Vilca Marlene Merizio Quase... de corpo inteiro Poemas escritos em Ponta Delgada, entre 1988 e 1989, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal. 2a edição revista ARTE & LIVROS
Quase... de corpo inteiro
2023 Editora Arte & Livros Rua João Meirelles, 1213 – Apto. 107, Torre C – Abraão | Florianópolis-SC CEP 88025-201 | Fone: (48) 99971-2285 [email protected]
Vilca Marlene Merizio Quase... de corpo inteiro Poemas escritos em Ponta Delgada, entre 1988 e 1989, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal. 2a edição revista ARTE & LIVROS 2023
© 2023 do autor Edição da Autora 1a edição 1996 Arte & Livros 2a edição 2023 Projeto gráfico, capa e editoração: Paulo Roberto da Silva Imagens de capa e miolo: Vilca Marlene Merizio – Oleo sobre tela Digitalização dos textos: Janaíta da Silva Sarza Revisão: Arte & Livros Ficha Catalográfica M563q Merizio, Vilca Marlene Quase... de corpo inteiro [recurso eletrônico]/ Vilca Marle- ne Merizio. 2. ed. rev. – Florianópolis : Arte & Livros, 2023. 235 p., il. Poemas escritos em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Aço- res, Portugal. ISBN 978-65-88814-20-6 (e-book) 1. Literatura brasileira – Poesia. 2. Literatura catarinense – poesia. 3. Poesia catarinense. 4. Literatura açoriana. I. Título. CDU 869.0(816.4)-1 Catalogação na fonte por Onélia Guimarães CRB 14/071 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito do autor.
Quase... de corpo inteiro Não sei mais nada: sei amor David Mourão-Ferreira
Aos meus filhos, aos filhos dos meus filhos e aos filhos dos filhos dos meus filhos. Em outros tempos, os Açorianos acreditaram no Brasil e partiram. Hoje, do além-mar, voltam no canto e na voz dos seus descendentes; também a eles, às raízes, o louvor.
Vilca Marlene Merizio Prefácio da primeira edição – 1996 Este prefácio não cumpre, ou não deve cumprir, uma função de crítica literária. Já sobre esta recolha poética se pro- nunciaram vários críticos, professores ou poetas eles mesmos... Deliberadamente, a Autora se deixou envolver culturalmente no meio onde vive desde 1987, tendo-se familiarizado com autores que cita em epígrafe, testemunhando como a sua vivência açoriana é também uma vivência cultural praticada e não só aludida. Não há melhor exemplo de intercâmbio entre duas universidades – e neste caso a Universidade dos Açores e a Universidade Federal de Santa Catarina – que o da experiência directa e da vivência com uma finalidade e com um comprometimento, como o de Vilca Marlene Merizio, doutora em Literatura Portuguesa Contemporânea, pela Universidade dos Açores. Em todo o caso, a poesia é uma forma de criação que ineludivelmente apela para a intimidade e o recesso mais profundo de nós mesmos, mesmo quando a simulação verbal permite falar de todo o poeta “como um fingidor”. Lidos “por dentro”, os poemas de Vilca Marlene Merizio têm três grandes forças: o amor, a ausência, a natureza. Três referências em si mesmas antiquíssimas e “literariamente” triviais, quando a linguagem as não recria, como neste caso, em experiências verbais de sublimação do quotidiano, em “crónicas” do real assumido liricamente, em espontaneidade bem conseguida. Experiência para mais em que pesam a memória do passado longínquo no espaço e o presente saudoso desse espaço, memória sensorial e dorida, inquietude, “lagoa que procura um canal para o mar”... ... 11 ...
