado o primeiro Açor quecontinua até hoje a realizar-se anualmente e se transformou numa grande festada cultura açoriana do estado de Santa Catarina. Por intermédio dessas grandes iniciativas, e também de múltiplas outraspequenas e grandes iniciativas, a narrativa açorianista ganhou uma circulaçãoampliada. Até os anos 1990, a memória da colonização açoriana era ainda umamemória selectiva. A partir dos anos 1990, ela passou a ser uma memóriacolectiva. Isso é tanto mais verdade quanto, na sequência da actividade doNEA – ou simultaneamente a ela –, vários outros atores se juntaram a essetrabalho de resgate da cultura açoriana em Santa Catarina. Entre esses atores,contam-se a Fundação Franklin Cascaes – fundação de cultura do municípiode Florianópolis –, que, sobretudo durante a prefeitura de Ângela Amim, seenvolveu de forma mais decidida no resgate da memória açorianista da ilha deSanta Catarina, mas, ao longo do litoral de Santa Catarina, vários municípios,grupos de activistas, grupos folclóricos, grupos de boi-de-mamão, etc. foramessenciais para o alargamento geográfico e social das tematizações açorianasda cultura de Santa Catarina.“Viagens da volta” e outras viagens Os factos que acabei de resumir estão expostos em maior pormenorno livro Cultura e identidade açoriana: o movimento açorianista em SantaCatarina (Leal, 2007a; ver também 2007b; 2011) e para ele remeto o leitormais interessado no seu detalhamento. O que eu gostaria de enfatizar é o modocomo esse conjunto de processos de resgate da memória açoriana de SantaCatarina pode ser analisado à luz de metáforas de circulação, de movimento,de fluxos – de pessoas, de ideias e de formas culturais. De que modo? Os processos de redescoberta da memória açoriana de Santa Catarinapodem ser considerados – sobretudo a partir da democratização iniciada nosanos 1990 – como processos de renascimento étnico. De facto, os descendentesde açorianos, a par dos descendentes de alemães, italianos, poloneses, degrupos indígenas ou de grupos afro-descendentes, podem ser vistos como umdos grupos étnicos que entra na composição multicultural do estado de SantaCatarina. Só que até aos anos 1990 essa consciência “étnica” – muito marcadaentre os descendentes de emigrantes alemães e italianos – não existia aindade forma difundida entre os açorianos. Nesse sentido, aquilo a que assistiu apartir dos anos 1990 foi ao “renascimento” de uma consciência de pertençaétnica açoriana entre segmentos significativos da população do litoral de SantaCatarina. Adaptando uma expressão que uma antropóloga portuguesa usou

82  Colóquio NEA 30 anos de Histórianum outro contexto, “açorianos que tinham deixado de ser açorianos voltarama ser açorianos” (Viegas, 1998). É verdade que rigorosamente não voltarama ser açorianos, no sentido em que essa expressão é, mais correntemente,usada (como forma de designação dos naturais do Arquipélago dos Açores),mas voltaram a ser “açorianos”, no sentido em que essa expressão passou a serusada em Santa Catarina (como forma de autodesignação de brasileiros deorigem açoriana residentes em Santa Catarina). Desse ponto de vista, o que sepassou em Santa Catarina tem algumas similitudes com outros processos derenascimento étnico no Brasil contemporâneo, envolvendo grupos indígenas,quilombolas, descendentes de emigrantes europeus, etc. Em todos esses casos,aquilo a que se tem vindo a assistir nas últimas décadas – em particular a partirda Constituição brasileira de 1988 – é ao desenvolvimento de um conjuntode processos de reemergência étnica que devolvem às pessoas e grupos aconsciência e o orgulho nas suas raízes e nas suas particularidades. Falando sobre alguns desses processos em grupos indígenas do Nordestedo Brasil, o antropólogo João Pacheco de Oliveira propôs o conceito de “viagemda volta” (2004). É nesses termos que eu acho que se pode olhar também para oprocesso de resgate da memória açoriana em Santa Catarina. Ele pode ser visto,por um lado, como uma viagem no tempo, desde o presente até às origens, edesde as origens até ao presente. Essa viagem – como sublinha João Pachecode Oliveira – não é apenas um exercício de nostalgia mas a construção de umsentido de pertencimento no presente. É, portanto, um regresso ao passadopensado a partir de desafios contemporâneos. E, como também enfatizaJoão Pacheco de Oliveira, articula-se simultaneamente com múltiplas outrasviagens – no espaço – de pessoas, de ideias, de formas culturais. Estas, no caso de Santa Catarina, envolveram em plano de relevo a “terrade acolhimento” e a “terra de origem”: Santa Catarina e os Açores. Regressemosao I Congresso Catarinense de História. Um dos factos mais valorizados pelosseus participantes foi a participação de Paiva Boléo, um etnógrafo e linguistaportuguês que era professor na Universidade de Coimbra. Na realidadetalvez não fosse só Paiva Boléo que os congressistas queriam mas também odestacado etnógrafo açoriano Silva Ribeiro. Mas Silva Ribeiro, embora tenhaenviado uma mensagem ao Congresso, não pôde deslocar-se pessoalmentea Florianópolis e coube a Paiva Boléo o encargo de representar a “terra deorigem” açoriana no Congresso. Essa participação de Paiva Boléo – descrita na época como umdos momentos mais altos do evento – foi a primeira de um conjunto decolaborações implicando a circulação de pessoas e de ideias entre SantaCatarina e os Açores. Ao longo dos anos 1950, a par da publicação de autorescatarinenses, o Boletim da Comissão Catarinense de Folclore deu relevo a

