Vilca Marlene Merizio Açores da memória à ficção Contos e narrativas de ficção baseados em fatos verídicos ARTE & LIVROS
Açores da memória à ficção
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© 2023 da autora Projeto gráfico, capa e editoração: Paulo Roberto da Silva Foto da capa: Vilca Marlene Merizio Digitalização dos textos: Janaíta da Silva Sarza Revisão: Arte & Livros Ficha Catalográfica M563a Merizio, Vilca Marlene Açores [recurso eletrônico] : da memória à ficção. Vilca Marlene Merizio. – 1. ed. – Florianópolis : Arte&Livros, 2023. 242 p., il. Contos e narrativas de ficção baseados em fatos verídicos. Modo de acesso: http://vilcaedicoes.com.br ISBN 978-65-88719-21-3 (e-book) 1. Ficção brasileira – Santa Catarina. 2. Contos brasileiros – Santa Catarina. 3. Açores. 4. Memória na literatura. I. Título. CDU: 869.0(816.4)-31 Catalogação na fonte por Onélia Guimarães CRB 14/071 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, arquivada ou transmitida por qualquer meio ou forma sem prévia permissão por escrito do autor.
Se piensa y se escribe sobre el amor según las experiencias vividas y según lo que uno mismo la sido en él. […] El amor siempre proporciona talento. Paul Léautaud, 1989.
Dedicatória Agorinha mesmo, recebi uma ligação por vídeo do meu neto mais velho, Maikel Xavier José Vieira, e no meio da conversa, ele me confessou: – Vó, sabe, se alguém me perguntasse se eu, em podendo, pudesse trocar a minha vida por um dos meus avós paternos quem escolheria ser? – Então, quem?, perguntei, já prevendo a resposta, porque sabia o quanto ele amava o seu avô paterno, a quem muito respeitava e seguia. – A senhora, vó. – Oh! Eu? – indaguei muito surpresa. – Sim! Porque a senhora é feliz! Por isso, em nome do Maikel, dedico estas memórias a todos aqueles que têm a coragem de ser e de sonhar sem medo de ser feliz.
Agradecimento Neste ano de 2023, em que celebro seis décadas da minha vida, dedicadas à educação – ensino da língua portuguesa e das literaturas brasileira e portuguesa – concomitante à cultura e à arte, e que comemoro 35 anos de Poesia, recebi o simpático convite da professora Susana Antunes, da Universidade de Wisconsin-Milwaukee, Estados Unidos, para integrar a coleção dos Cadernos de Estudos Açorianos, dos Colóquios da Lusofonia, Açores, Portugal, com edição de Chrys Chrystello (AICL). Esse convite muito me orgulha em razão da excelência do valor literário de todos os nomes que constam dos 40 fascículos já publicados. Por isso, e porque desde 2007, conheço a grande repercussão que os encontros bienais dos Colóquios da Lusofonia, no continente português e nas terras da diáspora açoriana conquistaram, e por haver participado em dez de suas sessões presenciais, nas ilhas do Pico (duas vezes) e na de São Miguel (8 vezes), quando apresentei palestras, resultado de pesquisas literárias, a maioria sobre poetas e ficcionistas dos Açores, agradeço, de coração aberto, a indicação do meu nome pela professora Manuela Marujo, e, em especial, todo o trabalho da professora Susana Antunes na organização do material para publicação.
Algumas narrativas que aqui apresento, já foram ante- riormente publicadas no Brasil em livros, antologias, coletâneas, revistas etc. Expresso a minha gratidão igualmente a todos os amigos que permitiram que eu expusesse a nossa história vivida, aos que deram autorização para que eu usasse os seus nomes próprios e àqueles que sem saber, porque daqui já partiram, são nomeados pelo amor e respeito que lhes devo. Gratidão também, a você, leitor, que muito especialmente irá me acompanhar por estas narrativas que tanto me dão satisfação de as haver recriado literariamente.
À procura de mim A Memória ajuda a sermos quem somos. Nada anda à solta nesse labirinto apertado, lago e granito. Gavetas organizadas, arquivo completo. O homem insiste, persiste, quer a leitura de outros textos, saber de outros contextos, ler os pretextos e as entrelinhas, descobrir a animação do virar da página e interpretar o colorido das folhas. Mas a Memória só cede aos poucos; quase sempre, sonega lembranças e embota a inteireza do que já se foi. Zelosa, sepulta segredos: desvelados, os homens seriam outros. Avarenta, sem sentido de justiça, sem explicação, quando muito repete, em mísera concessão, a cópia dos mesmos retratos, das mesmas tintas, dos mesmos desenhos, do mesmo script.
E, quando decide ajudar, o livro concedido é sempre igual: surrado, batido, mil vezes lido. História conhecida, sentida, raiz repetida. Uma vez ou outra, outro parágrafo, a capa de outro tomo, a graça – ou a desgraça – de outra leitura. Então, ludibriado, comportas quase abertas pelo furor das águas subterrâneas, o fácil fica difícil e o simples, desconexo. E o homem pele e polpa novas, desconhece-se, desconcerta-se, desencontra-se, ou... assume-se e tenta ser feliz. Quem sabe, melhor mesmo, seria a Memória, guardiã de aço, continuar cofre sem porta, muro sem fenda, palácio sem chave, penhasco negro de lava vulcânica que todos costumam respeitar.