Quase... de corpo inteiro Mas dessas forças de emergência interior, a Autora tira justamente a força intima e leda que a leva a superar, positivamente, esse itinerário da sua nova condição na sua nova casa, em novas terras... Daí parece sair vitoriosa, com esta abundância de poemas com que esconjura a saudade, a distância e a sua angústia... Desta superação fala com enorme mestria e justeza crítica Assis Brasil, com as palavras certeiras de quem também é criador literário, também brasileiro e também visitante aos Açores (ainda que só por alguns escassos meses...). Vilca Marlene Merizio está a fornecer mais um dado cultural aos Açores: mais uma mais uma vez a tão discutida literatura açoriana conta uma obra, documento de açorianidade brasileira? André Siganos escreveu em francês Açoréènnes (Caleidoscópio Açoriano). Vilca Marlene Merizio escreve Quase... de corpo inteiro. Duas experiências humanas e culturais que os Açores ganharam porque passaram a ter Universidade que nos trouxe os autores. Duas oportunidades do “fazer-se literatura”, isto é, do fenómeno estético e cultural que, na sua essência, não tem que ser adjetivado de geografia, nem de política, nem sequer de nacionalidade, pelos vistos nem sequer de língua – ainda que neste caso seja a nossa língua portuguesa! Siganos escreveu em francês, Vilca Marlene Merizio em português, com inevitáveis referências ao Brasil. E daí? Não é literatura, tout court, que se faz nos Açores por causa de se estar (ser) nos Açores? Não é isso o mais importante? Visto-me de bruma enlaço a ilha respiro... flores! Voo na cabeleira das ondas e não me livro da angústia [...] Poema “Vazio” ... 12 ...
Vilca Marlene Merizio A angústia pessoal, de ausência, de memória biográfica, é também “peso do mundo”, “cansaço” de viver ali, no ali e no agora da(s) ilha(s), “cansaço/ou o preço de viver/na Atlântida?” (Poema “Manhã”). Mas outra circunstância feliz do produzir literatura-ou arte, em geral – em outro quadro de referências que não o nosso habitual, é a do enriquecimento mútuo de culturas. O livro de poemas de Vilca Marlene Merizio não pertence só ao domínio polémico de uma literatura adjectivada de açoriana; pertence também à literatura brasileira, na medida em que é um desempenho de peculiaridades linguísticas do português do Brasil, para mais carregado das vivências de uma outra experiência social, cultural e pessoal. Felicito a Autora e felicito-me, não só pessoalmente, mas também institucionalmente por mais esta “achega” cultural, que, de tabela, o Convénio Açores/Santa Catarina nos trouxe. Ponta Delgada, 7 de novembro de 1990. António Machado Pires Reitor da Universidade dos Açores ... 13 ...
Reconhecimento em posfácio RECONHECIMENTO EM POSFÁCIO
Vilca Marlene Merizio Apreciação do conteúdo poético de Quase... de corpo inteiro, em sua Primeira versão (1990), por: 1. J. de Almeida Pavão (Açores) 2. Ruy Galvão de Carvalho (Açores) 3. Luís Antônio de Assis Brasil (RGS/Brasil) 4. Daniel de Sá (Açores) 5. Celestino Sachet (SC/Brasil) 6. Alcides Buss (SC/Brasil) 7. Maria Margarida Maia Gouveia (Açores) 1. José de Almeida Pavão Minha boa Amiga Li o seu livro de poemas intitulado Corpo Quase Inteiro. Confesso-lhe que gostei, admirando uma faceta do seu espírito que quase totalmente ignorava: a da criação poética, com uma feição verdadeiramente moderna, essencialmente na linguagem com que expressa uma gama tão variada de sentimentos, emoções e estados de alma que fogem à vulgaridade, procurando despojá- los dos narizes de cera da convenção literária e em busca de uma espontaneidade conseguida. O livro merece, sem dúvida e sem contestação, as honras duma publicação. ... 17 ...