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  83artigos de etnógrafos açorianos, como Carreiro da Costa ou Frederico Lopes.Em regime de reciprocidade, algumas revistas publicadas nos Açores – comdestaque para o Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira – publicaramtambém artigos de autores catarinenses, como Walter Piazza e OswaldoCabral. Isto é: a redescoberta da memória açoriana de Santa Catarina – a tal“viagem da volta” – articulou-se desde o início com o reatar dos trânsitos entreos Açores e Santa Catarina. Esses trânsitos ganharam um novo ímpeto a partir de 1970, com aprimeira retomada do movimento açorianista. Piazza e Nereu do Vale Pereiravisitaram em 1979 os Açores, numa espécie de peregrinação à terra de origemque não tardou a ser replicada por outros intelectuais e activistas ligados aomovimento açorianista. As duas primeiras Semanas de Estudos Açorianosorganizadas em Florianópolis contaram também com a participação destacadade açorianos: académicos, professores da Universidade dos Açores, políticos.Quanto à III Semana de Estudos Açorianos, foi já organizada nos Açores,tendo-se revelado de grande importância na dinamização das viagens de voltade activistas catarinenses aos Açores. Simultaneamente, o governo dos Açores – que, desde 1976, tinha ganhoo estatuto de Região Autónoma da República Portuguesa – passou a investirde forma significativa na construção da ideia de uma diáspora açoriana. Esseesforço foi inicialmente dirigido para as comunidades migrantes recentes daAmérica do Norte: emigrantes de 1a e 2a geração que se haviam instalado nosEUA e no Canadá entre 1960 e 1980. Mas, a partir do final dos anos 1980,passou a englobar os descendentes desses outros “emigrantes”, que, em meadosdo século XVIII, tinham colonizado o Sul do Brasil. Uma das iniciativas importantes para a construção dessas ideiasde diáspora açoriana foram os Congressos das Comunidades Açorianas,organizados pelo Gabinete da Emigração e Apoio às Comunidades Açorianas(um departamento do governo regional dos Açores). Em seu torno prosseguiua circulação de catarinenses para os Açores, com Walter Piazza e Oswaldo deMelo a participarem nos II e III Congressos, realizados respectivamente em1986 e em 1991. Foi entretanto no decurso dos anos 1990 que o trânsito entre SantaCatarina e os Açores se intensificou decisivamente. Isso decorreu, por umlado, da actividade do NEA, assim como de outras organizações baseadas emSanta Catarina. O melhor exemplo dessa tendência foi – como ficou sugeridoatrás – o I Congresso Sul-Brasileiro de Comunidades Luso-Açorianas de1996. O Congresso foi marcado em plano de relevo pela participação deuma numerosa delegação açoriana, envolvendo académicos e políticos. Domesmo modo, o I Congresso Internacional das Festas do Divino Espírito

84  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaSanto contou também com numerosas participações de académicos açorianos(e portugueses). Do lado açoriano, a circulação de pessoas e ideias entre Santa Catarinae os Açores foi simultaneamente definido como uma prioridade, decorrentedo crescente investimento do Governo dos Açores na diáspora sul-brasileira.Um bom exemplo é o IV Congresso das Comunidades Açorianas (1995),marcado pela participação de uma numerosa delegação de Santa Catarina.Simultaneamente o Governos dos Açores passou também a organizar numabase regular o curso Açores: à Procura das Raízes, que propiciou a intensificaçãodas peregrinações catarinenses aos Açores. Três pontos devem ser sublinhados a propósito desses trânsitos, nãoapenas de pessoas, mas, associadas a elas, de ideias, de formas culturais(e também de recursos). O primeiro ponto tem a ver com o modo comoesses fluxos, para além dos Açores e de Santa Catarina, se articularam comoutros trânsitos envolvendo outras geografias. Assim, tanto nos Congressosdas Comunidades Açorianas como nos Congressos Internacionais das Festasdo Divino do Espírito Santo, para além de catarinenses e açorianos, fizeram(e fazem-se) representar outros núcleos da diáspora açoriana, com destaquepara a América do Norte. No caso do Brasil, para além da participação relevantede activistas do Rio Grande do Sul, deve ser também sublinhada a participaçãomais pontual de descendentes de açorianos de São Paulo, do Rio de Janeiro oudo Maranhão. Os trânsitos entre Santa Catarina e os Açores devem, portanto,ser vistos como um feixe específico de fluxos de pessoas e de ideias no interiorde processos mais alargados de circulação. O segundo ponto que é importante sublinhar é o modo como inovaçãotecnológica e inovação cultural e social se misturaram estreitamente nessaintensificação da circulação entre Santa Catarina e os Açores. O crescimentodos fluxos entre 1950 e 1990 não pode ser compreendido sem a inovaçãotecnológica. Nos anos 1950, a circulação – mais lenta e menos intensa – fazia-seprovavelmente com recurso a cartas – que demoravam a chegar – e a uma ououtra espaçada e não muito corrente viagem de avião. Paiva Boléo foi, em 1948,a Santa Catarina, mas só 30 anos depois é que Piazza e Nereu do Vale Pereiraretribuíram essa viagem com a sua peregrinação aos Açores. Depois, com meiostecnológicos de transporte gradualmente mais avançados – e baratos – é queas viagens se tornaram mais correntes; porém, provavelmente não substituíramcompletamente a correspondência postal, que passou a circular com menorlentidão. Finalmente, nos anos 1980 e 1990, as viagens ficaram muito maisfacilitadas e, a partir do final dos anos 1990, os telefonemas de longa distância,os e-mails e os websites passaram a servir de apoio a uma circulação de pessoase de ideias cada vez mais intensa. Mas a inovação tecnológica foi sobretudo

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  85instrumental: o que conta é o modo como ela esteve simultaneamente imbricadacom processos de inovação cultural e social que fizeram com que: do lado deSanta Catarina, as pessoas e os colectivos se reinventassem em torno da memóriadas suas origens açorianas; do lado dos Açores, fosse criada e ganhasse difusãoa ideia de uma diáspora açoriana abrangendo não só emigrantes “óbvios” – osaçorianos de 1a e 2a geração nos EUA e no Canadá – mas também emigrantesmenos “óbvios” – os brasileiros de mais longínqua descendência açoriana deSanta Catarina (e do Rio Grande do Sul). O terceiro ponto que deve ser sublinhado é o modo como essesprocessos não estiveram (nem estão) isentos de dificuldades. Muitos norte-americanos de origem açoriana recente olharam com alguma desconfiançapara os brasileiros de mais longínqua descendência açoriana, achando que ogoverno regional dos Açores lhes dava excessiva importância (e recursos). Dolado do Brasil, ao lado dos incluídos, há os excluídos. O caso mais flagrante édo Maranhão. Embora a colonização açoriana do século XVII tenha sido degrande importância para a formação do estado do Maranhão, os académicose activistas locais interessados na exploração dessa conexão açoriana nãotiveram os apoios que foram disponibilizados para os estados do Sul do Brasil.De igual forma, as mudanças de responsáveis políticos nos Açores, ocorridasquando da transição dos governos de Mota Amaral (do PSD) para os governosde Carlos César (do PS), parecem ter desencadeado mudanças pontuais deinterlocutores privilegiados na diáspora. Toda a circulação se faz – comodiria Ana Tsing (2005) – com “fricções”. O movimento não é irrestrito, masselectivo. Há pessoas e ideias que circulam melhor do que outras. É o que sepassa também com os trânsitos associados à ideia de uma diáspora açoriana.De baixo para cima, de cima para baixo Para além dessas formas de circulação à distância, o desenvolvimento domovimento açorianista em Santa Catarina, sobretudo a partir dos anos 1990,envolveu viagens mais curtas, embora mais regulares. Tendo como um dos seusprincipais objectivos o alargamento da narrativa açorianista de Florianópolispara os municípios do litoral de Santa Catarina, a actividade no NEA associou-se ao desenvolvimento de um fluxo regular de pessoas oriundas de dezenasde municípios: pessoas que ministravam e frequentavam cursos, pessoas queparticipavam em reuniões deliberativas, pessoas que se associavam a pequenos,médios e grandes eventos. Com elas circularam ideias sobre cultura e raízesaçorianas, sobre modos de tematização da cultura açoriana, sobre formatosde pesquisa e divulgação, e assim sucessivamente. Dezenas de milhares de