Sumário Banho de mar com polvo e tudo..................................................... 19 Uma noite em Sambaqui................................................................ 35 No azul da memória....................................................................... 39 O bem da renúncia........................................................................ 47 Amor de outono............................................................................. 61 Notas para um romance................................................................. 71 E tudo isso é fado........................................................................... 95 Gente sou...................................................................................... 99 Amor e arte.................................................................................. 105 O caso das joias achadas na porta de um bar............................... 117 Encontro inesperado..................................................................... 123 Sete reis sem coroa....................................................................... 127 ...Entre os destroços do avião, uma carta inacabada...................... 139 O reencontro da chama perdida................................................... 151 As quarenta e nove qualidades do B.............................................. 157 Exercício do perdão...................................................................... 167 Entre o meu coração e o mar, as alamandas em flor.........................171 Nunca é tarde para perdoar......................................................... 187 No reino das plantas.................................................................... 195 Nossa história de amor | Peça em três atos | Sinopse do 1o ato......................................................................... 207 Milagre na Praia do Luz................................................................ 215 O guardar da caixa...................................................................... 227 Nicanor: sim, eu já o conhecia...................................................... 231 Do sétimo andar........................................................................... 243
Açores da memória à ficção Contos
Fajã do Calhau , Povoação, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal
Banho de mar com polvo e tudo Vilca Marlene Merizio Água Retorta. Água Retorta é o nome de uma pequena freguesia situada à sudeste da Ilha de São Miguel, no concelho da Povoação.1 Fica bem lá na curva da ilha, onde o mar dos Açores torna-se feminino, leitoso, massa argêntea em noite de lua, polpa de fruta nas manhãs frescas do outono, alumínio polido durante >> 21 << as quentes e úmidas tardes de agosto, mas lã-pluma azulada nos dias gelados de fevereiro. E foi em água Retorta, num fevereiro de frio rigoroso, que a nossa amizade começou: minha e de Dona Beatriz Pereira. O ano, se não me falha a memória, era 1989. Eu já estava nos Açores há quase 24 meses e deveria começar a escrever a dissertação de doutorado. Em casa não tinha clima: a família para cuidar, a tensão por ver quase extinto o prazo que a universidade do meu país me dera para estar afastada, a pressão íntima de “ter de escrever”, tudo me levava a um branco... Não, não, levava-me a 1 “O concelho da Povoação situa-se no extremo sudeste da ilha de S. Miguel, Açores, Portugal. Faz fronteira a norte com os concelhos do Nordeste e da Ribeira Grande, a Oeste com o concelho de Vila Franca do Campo e a sul com o Oceano Atlântico. Em termos administrativos, é constituído por seis freguesias: Furnas, Ribeira Quente, Nossa Senhora dos Remédios, Faial da Terra, Água Retorta e Povoação, sendo esta última a sede de concelho.” Enciclopédia Açoriana. Disponível em: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/ Default.aspx?id=9481. Acesso em: 20 março 2023.
Açores: da memória à ficçãoum vazio, a uma escuridão total de onde não conseguia vislumbrar nenhuma ponta possível capaz de ser puxada para desatar o nó que bloqueava a elaboração final do meu trabalho escrito, a tese. Foi bem nessa época que Rejane Salvi, minha querida amiga e conterrânea brasileira (quase comadre, que nos Açores fazia a sua especialização em pesquisa na área do Jornalismo, sob a fantástica orientação do Professor Doutor José de Almeida Pavão), conhecedora da minha trajetória, sugeriu-me uns dias de retiro para pôr as ideias em ordem. Lembramo-nos, então, de ocupar, durante aquele Carnaval, a antiga casa da Sra. Dona Germana, proprietária da residencial onde Rejane se hospedava. Aceitei. Os meus vizinhos e amigos em Ponta Delgada, professores Sílvio Conde e Licínia Correa – ah, quantas saudades! – levaram- me no seu aprazível carro a Água Retorta, numa tarde muito fria e chuvosa. Conosco, centenas de livros, canetas, papel e mais papel e comida para uma semana. A casa da Sra. Dona Germana há anos estava fechada porque a família migrara para a cidade; mesmo assim, estaria habitável se alguns reparos fossem feitos. Não havia >> 22 << gás no botijão antigo e, sem gás, o chuveiro não funcionava; os canos de água estavam completamente enferrujados e os fios elétricos sem condições de uso. Embora a casa fosse de muitos cômodos, todos amplos e mobiliados, escolhi para usar apenas aqueles que me pareciam mais aconchegantes: o quarto de dormir para uma pessoa só, a sala de visitas, a cozinha e o quarto de banho. Com o movimento na casa há muito fechada, os vizinhos foram chegando: um prontificou- se a trazer água para as primeiras limpezas, outros prometeram trocar logo no amanhecer do dia seguinte alguns canos da instalação hidráulica, outros, ainda, puseram-se a arrancar o mato que se acumulara nas proximidades da casa, deixando à mostra, para minha surpresa, pequenas flores coloridas que beiravam o caminho de pedra miúda, do portão à porta da cozinha que, antes, o capim alto cobria. As mulheres traziam cestinhos com queijo, morcela, pão e outros quitutes que nem me lembro do nome, só do sabor que ainda me embevece a boca. Quando chegamos, eu vira apenas as camélias vermelhas que me olhavam orgulhosamente enternecidas do alto das