Quase... de corpo inteiro Apenas algumas sugestões, o que está no seu direito de não seguir, se assim o entender: no seu lugar, suprimia aquele longo poema que se reduz num tom saudosista – é certo – a um enunciado de nomes de pessoas de sua particular estima. Ou por outra: poderia fazê-lo em nota ou em preâmbulo, como aditamento à dedicatória. Quanto ao título eu substituiria “Corpo” por outro termo e talvez suprimisse “quase”. Porque não “rosto”? Ponta Delgada, 29 de Novembro de 1989. Felicitações e um abraço amigo do J. de Almeida Pavão 2. Ruy Galvão de Carvalho Referência breve e sintética à obra poética da professora universitária dona Vilca Marlene Merizio Poesia de intimidade e “de circunstância” (Goethe), com profundas raízes insulares e atlânticas, de hereditária origem. Poesia pura e de expressão moderna. Ilha de Antero, Ano de 1990. Ruy Galvão de Carvalho 3. Maria Margarida Maia Gouveia Vilca, Quase... de corpo inteiro Esta coletânea de poemas lê-se como afirmação em rebeldia, em que a linguagem transporta uma violência em permanente risco de explosão, própria da “alma ferida, machucada pela culpa/ de não ter tido “nenhuma culpa” (“Despojos”). Partindo do pressuposto: “Em mim remorsos «não há” (idem) e alternando entre o “Desejo mesmo/ novamente ser gente/ em ritmo quente” e o “não estou mais nem para mim mesma”, coloca-se um discurso ... 18 ...
Vilca Marlene Merizio amoroso, do corpo que se expõe na perda ou no excesso de amor, na interioridade dominada por armadilhas do quotidiano, seu inexplicável ou seu “vazio”, na opressão do não-amor. Corpo ainda não (ou já não) inteiro? Há nesta escrita uma intencionalidade repetitiva de desejo de plenitude, dum “quisera mais” sem limites, expresso em particular por um imaginário vegetal – “eu quero ser a seiva”. Um desejo que dificilmente consegue ser optimismo possível nesta, afinal, permanente resistência melancólica e acomodadiça, silenciosa e triste, do perguntar sem querer resposta, do perguntar para viver ainda, sabendo-se que “a morte prematura/ acoberta o desejo azul/ de ser borboleta/ Ainda” (“Dor”). Conjunto que se impõe pela dorida inquietude, ao sabor da memória e da emoção que procura ser, enquanto poesia, “pedra pesada feita Palavra”. Ponta Delgada, Açores, Janeiro de 1990. Maria Margarida Maia Gouveia Prof. Doutora da Universidade dos Açores 4. Luiz Antônio de Assis Brasil Itinerário de um rosto sem medo Os poemas de Vilca Marlene Merizio palmilham os obstáculos, instalam um programa de vida e ao final reafirmam o poder do impulso criador. Capaz de conhecer a si própria e de estender até aos possíveis limites o alcance de seus propósitos, a Autora revela a necessária segurança de quem pretende algo e que luta para a sua realização – e afinal vê a obra cumprida. Escrito de uma forma sensitiva, por vezes incidindo no confessional mais desabrido, este livro não se esgota no exercício ... 19 ...
