Há flores e frutos no colo das ilhas literatura como aporte de aproximação aos Açores Vilca Marlene Merizio ARTE & LIVROS
Há flores e frutos no colo das ilhas: literatura como aporte de aproximação aos Açores •
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Vilca Marlene Merizio Há flores e frutos no colo das ilhas: literatura como aporte de aproximação aos Açores Biblioteca Açoriana ARTE & LIVROS 2020
© 2020 do autor Projeto gráfico, capa e editoração: Paulo Roberto da Silva Revisão: Arte & Livros M563h Merizio, Vilca Marlene Há flores e frutos no colo das ilhas : literatura como aporte de aproximação aos Açores / Vilca Marlene Merizio. 1. ed. – Florianó- polis : Arte & Livros, 2020. 240 p., fotos Inclui referências ISBN 978-65-81814-00-7 1. Literatura açoriana – História e crítica. 2. Poesia açoriana – açorianos – Crítica e interpretação. 5. Açores, Ilhas – História. I. Título. CDU: 869.0(469.9).09 Catalogação na fonte por Onélia Guimarães CRB 14/071 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito do autor. Impresso no Brasil
“Olhar não é só o gesto de pousar os olhos sobre”, diz o poeta açoriano Álamo de Oliveira. Olhar é “sustentar a memória com o encanto e o desencanto – de tudo o que fere e se ferra como tatuagem”. Ler a literatura dos Açores é conceder aos olhos da alma a possibilidade de imersão no imaginário que do enredo escorre e nos alcança. Cada obra é, por si mesma, um caleidoscópio provocador de imagens inumeráveis, onde a ficção e a poesia, se nos deleitam, nem sempre atenuam a dureza do quotidiano ilhéu. Transpassadas para o universo literário, a história real vivida pela gente açoriana alcança foros de luminescência nas mãos de seus poetas e escritores. E é aí que reside o meu maior deslumbramento. Por isso, canto-em-silêncio, componho a sinfonia... e, em total harmonia... SOU!1 1 Joaquim Alice, do poema “Inspiração” (adaptação).
Sou grata à Vida: esta Vida de serviço e silêncios. Que a realização do Agora permita-nos a construção de um porvir recheado de certezas, serenidade e felicidade.
Era final da década de 80 do século passado, talvez 1989, quando Daniel de Sá e outros intelectuais ligados aos Açores organizaram encontros para tratar da Literatura Açoriana no Solar de Lalém, na Maia, Concelho da Ribeira Grande, ilha de São Miguel. Eram muitos os participantes, entre eles, estava eu. Num determinado dia, Zeka Soares fotografou-nos na escadaria do Solar. Nem todos estavam presentes. Hoje, dos fotografados, choramos a perda de muitos deles. Sobra-nos a Poesia, a teoria literária que defendiam, a lembrança do calor das apresentações, as obras que foram se sucedendo e o gosto doce dos serões madrugada a dentro na residência do Daniel, temperados com a amizade da Maria Alice e a complacência dos seus filhos pequenos. Agradeço, comovida, a generosidade do Zeka Soares, que cedeu a foto de capa deste livro, para, além de perenizar aqueles momentos da Maia, hoje servir de motivação a todos quantos se dignem conhecer e estudar as obras que compõem o acervo da Biblioteca Açoriana Prof. António Manoel Bettencourt Machado Pires, do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. A todos os fotografados e aos ausentes no momento da foto, mas que marcaram presença nos Encontros da Maia, no Solar de Lalém, e hoje continuam vivos na Literatura Açoriana, a nossa homenagem.
Capa do livro de José Soares e o Solar de Lalém (Hoje, Solar de Lalém – Manor House – Maia – São Miguel – Azores).
Sumário Apresentação........................................................................................................ 11 Nota da Autora......................................................................................................15 1 Memória da Terra, o último romance de José Martins Garcia...... 19 2 O homem de Corfu, da escritora açoriana Lúcia Costa Melo Simas................................................................................................................31 3 Concha Rousia, a poetisa galega.............................................................49 4 Há flores e frutos no colo das ilhas dos Açores. Um olhar terno à literatura açoriana.....................................................67 5 J. J. Chrys Christello e os Colóquios da Lusofonia: inesgotável contributo para a divulgação da literatura açoriana e a vivificação da língua portuguesa una e dinâmica............................ 83 6 Literatura açoriana: uma paixão.............................................................99 7 Nos caminhos da realização...................................................................115 8 Das raízes à diáspora: perenidade garantida pela arte................. 133 9 A arte que permeia a cultura: Horácio Medeiros, Machado Pires, Fernando Aires................................................................................161 10 David Mourão-Ferreira, o poeta viajor................................................ 175 11 A espiritualidade de Antero de Quental..............................................191 Sobre a autora....................................................................................................247
Apresentação Há flores e frutos no colo das ilhas: literatura como aporte de aproximação aos Açores – o título da obra escrita pela Professora Doutora Vilca Marlene Merizio é um convite ao pensar a gran- diosidade da alma açoriana, tão espalhada pelo mundo ocidental, principalmente, e tão universal quanto o céu que cobre nossos sonhos mesmo quando estando em terras distantes, além-mar! Como exposto na contracapa, o livro brota, assim como as fumarolas da Ilha de São Miguel, como resultado da efervescência intelectual do ambiente recém-criado dentro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), em especial a Biblioteca Açoriana Professor Doutor António Manuel Bettencourt Machado Pires, até este momento a primeira biblioteca especializada em temática açoriana fora das nove ilhas que encantam o Atlântico Norte e que fazem pulsar uma paixão incontida daqueles que possuem algum laço com as idílicas rochas que do mar apontam, carregadas de gente e da emoção maior e mais nobre que a alma pode expressar. Afortunado (e corresponsável involuntário) foi o fotógrafo e jornalista Zeka Soares que registrou em papel brilhante o momento de enlace de poetas e escritores do final do século passado quando em reunião capitaneada por Afonso de Quental e Daniel de Sá, lá no Solar de Lalém, na Maia (Ribeira Grande, ilha de São Miguel). Dentre os presentes lá estava a Doutora Vilca que, no silêncio do tempo e das noites vividas, sem avisar a ninguém, guiando- se tão somente pelo farol de Ponta Delgada que aclarava as águas agitadas do grande oceano, embrenhou-se pelos caminhos traçados pelos demais companheiros marcados naquela fotografia em suas produções poéticas e literárias independentes, extraindo delas o sabor intelectual da magia do destino.
São onze textos analisados e suas essências expostas pela Autora, que hoje coordena a Biblioteca Açoriana do IHGSC, e cuja dinâmica de trabalho vem agregando novos projetos e novos participantes. Todos são exaustivamente “saboreados” pela autora que, incansável, 12 faz repercutir a voz de cada um deles através das ondas que a partir • dos Açores alcançam as bordas continentais das Américas e África, Há flores e frutos no colo das ilhas encontrando eco na gente que descende dos primeiros voos do Açor quando, do alto do mastro da nau, avistava a terra prometida, e ia, de ilha em ilha, acordar a gente insular para então novo voo alçar. Através da essência intelectual de cada um, a autora expressa sua natureza de poeta e escritora do mundo encantado que compõe as ilhas e outras terras distantes formadoras da alma açoriana! O idílico das ilhas se transforma em seara que só a poesia soe expressar – cada ilha um verso, e cada verso um sentimento único que só pode ser alcançado e vivido quando se tem no espírito o registro da paixão incontida dos apaixonados pelo arquipélago encantado! O IHGSC tem a grata satisfação de ter em seu quadro de membros a Professora Doutora Vilca Marlene Merísio, intelectual de respeito que engrandece a Instituição maior da memória catarinense. Florianópolis, março de 2020 Augusto César Zeferino Presidente Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina
Nota da Autora A obra Há flores e frutos no colo das ilhas: literatura como aporte de aproximação aos Açores foi planejada para publicação em dois formatos: livro físico e ebook. Editada pela Arte&Livros (Florianópolis, SC, 2020), com a colaboração de Paulo Roberto da Silva, responsável pelo projeto gráfico, capa e editoração e dos serviços da Gráfica Copiart (Tubarão, SC, 2020), as obras serão lançadas ao público pelo site de Vilca Edições e de outras livrarias digitais e físicas. A capa do presente livro, a mesma que emoldura a capa do ebook, criada por Paulo Roberto da Silva, tem como peça central a fotografia tirada pelo jornalista e escritor Zeka Soares,1 que retrata o momento em que os participantes do II Encontro de Escritores Açorianos posam para a foto oficial do Encontro, na escadaria lateral do Solar de Lalém (Maia, Ilha de S. Miguel, Açores, Portugal), local onde foi realizado o evento, nos dias 1, 2 e 3 de dezembro de 1989. Portanto, uma foto histórica, que deixa para a posteridade o registro da reunião dessas grandes personalidades da literatura e da cultura açoriana, intelectuais que para sempre serão lembrados, para além da sua obra literária (e justamente por isso), como o Grupo da Maia. No corpo deste livro e do ebook, há uma segunda foto, cujas personagens, quase todas, estão na foto anterior (capa desta obra), com o acréscimo da presença de outros intelectuais, pessoas também ligadas ao mundo literário e cultural dos Açores e que não constam do primeiro retrato do grupo. 1 Que, em 2020, por mensagem no Facebook, gentilmente, cedeu os direitos de foto, para a publicação de Há flores e frutos no colo das ilhas: literatura como aporte de aproximação aos Açores.