árvores e os dois estupendos leões do portal de entrada, cobertos Vilca Marlene Merizio por uma hera verdinha, salpicada de flores minúsculas azuis, amarelas e roxas. Num instante, prestimosas vizinhas, todas elas senhoras de negro – que pena! –, que mal haviam tido tempo de se apresentarem, com baldes e escovas na mão, lustravam os leões de guarda, arrancando a sua coberta de veludo estampado, outras capinavam na beira do caminho estreito que levava do portão aos fundos da casa. Trabalharam assim, esses meus novos amigos, até a noite cair de todo. Não sentiam frio, deixando transparecer a alegria do trabalho cooperativo. Quando nem mais o lampião clareava, despediram-se, garantindo que na manhã seguinte, antes ainda de o sol aparecer, mesmo sendo domingo, ali estariam para “fazer da casa, um brinco”. A noite caíra rápido. Licínia e Sílvio também já haviam partido. Agora o silêncio era total. Silêncio de chumbo. Penetrante. Molhado. Agoniante. Ainda bem que tinha tomado banho em casa. Com a toalha de branquíssimo algodão que uma das mulheres havia me trazido como presente de boas-vindas, experimentei com a ponta dos dedos a água, que a vizinha deixara na bacia >> 23 << de porcelana para que eu me lavasse antes de deitar: geladíssima, estava a água! Lavei apenas o rosto e as mãos. Ainda com a pele úmida e agora mais gelada ainda, busquei abrigo entre as cobertas que havia trazido. Tudo fazia crer que a noite seria de acalmia e descanso. Afinal, eu não viera para isso? Para descansar do torvelinho de uma casa barulhenta onde os filhos adolescentes teimavam em ouvir música no mais alto som com a turma de amigos, quando não resolviam ensaiar com a banda da esquina, trazendo todos os instrumentos para a nossa garagem e usando as guitarras, os pandeiros e as violas lá de casa? Ledo engano. Não consegui conciliar o sono. Sons estranhos enchiam a noite. Mal comparando, lá em casa eu sabia de onde provinha cada barulho, por mais chato e ensurdecedor que fosse. Aqui, não. As aves e os insetos noturnos, acostumados com o silêncio da casa desabitada há tantos anos, mostravam agora a sua excitação, quem sabe até a sua zanga por tamanha intrusão da parte de uma estrangeira. Não sei se eram morcegos, ratos ou outros bichos: ouvia uma correria ensandecida pelo teto e pelas
paredes abaixo rumo ao porão e, de lá, novamente em direção ao teto, sem sossego, numa intermitência exasperante noite adentro. Ventava forte. O zumbido da ventania, o latido de cães e uma zoeira estonteante nos meus ouvidos, misturavam-se aos mugidos tristes dos animais encostados à parede da casa fronteiriça com o pasto. Eu tremia. Seria medo? Agora tenho certeza de que, sim, era medo. A situação era inédita: nos meus quarenta e cinco anos de vida cronológica, jamais dormira sozinha numa casa ou apartamento e, neste momento, estava eu ali, só, perdida entre ruídos estranhos e confusos, sem saber exatamente em que ponto da aldeia aquela casa se situava. Na véspera, mal tivera tempo de olhar em torno do morgadio; a noite caíra célere como céleres caem as noites do nosso desespero interior. Na verdade, não chegara a ver o meu entorno geográfico, a paisagem calmante da orla marítima, o casario rupestre, a bonomia que a vila transpirava. Via livros e livros a ler, o compromisso se apertando entre a data fixada para terminar a escrita e pessoas jamais vistas, tentando >> 24 << aparar o mato... e levantar a poeira que há décadas ali havia se Açores: da memória à ficção instalado. Se bem que a beleza do caminho já houvesse tocado a minha sensibilidade, ainda assim, não estava aberta àquele povo tão amoroso e hospitaleiro como, dias depois, vim a descobrir. Naquela noite, estava eu sozinha num cenário comple- tamente desconhecido, terrivelmente assustador, mais voltado para a ficção do que para a realidade. Sapos em bando coaxavam ao microfone do meu imaginário, cobras-dragão chispavam fogo, piranhas caíam das nuvens (e oh! Desculpem: nas ilhas do Arquipélago dos Açores não existem animais nocivos ao homem, muito menos cobras venenosas). Monstros que a tormenta do espírito medroso criava alimentavam a minha ansiedade, acrescida da angústia causada pela sensação de impotência do ato de escrever um texto que agradasse o meu orientador e o júri de defesa do doutorado, marcada para dali uns meses. Por fim, não tendo mais carneirinhos para contar, nem santos para invocar, já que havia pedido conforto e resignação a todos dos quais me lembrava, caí exausta num sono que durou, entre pesadelos e momentos de insônia, poucas horas.
Sussurro de vozes, o cantar da foice no capim molhado e Vilca Marlene Merizio o metal fino da enxada roçando a terra denunciavam que o dia para os meus vizinhos já começara. Mas estava escuro ainda, tão escuro que não conseguia ver as horas no relógio de pulso em repouso sobre a mesinha de cabeceira. Nem procurei os fósforos: sentindo gente por perto, virei para o lado e descansei mais um pouquinho. Levantei-me mesmo com o sino batendo. Ainda de pijama, abri uma fresta na janela e vi a igreja, bem no alto do morro, lindíssima, branca, imersa em mil tonalidades de azuis e verdes. Escancarei a janela, sem ligar ao frio: as casas da aldeia eram todas, todas, brancas, algumas delas com peitoril de pedras negras; as colinas coloridas por matizes de verdes diversos pareciam desenhadas, sem nenhum risco fora do lugar. As ruas pareciam desertas, a natureza limpa, clara, até parecendo que as encostas dos penhascos haviam sido varridas. O gado tranquilo, em fileira, comia pacientemente a refeição matutina. Os vales, ah... Os vales! Grotas de um verde que banhava a alma. Tudo perfeito. Toda a Criação comungava paz e harmonia. Era o paraíso. Não podia pensar de outra maneira vendo aquela paisagem de postal >> 25 << suíço. Mas, não, eu estava nos Açores, no concelho da Povoação, na ilha de São Miguel, na sua parte sudeste, num dos seus pontos mais afastado do centro de Ponta Delgada: Vendo que eu já acordara, já que havia deixado a janela aberta, uma vizinha chegou trazendo-me o pequeno almoço, como se referem ao nosso café da manhã: uma penca de bananas amarelíssimas, um chá quentinho de Maria Luísa, umas fatias de pão de milho, uma jarra de leite, manteiga e queijo de cabra. E umas fatias de bolo de sertã, que eu nunca tinha provado. Uma maravilha! Numa cesta de vime, ramos de camélias brancas e, na mão esquerda, um vaso de argila de boca larga. Comovi-me. – Sou a Beatriz, me disse ela, com um sorriso que jamais esquecerei. O marido logo chegou para consertar a bomba de gás, e ela própria, enquanto colocava uma toalha quadriculada azul na mesa, dizia que, depois das onze, iria me ajudar na limpeza da casa que, garantiu-me, voltaria naquele mesmo dia a ficar habitável. Mas, antes, teríamos de ir à missa. Explicou-me o caminho até a