86  Colóquio NEA 30 anos de Históriaquilómetros – do centro para periferia e da periferia para o centro – forampercorridos para que esse alargamento geográfico do movimento açorianistapudesse ter lugar. Não é por isso de admirar que metáforas relacionadas coma circulação – como “mapeamento” (em Mapeamento Cultural da Culturade Base Açoriana do litoral de Santa Catarina) ou “corredor” (em CorredorTurístico-Cultural da base açoriana) – sejam tão frequentes na terminologiaempregue pelo NEA. Mas o melhor exemplo dessa importância da circulaçãoé o Açor: não só porque nele convergem anualmente vários trânsitos – depessoas, de grupos folclóricos, de artesãos, de foliões do Divino – origináriosde diferentes municípios de Santa Catarina, mas porque a própria festa é umafesta móvel, que, a cada ano, se realiza num município diferente. O ponto que eu queria sublinhar é, entretanto, outro. O alargamentoda expressão geográfico do movimento açorianista foi indissociável de outrosmodos de circulação que, para além de vencerem distâncias geográficas,procuraram também vencer distâncias sociais. As viagens de pessoas, deideias e de formas culturais em Santa Catarina foram não apenas viagens nahorizontal – conectando diferentes territórios – mas foram também viagensna vertical –, conectando entre si pessoas e grupos que ocupavam (e ocupam)posições de classe diferentes: segmentos subalternos da população e elites;comunidades e intelectuais; activistas e “opinião pública”. Se olharmos para a fase inicial do movimento açorianista – nos anos1940 e 1950 – aquilo que é relevante é a cooptação a partir de cima – pelosintelectuais – de formas culturais localizadas em baixo – nas comunidades.Isso é particularmente claro se nos fixarmos no trabalho de tematizaçãoetnográfica das raízes açorianas de Santa Catarina. Esse trabalho de tematizaçãoreproduziu, para o caso de Santa Catarina, um mecanismo mais geral presentenos processos de objetificação da cultura tal estes foram estudados por RichardHandler (1988). Estes podem ser vistos como um trabalho de transformaçãoda cultura em identidade conduzido por intelectuais a partir de materiais comexistência efectiva entre segmentos populares da população. Esse carácter“elitista” do resgate da memória açoriana nos anos 1940 e 1950 é muitoclaro, se levarmos em conta que ele começou por se inscrever num processode competição no interior das elites do estado de Santa Catarina em que aetnicidade – ser alemão, italiano, açoriano, ser “de origem” ou “ser da terra” –era um argumento relevante. Esse movimento de baixo para cima foi dominante durante décadas.Mas, com os anos 1990 – graças sobretudo ao trabalho do NEA –, a essemovimento de baixo para cima acrescentou-se um movimento de cimapara baixo. As ideias produzidas a partir de cima sobre identidade açorianacomeçaram a fazer o seu caminho de volta para as comunidades, cujos

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  87membros eles próprios se passaram a ver como “açorianos” e a ter aí umareferência identitária importante. Na minha pesquisa, houve um episódio quetornou claro a extensão e o êxito desse movimento de cima para baixo: umamanifestação em defesa da farra do boi ocorrida em 2001. Com cerca de 200a 300 participantes, a manifestação recorria a faixas e palavras de ordem quedefendiam a farra do boi como uma “tradição açoriana”. Grande parte dosmanifestantes vinha de comunidades em que o movimento açorianista nãotinha forçosamente uma expressão organizada, era evidente o aspecto popularde muitos deles, mas – apesar disso – o argumento principal para defender afarra do boi era o argumento da “açorianidade”. Como sugeriram Löfgren (1989) e Handler (1988), os processos decooptação erudita da cultura popular envolvem – em medidas variáveis –processos de descontextualização, que deslocam formas culturais dos seuscontextos locais para as re-significar – em novos contextos supralocais –como identidade e património. A democratização da narrativa açorianista nodecurso dos anos 1990 pode ser vista – à luz dessas ideias – como um processode recontextualização, em que algo, inicialmente retirado do seu contexto,volta, transformado, a ele. Não deixa por isso de ser significativo o frequenteuso da expressão “devolução” nos documentos e nas falas dos activistas doNEA e de outras pessoas e grupos envolvidos com a narrativa açorianista.Barbara Kirshemblatt-Gimblett (1998) propôs o conceito de “segunda vida”como forma de caracterização do património. Segundo ela, os processos depatrimonialização injectariam nos objectos patrimonializados uma espéciede segunda vida: “uma vida como exibição de si mesmos”. Esse conceito ébom para se pensar os processos de circulação – de baixo para cima e decima para baixo – associados à redescoberta das raízes açorianas de SantaCatarina. A cultura de base açoriana antes da tematização açorianista tinhauma primeira vida ligada às comunidades locais e às suas dinâmicas sociaise culturais. Com a tematização açorianista, ganhou uma segunda vida, comosímbolo da identidade açoriana. Mas as comunidades permaneciam cortadasdessa tematização identitária. Com a circulação de cima para baixo dessatematização identitária, a cultura de base açoriana iniciou uma terceira vida,marcada pelo modo como as comunidades – ou segmentos significativosdelas – passaram a ver aquilo que faziam como sendo também açoriano. O que tudo isso mostra é que as culturas populares – ou ideias sobreelas – são uma matéria que não está socialmente acantonada, mas que circulatanto horizontalmente como verticalmente. Que o NEA tenha tido um papelfundamental nessas duas formas de circulação de pessoas, de ideias e de formasculturais sobrepostas só confirma a importância da sua actividade.