As duas fotos vêm sendo postadas e compartilhadas fre- quentemente nas redes sociais, em especial no Facebook. O jornalista e escritor Zeka Soares, que deu o clique do registro hoje histórico, 14 compartilhou a primeira foto há alguns anos; depois, o escritor e • professor Doutor Urbano de Bettencourt. Mais tarde, os senhores Dr. Luiz Fagundes Duarte e Dr. Afonso de Quental,2 organizador do Há flores e frutos no colo das ilhas evento (ao lado do escritor Daniel de Sá), postaram mais algumas vezes as fotos, que foram bastante comentadas e compartilhadas por diversos amigos comuns. Em relação à foto da capa deste livro, na página História dos Açores em Imagem-Museu3 – Afonso de Quental e quase uma centena de leitores tecem comentários, inclusive apontando o nome de algumas personalidades fotografadas: Afonso Quental está mais ou menos ao meio. Atrás dele, à sua esquerda, está Maria Alice, porque os encontros eram abertos a quem quisesse aparecer. Ao lado de Maria Alice, à direita, o Victor Rui Dores. Atrás dela, à sua esquerda, a Adelaide [...] À sua esquerda, o João de Melo, da sua terra, Achadinha, e seu amigo de infância – são da mesma idade. Atrás dela, é o Urbano Bettencourt. Os quatro em pé lá em cima são, da esquerda para a direita, o Augusto Gomes, deliciosa personagem terceirense da gastronomia e dos estudos populares, o Afonso Quental, dono do solar [...], o José Manuel Bettencourt da Câmara, musicólogo, da Maia [...]; e o Luiz Fagundes Duarte, actual secretário da Educação e Cultura. Em frente do Luiz está o jornalista António Cabrita. [...] seguindo-se o Fernando Aires, o Eduíno de Jesus, o Vamberto e o Eduardo Mayone Dias, que veio, tal como o Vamberto, da Califórnia. Ao lado de Maria Alice, mas à sua 2 Foto da capa do Volume I – Zeka Soares https://www.facebook.com/photo.php?fbi- d=320014711436721&set=a.201138259991034.35847.197544470350413&type=3&thea- ter Acesso em: 28 nov. 2020. 3 “História dos Açores em Imagem – Museu – 1/3 de Dezembro, 1989, Solar de Lalém, Maia, Ilha de S. Miguel II Encontro de Escritores Açorianos”. Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/photo. p?fbid=320014711436721&se- t=a.197554940349366.35017.197544470350413&type=1&theater Acesso em: 28 nov. 2020.
frente, de cachecol, o Manuel Machado, vindo da Noruega, 15 figura extraordinária. À direita do Vamberto, o Dias de Melo • e depois o Martins Garcia. Na escada da frente, com uma máquina fotográfica, o Carlos Faria, que tem à direita uma Vilca Marlene Merizio senhora brasileira, que estava cá a fazer um doutoramento [...] Vilca Merizio. Sentados lá em cima, o padre Ernesto Borges e o Ermelindo Ávila. E à frente do padre Ernesto, o Vasco Pereira da Costa. À frente do Vasco, o Carlos Cordeiro, historiador, e à frente deste, já calvo, o Reis Leite, historiador [...], então presidente da assembleia regional.4 Pelos comentários à postagem da referida foto e pelas lembranças que ainda conservo, foram identificadas, ainda, as presenças de Mário Moura, Laurindo Cabral, Pedro Miguel Monteiro, Gilberta Rocha, Gabriel-Jorge Costa, Tony Reis Leite, Silva Melo, Maria Isabel Brandão Cochicho e Augusto Gomes. A segunda foto, impressa em preto e branco no corpo deste livro, também foi postada por Luiz Fagundes Duarte.5 Embora eu me lembre perfeitamente do evento e do momento em que foram tiradas as duas fotos, mesmo passados 32 anos, o nome de alguns participantes me fugiu da memória. Contudo, cito aqueles que foram identificados pelos comentários publicados no Facebook: Sentados, da esquerda para a direita: Dias de Melo, Bettencourt da Câmara, Afonso Quental, Vilca Merizio, José Orlando Bretão. Primeira fila, em pé, da esquerda para a direita: Machado Pires, João Manuel Medeiros Aguiar, Eduíno de Jesus, Silva Melo, Adelaide Baptista, Urbano Bettencourt, Victor Rui Dores, (?), Maria Alice, Daniel de Sá, (?), Vamberto Freitas, Onésimo de Almeida, Luiz Fagundes Duarte e Mário Moura. 4 Fonte: Luís Fagundes Duarte, Facebook. 5 Luiz Fagundes Duarte. Gente de escritas várias. Postado em 03 de junho e 2013. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=369 271403174403&set= t.100002332466770&type=3 Acesso: 28 nov. 2020.
Há flores e frutos no colo das ilhasAinda, a partir dos comentários da postagem de 3 de junho de 2013, optei por referir alguns deles, a começar por Mena Cabral: “Grande foto, de grande valor histórico”. 16 Maria Da Conceição Vieira: Grande foto! Grandes figuras! Dr. • Silva Melo, foi meu Chefe de Secretaria (ex-Junta Geral). Acerca dele, as maiores e melhores referências, como ser humano e como profissional. Nunca o esquecerei... Maria Luísa Lopes: O meu ‘grande e ilustre’ professor de Português, Machado Pires. É uma preciosa foto... Urbano Bettencourt: À minha esq. Victor Rui Dores e a seguir creio que Augusto Gomes. Ultima fila, à esquerda, Carlos Faria. À direita do Daniel, a Maria Alice. Atrás do Daniel e à sua direita, Aud Korböl e Manuel Machado. Fila da frente, segunda a contar da direita, Vilca Merizio. Agradeço, sensibilizada, ao jornalista e escritor Zeka Soares, que primeiro me enviou a foto, autorizando-me a usá-la para a capa do livro que no momento eu organizava; ao amigo, escritor e Prof. Doutor Urbano Bettencourt, que também m’a enviou e, em especial, aos senhores Luís Fagundes Duarte e Afonso de Quental, pela oportunidade de voltar àquele tempo em que começava a me sentir parte integrante das Ilhas, através da Literatura e da Cultura Açoria- nas, justamente porque, em mim, desde sempre, vibrou o espírito dos primeiros imigrantes açorianos chegados em Santa Catarina, no século XVIII, e (pelos lados materno e paterno da minha mãe) dos meus antepassados portugueses, cujo sangue orgulhosamente trago nas veias. Bem hajam! Florianópolis, 1 de dezembro de 2020. Vilca Marlene Merizio
1 Memória da Terra, o último romance de José Martins Garcia José Martins Garcia – Biodados José Martins Garcia, nascido a 17 de fevereiro de 1941, na Criação Velha, ilha do Pico, Açores, Portugal, faleceu a 3 de novembro de 2002, em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, também nos Açores, onde passou seus últimos anos de vida. Ainda criança, José Martins Garcia deixou a sua ilha natal e foi para a Horta, ilha do Faial, onde continuou seus estudos. Bom aluno, foi agraciado com uma bolsa da Junta Geral, indo, logo em seguida, para o Liceu Pedro Nunes, Lisboa, onde cursou o 6o e o 7o ano. Mais tarde, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, em Lisboa, tendo sido colega de António M. B. Machado Pires e aluno de Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, Lindley Cintra, Jacinto Prado Coelho, Maria de Lourdes Belchior, todos eminentes doutores da Língua e da Literatura Portuguesa. David Mourão-Ferreira e António M. B. Machado Pires foram seus grandes e especiais amigos por toda a vida. De 1964 a 1965, o poeta e escritor picoense foi professor even- tual no Liceu da Horta, até ser requisitado a cumprir serviço militar, em 1965, tendo sido mobilizado para a Guiné, África, lá permane- cendo de 1966 a 1968, experiência militar da qual nunca se libertou,
haja vista o romance Lugar de Massacre (1975), e o seu modo de ser e de viver, sempre torturado pela famigerada guerra colonial. Foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, de 1969 a 1971. A permanência em Paris deve haver influenciado 20 grandemente a sua linha de pesquisa, quase toda fundamentada • em teorias literárias advindas da França. Voltando a Portugal, foi Há flores e frutos no colo das ilhas professor na Faculdade de Letras de Lisboa, de 1971 e 1979. Depois disso, transferiu-se para os Estados Unidos, exercendo o cargo de professor visitante da Brown University (Providence), em Providence, Rhode Island. Lá escreveu Imitação da morte e o livro de poemas Temporal. Voltou aos Açores em 1984, época em que ingressou na Universidade dos Açores, da qual foi docente até a aposentadoria, em 1o de outubro de 2001. Naquela instituição de ensino superior, começou como profes- sor auxiliar convidado, regendo a cadeira de Introdução aos Estudos Linguísticos. Em 1985, obteve o grau de doutor com a tese “Fernando Pessoa: coração despedaçado”, que já trazia escrita desde os Estados Unidos, tendo sido aprovado com distinção e louvor. De 1985 a 1987, rege a cadeira de Teoria da Literatura, organiza e introduz a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas nos planos curriculares das licenciaturas em Línguas e Literaturas Modernas. Em 1987, nomeado professor associado da Universidade dos Açores; em outubro do mesmo ano, começou a orientar a preparação da tese de doutorado da Licenciada Vilca Marlene Merizio (Vieira), brasileira, defendida em 17 de outubro de 1992, sobre a “obra narrativa de David Mourão Ferreira”, tendo a mesma sido aprovada “por unanimidade, com louvor e distinção”. Também orientou a tese de doutoramento da Licenciada Fátima Borges sobre a obra literária de Almada Negreiros. De 1989/90, ainda na mesma universidade, rege as cadeiras de Teoria da Literatura, continua a lecionar Literatura e Cultura Açorianas e a orientar as teses acima mencionadas.