Quase... de corpo inteiro de uma pretérita emoção; embora praticando de modo intenso a primeira pessoa, não é um texto imaturo. Se por vezes o lírico de sabor romântico se manifesta em compulsividade irremediável, há a contrabalancá-lo poemas onde se faz presente a preocupação contemporânea com a palavra e com os destinos da poesia. Percorrendo suas sete partes, percebemos que a Autora cumpriu uma espécie de rito de iniciação, esclarecido pelo encadeamento racional dos temas que compõem estas mesmas partes. A partir da dúvida primordial, “Posso ou não chegar ao fim”, lentamente vai-se caracterizando uma certeza. Mas, antes, os momentos de perplexidade e insatisfação perpassados de um erotismo sufocado à flor da pele e de um desejo de conhecer-se através do outro. “Não sabes quem eu sou”, enerva-se a Autora. Este grito, ao que parece, não é tanto a angústia de reconhecer- se em um ser opaco ao outro, mas de uma busca de si mesma através de uma relação especular onde está, integra, a amarga insatisfação amorosa, assunto-mater dos sensíveis, que surge para a Autora menos como uma convocação ao imobilismo do êxtase do que propulsor de novos alcances. Há momentos de dor nesta procura, e onde a saudade é um fato inexorável e quase bloqueador: E hoje como está minha inspiração? A ausência, leit motif deste momento da obra, aparece em toda sua força esmagadora; sofrimento que exige uma força de atlante. Para superá-la, há uma busca de adaptação à adversidade, levada a cabo pela constância de propósitos. Na parte denominada “Outro, o Santuário”, percebe-se a penosa construção de uma familiaridade que (ainda) não existe e, mais uma vez, patenteia-se a luta brutal entre o exterior (que impõe códigos indecifrados) e o interior (que busca desvendar esses códigos). Nada mais do que o antigo e ancestral desejo de felicidade, motor último das ações humanas. Se a saudade é determinante de estágios turvos e de uma tentativa de fuga e de reencontro, esta mesma saudade transforma-se nas necessárias raízes que faltaram à poeta. De certo modo, reconhecendo- se saudosa, a Autora vem a descobrir a existência de realidades que ... 20 ...
Vilca Marlene Merizio antes, por serem banais e cotidianas, apagavam-se com mediocridade plana e chã, mas que hoje assumem foros de alicerces e dão vestígios de segurança a quem se julgava à deriva em terra alheia. Daí porque não chegamos a estranhar quando diz Do outono faremos primavera, a revelar que a esperança por fim emergiu. O sofrimento não foi inútil, pois abriu espaços e preparou o caminho do reconhecimento conquistado a troco das próprias forças e não pela via impossível do Outro. E este saber de si mesma é construtivo e dúctil, levando à realização completa: Neste instante cuido da voltagem das ligações, dos fios-terra (...) É uma espécie de Epifania a que se soma uma “Redenção” pessoal, obtida pelos próprios meios. O texto de Vilca é, portanto, o cumprimento de um itinerário onde, ao fim e ao cabo, ganha a vontade determinada a um desejo. E, como tal, impõe-se como verdadeira poesia, daquela que merece tal nome, pois nos leva a considerar as singularidades da existência humana a partir de uma visão totalizante c onde se ausenta a busca de respostas. A Autora estreia de forma digna e com um agudo senso poético. o que nos faz aguardar novos e irrecusáveis frutos desta conquista. Ponta Delgada, nos Açores, fevereiro de 1990. Luiz Antônio de Assis Brasil Prof. Doutor PUC/RG Brasil 5. Daniel de Sá Poesia com poesia dentro (Recado a Vilca) Já percebeu como a ilha é pequena, que se acaba mal comece a nossa pressa, e não vale a pena ir a lado nenhum acelerando a ... 21 ...