Açores: da memória à ficçãoigreja como se fosse a coisa mais natural do mundo eu cumprir a minha obrigação de cristã. – Pode deixar tudo aberto, ninguém mexe em nada, acrescentou, enquanto me completava a chávena de café com o leite provavelmente de uma vaca holandesa (preta e branca como todas as vacas de tetas gigantes, bojo redondo, de onde tiravam dezenas de litros de leite diariamente) para que eu experimentasse as delícias de Água Retorta, junto com a massa sovada mal tirada do forno. Satisfeita com aquele pequeno almoço, servido com carinho e atenção, e refeita da noite de medo – agora o que importava era celebrar a monumental obra do Criador, que adornou esse pequeno povoado com a magnitude do silêncio feito prece – caminhei, seguindo a orientação de Beatriz, em direção à colina da igreja. As pessoas juntavam-se próximas a mim, como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Falavam da freguesia, perguntavam há quanto tempo eu estava nos Açores, queriam >> 26 << saber novidades sobre o Brasil (esta terra dos esquecidos, como afirmavam), saber se, na verdade, lá aconteciam os fatos narrados nas novelas (na época, década de oitenta do século XX, eram exibidas cinco novelas brasileiras pela TV portuguesa), narrativas que prendiam a atenção de todos em especial das famílias das freguesias mais distantes do centro urbano. O percurso longo em aclive até a igreja católica pareceu-me curto, tanto fui me distraindo com as companheiras do trajeto, que falavam sem parar. Na igreja, os que lá já estavam, com a nossa entrada, olharam para trás e cumprimentaram-me com um ar de sorriso. Não poderia existir melhor sinal de boas-vindas, pensei. Que povo gentil! Com a simpatia e a presteza do pároco, a missa não demorou. No caminho de volta, outras pessoas juntaram-se ao grupo já formado, dessa vez perguntando para que turmas eu ia lecionar. Pensavam eles que eu fosse a nova professora do lugar. Expliquei- lhes, então, que era professora, sim, mas que, naquele momento, a minha pretensão era descansar um pouco das tensões da cidade e começar a escrever um livro sobre um poeta português: David
Mourão-Ferreira. Vi admiração estampada nos olhos daquelas Vilca Marlene Merizio pessoas simples e hospitaleiras: uma brasileira estudando um autor português ali, em Água Retorta, na casa antiga da Senhora Dona Germana? E, então, resolveram, mais ainda, estreitar amizade, mostrando toda a solidariedade do mundo com quem dá a impressão de estar só. Não demorou muito, depois de eu haver chegado à casa que agora chamava de minha, as pessoas aparecerem com farnéis de biscoitos, pão e broas, chás, cevada e vinho, batatas cozidas recheadas com pimenta vermelha, enchidos, carne de vaca assada na panela, tigelinhas com caldo verde e com sopa azeda e até feijões e canarinhos assados ao forno. E tudo envolto em toalhas alvas, bordadas com linha azul, cheirando a carinho e aconchego. Assim como chegavam, aquelas mulheres de xailes negros iam ficando, me passando as receitas do bolo lêvedo e da massa sovada, sentando-se na sala, arrumando mais um vaso com flores, servindo mais um cafezinho ou um chá com torradas. Só à tarde, na hora do lanche, serviram as “malassadas”: era Carnaval e esse doce (tipo rosca de farinha de trigo) não podia faltar. Uma delícia, >> 27 << sobre a qual fizeram questão de me dizer como se fazia, marcando compromisso para que eu voltasse à aldeia para ver como se preparava a massa e fritava com bom óleo vegetal.2 Enquanto os homens trabalhavam no quintal e concluíam os pequenos arranjos de que a casa necessitava, pintando até uma parede para que os desenhos da umidade não fossem tão perceptíveis, as mulheres indagavam. Como se vivia no Brasil? Era verdade que as pessoas de uma mesma família não viviam juntas? Que os homens tinham mais de uma mulher? Que isso podia acontecer em toda a sociedade? Que as esposas infiéis deixavam os seus maridos com muita facilidade? E como eu vivia? Tinha filhos, como eram? Era casada? A liberdade de costumes era vivenciada por toda a gente? As mulheres vestiam-se mesmo com 2 Para o leitor melhor entender o que significa para o ilhéu de Água Retorta a importância da alimentação, busque assistir ao vídeo da 10a edição da Mostra Gastronómica de Água Retorta com produtos típicos da freguesia, acontecida de 28 a 31 de julho e 2022, em programa gravado pela RTP Açores, em: https:// www.facebook.com/watch/?v=1235459193934519
Açores: da memória à ficçãotão pouca roupa? E a comida? E as festas populares? E a religião? E as escolas? E as perguntas não paravam por aí, até aquelas muito antigas voltavam à baila: ainda existem índios? E as araras e os papagaios vivem em toda a parte? Eu dizia. Contava. Elas indagavam e escutavam, perplexas e muito interesadas. O assunto mais explorado foi o de relacionamentos: na novela pai e filhos agiam como amigos, assim também acontecia na vida real brasileira? Todos se davam bem nas famílias? E entre os vizinhos? Eles se ajudavam? O que havia de igual e de diferente entre o nosso país e o seu? E indagavam mais, indo mesmo a conteúdos mais íntimos que a mulher gosta de tratar quando está sem homem por perto. Empolgadas com a conversa, não sentíamos o passar das horas nem o frio: as labaredas do fogão a lenha iluminavam a nossa memória e aqueciam os nossos corpos desejosos de calor humano. Até aí não havia um único eu, falávamos como se cada uma fosse o seu País, como se fôssemos as representantes, uma da pátria distante, as outras, dessa pátria-mãe de mulheres de preto, >> 28 << de lenços atados à cabeça, de sapatos de sola grossa, só olhos e boca, mãos ao regaço... à espera de um sol que lhes custava a chegar. E assim, aqueles dias de Carnaval passaram entre risos e lágrimas, emoções há muito contidas e que, agora, entre seres do mesmo gênero – mulheres – podiam ser vertidas como toda a franqueza e serenidade. E assim ficamos amigas (embora eu não tivesse escrito uma linha sequer da minha tese), criamos um laço forte ainda mais apertado pelos nossos posteriores encontros pessoais. Um deles, talvez o mais marcante, tenha acontecido no verão daquele mesmo ano, quando voltei à freguesia de Água Retorta, conforme havia prometido: eu ia aprender a fazer as “malassadas”, mesmo não sendo carnaval. Havíamos marcado um (re)encontro na Igreja. Fui com toda a família. Depois de algumas horas de viagem, num caminho estreito de muitas curvas, entre a montanha à esquerda e o perau que levava ao mar, à direita, sempre morro acima. O mar ao longe, docemente esbranquiçado pela lonjura que alcançava o infinito, dava a impressão de não haver linha do horizonte, porque