Em 1991, presta provas de Agregação com o trabalho 21 “Conhecimento de Poesia” na poesia de Vitorino Nemésio. Em • 1994, por nomeação, passa a ser professor catedrático da mesma universidade e continua ministrando aulas ao nível de licenciatura Vilca Marlene Merizio de vários mestrados em Literatura e Cultura Açorianas. Ocupou, ainda naquela universidade, os cargos de Vice-Reitor (1991/92) e de co-diretor e de diretor da revista Arquipélago-Línguas e Literaturas (1986/96). Sua vocação para a escrita está atestada pelo Prof. Machado Pires quando refere que “Desde a escola primária [...] Garcia admirava a escrita. [...] Martins Garcia tinha não só o ‘culto’ da escrita [...], mas também o gosto pela conversa sobre a matéria literária e de crítica literária”. Em suma, José Martins Garcia era um “intelectual em estado puro”, como dizia Nemésio: “[aquele] que se refugia no luminoso percurso espiritual das ideias e das palavras, com o alheamento total dos prazeres ‘terrenos’ das máquinas e das tecnologias, que não sabe mexer em aparelhos, não tem carta de condução, não se importa com inventos e últimos modelos do que quer que seja.”1 Na área jornalística, colaborou no suplemento Letras e Artes do jornal República (1972/74), cujas críticas e ensaios foram reunidos por ele em Linguagem e Criação (1973), bem como as Crónicas de Katafaraum é uma nação (1974). Entre 1973 e 1974, exerceu a crítica literária da Vida Mundial; colaborou em A Capital e no Diário de Notícias. Em fevereiro de 1976, passou a ser diretor-adjunto do Jornal Novo. Colaborou, na década de 70 do Se1culo XX, nas “Edições Afrodite”, publicando Alecrim, alecrim aos molhos (1974), Lugar de Massacre (1975), A fome (1977) e Revolucionários e Querubins (1977). Escreveu introduções, prefácios e posfácio, recensões críticas, artigos e comentários , organizou antologias, traduziu obras 1 António Machado Pires, JOSÉ MARTINS GARCIA: um ‘intelectual em estado puro’. In: Arquipélago. Línguas e Literaturas. Vol. XVII. Universidade dos Açores, 2001/04. p. 171/177.
relevantes, ministrou aulas, proferiu comunicações e palestras e foi orientador de teses. Colaborou em Revistas, Jornais, Suplementos Culturais e Publicações Coletivas. 22 Urbano Bettencourt, atualmente um dos mais atuantes e • expressivos escritores do Arquipélago dos Açores, defendeu sua Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses, em Ponta Delgada Há flores e frutos no colo das ilhas (Universidade dos Açores, 2013) sobre a obra de José Martins Garcia, com o título “Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia”, mais tarde transformada em livro. José Marins Garcia publicou em volume, de 1969 a 1999, 30 obras de cunho literário, incluindo poesia, contos, romances, ensaios e teatro. Eis a listagem de primeira edição das suas obras: Poesia: Feldegato Cantabile (1973), Invocação a um Poeta e Outros Poemas (1984), Temporal (1986), No Crescer dos Dias (1996). Conto: Katafaraum é uma nação (1974), Alecrim, Alecrim aos Molhos (1974), Revolucionários e Querubins (1977), Receitas para fritar a Humanidade (1978), Morrer Devagar (1979), Contos Infernais (1987), Katafaraum ressurrecto (1992). Romance: Lugar de Massacre ( 1991), A Fome (1978), O Medo (1982), Imitação da Morte (1982), Contrabando Original ( 1987), Memória da Terra (1990). Teatro: Tragédia Exacta (1975), Domiciano (1987). Ensaio e Crítica: Linguagem e Criação (1973), Cultura, Política e Informação (1976), Vitorino Nemésio. A Obra e o Homem (1978), David Mourão-Ferreira. A Obra e o Homem (1980). Temas Nemesianos (1981). Fernando Pessoa: “Coração Despedaçado” (1985), David Mourão-Ferreira/Narrador (1987), Para uma Literatura Açoriana (1987), Vitorino Nemésio à Luz do Verbo ( 1978), Exercício da Crítica (1995), (Quase) Teóricos e Malditos (1999). Depois do falecimento de José Martins Garcia, a Universidade dos Açores dedicou-lhe o volume XVII da Revista Arquipélago Línguas
e Literaturas, 2001/04,2 em sua homenagem. F. J. Vieira Pimentel, 23 diretor da revista, assim se expressou: “Homenagear Martins Garcia • – nome que os vindoiros guardarão – numa revista universitária é um acto da mais elementar justiça”. E mais adiante: “À homenagem Vilca Marlene Merizio institucional devida ao scholar eminente, que este número regista in memoriam, queremos juntar ainda a nossa própria, esta mais íntima e comovida, ao Amigo e Colega tão prematuramente desaparecido.” A Editora e Livraria Companhia das Ilhas, da ilha do Pico, está reeditando as obras principais de José Martins Garcia. Do romance Memória da Terra, cuja primeira edição é de 1990, tive a elevada honra de ser convidada a escrever o Prefácio da edição de 2018, cuja cópia transcrevo a seguir. 2 Recomendo a leitura do site https://www.wook.pt/autor/jose-martins-garcia/2217 e Companhia das Ilhas: http://companhiadasilhas.pt/books/memoria-da-terra/.