Quase... de corpo inteiro vida? É verdade que o tempo, aqui, também se mede por relógios suíços e tem como referência o Meridiano de Greenwich. Mas a sua dimensão é outra. O Mundo, cá dentro, é quase só uma memória de que existe. E é com os estilhaços dessa memória que o recriamos à nossa medida. Fazemos uma imitação de tudo, em miniatura, e acabamos por descobrir-nos a nós mesmos, porque, afinal de contas, pouco podemos contar com alguém mais. Torna- se, cada um de nós, numa espécie de Robinson Crusoé, e a multidão restante é o Sexta-Feira protector do nosso isolamento. A solidão compartilha-se. E a angústia da distância, a que Deus nos pôs de todos os outros mundos, a que dedicou mais espaço, amargura os espíritos que só têm como referência a insatisfação de existir. Não se é mais poeta numa ilha do que em qualquer outra parte. Ainda que o seu caso pudesse servir de suporte à tese de que sim. Chegou cá, conheceu-nos, conheceu a ilha, e, de repente, descobriu que tinha um talento nunca aproveitado antes. Veio de outro mundo, já trouxe consigo essa poesia dentro, mas, aqui, tudo é tão pequeno que mal podemos sair de nós mesmos. E terá sido essa falta de espaço, esta pequena dimensão que nos constrange a ter asas que não precisam de céus largos, que a fez criar dentro de si mesma o seu próprio espaço a preencher. Depois, meteu-lhe poesia dentro. E resultou esse extraordinário corpo de poesia com poesia dentro. Quase... de corpo inteiro? Pode tirar-se-lhe o “quase”, que, aí, não é mais do que um toque poético ou humilde, se calhar o espanto de ter descoberto o milagre da palavra perfeita e não ter acreditado que o era assim tanto. Quando nos sobra o silêncio, restamos como companheiros de nós mesmos. Donde lhe resultou esse falar para si somente, essa comunicação íntima pela Arte, que é, por excelência, uma forma estética de comunicação. E que acontece quando se lhe espreita esse espaço da alma e se assiste ao solilóquio? O encantamento da palavra – ideia – pura, do ... 22 ...
Vilca Marlene Merizio ritmo – melodia, da verdade de quem não mentiu, porque não se mente a nós mesmos. Palavra de crítico seria diferente deste meu dizer. Para dar testemunho de um conceito estético, quem se habituou à análise de texto de outros cria um mundo de conotações e tipologias, que, muitas vezes, não passam de estereótipos que nada descobrem. Porque, afinal, não há uma medida exacta para o Belo. E é no que há de subjectivo em cada modo de sentir que a Poesia, como toda a Arte, se recria. O autor não é mais do que o primeiro de uma cadeia de artistas que vão refazendo a obra, que é dele apenas enquanto o deserto da criação não se anima com a paisagem humana que, quanto mais lhe devora as entranhas, mais a aviva. Eu não sei dizer essas coisas. Perante um corpo, perante este Quase... de corpo inteiro, só o meu sentir-me aí, com muita pena de não ter sido eu que o descobrisse, porque ele é tão vivo e tão vivido, tão verdadeiro e tão inteiro, como se tivesse estado muito tempo à espera de alguém que o fizesse erguer-se para não parar. Uma obra perfeita é a que parece que não poderia ter sido criada de outro modo. Quase... de corpo inteiro, por exemplo. Maia, ilha de são Miguel, Açores, Março de 1990. Daniel de Sá Professor e Escritor 6. Celestino Sachet Corpo quase inteiro Longe-perto de suas raízes, trocadas as terras-água do Vale do Itajai pelas águas-terra do Arquipélago dos Açores, mal bastaram dois anos para que uma Poesia com cheiro verde-amarelo se mesclasse no Poema azul-branco das açóricas inspirações. Não parece aflorar em Quase... de corpo inteiro a(in) experiência de um primeiro livro. (É evidente que gerar uma ... 23 ...
Quase... de corpo inteiro alargada centena de composições em dois anos – mais de um poema por semana – é risco que se arrisca e que a Autora não desconhece e assume.) Todo o livro é percorrido por uma Inquietude-Redenção proclamada nos três versos da abertura: Não podemos continuar lagoa Há-de haver um canal um braço para o mar Este Nao-Ser-com-a-Esperança-de-se-Tornar vem assumido pela imagem da água que anda para se tornar o Todo nos três passos “lagoa – canal – mar” e investido, também, na imagem do “braço” que é corpo (quase) inteiro. Uma soma-análise se explicita através do processo “fazer--poesia” fotografado no poema “Retrato I”: O poeta disse: se não puderes do arbusto ser raiz ou ramos, sê a sombra. Eu toda grito: quero ser seiva. e (re) fotografado no poema (quase em fotocópia) um “Retrato II” no qual o infieri inicial do Desejo do Poeta já se tornou o factum est do Poema Eu toda grito: sou a seiva. A caminhada do Poema através de Quase... de corpo inteiro vem alimentada por um tom elegíaco de uma filosofia que, praticamente, se põe a questionar as realidades “idas” do Ser-poeta e as realidades em trânsito do Ser que se faz poema. É por isto que a Inquietude-Asfixia dos ... 24 ...