exatamente onde era para a ela estar, começava a abóbada celeste, Vilca Marlene Merizio arredondando-se como se tratasse de um domo de fumaça posto sobre a ilha. E esse espetáculo era admirado por entre plátanos, fetos, hortênsias e copos de leite que se revezavam com bananais quase escondidos pelas faias que os protegiam do vento, seguimos atentos e maravilhados, muitas vezes surpreendidos pelo voo raso dos priolos que cortavam céleres a estrada, pela frente do carro, da montanha em direção ao mar. Atentos às placas indicativas do caminho, entramos à direita, e fomos direto à colina da igreja, parando o veículo abaixo da escadaria, perto da casa paroquial. A missa já havia começado. Não havia ninguém na rua. A igreja estava cheia. O padre era o mesmo do inverno passado, mas aquelas mulheres que ali estavam não me pareciam serem as mesmas. A imagem que me havia ficado daquele carnaval de confidências e confissões era a de mulheres extremamente sofridas, todas de luto, tristes, cabisbaixas, pesadas. E agora o que via era dezenas de senhoras alegres, sorridentes, leves... De salto, com vestidos floridos e cabelos à mostra! Quando a missa acabou, depois de todos os cumprimentos, >> 29 << comecei a ficar preocupada por não ver a Beatriz, com quem mais partilhei aqueles dias de carnaval e na casa de quem ficaríamos hospedados. Por último, saindo da sacristia, vejo uma jovem mulher, de cabelos curtos, roupa clarinha, sapatos de salto alto e fino, vir muito sorridente – e de braços estendidos – na nossa direção; pois era a Beatriz. Custei a acreditar. Há seis meses, quando a conheci, realmente estava de luto pela mãe que perdera. Agora, livre do luto, parecia uma outra mulher. Irmãs em completo reencontro, abraçamo-nos demoradamente. E felizes. O almoço foi farto. Açorda de lapas, assado de vitela, debulho, vinho, pão. Arroz doce como só a Beatriz sabe fazer. E o licor? Ah, sim, de leite, de ananás, de maracujá... O que mais pedir depois de tão vibrante reencontro? Não havia nada mais a requerer. Na manhã seguinte, fomos para a Fajã do Calhau, a alguns quilômetros de distância, mas ainda dentro da mesma freguesia, onde a família de Beatriz conserva a casa de seus antepassados, por mais de 300 anos. O caminho so1 de transeuntes, do Faial
Açores: da memória à ficçãoda Terra à praia, tinha-se de percorrer a pé, por sobre pedras enormes, redondas, o calhau rolado. A praia toda é formada não por grãos de areia, mas por pedras arredondadas de tamanhos diversos, não menores do que uma mão fechada. E foi nas costas e nos braços que carregamos nossos pertences. Durante a caminhada, dificultada pelas pedras que rolavam sob o nosso peso, o espetáculo era surpreendente: a água do mar completamente límpida e transparente: verde esmeralda, com pequenas ondas, banhava nossos pés calçados. Via-se até longe a sucessão de pedras roladas, umas encaixadas nas outras, verdadeiro chão flutuante. E por entre as pedras abauladas, escuras, peixes nadavam até próximo à última carreira de pedras submersas. Chegamos à casa antiga, que até se poderia chamar de mansão pelo tamanho, depois de uns quarenta e cinco minutos de caminhada lenta. A paisagem deslumbrava. Do local em que olhávamos o mar, tínhamos a certeza de que realmente estávamos numa curva da ilha, bastava olhar a linha ovalada que separava >> 30 << tenuamente céu e mar, justamente naquele dia de intensa luz solar a brilhar efusivamente. Foi no dia seguinte, logo cedinho, depois de um requintado dejejum, que tomamos o nosso primeiro banho de mar, naquele verão europeu de 1989, meio trôpegos pela falta de apoio fixo aos nossos pés em razão das pedras de calhau rolado, mas completamente deslumbrados com a temperatura da água e com o espetáculo que se descortinava num horizonte que se curvava à nossa volta, comprovando que realmente a terra, vista de onde estávamos, é arredondada nas suas extremidades. Na casa grande, nada faltava: comida e bebida fartas, boas camas e a atenção constante dos donos da casa. O pão de farinha de milho feito por Beatriz é incomparável. Ela me ensinou a técnica de trabalhar a massa, mas por mais que esforce minha memória não encontro palavras para descrever a sua agilidade nas dobraduras que fazia afim de que o pão mantivesse uma forma característica de envelope cuidadosamente fechado. E enquanto trabalhava, Beatriz cantava. E cantou durante toda a temporada
que lá ficamos, mesmo quando passeávamos por entre a horta, o pomar e o jardim, tudo muito bem cuidado pelo marido e filhos. Nossos serões foram estupendos. A sensação que ainda trago é a de estar ancorada em pleno mar. O céu estrelado nascia abaixo de nós daquele horizonte infinitamente côncavo aos nossos pés, subindo em claridade até nossas cabeças e escondendo-se por trás da montanha que amparava os fundos da casa tricentenária. Olhando para o mar, bem lá ao fundo, miríades de estrelas saltavam de dentro d’água, num nascer de sóis noturnos como jamais havíamos visto antes. Enquanto o Senhor António, para nos alegrar, fazia fogueiras com um tipo de cana – a canasvieira de lá – que estoura como foguetes de estrelinhas, Beatriz, deitada em uma esteira, ao meu lado, no varandão enorme em que descansávamos após o jantar, cantava ao estímulo de palavras que eu e a minha filha de sete anos íamos dizendo ao acaso. O repertório de Beatriz era vastíssimo, incluindo muitas músicas brasileiras que nem nós sabíamos de cor. E ela sabia. Sua voz maviosa dizia bem de uma carreira de >> 31 << cantora e musicista interrompida em benefício da família. Vilca Marlene Merizio Num desses dias de confraternização familiar, o casal anfitrião confessou que jamais havia tomado banho de mar. Surpeendemo-nos... Um dos sonhos de Beatriz era possuir um maiô. Eu havia levado três, todos já usados. Lembro de um deles, colorido, do lilás ao vermelho, em listras onduladas; era o meu o preferido. Ofereci a ela. Agradeceu-me enternecida: podia realizar um dos seus muitos desejos, vestir-se com um “fato de banho” e entrar no mar. Na manhã seguinte, enquanto eu ainda me arrumava para ir à praia, vi Beatriz passar em direção ao mar, me apressando para aproveitar aquele instante para ela divino, quando ia vestir um maiô e entrar na água para um banho de mar. Minutos depois, equilibrando-me por sobre as pedras de calhau rolado, encontrei Beatriz cantarolando uma canção brasileira, encostada a uma grande pedra, de olhos fechados e braços abertos na diagonal, toda refestelada, como se estivesse sonhando. Estava de vestido.