Há flores e frutos no colo das ilhas24 • Foto do cartaz de divulgação das obras de JMG http://www.culturacores.azores.gov.pt/agenda/default.aspx?id=10232. Prefácio ao romance Memória da Terra, 20183 José Martins Garcia, hábil observador e exímio burilador da palavra, possuía afável ternura no ensinar e no conviver com pessoas que lhe fossem simpáticas, mas exibia total aversão ao contato com aqueles a quem não admirasse. Assim, na sua produção literária como na vida, parecia haver imensurável distância entre os que amava e os que desprezava. E é nesse contexto de amor escasso e ironia assumida que, no meu entendimento, situa-se Memória da Terra, romance originalmente publicado em 1990. Sob o formato de apontamentos diarísticos, cronologicamente sequenciados, Memória da Terra instala-se no recorte temporal estabelecido entre os anos 56 e 57 do século passado, num período 3 In: GARCIA, José Martins Garcia. Memória da Terra. Obras. Prefácio de Vilca Marlene Merizio. Açores: Companhia das Ilhas: outubro 2018. 236 p. Ver companhiadasilhas. pt./ books/memoria-da-terra-portuguese
circunscrito de nove meses. A voz do narrador autodiegético faz-se 25 presente ao longo de 43 sessões de escrita, onde falas, acontecimentos, • pensamentos e recordações se encadeiam. Vilca Marlene Merizio Dentre hostilidades familiares e sociais, o romance constitui-se como referência crítica a uma sociedade insular crivada de discri- minações e preconceitos, onde a instabilidade dos afetos ganha contorno abrangente e significativo. A narrativa, fundada no impro- vável e no duvidoso, apresenta um universo imaginário em cujo cenário se cristalizaram presonagens que representam os que não acompanharam o progresso sociocultural e a evolução do mundo capitalista e arrogante que se fortalecia nos grandes continentes do hemisfério norte em meados do século XX. O enredo se estende numa tranquila verossimilhança até alcançar um ponto quando a trama parece desarticular-se, mais parecendo um estratagema teórico de quem quer ver acabada a obra, muito às pressas, com os relatos se atropelando como se fossem fractais de um tempo a se esgotar em cansaço e chateação por parte de quem os vinha criando com lucidez e vontade. Tudo a indicar aceleramento no acabamento da obra que passa a ser apenas projeto de possibilidade de existência como entidade literária. O fio que orienta a narrativa de Memória da Terra parte do relato de um continental de 26 anos que chega à ilha à procura do irmão mais velho. Através das informações sobre esse irmão, a obra cresce, principalmente em razão da ausência física do ente procurado, em tudo a personalizar mais um duplo do que propriamente uma personagem identificável pelo que dizem dele, faz, fez ou é. O protagonista rodopia sobre si mesmo, só evoluindo na trama pelas falas das personagens que dão pistas para a continuação das buscas ao irmão desaparecido, cujas indicações marcam as pegadas que logo são seguidas. Essa personagem masculina se assume também como um ser vil e mentiroso, fraco demais para arcar com os louros da heroicidade presumida num “romance de enigmas”, como diria Aguiar e Silva. Sua voz mansa e sorrateira se interpõe na narrativa
com aforismos de uma filosofia chã, parentizações frequentes – explicativas ou maliciosas –, arremedos de última hora, piadinhas... Tudo a desembocar num estilo sarcasticamente irônico em relação aos relacionamentos amorosos e afazeres sociais. As palavras ocultam 26 a transparência das imagens. Só mesmo o olhar curioso e estupefato • do leitor as atravessa e compreende... E, se não fosse assim, não seria Há flores e frutos no colo das ilhas mesmo Memória da Terra criação de José Martins Garcia. O leitor provavelmente sentir-se-á estranho, tal é o jogo de maledicências, insinuações, agressividades, antipatias, ironias, des- confianças, oposições e contradições que atravessam a diegese desde as primeiras páginas, carregadas mais de relatos de que diálogos, quando aparece a luz que vai dar vida ao romance: Judite. E daí para frente, a narrativa ganha direção, relevo e nova luminosidade. A história dobra-se sobre si mesma com ar de renovo e presunção de efusivos encontros e reencontros. As analepses começam a ocorrer com mais frequência e ousadia; o primeiro caso de sexualidade juvenil é reprisado pelo inconsciente enfraquecido pela repetitiva lembrança de um passado que não fez história e por um presente que não se completa, porque mais constituído de ausências do que de presença efetiva. O já muito combalido coração do jovem narrador/ protagonista vê-se, então, à rasca com um sentimento novíssimo a lhe borbulhar no peito: o amor por Judite. O que intriga desde as primeiras páginas de Memória da Terra é que não há clara manifestação de afeto entre as personagens sem que uma porção de interesse macule as relações. O domínio impera onde o desejo carnal aflora: e isso não é suficientemente forte para enlaçar para sempre a vida daquelas pessoas que procuram a felicidade, cada uma à sua maneira. E o protagonista, que vivencia nova sensação amorosa, sucumbe diante da postura desafiadora de quem aporta outra visão: Judite, a alma do romance. E o amor, entre delícias e exigências, instala-se, a contragosto dela e a gosto intenso dele: “E, então senti amar-te em perdição, contra todas as evidências, contra toda a clareza, contra a própria
razão”, diz o protagonista a Judite, o que não foi suficientemente forte 27 para gerar entre eles um clima de paz. Tangenciada pelo amor, Judite • manteve-se no que acreditava ser amor próprio e respeito pela sua feminilidade. Não era ela nascida em ano bissexto? Não era formada Vilca Marlene Merizio em psicologia quando as mulheres, quase todas, eram do lar? Não vinha ela dos Estados Unidos, uma das duas maiores potências mundiais da época? Mas... Nada disso me parece justificar a sua arrogância, ironia e superioridade em relação ao homem que a ama. É só nas páginas finais que se vai saber o que significa, para o amante, um “quando”, três vezes assinalado como “doença”, ao invés de traduzir o instante do encantamento, o começo sem continuidade, a emoção que, sem cartilhas a ser seguida, não garante a reciprocidade por parte de Judite. Amor tentáculo, sem vínculos; e para a junção não basta a paixão... Tem de haver envolvimento, entrega, comunhão. O amor unilateral não vigora, e o querer sem resposta se substancializa em rejeição, guarda a dor, repete-a, traz de volta, alucina. Então, tudo é inútil. Judite existe fora de todas as possibilidades. Assim, o romance, o destino da narrativa cronologicamente registrada e que se vem acompanhando, beira à tragédia: o narrador/ protagonista, supostamente o escritor, abdica da sua função e tende a confiar os cadernos manuscritos para um desconhecido. E a dúvida persiste: entregará? “Um rasto, para quê?... Como não ter existido... Como não ter existido...”. Engodo? Ou mais uma estratégia lucidamente criada e manipulada por um mestre no assunto? E é nessa altura que o narrador repete e afiança que o antagonista pode “não ter existido”, dúvida que oscila entre a imanência da obra a crescer e a sua factual permanência como obra de arte literária. E o conjunto de incertezas que já vinha sendo sutilmente semeado desde o primeiro parágrafo do romance – dúvida, desconfiança e ironia – é reforçado pela construção/desconstrução das personagens. Então, para melhor apreciar a leitura de Memória da Terra, há que se estar atento ao microcosmo tendencioso das paixões que se alojam nas palavras não ditas, na verdade escamoteada e na encenação dos
actantes, tudo em benefício da própria engenharia literária da qual o autor se valeu. Desfila ainda em Memória da Terra, uma galeria de diferentes caráteres de gente pouco confiável, confusa, que falta à verdade e 28 foge aos compromissos, representando profissões constituídas, do • bilbliotecário ao motorista de táxi; da prostituta à dona de casa. Há flores e frutos no colo das ilhas Entre eles, o que parece ter mais autoridade e comando de voz é o valentão, o inescrupuloso, o que aparenta e aparece mais, e outros que, portando um título antes do nome, mais desafiam a ética, em nome de uma moralidade arcaica, desafiadora dos ventos novos da transformação política e social que se avizinhava. E no prosseguir da leitura, cada vez mais, enredamo-nos nós, leitores comprometidos com o avanço do discurso diegético, na “floresta de enganos” que se abate sobre a ilha – impossível não a imaginar triste e bela. Seus habitantes, se não a maioria, mas pelo menos os viventes focados pela ótica do protagonista/narrador, aceitam os padrões vigentes, talvez pressionados pelo isolamento que compartilham, ou porque (inocentes) sentem-se fatalmente presos a ideários retrógados de dominação e miséria. Enfim, Memória da Terra é dedo na ferida; é denúncia; é documento, mesmo sendo ficção a refletir uma realidade passível de existência. “Sou memória dum mundo que me invade,/ Sou espaço que o ar prensa e divide” (no Crescer dos Dias, 1996, p. 51), confessaria o poeta José Martins Garcia, seis anos após a publicação de Memória da Terra, no que, acredito, ser o registro poético do fechamento do ciclo amoroso, e frustrado, vivido por Judite e o quase anônimo João Manoel Santos Paiva, o Rapa-Tacho. Para Judite, a inquietante dúvida que a levava a desconfiar do homem que a pedira em casamento: “Será que te julgas o único a ser dotado de memória?” (1990, p. 235). No centro, a questão do entendimento mútuo, de comunicação efetiva entre dois (meio) estrangeiros. Julgavam-se ambos dignos de respeito quanto às suas memórias? Uma, a memória fecunda, criativa; outra, a memória
vazia, escassa porque não é a nossa e não a podemos medir. Memórias 29 não consagradas, que ferem e matam. Que nada são, porque nada • possuem e do nada se alimentam. A memória racional, objetiva, terra a terra dos homens; por isso, a síntese do título que encabeça a Vilca Marlene Merizio obra: Memória da Terra. Terra aqui percebida como espaço do homem consciente, rasteiro, fustigado pelas forças malévolas do cotidiano sempre em conflito, do desejo não satisfeito e da sublimação nunca alcançada. Uma terra minguada tal qual a arena em que se digladiam as personagens do romance em sua vida pífia de condenados pela própria condição. Ilha/terra estéril e doente em oposição à costumeira simbologia de criação, fertilidade, feminilidade e regeneração energética da Ilha/ Mater, da Mãe-Terra, cujo caráter doce e firme permanece para sempre limpo e intocável como a “flor de terra” sugerida por Nemésio em Varanda de Pilatos, embora continue sendo bruma e isolamento para tantos poetas nascidos em seu chão. Memória da Terra é para os fortes. Para os que têm os olhos da compreensão dirigidos ao passado e de lá voltam, soerguidos, com a percepção e a vontade renovadas. Sua leitura abrange, mesmo que tacitamente, reflexão sobre a miséria que ainda aflige o presente das comunidades fechadas, ilhas soterradas pela falta de humanidade onde o abuso de menores e de vulneráveis, incesto, preconceito, discriminação, mentira, violência, ódio e desamor continuam sendo – e que bom! – matéria para a ficção crítica e denunciativa. Por isso, se o romance Memória da Terra puder ser contabilizado entre as obras que despertam a humanidade para os valores essenciais de convivência ética global, o autor cumpriu-se e, com ele, toda a Literatura dos Açores.