Vilca Marlene Merizio primeiros passos se transforma em Claridade-Redenção nos últimos lance da estrada-canal em que a lagoa já vai entrando mar adentro. O “braço para o mar” se transforma em “abraço” (“Amnésia”). E se, por um lado, se fecham “as portas da memória”, por outro, “vibram. acordes da música esquecida”. E se, ainda no mesmo poema a alma do Poeta “treme de frio”, é porque Vilca Marlene Merizio tem consciência de que o Poema é feito menor do que a Poesia que lhe inunda o corpo inteiro. (E, aí, já é Drummond!) A preferência pelo verso-curto e pelo poema-resumo dá força para que Quase... de corpo inteiro proclame um texto maduro no qual o sabor de fruto pronto a se transformar em Vinho – que é mais do que o vinho diz – é a medida exata da intenção de um Ser-poeta e da tensão de um Viver-poema. Ponta Delgada, abril de 1990. Celestino Sachet Prof. Doutor da Univeersidade Federal de Santa Catarina 7. Alcides Buss Penetra surdamente no reino das palavras “Penetra surdamente no reino das palavras” – sugere Drummond. Nas fimbrias do silêncio, dispersam-se as certezas. No silêncio do corpo há o corpo que pensa e sonha. Propagam- se, ali, as ressonâncias de quem já tem mil anos, ou muito mais, e carrega também o peso do mundo. O olhar que se fecha, agora se abre em múltiplo olhar. Exercita a liberdade e vivifica o amor. Como reconhece o personagem de Virgínia Woolf, a poesia pode ser mesmo essa transação de vozes, de vozes que se respondem e correspondem. Para tudo, as palavras possuem mil faces secretas. ... 25 ...
Quase... de corpo inteiro Os poemas de Vilca Marlene Merizio se fazem de beleza e frescor que vêm do silêncio em que se captam os rumores do corpo. E, à procura de amorosas almas, emergem. Florianópolis, Ilha de Santa Catarina, 1990. Alcides Buss Escritor e Prof. da UFSC/SC-Brasil ... 26 ...
Vilca Marlene Merizio Preâmbulo à segunda edição, 2023, pela autora Alguns exemplares de Quase... de Corpo Inteiro ficaram no limbo do esquecimento desde os últimos volumes doados aos alunos da rede escolar da Grande Florianópolis, no início da primeira década do século XXI. Seu lançamento ao público dera-se em 1996, durante os festejos do Festival do Mar, em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, aproveitando-se a vinda de uma comitiva açoriana, formada por 28 personalidades, incluindo autoridades do Governo, professores da Universidade dos Açores, artistas pintores, escritores, mestre e cozinheiros, artesãs e outros, que vieram especialmente a Florianópolis, SC, a convite dos empresários catarinenses, trazendo em sua bagagem toneladas de produtos açorianos para serem distribuídos gratuitamente para os participantes do evento. Vinho, queijos, embutidos, rendas, livros, cerâmica, tudo era oferecido graciosamente às pessoas, para além das apresentações acadêmicas e artísticas com exposições, palestras e lançamento de livro – este do qual tratamos, em especial. Na obra Um projeto que se tornou Missão: Missão Açores, descrevo pormenorizadamente o que aconteceu na época. Em 2011, ao preparar o conjunto de poemas a publicar em Janelas da Alma (Florianópolis, Papa-Livro, 232 p.), optei por incluir os poemas de Quase... de Corpo Inteiro, o que fê-lo voltar ao público, principalmente aquele liderado por professores e escritores. Mas, dos mil exemplares, alguns também distribuídos ... 27 ...