Açores: da memória à ficção– E o maiô? Não serviu? – Serviu, sim, respondeu-me ela. Estou com ele. Sob o vestido... E fez um gesto com a mão, puxando a alça do maiô para que eu visse que realmente ela trajava o maiô por baixo da roupa usual. Me quedei, surpresa: para Beatriz bastava saber que estava de maiô. Que os outros soubessem disso não lhe interessava! As gargalhadas do seu António me chamaram a atenção, interrompendo a conversa com Beatriz. O seu António, no seu primeiro banho de mar, fazia-nos rir: estava dentro d’água, numa boia improvisada, enorme. Ele, com voz rouca e troante, gritava, abanando com as duas mãos para que olhássemos e víssemos que ele estava na água, de dorso nu, tomando banho de mar, também pela primeira vez, embora sempre tivessem veraneado naquela praia. Foi hilário. Seu António era pessoa carismática, simpático, bonachão. E forte. Para suportar o >> 32 << seu peso, somente uma boia de borracha, antes tendo sido câmara de ar de um pneu de trator agrícola. Beatriz continuava encostada à pedra, cabeça solta, braços estendidos, voz dolente cantarolando, agora, uma canção para mim desconhecida. Assim ficou por quase todo o resto da manhã, embalando-nos, sereia presa à pedra, até que... de repente, um salto, e com ele, um grito só: – Olha o polvo! Beatriz afastou-se da pedra e correu em direção ao mar. Rapidamente, mergulhou de vestido e tudo na água transparente daquele mar em dia de calmaria. Remexeu as pedras com violência incontida e, sem que desse tempo para entendermos o que estava acontecendo, voltou à tona com o braço direito tomado pelos tentáculos de um polvo gigante, ainda vivo. Foi um espetáculo dantesco. Corremos esbaforidos pedras acima, tropeçando, caindo, virando os pés, numa ânsia de fuga (quando, agora penso, devíamos tê-la ajudado a livrar-se daquelas garras que lhe pareciam estrangular o corpo robusto). No entanto, o seu sorriso
de vitória, depois de haver-se livrado dos tentáculos do polvo e jogado aquele corpanzil escuro ao chão, compensou-nos do susto. – Meu Deus, é um milagre! Esse é o dia mais feliz da minha vida, disse ela, com um sorriso de orelha a orelha. Desde menina que venho pegando polvos e ninguém acredita! Agora, graças a Deus, vocês viram! Vocês são testemunhas. Eu sempre falei a verdade, mas papai brigava comigo. Não acreditava! Nunca acreditou! Sempre era o meu irmão que recebia as glórias de ter apanhado o polvo. Agora vocês viram; eu sei mesmo pegar polvo! Eu pego polvo com as mãos! Nem meu marido acreditava que eu fosse capaz de agarrar um deles. E dali mesmo foi correndo em direção à casa, arrastando aquele precioso pescado. Algum tempo depois, nem era ainda onze horas da manhã, escutamos sua voz: – O polvo está servido. Vamos almoçar! Foi o polvo com vinho mais abençoado que comi em toda a minha vida! Somente a menina Beatriz poderia temperá-lo com tanto entusiasmo e amor. >> 33 << Bendita seja Beatriz! Bendito o verão que passamos juntas! Vilca Marlene Merizio Bendito seja o povo de Água Retorta. Benditos os dias que aprendi a conviver com a cultura açoriana legítima, de raiz. A cultura nativa dos nossos ancestrais que vieram dos Açores e que aqui, no Brasil, se miscigenou com as outras culturas já existentes e com as demais que mais tarde aqui chegaram trazidas por outros imigrantes europeus e não só.
Praia de Sambaqui, Ilha de Santa Catarina, Florianópolis-SC, Brasil
Uma noite em Sambaqui A noite estava úmida. Chovia de leve. Da praia não se via o mar; somente o verde da copa das árvores sobressaía daquela ponta da ilha. Mas eu sabia que o oceano estava ali... Os barcos lá fora... Ao longe, o contorno das montanhas a debruar o horizonte... No resto... tudo era (ou estava?) escuridão. >> 37 << Entramos no rancho de pesca que, agora, na entressafra, Vilca Marlene Merizio destinava-se ao arrasta-pé domingueiro. Muita gente. Boa música. Alegria. Abrimos espaço. Sorrisos. O ritmo a calar fundo no coração. Um copo, não! Um copinho de butiá na cachaça a aquecer o corpo, e o samba a movimentar os pés. Calor. Conforto. Vontade de abraço. E então, os olhos... O olhar mais terno e penetrante do mundo entrou nos meus. Profundo. Vivo. Corredor de luz. Desapareceram os músicos, os barcos, as lajotas do chão. Tudo ficou mar sem fim, ondas de puro azul... E o céu irrompeu em minha alma. O corpo em segurança pelo abraço forte, a mão aberta em oferta ao se fazer concha de proteção e aconchego, a pele do rosto macia... e os olhos a inquirir, a se chegar pela voz aberta em festa dizendo de felicidade, de ternura... de amor. No rancho, ninguém mais. A cadência da música tornava- nos bailarinos de uma canção que começava a se cumprir. Éramos
dois anjos enlaçados pela força do olhar e pela bênção do sorriso. Sim, estávamos felizes. Imensamente felizes! >> 38 << Açores: da memória à ficção
No azul da memória Amor, meu Amor, Eis-me aqui, em São Paulo, esperando o voo para o sul. São 18 horas. Ainda terei de esperar mais três horas para, finalmente, reentrar na minha vida – naquela da qual venho fugindo séculos >> 41 << a fora. Esforço-me para alinhar-me à minha ilha, mas eu toda Vilca Marlene Merizio teimo em continuar (alma, pensamento e, por incrível que pareça, corpo) na tua Ilha. No meu coração, vulcão incandescente, línguas de fogo petrificam o meu sentir. Ora o fogo abrasador, ora o mar revolto, gelo e brasa maceram-me as entranhas na tentativa de me fazer parar, de me obrigar a retroceder, de impedir que vá mais além, de cruzar a fronteira para ocupar um espaço que a mim já não pertence. Respiro. Levanto a cabeça. Olho em volta: pessoas estranhas caminham absortas, presas em si mesmas. Estranhos. Respiro novamente. Longamente. Aos poucos a aflição se amaina. À minha memória vêm nitidamente o frescor das Sete Cidades, o aconchego da tua companhia e – não sei se digo o desabrochar de uma juventude exuberante ou – a presença viva, colorida e saudável da tua juventude. Sinto novamente o teu largo sorriso... e nele mergulho como se fosse o meu jardim, o meu lugar de