88  Colóquio NEA 30 anos de HistóriaConclusões No termo deste artigo, gostaria de regressar às observações iniciais quefiz sobre a metáfora da circulação. A produção das culturas e das identidadesassenta em viagens: de pessoas, de ideias e de formas culturais (e de recursos).Essas viagens são viagens de ida e viagens de volta; são viagens de longadistância e viagens mais curtas; são viagens horizontais e verticais. Atravésdessas sucessivas viagens, a cultura e as identidades são permanentementeproduzidas e coproduzidas, transformadas e modificadas, hibridizadas, etc. Nesse sentido, o caso da redescoberta das raízes açorianas de SantaCatarina fornece um bom ponto de partida para pensar processos que,parecendo diferentes, obedecem, quando vistos mais de perto, aos mesmos“princípios” da circulação da cultura, das identidades e da memória. É o quese passa com processos de redescoberta da identidade étnica entre emigranteseuropeus de 3a e 4a geração – incluindo os açorianos e os portugueses – nosEUA. É também o que se passa – para regressar ao Brasil – com os processos derenascimento étnico entre as populações indígenas do Nordeste estudadas porJoão Pacheco de Oliveira (2004). E é o que se passa ainda com os processos dereafricanização de religiões afro-brasileiras, que tenho vindo mais recentementea pesquisar em São Luís (mas que são sobretudo importantes na Bahia). Esteúltimo caso é particularmente expressivo. Também aí encontramos o mesmopercurso: do esquecimento à rememoração. Essa “viagem da volta” estátambém articulada com trânsitos transnacionais entre o lugar de onde se é – oBrasil – e o lugar de onde vieram os ancestrais – a África. Mas está tambémassociada a trânsitos mais curtos, horizontais – entre terreiros – e verticais– entre intelectuais e terreiros. Nesses casos – como em muitos outros – nãosó a metáfora da circulação é indispensável, como os modos concretos decirculação de pessoas, de ideias e de formas culturais têm grandes semelhançascom os que podemos surpreender em Santa Catarina. O que o caso de Santa Catarina também mostra é que não devemosseparar circulação e agencialidade. Para que as coisas se ponham em movimento,alguém tem que as pôr em movimento. A história da circulação é uma históriade pessoas, feita por pessoas e para as pessoas. No caso de Santa Catarina,para que essa história tivesse êxito – como teve – tinham que estar reunidasum certo número de condições favoráveis. Mas, em cima dessas condiçõesfavoráveis, foi necessário que aparecessem pessoas capazes de interpretar“o espírito do tempo” e pôr as coisas em movimento. Essas pessoas são aspessoas que deram a cara pelo NEA e por outros grupos envolvidos no processode resgate da memória açoriana de Santa Catarina. Foram elas que puseram as

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  89coisas em movimento e que certamente vão continuar a estar envolvidas comos trânsitos e os fluxos de que continuará a ser feito o movimento açorianistaem Santa Catarina.ReferênciasHANDLER, Richard, 1988, Nationalism and the Politics of Culture in Quebec,Madison, The Wisconsin University Press.INDA, Jonathan & Renato ROSALDO (Ed.), 2002, The Anthropology of Globalization.A Reader, Malden MA – Oxford, Blackwell.KIRSHENBLATT-GIMBLETT, Barbara, 1998, Destination Culture. Tourism,Museums, and Heritage, Berkeley, University of California Press.LEAL, João, 2007a, Cultura e Identidade Açoriana. O Movimento Açorianista emSanta Catarina, Florianópolis, Editora Insular.LEAL, João, 2007b, Açores, EUA, Brasil. Imigração e Etnicidade, Ponta Delgada,Direcção Regional das Comunidades (http://run.unl.pt/handle/10362/4338).LEAL, João, 2011, Azorean Identity in Brazil and the United States: Arguments aboutHistory, Culture and Transnational Connections, Dartmouth MA, Tagus Press atUniversity of Massachusetts (Dartmouth).LÖFGREN, 1989, “The Nationalization of Culture”, Ethnologia Europaea, XIX, p. 5-24.NUNES, Lélia Silva, 2007, Caminhos do Divino. Um Olhar sobre a Festa do EspíritoSanto em Santa Catarina, Florianópolis, Editora Insular.OLIVEIRA, João Pacheco de, 2004, “Uma Etnologia dos ‘Índios Misturados’?Situação Colonial, Territorialização e Fluxos Culturais”, Oliveira, J. P. (Ed.). A Viagemde Volta. Etnicidade, Política e Reelaboração Cultural no Nordeste Indígena, Rio deJaneiro, Contra Capa – LACED, p. 13-42.ROSA, Hartmud, 2010, Accélération. Une Critique Sociale du Temps, Paris, Édtions LaDécouverte.SEYFERTH, Giralda, 1982, Nacionalismo e Identidade Étnica. A Ideologia Germanistae o Grupo Étnico Teuto-Brasileiro numa Comunidade do Vale do Iatajaí, Florianópolis,Fundação Catarinense de Cultura.TSING, Anna L., 2005, Friction. An Ethnography of Global Connection, Princeton,Princeton University Press.VIEGAS, Susana Matos, 1998, “Índios que Não Querem Ser Índios: EtnografiaLocalizada e Identidades Multi-Referenciais”, Etnográfica II, n. 1, p. 91-111.



Santa Catarina: um porto estratégico – Açores e Brasil séculos XVIII Margarida Vaz do Rego Machado Pretendemos, hoje, relembrar a importância de S. Catarina no seio dasrotas oceânicas do Atlântico Sul no século XVIII e, em particular, as relaçõesexistentes entre os Açores e a parte meridional do Brasil. Embora foquemosessencialmente a Ilha de S. Catarina, o porto a que nos referimos é maisabrangente, pois utilizamo-lo como metáfora para todas as reentrâncias eancoradouros da ilha, assim como da costa continental. De barco ou por terra,S. Catarina foi palco de cruzamentos de rotas que ligaram desde os finais doséculo XVII a zona mais meridional do Brasil ao Rio de Janeiro. As razões foramvárias. Desde as expansionistas – Portugal queria a todo o custo delimitar asfronteiras do Sul do Brasil, chegando ao Rio da Prata e as político-militares,relacionadas com essa mesma fronteira. Também o povoamento dessas mesmasáreas, de modo a que a componente humana se tornasse símbolo da pertençaportuguesa. Obviamente que outra razão se deve ao acolhimento prestado avários navios, integrados no movimento de expedições científicas, que, durantesetecentos e oitocentos, pretenderam revelar e retratar, em moldes científicos,os espaços e gentes, embora, e como bem escreveu Damião Rodrigues, “estasexpedições de setecentos não deixassem de inscrever-se na disputa franco-britânica que, de Utrecht a Waterloo, assinalou a luta pela hegemonia no seioda economia-mundo europeia”.1 Comecemos por alguns relatos de estrangeiros que aportaram em SantaCatarina, cientes de que a literatura de viagens não é uma fonte primária, no1 José Damião Rodrigues, História Atlânticas: os Açores na primeira modernidade, Ponta Delgada, CHAM, 2012, p. 62.