2 O homem de Corfu,4 da escritora açoriana Lúcia Costa Melo Simas Disponível em: www.chiadoeditora.com/autores/lucia-costa-melo-simas. 4 O homem de Corfu – texto escrito pela autora a partir da Apresentação do livro O homem de Corfu em seu lançamento, no dia 13 de outubro de 2016, no Centro de Cultura de Ponta Delgada, Açores, Portugal.
É com imensa satisfação que me dirijo aos presentes e, muito especialmente, à escritora Lúcia Costa Melo Simas, cumprimentando-a pela excelente qualidade de sua produção literária, onde poesia e narrativa constituem universo privilegiado de criação ao lado de 32 ensaios nos campos da filosofia, educação, cultura e religião, entre • outras ciências do espírito. Há flores e frutos no colo das ilhas Lúcia, nascida Maria Lúcia Coelho Costa Melo (1942), é natural de Vila Franca do Campo, ilha de São Miguel, Açores. Casada, acrescentou ao seu já extenso nome de batismo o sobrenome do esposo Teixeira de Simas. Hoje, o nome que encabeça seus livros é Lúcia Costa Melo Simas. Licenciou-se em Filosofia. Foi agraciada com o 1o Prémio Jogos Florais da Ribeira Grande, promovido pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada. Pessoalmente, conhecemo-nos há poucos dias, no entanto, possuo vasto material de sua lavra, levado ao Brasil por um amigo comum, e um outro tanto resultado da minha pesquisa pela internet. No meu primeiro contato com sua obra, ao folhear as páginas dos seus dois livros de poesia, surpreendi-me ao constatar que nosso caminho, aqui na ilha de São Miguel, durante as três últimas décadas, correram paralelamente sem, contudo, nunca nos termos cruzado; admiração maior ainda porque ambas, Lúcia e eu, nas décadas de oitenta e noventa do século passado, desfrutávamos do convívio de quatro (grandes) amigos: o escritor Rui Galvão de Carvalho e os professores, também escritores, Doutores José de Almeida Pavão, António Manoel Bettencourt Machado Pires e Maria da Conceição Vilhena. Às vezes, ainda me pergunto como passei pelas publicações de Lúcia sem ter lido ou, pelo menos, retido na memória, textos de sua autoria, já que colaborou em diversos meios de comunicação social, desde o Semanário A Vila (Folhas Soltas), aos jornais A Ilha, Correio dos Açores, Diário dos Açores e Açoriano Oriental, com crônicas sob a rubrica “Escritos Irracionais”, conforme hoje tenho conhecimento.
Bem, na tentativa de citar sucintamente os dados biográficos de 33 Lúcia Costa Melo Simas, opto pela sua atuação profissional vivenciada • em Ponta Delgada, onde foi professora no Liceu, na Escola Superior de Enfermagem e na Escola Superior de Educação do Magistério Vilca Marlene Merizio Primário, lecionando as disciplinas de História da Educação, Pedagogia, Psicopedagogia, Filosofia e Psicologia. Só por isso, já se vê que Lúcia é pessoa de abrangente conhecimento intelectual, o que pode ser facilmente confirmado pela leitura e apreciação de algumas de suas crônicas e ensaios também veiculados pela Internet.5 Outro exemplo é a página eletrônica Gentes, bichos e escritos, cujo acesso se dá pelo comando http://www.ulisses.us/menu-exer- poe-luciamelo.html,6 com imagens que magnificamente ilustram os textos e em cuja portada o professor e amigo Levi António Malho, também responsável pelo arranjo gráfico e colaboração na concepção da página, apresenta o seguinte parecer a respeito da autora: De há décadas nos conhecemos. Da cidade de granito e da ilha no meio do mar. Tantos anos passaram, que não o mais importante, o Tempo, a proximidade por cima da distância, a sensação daquilo que passa ser tão grande do que aquilo que fica. Acho que é uma escritora. Mas quem sou eu para o dizer. Só antigo professor e amigo sempre.7 Bem, eu, pelo entendimento que tenho sobre o que é ser escritor,8 garanto que Lúcia Costa Melo Simas é uma escritora atuante, principalmente se se levar em conta as quase duas centenas 5 Como, por exemplo, o site “Jardim de Epicuro”. Sobre Filosofia e o que mais se verá..., de responsabilidade do professor Levi António Malho, página, destinada “aos que procuram na Filosofia um local de repouso face às turbulências que, ciclicamente, a todos nos visitam!”, espaço virtual utilizado para apoiar estudantes de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na disciplina de Cosmologia. 6 Cujo endereço eletrônico é: http://www.ulisses.us/lucia. 7 Disponível em: http://www.ulisses.us/. Acesso em: 12 set. 2012. 8 Segundo Dicionário Eletrônico Houaiss: escritor é aquele que escreve; autor de obras literárias, culturais, científicas etc., especialmente o ficcionista.
de textos de caráter filosófico, educacional, ético, religioso, histórico e outros a que tive acesso, todos enriquecidos com significativas e bem integradas imagens e fotos que permitem, além da visualização, maior possibilidade de interpretação e/ou compreensão do con- 34 teúdo exposto. E, pelas informações que a mim chegaram, as quais • agora pude comprovar, Lúcia guarda um acervo de mais de dois Há flores e frutos no colo das ilhas milhares de textos que esperam a vez de serem partilhados com o público. Dos seus três livros de poesia (1) Longe é... Aqui,9 (2) Rota Sibilina10 e (3) No Céu como na Terra, tive a oportunidade, ainda no Brasil, de ler os dois primeiros. Fantásticos! Para a Profa Doutora Maria da Conceição Vilhena, que o prefaciou, Rota Sibilina [...] é um tocar nas almas adormecidas, despertando-as para uma meditação sobre a vida, meditação oculta na metáfora... [...] Num deambular da alma dentro de si mesma, L.C.M. inventa e renova, com espírito alegórico, descobrindo-se barco perdido no mar e naufragado [...] [...] misticismo a querer aprofundar o mundo desconhecido; ou, mais que aprofundar, atingi-lo e nele se fundir, num ir sem regresso [...]. Trinta e dois anos depois de haver publicado os três livros citados, em 2016, escreveu O homem de Corfu, prosa literária em forma de narrativa ficcional de tendência filosófica, onde se encadeiam fatos históricos e míticos, ao lado de dados e atos relevantes, relacionados à fé, à arte e aos costumes, agora atualizados numa perspectiva contemporânea, livro que tenho o prazer imenso de lhes apresentar, não sem antes fazer breve referência ao texto “Persistência dos Enigmas. Uma meditação sobre Razão e Intuição” 9 1979, 70 páginas. 10 Coleção Açorense, Série Criação Literária; 1984, 115 p.