Açores: da memória à ficçãorepouso. Serenidade e quietude transportam-me para um mundo de silêncio e paz irreversíveis. Com teu jeito maroto de menino que esqueceu de parar de crescer, despertaste em mim a “sereia açoriana”, a respeito da qual o professor Pavão tanto me alertou desde o momento em que falamos sobre a minha permanência nos Açores (... e isso desde o século passado). Teu canto mágico ressoa aos meus ouvidos e faz eco por toda a gare. Envolve-me... Tal como Ulisses amarrou-se ao mastro do navio, com os ouvidos tapados para resistir à tentação de caminhar rumo à melodia do amor, assim resisto eu, criando tentáculos imaginários à minha volta, prendendo-me a este banco frio e desconfortável de aeroporto. E resisto. E sofro. Choro agora pelo que não pude reter, pelo que, por ética e por respeito humano, jamais poderia modificar em tão curto espaço de tempo: o status quo das pessoas que, misteriosamente – ou magicamente – em tempo relâmpago, comecei a amar nas ilhas desse nosso arquipélago açoriano. Os fatos, as sensações, os sentimentos, tudo se enrola e confunde >> 42 << num misto de dor, de encantamento e de felicidade. Quero ficar no que vivemos em Pico e a razão faz-me voltar para a intermitência dos passos apressados que se misturam às rodas dos carrinhos de bagagem do aeroporto nesta hora de movimento. Não vejo rostos; vejo sapatos, bainhas de calças e malas; pressinto somente a força das mãos que empurram ansiosas o veículo, e com ele o resumo das suas vidas, o espólio, o que sobrou do que viveram, cuja essência é levada consigo, como se fosse o símbolo do que não são ou do que deixaram de ser. Esquivo-me da multidão esmagada pela síntese de suas vidas. Importa-me saber apenas quanto de lembrança poderei carregar – não, que carrego! – dos dias intensamente vividos aí, quando as horas de repouso eram tão escassas que o redemoinho em que estávamos imersos nos sustentava e nutria. Vejo agora o quanto estava eu centrada – demasiado centrada – em nós, na alegria suprema de estar contigo, na vontade (talvez imperdoável) de que aqueles momentos se tornassem eternos. E a vertigem materializa-se no anseio físico de ter-te junto a mim. E mil vontades te trazem de volta, tu que vieste comigo,
eu que fiquei aí contigo. Como entender? Vontade de ficar aí, de Vilca Marlene Merizio não sair daí, de aconchegar-me ao teu ombro quente, fofo e forte. Acordar? Não! O que desejo mesmo é um abraço puro, infindo... Agora, mais que ontem, mais que anteontem, dá-me vontade de descansar a cabeça em teu peito e dormir. Não sei... Tudo está longe e lento, demasiadamente lento e quente. E vazio. Vejo-me com quatro ou cinco anos de idade. Mamãe e minhas irmãs insistem para que eu vista, sobre a saia de xadrez azul, um avental branco de babados e rendas. Vamos à missa e é assim que as meninas se vestem. Detesto avental. Recuso-me a vesti-lo. Não adiantam explicações. Não quero, não gosto, não me faz bem o organdi engomado. Não há mais ninguém, só eu e a minha recusa: deixaram-me sozinha no jardim, estacada sobre a trilha de pedregulho que leva ao portão de madeira carcomida pelo tempo. Desvencilho-me dos laços, dos tirantes, da goma que arrepia a pele. Jogo o avental ao chão. Piso e repiso. O pano branco, massa informe, fica ali, aos meus pés, no lado direito da minha lembrança. Sandra Gaby afirmava que viu quando pisei o avental e – ó >> 43 << horror! – cuspi sobre ele. Ainda hoje me arrepia tal cena. Um nó vem-me à garganta. Essa foi a minha primeira malcriação na vida. Depois, com o tempo, vieram outras, algumas imperdoáveis. Houve uma época, quando os meus filhos eram pequenos, em que eu trabalhava doze horas por dia, em três escolas diferentes. Lecionava para aproximadamente doze turmas de alunos por dia (das sete e trinta da manhã às vinte e três horas). Entre idas e vindas, percorria, de carro, sessenta e quatro quilômetros diários, tendo apenas para almoço com a família uns escassos trinta minutos. Sobravam-me apenas cinco minutos para descanso, enquanto os meninos escovavam os dentes. Então, eu deitava e dormia alguns segundos na minha cama de casal. Acordava assustada, tremendo... – Mãe, tá na hora. Vamos! Numa dessas ocasiões diárias de descanso-relâmpago, fui acordada aos sobressaltos: estava mais que atrasada. Sozinha no quarto, extremamente cansada, mas consciente do que ainda me aguardava nas horas seguintes, joguei, com toda a força, o meu
Açores: da memória à ficçãorelógio de pulso contra a parede (odiava ter de olhar as horas: ora porque ainda faltava muito para o dia acabar, ora porque já estava no momento de sair de casa...). Era um Seiko novo; nunca mais o relógio teve conserto. Escondi o fato; só vinte anos depois, falei sobre o acontecido. Foi minha segunda malcriação. A terceira aconteceu antes de nós, eu e minha família, irmos morar no exterior. Muito estresse, o trabalho na universidade durante o dia todo, os compromissos se avolumando, a hora da partida chegando e um marido reclamando de tudo e negando- se a acompanhar-nos naquela viagem de trabalho/estudo. Um dia, mais que os outros, reclamou da comida – peixe assado ao forno – (na véspera, um domingo, eu passara a tarde toda limpando dezenas de peixes minúsculos que havíamos comprado direto do barco de pescadores, nos Ingleses). Ele estava sozinho à mesa: chegara tarde para o almoço e todos já haviam se alimentado. E reclamou, reclamou, reclamou... (Hoje compreendo que, talvez, a sua reclamação não se referia só ao peixe com batatas...). Não me contive: tirei tudo o que lhe estava à frente (menos o prato) >> 44 << e joguei no lixo. Tudo. Ação imperdoável da qual até hoje me envergonho. Mas fiz. A quarta malcriação... Bem, a quarta tu a conheces. Participaste dela. Ainda bem que não perdeste a razão e recolheste a camélia despetalada. “A planta não tem culpa”, ouço-te dizer. E não tinha mesmo. Pobre camélia, a sua essência é floral indicado para as pessoas que querem desenvolver o amor incondicional. Nesse caso, a culpa foi (e é) somente minha: paralisei de medo quando senti faltar-me terreno sob os pés. Naquele momento, senti a morte. Recusava-me a escutar o que para mim era difícil de entender. Não conseguia decifrar o novo homem que tinha diante de mim. Não, não era o mesmo. Meu príncipe há tanto esperado não podia ter se transformado. O pavor de constatar que o altar amorosamente construído nos últimos meses estava prestes a ruir jogou-me para dentro de mim mesma. Julgando-me, aconselhando-me a reconciliação com o meu ex-marido, ferias profundamente minha dignidade de mulher. E me encolhi. O luto fez morada nas minhas profundezas. Sozinha, cobri-me de tristeza.