92  Colóquio NEA 30 anos de Históriasentido em que muitas vezes a visão do outro (nesse caso o escritor) estavainquinada a priori por certos estereótipos que levavam a que suas descriçõesnão correspondessem plenamente à realidade. Iremos, pois, partir das realidades esboçadas nos relatos de algumasviajantes que passaram em Santa Catarina, como o de Frezier em 1712, GeorgeAnson em1740, e ainda La Pérouse em 1785,2 e cotejá-los com outras fontes daépoca e estudos atuais, de modo a percebermos quão importante foi esta zona napolítica e economia da época e, assim, justificar o epíteto de “porto estratégico”. Frézier foi um engenheiro militar contratado para a construção dosfortes nas possessões espanholas na América de Sul e, aquando da sua viagemao pacífico, aportou em 1712 em Santa Catarina, descreveu-a desta maneira: A ilha de Santa Catarina é uma floresta contínua de árvores verdes o ano inteiro, não se encontrado nela outros sítios praticáveis a não ser os desbravados em torno das habitações, isto é 12 ou 15 sítios dispersos aqui e acolá à beira mar nas pequenas enseadas fronteiras à terra firme: os moradores que os ocupam são portugueses, uma parte de europeus fugitivos e alguns negros; vê-se também índios, alguns servindo voluntariamente aos portugueses, outros são aprisionados em guerra. São súbditos do Rei de Portugal e obedecem a um governador ou capitão cuja principal atividade é comandá-los em caso de guerra contra possíveis inimigos da europa e dos Índios de Brasil [...]. Esta gente, à primeira vista parece miserável, mas eles são efetivamente mais felizes que os europeus, ignorando as curiosidades e comodidades supérfluas que na Europa se adquirem com tanto trabalho [...] A terra fornece-lhes os elementos necessários à vida, as ervas, o algodão, peles de animais para se cobrirem e se abrigarem [...] gozam de bom clima e de um ar muito saudável [...] a pesca é muito abundante nas inúmeras enseadas da ilha e terra firme assim como a caça. A caça mais usada na alimentação dos habitantes é a do macaco, mas a melhor de todas para os navios em estadia é a dos bois, dos quais há uma grande quantidade em terra firme, por perto de Arazatiba.3 Como primeira nota, depreende-se um certo encantamento da e pelailha, na linha do bom selvagem de Rousseau, que muitas vezes foi motor de2 Toda a análise foi feita com bases nas transcrições compiladas em: Martim AfonsoPalma de Haro (Org.), Ilha de Santa Catrina; relatos de viajantes estrangeiros nos século XVIII e XIX, Florianópolis, Editora da UFSC, Lunardelli, 1996.3 M Frézier, “Realtion du voyage de la Mer di Sud aux côtes du Chily et du Perú”, in Martim Afonso Palma de Haro (Org.), Ilha de Santa Catrina; relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, Florianópolis, Editora da UFSC, Lunardelli, 1996, p. 23 e 24.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  93partidas para a busca do “paraíso”. Todavia, essa terra rica de produções, comoé invariavelmente repetido por outros viajantes, assim como o seu bom clima,será usada como motivo impulsionador de emigração. Ainda analisando Frézier, constatamos que, em 1712, toda essa regiãoestá muito pouco povoada, situação que irá mudar com a emergência da defesada colónia do Sacramento, tornando-se assim Santa Catarina num ponto deapoio para as armadas que rumavam ao Rio da Prata. Como escreveu WalterPiazza, seria por ela que se articulariam os socorros necessários ao Rio Grandedo Sul e à Nova Colónia do Sacramento.1 Por isso, quando George Anson, em1739, aportou em Santa Catarina, a situação era bem diversa. As descrições daprodutividade das terras são idênticas: a terra de Santa Catarina é muito fértil e produz quase que por si mesmo variadas espécies de frutos. É coberta de uma floresta de árvores sempre verdes e não faltam os abacaxis, os pêssegos, as uvas, as laranjas, os limões, nem bananas. Além disso há aqui em abundancia outras duas produções de uso infinito nos navios a saber as cebolas e as batatas. [...] a água, tanto na ilha como na terra firme é admirável e se conserva tão bem no mar como a água do Tamisa. Mas, para George Anson, comandante de uma esquadra britânica quetinha sido mandada para o Sul para prevenir um possível ataque espanhol àscolónias no pacífico,e ao contrário do que tinha escrito Frézier, o clima não erados melhores; todavia a situação estratégica da Santa Catarina é sublinhada noseu relato. Segundo ele: o porto desta ilha é o mais seguro e o melhor de todos ao longo da desta costa [...] e vem a ser de maneira geral, o melhor lugar de refrescamento para os nossos armadores, que querem render ao mar do sul.2 Ao contrário de Frézier, que, em 1712, tinha encontrado uma regiãocom muito pouca população, sem camara porque se governem, o comandantebritânico já encontra o início do verdadeiro povoamento por parte dasautoridades portuguesas. Ao invés do antigo capitão coberto de remendos e descalço, tiveram a honra de ser governados por Dom José da Silva Paes, Brigadeiro das1 Walter Piazza, O Brigadeiro José da Silva Pais, estruturador do Brasil Meridional, Florianópolis, Editora da UFSC, 1988.2 George Anson, “Voyage round the world, in in Martim Afonso Palma de Haro (Org.), Ilha de Santa Catrina. Ob. cit, p. 64.