Quase... de corpo inteiro em algumas escolas das ilhas açorianas, logo a primeira edição se esgotou, estando novamente a ser reeditado. Agora, passados 27 anos, quando a saudade mais aperta, principalmente pela ausência dos que partiram em definitivo deste nosso orbe, coube-me a responsabilidade de trazer aqueles poemas tão significativos para mim à luz de uma nova categoria de leitores. Tomara que agradem, porque foram escritos do fundo da minha alma. Da primeira versão, deixei de fora alguns poemas que manifestavam expressão de dores existenciais muito profundas. Hoje, acredito que, mesmo que o poeta tenha suas razões (e nem sempre são resultado da biografia autoral), o autor deve poupar a sensibilidade do leitor para assuntos controversos ou muito particulares. Espero que gostem. Vilca Marlene Merizio Florianópolis, 1 de maio de 2023. ... 28 ...
Edição da Autora. 1a Edição 1996 Impresso na Imprensa Universitária da Universidade Federal de Canta Catarina. Capa e editoração: Paulo Roberto da Silva, Foto: Carlos Vieira – Imagem: Pintura a óleo de F. Pinto, Açores
Quase... de corpo inteiro Poemas PARTE I Inquietude Sou eu quem fala, minhas razões são minhas. Daniel de Sá
Vilca Marlene Merizio Inquietude Não posso continuar lagoa Há de haver um canal Um braço para o mar ... 33 ...
Quase... de corpo inteiro Aurora Faltam folhas à agenda? Arranquei-as: ali jazia uma vida, vida... morta. Nas outras páginas, o retrato não assusta: esconde em cores neutras o anseio de liberdade da alma ferida, machucada pela culpa de não ter tido nenhuma culpa. Por isso estou triste e só. Sem saudades nem desculpas, em mim remorsos não há. ... 34 ...
Vilca Marlene Merizio Jogo Exaspera o jogo das virtualidades. Magoo-te com a cor das lembranças, agrides-me com a negação da tua verdade. Cubro de boas intenções as iniciativas, tu não permites que as águas sigam o leito do rio. ... Naquela madrugada outonal, tudo estava perfeito. Seres de ficção, palpitávamos em crenças e descrenças. Éramos sábios. Éramos santos. Éramos reis. Nada para além da nossa praça ao anoitecer. O trajeto que percorremos juntos foi extremamente curto para abrigar o que ainda restava por dizer. Mas o afago leve e rápido da despedida (com que delicadeza fechaste a porta e me sorriste), o tremor da minha voz e o sussurro da tua, o entusiasmo do meu corpo e o contentamento do teu falaram a linguagem dos grandes romances. Agora, cá estou a saborear cada segundo, cada pormenor... Cada instante da tua respiração. Cá estou a degustar a quase vitória da nossa insensatez, a sempre derrota do meu fascínio ao teu apego/desapego. ... 35 ...
Quase... de corpo inteiro E no seio deste idílio inverossímil em fins de século, perdem-se as certezas nas fimbrias do silêncio. Meu e teu. O insólito perturba... Não alvorece. ... 36 ...
Vilca Marlene Merizio Resumo Escalada de sete anos vezes sete Aprendizagem Descobertas Invenção Arrebentações em vida O cerco embrutecendo a vontade Medos inventados Medos sufocados Outros enterrados alguns ressuscitados Força para pisotear mármore liquefeito de trinta anos vezes trinta Prenúncio Inquietação Cantos de sereia Verdade Negação Dignidade Valentia E o palhaço o que é? Vazio Vazio Ondas Alucinações Redemoinho O palhaço sou eu! Mil vezes palhaço quem não conhece seus demônios ou tem a ilusão de não escondê-los Pior ainda quem pensa não tê-los! ... 37 ...