(2016),11 que a mim parece ter sido concebido antes, ou, talvez, 35 concomitante à obra em questão. • Mais para frente, farei rápido retorno à poesia de Rota Sibilina e Vilca Marlene Merizio Longe... É Aqui, poemas que também parecem ter preparado caminho para este O homem de Corfu, que surge como o resultado de um projeto de vida, propósito cujo fim foi conseguido; dizendo de outra forma, O homem de Corfu alcança o clímax de toda uma utopia cujo fio motriz alcançou o cais da realidade: o homem de Corfu existe, quer como personagem fictício, quer como sonho realizado. Não é só a arte imitando a vida, mas a vida acolhendo a arte. Como disse Galeano: “Histórias permitem transformar o passado em presente e o distante em algo próximo, possível, visível”, real. E assim é O homem de Corfu. Mas, voltemos aos primeiros livros de poesia de Lúcia, quando, iniciado o périplo literário, a autora, de uma consciência inquieta e investigativa, de olhar insatisfeito pelo que sentia e via, começava a traçar o mapa da sua procura idealizada por um ser humano capaz de manifestar-se como usuário do poder teoricamente considerado supremo pelos que acreditam na pureza do querer e do usufruir sem exigir nada em troca. Seria a manifestação do fenômeno a que os filósofos conceituam como époché:12 instante em que a subjetividade eclipsa a objetividade, quando, a partir de um comportamento normal, a pessoa altera sua atitude, sem qualquer explicação ou justificativa aparente. Esse colocar o mundo real, objetivo, “entre parênteses”, como ensinava Husserl (1991, p. 104) e Lúcia nos explica, não nos põe ante um “nada”, mas faz surgir um 11 Disponível em: http://www.ulisses.us/lucia-176-luz-no-caos.htm. Acesso em: 12 set. 2016. 12 “Pode ser dito também que a epoché é o método universal e radical, pelo qual me concebo como eu puro” (1973b, p. 60). Assevera Soren Kierkegaard (1973a, p. 18-19). “Com o despertar da reflexão sobre a relação entre o conhecimento e o objeto, abrem-se obstáculos abissais. O conhecimento, a coisa mais óbvia no pensamento natural, aparece de repente como um mistério”.
TUDO, um todo transcendental,13 quando a consciência mergulha num estado em que perde a aderência com o universo objetivo. Segundo o que penso, digo que é como se entrássemos numa nova dimensão, de caráter transcendental desconhecido para quem 36 assiste. • Lúcia, na segunda parte de O homem de Corfu, narra com Há flores e frutos no colo das ilhas fluidez e poesia o passo em que a personagem masculina consegue esvaziar-se de tudo mesmo estando a tudo conectada, sem qualquer juízo, deixando-se apenas ser...14 E aqui ressalto a realização de dois fenômenos: (1) da autora, satisfação por encontrar a personagem ideal (que tem apenas três falas na narrativa) e (2) do próprio ser de papel/personagem que encontra o suposto espaço dimensional de plena felicidade. Assim, acontece para os dois sujeitos: para a autora, no nível histórico, e, para o personagem, em nível literário: o homem, aqui representado pelo homem de Corfu,15 despojado de todos os interesses pessoais e mundanos, descobre o seu lugar no mundo e funda o seu lar (Teria ele (re)conhecido Nausícaa?).16 13 Uma epoché transcendental pode de forma decisiva ser concebida como uma “alteração total da atitude natural da vida” (p. 168), pois ela destrói as crenças dos homens da existência natural que acreditam na objetividade natural do mundo, e suas ciências supostamente objetivas articuladas em um ser-dado-por-antecipação deste mesmo mundo, esclarece ainda Husserl (1991, p. 100). 14 A epoché, sobretudo a redução transcendental, parece mergulhar a consciência num estado onde, de uma certa maneira, perdemos a aderência com o mundo real. (Ver E. HUSSERL, A crise da humanidade europeia e a filosofia. Porto Alegre; EDIPUCRS, 2008). 15 Sobre a ilha grega Corfu, veja http://oglobo.globo.com/boa-viagem/corfu-uma-ilha- que-combina-historias-paisagens-epicas-no-litoral-da-grecia-13882257. Acesso em: 17 set. 2016. É uma ilha mítica. Na “Odisseia”, de Homero, ela foi a última parada de Ulisses antes de chegar à sua terra natal, Ítaca. Com paisagens belíssimas, sua marca registrada é uma pedra verde no meio do mar e o Mosteiro de Vlacherena, em Pontikonisi (Ilha dos Ratos, em grego), na lagoa de Halkiopoulos. As duas atrações podem ser apreciadas na vila de Kanoni. Leia mais sobre esse assunto em: http://oglobo.globo.com/boa- viagem/corfu-uma-ilha-que-combina-historias-paisagens-epicas-no-litoral-da-grecia- 13882257#ixzz4KY8emGPE. 16 E aqui me apetece recordar David Mourão-Ferreira em seu poema “Ulisses a Nausícaa”, em “Infinito Pessoal (1959-1962)”, in Obra Poética:1948-1988 (Lisboa, Editorial Presença. 1988, p. 168): Não tinha sido fábula a saudade/ de estar ao pé de mim sem estar comigo:
Mas, fiquemos, ainda, nessa transição entre o pessimismo de 37 Rota Sibilina e o conteúdo libertário de O homem de Corfu, eu até • diria, conteúdo de paz, repouso e descobertas interiores, onde o encontro com o nosso centro de poder consciencial acontece, sem Vilca Marlene Merizio rupturas, sem estardalhaço, sem bandas tocando... Simplesmente acontece... normalzinho, com serenidade, com adequação, com fé e amorosidade. Consolo depois de tantas andanças infrutíferas, tanto amargor no coração expresso por esse eu lírico que, de tanto querer ficar pelas encruzilhadas da vida, de “asas brancas cortadas”, sente- se apenas moldura quando já se sabia que era “tela a ser amada”. No poema “Não tenho Asas”: “por não querer mais voar nem mais viajar”, iludia-se a voz do poema com os ares malfazejos da estagnação “Ser sempre o penedo, embora de negro/ Preferi amar e a ser um rochedo”, embora, a autora histórica a isso não permitisse, ultrapassando toda a era do pessimismo poético, levando sua obra adiante para o caminho da realização pessoal. No poema que vem logo a seguir a esse de “Não tenho Asas”, “Balada para uma sereia morta”, a cena que se destaca também é negativa: uma sereiazinha, triste, magoada, morre de amor pelo marinheiro que a não a percebeu: Esta noite! Esta noite!... [...] Desesperadamente, cantou uma sereia Por negros rochedos, cheios de bruxedos [...] Mas ninguém... ninguém a quis escutar! – Ah!, marinheiro, de barco sem Norte vejo-te agora em água, areia, carne, e és o vulto no sonho pressentido/// Cheiro de rocha a que não chega o mar, por mais que o mar invente marés vivas.../ Reconheço-te ó palma tão sem par:/ és a graça da terra ao céu erguida.// Pisas, ao caminhar, o próprio vento,/ que se embuçou no manto de uma duna.../ Desfazes sob os pés os grãos do tempo,// por do Tempo não teres noção nenhuma... De que me serve ter vencido sempre, se aqui me vence a tua juventude?
Por que não paraste, porque não te deixaste Por ela enfeitiçar?... Esta noite!, esta noite!... 38 De canto magoado, desfez-se em água, em névoa • Em bruma, a alma duma sereiazinha… Tão pequenina, tão pobre, e sozinha... Há flores e frutos no colo das ilhas E o coração, já morto e desfeito, da pobre sereia Pela maré-cheia veio rolar na praia Só, para enterrar… Esta noite!, esta noite!... Morreu uma sereia! De tanto cantar… – Ah!, marinheiro de tão negra sorte Quem te há-de, um dia… Perdoar?... Esta noite!, esta noite!... Em Rota Sibilina, a voz que cantava, apesar do desânimo, era “capaz de proclamar que padecer ainda vale a pena a ‘quem sabe/ voar”, o que vem corroborar o que, em outro local, Edgar Allan Poe afirmou: “A Beleza é a mais alta elevação da alma, enquanto que a tristeza é o mais alto tom da Beleza”.17 Estava assim, Lúcia destinada a continuar o seu curso filosófico-literário, já que, desde muito nova, demonstrava que fora “talhada” para isso, usando mais uma vez a expressão de Paul Ricoeur. Maria da Conceição Vilhena, ao apresentar Rota Sibilina, diz: [...] uma voz vocacionada para cantar os conflitos internos [...] uma voz carregada de ternura triste e solitária, de serena revolta, mais de apelo do que de reivindicação... resultado de uma experiência tornada sabedoria angustiante, ao serviço da imaginação que ‘segura o sonho/ e mata a razão’. Cântico de dor, que se eleva em sonho, na procura de um ‘longe’. 17 Apud AGUIAR E SILVA, VICTOR MANUEL. Teoria Literária. 7. ed. Coimbra: Almedina, 1986, p. 193.