94  Colóquio NEA 30 anos de História armadas do rei de Portugal. Este oficial tem sob as suas ordens uma guarnição de soldados e por consequência é temido mais do que qualquer um dos seus predecessores [...].3 Esse aspeto de uma maior organização militar está bem de acordo coma intensificação da luta pela hegemonia britânica dos mares, nomeadamentequando, ao referir-se ao Brigadeiro da Silva Paes, diz que: as suas maneira de agir só podem causar muitos embaraços aos navios ingleses, que descansam em Santa Catarina antes de seguirem para os mares do sul. Porque uma de suas espertezas consiste em colocar sentinelas aqui e acolá, para impedir os habitantes de nos vender alguns refrescos, a menos que os façam por um preço exorbitante. Nos parágrafos seguintes, o comandante britânico refere dois aspetosimportantes na história desse porto estratégico. Por um lado e, novamente, as ligações com a Nova Colónia doSacramento, insinuando que o Brigadeiro Silva Paes, “pela proximidade como rio da Prata ele faz um bom comércio de contrabando entre os portugueses eespanhóis”,4 que, como sabemos, era uma realidade, instigada pelos própriosgovernos durante as “centenárias” guerras pela posse da colónia. A coroa portuguesa considerava o Rio da Prata como a fronteira naturalpara o Brasil meridional. Ainda em 1535, numa carta do embaixador espanhol,na corte portuguesa, para o seu soberano Carlos V, aquele dizia que D. JoãoIII planeava uma expedição ao Rio da Prata, para contrariar a expedição que aEspanha planejava em Sevilha, com o mesmo destino, comandada por PedroMendonça.5 Foi o início de uma prolongada disputa entre os dois povos Ibéricosque levou, por um lado, ao desenvolvimento de Buenos Aires por parte dosespanhóis e da Colónia do Sacramento, em 1680, pelos portugueses. Até aotratado de Santo Ildefonso, em 1777, os portugueses permaneceram na colónia,apesar das várias contendas com os espanhóis, dos vários cercos de que estapraça foi vítima, nomeadamente em 1680, em 1735/37 e em 1761. Com o tratadode Madrid, assinado em 1750, os portugueses tiveram de entregar a Colónia doSacramento; todavia, 11 anos depois, com o Tratado del Prado, a Colónia ficavade novo portuguesa. Mas as disputas não acabaram. A região era muito rica, e3 Ibidem, p. 65.4 Ibidem, p. 66.5 Cf. Beatriz V. Franzen, “A presença portuguesa na Região Palatina”. Arquipélago, Ponta Delgada, 2005/6, v. IX e X, Memoriam a Artur Boavida Madeira, p. 142.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  95nenhuma das nações queria largar mão da prata do potosi que descia o rio e doscouros, que cada vez mais eram exportados para o continente europeu. Durante todo esse processo, e mesmo antes da fundação da Colóniado Sacramento, os portugueses foram-se infiltrando nas regiões espanholas,nomeadamente em Buenos Aires, chegando mesmo, e segundo Beatriz Fransen,a representar 30% da população branca. Nessa cidade, e mesmo em outras(alcançaram Lima no Peru), ocuparam cargos da administração pública ecriaram grandes negócios ligados ao contrabando com a conivência de algunsmercadores espanhóis.6 Daí a importância da Nova Colónia do Sacramento,centro de contrabando de prata e couros e mesmo de escravos,7 que se faziamprotegidos pelas autoridades portuguesas, mesmo pelas mais altas esferas dopróprio rei. Defender toda esta zona, não só Colónia do Sacramento como ado Rio Grande de S. Pedro (mais tarde Rio Grande Sul), era muito importantepara os portugueses e só se conseguiria, verdadeiramente, com uma ocupaçãoefetiva do território, ou seja com uma verdadeira colonização. Essa preocupaçãocom a segurança do sul do Brasil alargava-se a Santa Catarina, uma fronteiraestratégica que, para Romero Magalhães, “era a única forma de contrariar oapetite de espanhóis e franceses”.8 Será, pois, neste contexto, que se poderá integrar a parte do relato deAnson, quando escreve que: “a desculpa do Brigadeiro por não vender os víveresera de que tinha necessidade de guardar viveres para mais de 100 famílias, quedeveriam chegar para reforçar sua colónia”.9 A fixação de casais ilhéus, bem como a presença de contingentesmilitares nos territórios sul-brasileiros, correspondeu à necessidade de garantira projeção da soberania portuguesa nesta região meridional do Brasil, que,citando Damião Rodrigues, se integrava na mais vasta estratégia de colonizara imensa fronteira interior do Brasil.10 A emigração, e mesmo as migrações internas ou externas, caraterizaramtoda a História do império português. Para Russell-Wood:6 Ibidem, p. 144.7 Segundo Alice Canabrava as fraudes registadas noarremate de escravos em Buenos Aires eram recorrentes desde o início do século XVII, ver Canabrava, Alice Piffer, O comércio português no Rio da Prata, Belo Horizonte, Livraria Itatiaia, Editora, Universidade de S. Paulo, 1984, p. 124-125.8 Romero de Magalhães, “As Novas Fronteiras do Brasil”, In: Francisco Bettencourt e Kirti Chaudhuri (Dir.). História da Expansão Portuguesa, Círculo de Leitores, 1998, v. 3, p. 11.9 George Anson, Ob. cit., p. 66.10 José Damião Rodrigues, História Atlânticas: os Açores na primeira modernidade, Ponta Delgada, CHAM, 2012, p. 124.

96  Colóquio NEA 30 anos de História A emigração apresentava a sua própria dinâmica. Não só as motivações, também, a sua importância relativa estavam em constante evolução eninguém escapava à sua influência: nobreza. Clero, comerciantes, artífices, camponeses, assim como os objetivos eram dos mais variados.11 Desde cedo, ou seja, ainda no século XVI, os açorianos estão presentesna expansão portuguesa, embora essa participação ainda seja de índoleparticular, imperando as motivações político-militares e religiosas, nas quais,a maior parte das vezes, permanecia a intenção de regressar. No século XVII,nas saídas de insulanos, ressalta já o destino Brasileiro, prevalecendo não sóas motivações mais ligadas aos ideais da nobreza (novos feitos) e do clero(converter almas, ação missionária), como também propósitos de melhoria devida, sendo a insatisfação com o status a razão que conduziria a uma emigraçãoque já não pensava em regressar. A par dessas saídas individuais, iniciam-sedeslocações coletivas; ou seja, o processo de emigração por grupos, os ditoscasais, de forma a facilitar a adaptação, mas, também, como o propósito denão haver regresso. As famílias fixavam-se e lá iniciavam uma nova vida e asgerações seguintes seriam nascidas em terras brasileiras. Durante a década de1620, algumas fontes apontam para a saída de insulanos para o Maranhão. Porexemplo, Frederic Mauro aponta uma deslocação, em 1628, de 200 agregadosfamiliares dos Açores para o estado do Maranhão e o Rio de Janeiro,12 assimcomo, na segunda metade do mesmo século, os documentos apontam paraa necessidade e interesse de vários casais de Santa Maria, Graciosa, Faial ePico embarcarem para o mesmo destino. Já nos finais da centúria, em 1692,há notícia de 260 açorianos na Ilha de Santa Catarina, chefiados por JoãoFélix Antunes.13 Devido à boa adaptação desses açorianos em Santa Catarina,o Governador Gomes Freire propôs, em 1696, o envio anual de 50 homenssolteiros dos Açores que serviriam na defesa das terras e na procriação commuitas mulheres que lá havia.1411 CF. Russel-Wood, “Fluxos de emigração” Francisco Bettencourt e Kirti Chaudhuri, História da Expansão Portuguesa, Círculo dos Leitores, 1998, v. 1, p. 224-226.12 Frederic Mauro, Le Portugal, le Brésil et L’atlantique au XVII siécle (1570-1670), Étude Économique, 2. ed., Pais, Fundação Caçouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1983, p. 585.13 Osvaldo R. Cabral, “Os Açorianos. Contribuição ao estudo do povoamento e da evolução económica e social de Santa Catarina”, Anais do 1o Congresso de História Catarinense, Florianópolis, Imprensa Oficial, 1950, p. 511; Aires Jácome Correra, “História documental da revolução de 1821 na ilha de S. Miguel para a separação do governo da Capitania Geral da ilha Terceira”. Revista Micaelense, Ano 4, no 1, Ponta Delgada. Março de 1921, p. 949; Artur Madeira, População e emigração nos Açores (1766-1820), Cascais. Patrimonia, 1999, p. 201.14 Cf Artur Boavida Madeira, População e emigração nos Açores (766-1820), Cascais, Patrimónia