Quase... de corpo inteiro Rompimento Suspiros? Suspiros do que valem, se, para ser verdade, seria preciso estares aqui? Por que a recordação ainda? Teus olhos não mais me dizem festa. Foi junção, leveza... Nunca! ... 38 ...
Vilca Marlene Merizio Retrato I O poeta disse: se não puderes do arbusto ser raiz ou ramos, sê a sombra. Eu toda grito: quero ser seiva. ... 39 ...
Quase... de corpo inteiro Entre atos Ao som das trombetas do sono, arranquei-te, cravo, das minhas entranhas e lancei-me no arco-íris que pendia do navio ao cais. Outro porto: as asas fecharam-se, o motor parou. Em terra suposta firme, tapumes e diques não escondiam a rampa que, de tanto ser pensada em aclive, contorcia-se em declive. E a meta lá.. Quase a se perder de vista, entre a fumarola das Furnas e o fumo dos navegantes. Um marco? Um mastro? Um poste? Meio para fora, meio para dentro, plano inclinado entre fitas de magma e de bruma: o caminho, passarela ondulante, cordão de espuma a desenrolar-se sobre o mar encrespado pela incerteza do rumo. ... 40 ...
Vilca Marlene Merizio Mais dias, menos dias Flutuo. O que é futuro? Alguém a esperar? Alguém com quem contar? Ou alguém só para constar? ... 41 ...
Quase... de corpo inteiro Insegurança Livrar-me-ei dos baraços do feijão ou serei sempre a melancia minguada a procurar areia quente e fofa para me aninhar? ... 42 ...
Vilca Marlene Merizio Lua nova Macularam-lhe a virgindade. De quem a culpa? Da opacidade da Terra ou do brilho do Sol? ... 43 ...
Quase... de corpo inteiro Circo Rataplã, rataplã. Isto é hoje. O que será amanhã? Acertei. As onomatopeias fazem emergir do inconsciente feridas mal curadas e desejos ainda reprimidos. Como será amanhã? Na pele, o sulco, a dor. ... 44 ...
Vilca Marlene Merizio Primavera em bola de sabão Rodas e círculos, esferas e circunferências estilhaçam-se. E... porque és a única presença, cristalizam-se as lembranças As estações atropelam, o desafio paralisa, O frio arrasta. Tateio. Quase caio. Tento de novo. Vou em frente... Solta, leve! Corda bamba... E eu... No trapézio, descendo (ou subindo?) a íngreme ladeira. O calhau rolado, a chuva cansada lustra. Posso ou não chegar ao fim: Embaixo (ou no alto?), vale a pena olhar os plátanos. É setembro... Sou futuro! ... 45 ...
Quase... de corpo inteiro Novo passo Ecos, Gargalhadas, Fanfarra... Nada disso oiço agora: sons não mais traduzem lembrança. Vivo da interrogação bailando em novo olhar. Quem me dera fosse desejo; amor viria depois. ... 46 ...
Quase... de corpo inteiro Manjar Na mesma casa, outra a mesa: engasga o caju, floresce o caqui. ... 48 ...
Vilca Marlene Merizio Recomeço Agora... tudo calmo. Dispenso conselhos, arrumo filosofias, arejo princípios... Olho em volta: Vejo! Mas por que ainda os sobressaltos? Que medo é este que não me deixa saborear a felicidade antes de ser feliz? ... 49 ...
Quase... de corpo inteiro Plenitude Angras, baías, cabos, pontas... Sexo... Tudo humanamente completo, Repleto. No entanto, perdura no silêncio dos olhos – gemido lâmina lança – Ansiedade em desvario à espera do abraço cósmico. Metafísico. A garganta estala, ronca, esperneia. A cabeça lateja – fervura em óleo de baleia. O sangue jorra por onde não há saída. Os sentidos explodem, conhecem a necessidade, sabem da precisão... E é tão pouco o que reclamam, só o direito ao encontro: dois na perfeição do uno absoluto, maneira redonda única de ser. ... 50 ...
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