Longe... esse longe, desde 1979, era insistentemente procurado, 39 como bem comprovam os poemas “Ítaca é aqui” e “Eu, Ilha, me • confesso”, do livro Longe... É aqui, cuja Apresentação é assinada pelo Prof. e escritor Ruy Galvão de Carvalho, que atesta: Vilca Marlene Merizio Estamos, com efeito, em presença de quem, mergulhada no sonho e naquela solidão que Rilke considerava necessária ao poeta – sente pensando e pensa sentindo –, claro numa linha de um Antero e de um Fernando Pessoa. Daí pois a sua Poesia ser intelectualizada e polvilhada de ironia transcendente, ao mesmo tempo confessional e de evasão. Poesia talvez um tanto estranha e, por ventura, invulgar. Mas essencialmente Poesia (Sublinhado do autor). Em “Ítaca é aqui”, o “eu lírico” conta sobre a sua ilha de eleição, uma ilha que há de encontrar, ilha “fugida do mapa/ Por isso mesmo só encontrada pelo coração”, ilha fechada, encantada, só “luz e paz”, “apenas amor”. Ao mesmo tempo, em “Eu, ilha, me confesso...”, assume-se como Penélope à espera de Ulisses18 nessa Ítaca visionada: “o ilhéu sou eu”. Exatamente como Aguiar e Silva (1986, p. 168) definia: “A poesia é visão, é visitação divina à alma do poeta, e a imaginação criadora é o instrumento privilegiado do conhecimento do real”.19 Em “Se eu partisse”: Minha Ítaca bela, minha doce prisão/ Sem grades, nem chaves, nem sequer portão/ Ah! se eu partisse... Ah! se eu partisse... O desejo não só de encontrar paz, mas também a felicidade de um Ulisses para amar: eu, que “sou seu sonho, promessa de lar?”. 18 Ulisses: “herói eminentemente positivo”. Herói como os outros e diferente dos outros... Ele é, antes de tudo, um homem das situações difíceis, complexas, onde sua intuição [...] faz maravilhas. É preciso imaginar um Ulisses Feliz (apud Pierre Brunel, org., Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998). Ulisses, p. 898. 19 Mais uma vez, David Mourão-Ferreira: [...] há sempre na vigia uma ilha que oscila/ entre a gola do Mar e o turbante do céu// Mas de todas somente a que se chama Ítaca/ parece a rapariga à espera de eu ser eu, “Itinerário Grego”, in OP.1948/1988 (op. cit.), p. 210.
E em “Queria Tanto”, mais uma vez: E eu queria tanto escrever/ Sem que o dicionário envelhecesse? Ou dissecasse o que não se pode entender/ Se tudo fosse 40 fresco/simples/ único.../ Como os dedos rosados da aurora/ • A bater na tenda de Ulisses/ nos tempos novos de outrora/ Quando ainda não houvera a guerra de Troia/ Queria tanto Há flores e frutos no colo das ilhas dizer/ O que a palavra não disse, só balbuciou/ tossindo pó de séculos, pesados de significados/ De palavras, apalavradas, apalermadas/ Que já nem dizem nada/ Por tanto querer dizer tudo. Retornando aos dois poemas acima citados, no primeiro, “Ítaca é aqui”, constata-se de que para a autora, fazer poesia é profetizar, ou, intuir, tal qual aborda em “Persistência dos Enigmas”. Uma meditação sobre “Razão e Intuição” (2016),20 quando confessa seu fascínio pelo fenômeno da intuição, “evidência intelectual tão forte que nos custa a desviarmo-nos da ideia” gerada. Lúcia explica: “O acaso, a coincidência e a intuição sempre foram temas para reflexão sobre pormenores do quotidiano e até sobre a vida e a morte”. Isso seria resultado de um “apurado trabalho dedutivo, um raio de luz espiritual que coloca a descoberta em evidência”. A consciência é a própria essência intuitiva, sem hiato ou separação. O espírito capta o espírito, num saber que nos parece ser ‘perfeito’ e uma unidade sem fissura. Explicar e entender são formas muito subtis de se apreender qualquer dado e de o diferenciar. Aprende-se dedutivamente e induz-se numa apreensão única. Já em “Miragens do Presente. A Força das Palavras”21 (2015), Lúcia, ao tecer uma crítica de abordagem política, vale-se da história 20 Disponível em: http://www.ulisses.us/lucia-176-luz-no-caos.htm. 21 Disponível em: http://www.ulisses.us/lucia-171-forca-palavras.htm. Acesso em: 13 set. 2016.
universal para referir a importância do diálogo entre realidade e 41 vivência, e ideologia e verdade, mostrando o lado humano que • fundamenta os atos gerados, quase sempre, pela ignorância22 cultural dos que se arvoram em arautos da mídia (jornalista que se apropria Vilca Marlene Merizio de enunciados já ditos anteriormente sem a propriedade devida). É a audiência que em sua mansuetude aceita o que lhe empurram “goela abaixo”, sem contudo, haver a reflexão que toda a informação deve provocar. Segundo Lúcia, As mentiras transformam-se em verdades fugazes mais facilmente na oralidade em que a veemência da convicção se sente, mas se perde na leitura atenta. Os grandes protagonistas da História não o são por vontade própria, pois os interesses e as necessidades não vão ao encontro da vontade individual, Hegel diria ‘paixões’ dos indivíduos que só se transformam em vilões ou heróis de acordo com o contexto. A verdade seria assim qualquer Ideia que a maioria aceita. Seria confundir ideologia com verdade pois esta existe, só que é muito mais difícil de aceder do que se julga.23 O que seria a verdade? Há verdade relativa? Como podemos delimitar a verdade absoluta? O que distingue a verdade da realidade? Nem tudo o que é real é verdadeiro? Ó, são tantas as dúvidas, tantos os questionamentos, que só mesmo depois de muitas reflexões e vivências existenciais é que poderíamos tecer considerações aceitáveis a esse respeito Mas, essa experiência para nós tão difícil – estou falando a partir das minhas convicções – é processo que me parece habitual à Lúcia Costa Melo Simas. Seu pendor para o didatismo, para a explicação racional, tanto pela dedução quanto pela indução, leva-nos a entendimentos que à primeira vista nos 22 Na acepção que Houaiss também dá à palavra: “estado de quem não tem conhecimento, cultura, por falta de estudo, experiência ou prática; desinformação, incompreensão, incultura, insciência, necessidade”... 23 Disponível em: http://www.ulisses.us/lucia-171-forca-palavras.htm. Acesso em: 13 set. 2016.
parece impossíveis de alcançar. É mais ou menos como ensina Aguiar e Silva (1986, p. 183): “a obra emerge do inconsciente do poeta, mas é a consciência que dá à obra literária a sua forma verbal e estrutural, fonte interior secretamente associada à consciência por 42 um fluxo e refluxo perpétuo de permutas”. Eu diria ciclo intermitente • de mudanças e transformações que consegue conciliar dois grupos Há flores e frutos no colo das ilhas de exigências: as da realidade social e as dos desejos profundos do escritor, numa adaptação criadora em que o inconsciente do autor histórico, somado ao seu consciente mais as vivências do meio circundante constroem uma segunda realidade, a da obra que, em contato com a sensibilidade do receptor, alcança foros incalculáveis. Mas, voltemos a O Homem de Corfu: Lúcia Costa Melo Simas, sob a chancela da Editora Chiado, de Lisboa, lança o seu livro O homem de Corfu, páginas de entretenimento reflexivo que aportam um vasto conhecimento literário, didático, psicológico e histórico, percurso que a autora, na voz de um narrador heterodiegético (Bakthine), conduz até a poetização da teoria sutilmente exposta (porque ela sabe o que quer) na primeira parte do livro. A segunda parte é narrativa, numa técnica a qual podemos considerar de atualização mítica; a 3a parte, que pode ser vista apenas como se fosse um subtítulo é, a meu ver, uma partição da segunda (A casa de utopia de cristal), mas que, na verdade, por ser mais descritiva, fotografa o que hipoteticamente aconteceu. Nessas duas últimas partes, as vozes narrativas são as mesmas, embora o tom poético as distinga, alcançando foro ficcional, com a emergência de uma personagem cuja exemplaridade dá título à obra: O homem de Corfu. O subtítulo do livro encerra a ideologia da obra, sabiamente revertida no quase paradoxo: “Afastamo-nos para ver melhor”. Mais uma vez, como em toda a prosa de Lúcia, a imagem confere com o conteúdo tratado estilisticamente. Em todo o conjunto, o livro condensa razão, na primeira parte, e emoção, principalmente, na segunda. Na capa, ambas suscitam a subjetividade da autora também
aliada à sua racionalidade, assim como apregoavam Baudelaire 43 (gosto pela claridade mental, o raciocínio, o culto do rigor e do • espírito crítico; em suma, o ato poético/literário exige rigor, lucidez e obstinação), e Valéry: “a criação literária é atividade de puro rigor Vilca Marlene Merizio mental, ascese da inteligência e da vontade”. Na verdade, creio que todo o escritor, se está trabalhando com a emoção tem de trazer dentro de si um crítico e um sonhador, um juiz e um libertino. Como dizia João Cabral de Melo Neto: “O escritor como um eu plenamente pensante deve estar sempre vigilante à própria gestação de sua obra, quer seja poema, romance ou ensaio”.24 Assim penso que ocorreu com Lúcia Costa Melo Simas: seu O homem de Corfu foi intensamente criado, elaborado, sintonizado, quase... somatizado, tanta é a sua preocupação de levar o leitor passo a passo até o clímax do texto, aquele espaço temporal em que o milagre acontece, à encenação plena do que fora pensado, articulando ponto a ponto com outras intertextualidades, de quem tomou a fundamentação do que viria posteriormente ser posto em prática com feitura do enredo. Cito a galeria das ricas fontes utilizadas como embasamento e fio condutor da ideologia que subjaz ao aparente livro de poucas páginas, O homem de Corfu: o escritor Thomas Mann, o poeta-heterônimo Álvaro de Campos, os filósofos Soren Kierkegaard, Emmanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich, Adorno, Giddens, Bauman e Edmund Husserl, mais fatos bíblicos, históricos e outros relativos à arte em todas as suas modalidades e a todos os fenômenos sociais da nossa época. É o desenho de um universo reduzido, mas que dá abertura abrangente para a compreensão do desenvolvimento social desde os primórdios da civilização até a cultura (aparentemente) vazia dos tempos atuais. A autora, agora como sujeito empírico da obra, como “instância locutora, completamente integrada ao texto e indissociável no seu 24 Disponível em: www.chiadoeditora.com/autores/lucia-costa-melo-simas.