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  97 No século XVIII, a procura pelo Brasil aumentou. O Brasil daexploração mineira surgia aos olhos dos açorianos como uma terra prometida,onde era possível atingir a riqueza e mesmo a felicidade. A essa motivaçãosocioeconómica juntava-se o propósito da coroa de consolidação do domínioportuguês no território brasileiro assim como garantir a delimitação das suasfronteiras. Em 1717, 1718 e 1720, o Pico registou uma atividade sísmica e vulcânicade um grau bastante elevado. Em 1718, a violência do fogo foi grande,originando abundantes caudais de lava, que motivaram a destruição de muitoscampos de cultivo e consequentes maus anos agrícolas, originando tempos defome e penúria. Toda essa situação levou a que os poderes locais solicitassemautorização régia para a transferência de sinistrados para a Nova Colónia doSacramento ou para o litoral do Brasil meridional. Assim, foi feito um primeiroalistamento de casais, a quem se pagaria o transporte e na colónia ser-lhes ia dadoalfaias agrícolas, sementes, armas, casas e uma légua de terra. A resposta dosaçorianos ultrapassou as expetativas: trezentos e tantos casais tinham-se inscritovoluntariamente. Também em S. Jorge e na Terceira, muitos casais alistaram-separa a viagem; todavia, a morosidade da burocracia levou a algum desânimo edesencorajamento. A própria coroa tentou travar a emigração mandando fazernovo alistamento, e a lei promulgada em 1720 sustinha a livre circulação entreo reino, ilhas e o Brasil. Todavia, a permeabilidade do sistema permitiria saídasclandestinas quer do reino quer das ilhas. Os rumores de várias desistênciaslevaram a coroa a incumbir os capitães-mores das lajes e S. Roque do Pico defazerem um novo alistamento, que resultou na inscrição de apenas 315 picoensese 194 jorgenses. Perante o fracasso da campanha (o transporte tornava-se muitocaro para tão poucas pessoas), a coroa abandonou o projeto. A questão da emigração só seria novamente abordada em 1727-1729,todavia Luís Mendonça e José Ávila referem uma notícia de chegada a S.Catarina, em 1723, de casais açorianos, pondo a hipótese de terem sido levadosdo Pico para S. Catarina e não para a Colónia do Sacramento.15 Somente na década de 1740 que houve um êxodo importante das ilhaspara o Brasil, o que nos leva novamente ao relato de George Anson, que atribuia escusa de disponibilizar alimentos à esquadra Britânica ao facto de Silva Paes“esperar casais açorianos”. Na verdade, foi graças à ação de Silva Paes, o grandeobreiro da construção da povoação de Rio Grande de S. Pedro e o criador dacapitania de Santa Catarina em 1738, que se iniciou esta nova vaga a partir Editora, 1999, p. 201.15 Luís Mendonça e José Ávila, Emigração Açoriana(séculos XVIII a XX), Lisboa, 2002, p. 55.

98  Colóquio NEA 30 anos de Históriade 1746. Vários são os documentos que mostram o empenho de Silva Paesna vinda de casais açorianos para povoarem a zona a sul do Rio de Janeiro.Era, pois, verosímil que, em 1739, tivesse dado aquela resposta ao comandantebritânico. Todavia, Silva Paes teve de esperar até a 1746, altura em que saiuum edital régio, no qual se convidavam voluntários a partirem para o Brasilem condições muito atrativas. A necessidade de ocupação de Santa Catarina,pressionada pelas negociações do tratado dos limites foi mais forte e pressionoua coroa. Seguiu-se um regimento para regular os transportes das ilhas (Açorese Madeira), assim como as condições para a arrematação desses contratos. Oresultado foi um alistamento de cerca de 8000 indivíduos. Entre 1746 e 1756,inúmeros casais açorianos chegaram a Santa Catarina, aportando na vila deNossa senhora do Desterro. Segundo Avelino de Meneses, de outubro de1747 a novembro de 1753, saíram cerca de 6.000 açorianos, “constituindo emsimultâneo um marco relevante da diáspora açoriana e um meio indispensávelda estruturação dos estados Brasileiros do sul”.16 Silva Paes foi encarregue deescolher “os sítios mais próprios para fundar os lugares, em cada hum dos quaisse estabeleção pouco mais ou menos sessenta casais dos que forem chegando”,devendo o brigadeiro atribuir a cada cabeça de casal “uma porção de terra poronde melhor o mostrar e permitir a comodidade do terreno”17 Na verdade as Vilasfundadas pelos açorianos no litoral catarinense seriam polos de irradiação dopovoamento da região do Rio Grande de São Pedro. Como temos visto, as autoridades insulares insistiram nesta saída decasais para o Brasil meridional, ora invocando sobrepovoamento, ora a misériadas populações, agravadas com as calamidades naturais, nomeadamentesismo-vulcânicas. Todavia concordamos com Avelino Meneses, ao afirmarque, em lugar de solução de um problema dos Açores, a deslocação de famílias para o sertão catarinense significa sobretudo uma diligência de alívio de uma questão ultramarina, em nítida consonância com a hierarquia de prioridades da coroa.1816 Avelino de Meneses, “Os Açores na defesa do Império Luso-Brasileiro – as incidências de meados do século XVIII”, in O papel das ilhas do Atlântico na criação do contemporâneo. Edição germinada do Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo 1999, v. 57, p. 481.17 Luís Meneses, Ob. cit., p. 60.18 Avelino de Meneses, “Os Açores na defesa do Império Luso-Brasileiro – as incidências de meados do século XVIII”, in O papel das ilhas do Atlântico na criação do contemporâneo. Edição germinada do Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo 1999, v. 57, p. 482.

Preservando a herança cultural açoriana em Santa Catarina  99 Se lermos com atenção o edital de 1746, lá estão bem patentes asnecessidades da coroa, pois as preferências eram dadas aos casais jovens, ouseja, em idades reprodutivas, e, para que as arroteias fossem feitas, incentivava-se o transporte de sementes e plantas. Para se alistarem, era mesmo exigidoserem agricultores ou terem um ofício. Os privilégios dados com uma futuraatribuição de terras, gado e alfaias ia no sentido do interesse da coroa pelasarroteias do Brasil meridional, que, por sua vez, correspondia às aspiraçõesdos açorianos, que estavam cansados de cultivar a propriedade alheia,obtendo muitos poucos frutos para isso. Aliás o próprio edital aspirava que osemigrantes açorianos trariam ao Brasil um grande benefício, pois forneceriamcultivadores para as partes vazias dos domínios do estado. Esse aspeto do açoriano lavrador diligente terá influído muito nasdecisões de Silva Paes, assim como, 40 anos mais tarde, nos de D. José Luísde Castro, 2o Conde de Resende e vice-rei do Brasil, que, em 1791, solicitavaà coroa a vinda de ilhéus: “por serem bons soldados e excelentes cultivadores”. O regimento de 5 de agosto de 1747 defendia os principais procedimentosa ter com o transporte desses casais: “Salvaguarda e manutenção da ordemdurante a viagem, segurança das gentes com especial preocupação paraas mulheres e crianças, alimentação e dedicação em exclusivo dos navios àdeslocação das famílias e respetivos pertences”. Quanto aos portos de saída, em setembro de 1747, o corregedor sugerea ancoragem dos transportes em todas as ilhas do grupo central, mas osimperativos técnicos levam à opção pelos portos de Angra e Horta, resoluçãoque acaba por não se praticar, pois a conveniência da centralização das partidasditaram a prioridade na cidade de Angra. Assim eram todos transferidos paraaquela cidade, a expensas da fazenda real.19 As viagens duravam em média três meses e, apesar de o conselho ordenara concentração das saídas nos meses de março e outubro, a verdade é que osassentistas, como Feliciano Velho e Oldenberg e Francisco Sousa Fagundes,preferiam desancorar entre setembro e outubro, porque só na quadra estivalos difíceis ancoradouros açorianos possibilitavam, com maior facilidade, osembarques. Apesar de todas as recomendações, há relatos da sobrelotaçãodas embarcações e da deterioração dos alimentos. Por isso as autoridadescoloniais aludem a desembarques de pessoas em estado de grande debilidade19 Para um aprofundamento sobre o transporte dos insulanos açorianos para Santa Catarina ver: Avelino Freitas de Meneses, “Entre os Açores e o Brasil, em meados do século XVIII. As condições do transporte de casais açorianos para a ilha de Santa Catarina”, in Antigamente era assim. Ensaios de História dos Açores, Ponta Delgada, Publiçor, 2011, p. 451-474.

100  Colóquio NEA 30 anos de Históriafísica. Estudos atuais são unanimes em considerar que a mortalidade duranteas viagens rondava os 6,5%.20 O esforço financeiro constitui o principal embaraço à concretização dasaída das famílias insulanas. Assim, cabia ao Conselho Ultramarino encontraros fundos necessários, nomeadamente através de obtenção de empréstimos aparticulares (por exemplo o Convento Lisboeta de Nossa senhora da Nazaréda Recoleta de S. Bernardo de Mucambo empresta com um juro de 4%), e, aoemprego de réditos fiscais, sobretudo pertencentes ao contrato do tabaco. O contrato do tabaco era, na segunda metade do século XVIII, o maiorcontrato da coroa portuguesa, e a sua ação financeira fez-se sentir em todoo país. Foram eles os maiores credores da Fazenda Real, e, nos Açores, oscontratadores do tabaco tinham uma grande influência e poder sobre o créditoa correr nas praças açorianas, dinamizando um verdadeiro mercado de letrasde câmbio entre o reino e praças estrangeiras. Assim, em 1747, por despachodo conselho ultramarino, mandava-se que se fizesse um crédito sobre ocontratador do tabaco da ilha do Faial, Francisco Silva Carvalho, para que comele se pagassem as despesas necessárias ao transporte dos casais insulanos e quese passasse letra ao tesoureiro da fazenda real. Dessa forma, nessas primeirasviagens e nas que se lhes seguiram, passou a ser usual esse crédito sobre oscontratadores do tabaco, para cobrir as despesas do transporte, sendo mesmoalargadas ao pagamento dos fretes que eram cobrados aos casais que das ilhasGraciosa e S. Jorge vinham até ao Faial para depois embarcarem no navio docontratador.21 Como era prática no Antigo Regime, o envio dos açorianos para o Brasilassentou na arrematação dos contratos de transporte. Esse sistema levava àinterpenetração dos dinheiros públicos com os privados, o que correspondia auma prática corrente no Estado Português de finais de Setecentos. Interessavanão só aos particulares (forma de enriquecer e ascender a uma elite comercial),como ao Estado (introduzia um mínimo de planificação orçamental e garantiaa eficácia de cobrança e fiscalização, assim como desanuviava o Estado deinvestimentos diretos).22 Esse sistema de arrematação, embora a maior partedas vezes acabasse por ser bastante positivo para os arrematantes, a verdade20 Avelino de Meneses, Op. cit., p. 462.21 Margarida Vaz do Rego Machado, “O contrato do tabaco nos finais do Antigo Regime e inícios do Liberalismo: sua importância na economia açoriana”, in Santiago de Luxán (dir.), Política y hacienda en los Imperios Ibérucia (siglos XVII-XIX), Madrid, Altadis, Centros de Estudios y Constitucionales, 2014, p. 170.22 Nuno Luís Madureira, Mercado e Privilégios na Indústria Portuguesa (1750-1834), Lisboa, I.S.C.T.E. 1996, p. 104.


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