funcionamento”,25 abre a porta do entendimento para o que vai ser o relato, explicando a existência de um espaço, que podemos chamar, mítico, quando, numa ruptura com o cotidiano, há uma ascensão por parte de alguém interessado em sair da planície das acomodações 44 cotidianas, uma fuga da adaptação a que nos leva a mesmice de todos • os dias. Há flores e frutos no colo das ilhas Na primeira parte da obra, Lúcia começa por mostrar a crença no absurdo, citando o exemplo de Abraão, que foi posto à prova por Deus. E, de o Temor e Tremor, quando Kierkegaard, ao referir- se ao tumulto de sentimentos do homem só diante de Deus, abre a possibilidade de compreensão para a necessidade mais velha que anima o homem sobre a terra: a constante superação de si mesmo. Depois, vem Moisés, o mensageiro que sobe o Monte Sinai em busca de sabedoria e fé, de onde, na descida, traz consigo a Lei, a transformação. Diante da idolatria dos seus, Moisés recomeça a vida entre os homens com a força que do Alto o faz transcender. Mas, tudo isso não garantiu paz aos homens. Com o tempo e o desenvolvimento das grandes civilizações, nem a globalização conseguiu tornar o mundo mais transparente e feliz. O espírito ausentou-se. E o vazio toma conta do ser humano. O conflito entre ética e estética se consuma. Lúcia chama atenção para o imenso risco que corre a finalidade sem fim da estética, que reside na époché, e que, ao colocar entre parênteses o mundo inteiro, se isola, se esquece da realidade, na possibilidade de refúgio, assim como lembra Husserl. Essas afirmativas encadeadas dão grandeza à obra de Lúcia que faz, inclusive, um alerta a respeito da distinção e da proximidade dos termos explicação e entendimento. Em “Persistência dos Enigmas. Uma meditação sobre Razão e Intuição” (2016),26 cuja elaboração escrita não sei se aconteceu antes ou após a criação de Corfu uma ilha qualquer, Lúcia demonstra que, na vida, o espírito capta o espírito, num “saber perfeito”, numa 25 Essai de poetique médiévale. Paris: Seuil, 1972. 26 Disponível em: http://www.ulisses.us/lucia-176-luz-no-caos.htm.
“unidade sem fissura”. Isso dá bem para compreender o insight, o 45 estalo que modificou a vida do homem cujo relato encerra o livro • e que bem exemplifica toda a teoria filosófica manifesta nas páginas anteriores. Vilca Marlene Merizio Afinal, esse método de mesclar a teoria com exemplos vivos, narrações de acontecimentos e ações tirados do cotidiano, quase todos tendo a autora como personagem ou testemunha – no caso de Corfu uma ilha qualquer, não! – traça o perfil da pesquisadora, ensaísta e cronista que tem ancorada na filosofia, na história e na cultura o cerne de suas reflexões e de quem neste momento tratamos. Aliás, mesmo na poesia, Lúcia repete o mesmo modelo estilístico, tornando inconfundível sua marca literária. Diz ainda a autora, em “Persistência dos Enigmas”, que “consciência é a própria essência intuitiva, sem hiato ou separação”. E que os atos de “explicar e entender” são formas sutis de se apreender qualquer dado e de o diferenciar. Tentaremos exemplificar através do Homem de Corfu; é simples explicar o que aconteceu no momento exato em que ele, em plena consciência, mas sem se importar se está ou não em plena consciência, descobre e admite uma verdade que sempre existiu, mas que para ele, até aquele momento, era irrelevante ou, mesmo, desconhecida, porque, talvez, nunca se entregara ao instante presente, sem intenção de julgamento, aprendizagem ou outra qualquer.27 Ele era somente presença em espírito. Então, entendeu: – As pessoas são todas semelhantes em todos os lugares por onde passei. E tornou-se outro: entendera, interiorizara subjetivamente o que considerava a resposta para os seus anseios pessoais. Fora para si o recado do mundo cuja percepção agora reverberava como “vivência íntima, que avança na direção da exteriorização dos pensamentos. Agora, sim, podia explicar racionalmente. Mas, no caso em questão, quem explica é a voz que narra: 27 Ao assumirmos a époché, o pensamento depura-se, e somos conduzidos ao Ego puro.
Naquele momento tinha o céu por sua estrada, como o mar já fora tanta vez. Fora um andarilho, medira a sua aptidão de partir, queria agora a de ser. Apenas ser, que o resto chegaria” [...] “Esta descoberta leva a vida toda, muito e muito vagarosa 46 e pacientemente, depois se torna mais fácil de ver em cada • coisa o real, a estética presente e viva, a beleza que o mundo todo manifesta por todo o lado. Há flores e frutos no colo das ilhas E o fio de voz que narra o mistério de Corfu e do homem que o vive, do lado de fora, portanto, literariamente, como narrador heterodiegético, mas omnisciente, descreve, explicando: Aqui ou ali, para onde que que fosse, seria sempre ele, o homem que sentia a vida na sua redução de pureza estética. A sua existência cada vez lhe parecia mais ser um labirinto sem fio para sair. Depois vinha a interrogação traiçoeira: Que serias tu lá fora? Corfu, aquele silêncio, da tarde na ilha, com o mar ao longe e o céu azul, não eram mais do que formas dele sentir a vida. No entanto, é no interior do Homem de Corfu que o milagre se estabelece e a Ideia torna-se Absoluta, como se filósofo fosse. Cessara a luta entre a procura do entendimento da vida e a explicação do que isso significava para ele. Sua existência, sim, agora valeria a pena: sentia e reconhecia seu sentimento; precisava de um lugar, um espaço de conforto para se estabelecer. Quiçá outra ilha, sem ser Ítaca, pelo menos, a Ilha dos Amores. Vida e obra evoluiriam sem se mesclar. Humanista, mudado pelo lado de dentro, sua compreensão a respeito de um novo universo em que habitasse traduzia em imagens o seu novo modo de encarar a vida. A existência alterara-se pelo fenômeno de um entendimento que tal qual relâmpago, anulava a racionalidade de uma vida inteira. Teria ele intuído que aquela ilha seria a do desvelamento? Diz Lúcia, no artigo já citado, que “A intuição é uma luz no espírito que o ilumina por dentro”. A iluminação súbita do espírito foi de tal ordem
que, segundo o relato, “Decididamente, pensou de novo, o mundo é 47 uma grande aldeia”. • E ele se foi: “Com o despertar da reflexão [...] abrem-se Vilca Marlene Merizio obstáculos abissais” se o homem não continuar desperto. Sabendo que o “conhecimento, a coisa mais óbvia no pensamento natural, aparece de repente como um mistério” (Kierkegaard, 1973a. p. 18-19) haveria novas descobertas. E essa, não serei eu a revelar, mas cada leitor que, a partir de agora, terá como seu propósito de eleição o fruir de O homem de Corfu que hoje, tão gentilmente, Lúcia Costa Melo Simas, oferece. E continuamos todos carentes do Outro, essa é a nossa condição humana. Mas, com fé é possível ao ser humano criar a sua própria ponte para o Absoluto. Com ou sem risco, ele vencerá se, dentro de si, a luz da confiança tornar-se absoluta. Esta é a mensagem que recebi de Lúcia através do seu O homem de Corfu.
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