Lembras o que sucedeu? Durante dias e dias havia me acolhido com a tua compreensão. Disseste-me mesmo: “De hoje em diante, te conduzirei a momentos felizes, não te sentirás mais sozinha”. E daí para frente, deixavas-me flores todos os dias, levavas-me desde a Praia do Silêncio à Ponta da Madrugada, almoçávamos e jantávamos juntos, passeávamos quer na chuva torrencial, quer nos ventos que antecediam os ciclones, ou ao sol das praias de areia incandescente, bebíamos das águas azedas das Furnas às mais doces de São Vicente, enfim, éramos parceiros de todas as horas. Amigos mesmo, de verdade. E, na última noite da minha estada na tua Ilha, entraste no meu aposento como rei, sentando-te na melhor poltrona do apartamento, enquanto eu, que já estava deitada, porque não te esperava mais, cheia de uma expectativa que não deixara crescer para não sofrer com possível desilusão – havias me dito: toda a cidade pensa que sou gay –, recostei-me na cabeceira, amparada pelas volumosas almofadas de cama, enquanto conversávamos. E daí, sem mais nem menos, começas a engatilhar uma conversa estranha, dizendo ser certo perdoar meu ex-marido etc., >> 45 << etc., dando-me a impressão de que o que mais querias era que eu te Vilca Marlene Merizio esquecesse, que não valeria a pena saudades infundadas. Mandei- te à merda e puxei o cobertor até o topo da cabeça quando senti que havias levantado e apagado a luz do quarto. Ainda tive tempo de jogar na tua direção o vaso com as últimas camélias que havias me trazido pela manhã. E aconteceu o que eu não esperava: voltaste devagarzinho, recolheste as flores do chão e despetalaste-as sobre o meu corpo coberto as camélias em flor. E só então saíste do quarto. Do jeito que estava, fiquei, sem me mexer, sem chorar, sem dormir. Agora, sim, agora, sinto vontade de dormir. Graças a Deus, Amor, vieste no outro dia. E sofri te vendo sofrer... Acredito que naquela noite quase fatídica, véspera da minha partida, de ti também se tenha apoderado um medo qualquer; quem sabe, até o reconhecimento de que tu também tivesses
Açores: da memória à ficçãoouvido o tal canto da sereia açoriana. E reagiste, então, em defesa da tua própria liberdade. Quiçá, da minha! Penso agora que, talvez, eu pudesse ter mudado o rumo dos acontecimentos, contrapondo objetivamente as tuas ideias com informações mais precisas. Mas deixei-me levar... Faltaram-me ânimo, coragem, ousadia. O medo de repetir os mesmos erros do passado assustou-me... Tudo me fazia crer que o filme que vivíamos era o mesmo do qual eu-personagem tentava me livrar desde nossos primeiros anos de exílio. E assim deixei-me ficar, com raiva, com dor, sem vida, sem luz. Tu mesmo havias tocado no interruptor. Peço-te desculpas, Amor... Peço-te, perdão... Se eu estivesse centrada em mim mesma, poderia hoje estar mais confortada. Ou, quem sabe, lastimando mais a sorte... se não fosses tu a perceber as malhas em que nos íamos enredar. Mas tu, meu Amor, tu conseguiste nos salvar. Reagiste. Voltaste no dia seguinte, ainda de madrugada. Mas, eu já havia saído à procura de consolo no olhar benevolente do Senhor >> 46 << Santo Cristo. E ainda te vejo, primeiro muito triste, nervoso e preocupado; depois, à beira da piscina, olhos fechados, tal qual bondoso monge, readquirir tranquilidade, sorrir e novamente voltar à calma. Eras novamente tu, meu Amor. E aí mais uma vez fui feliz. Agora, ainda aqui neste tumultuado aeroporto de São Paulo, relembrando, trago essa felicidade de volta, revendo-te à luz do sol e do azul da minha memória, manso, terno, amorosamente entregue a ti mesmo. E, no fundo, pensando em mim.
Lagoa das Sete Cidades, Ilha de São Miguel, Açores, Portugal (Foto: Manuela Marujo)
O bem da renúncia Vilca Marlene Merizio Sexta, pela manhã. Lagoa das Sete Cidades. Na véspera, o jantar a convite de nosso amigo transcorrera bem. Bem demais, até. Os olhares ternos, a gentileza, a cumplicidade estampada nos gestos. O sangue borbulhando, a perna esquerda a encostar- se num leve roçar, o beijo esfomeado no músculo vigoroso do >> 49 << braço direito, os sorrisos afirmativos... A vontade de ficar junto tornando a noite mais longa. Na despedida, o abraço, meio que constrangido dela, a explicação meio desajeitada dele, o ar maroto dos dois: “Ela me suga!”. E o questionamento do amigo: – Por que não o pedes em casamento? E a resposta, triste, silenciosa, dela: – E precisa casar? Silêncio. Cada um acendeu os faróis do seu caro e partiram, sozinhos, (modernidade?) pela madrugada deserta. À hora habitual daquela sexta-feira cinzenta, a mensagem pelo celular registrava o início de mais uma sessão terapêutica de caminhada. Em velocidade moderada, descemos o morro, de carro, sob o tempo fechado e frio. Conversa amena; comentário sobre a noite anterior, não sobre como nos sentíramos a respeito de nós mesmos, mas, de forma geral, como havia transcorrido as horas daquele jantar nem festivo, nem brilhante; apenas de confraternização pelo reencontro.
Açores: da memória à ficçãoParamos na praça para um lanche rápido. O primeiro trajeto que percorremos a pé foi leve, alegre: as recordações mais amargas de uma infância de desafetos prolongada foram logo substituídas pelo vigor da caminhada. Aos vinte minutos de esforço físico, começamos a subir a colina que ladeia o penhasco. Uma paradinha para equilibrar os batimentos cardíacos, algumas observações sobre o fato de “quem alimenta domina”, e lá estava eu a discorrer sobre os meus processos íntimos de proteção mental. Falei da técnica do espelhamento, ensinei traçar o amparadouro geométrico, a defesa das redes eletromagnéticas, a inclusão das palavras benéficas, a onda de energia curativa... E ele calado. Descemos, então, pelo mesmo caminho em declive. Eu falava... Não lembro mais o quê. Ele continuava calado. Na volta, abandonamos o passeio e caminhamos pela relva, rente à lagoa. Ventava. O sol aparecera, ainda tímido. Uma avó amorosa brincava com a netinha de uns dois anos. O quadro era de uma ternura infinda: a candura da avó – belíssima e elegante com seus cabelos brancos ao vento – sentada na orla da praia, >> 50 << tinha muito perto de si a criança, pernas com pernas, proteção divinizando o cuidado. Enquanto balançava a alva e bem cuidada mão, a avozinha deixava a areia cair por entre os dedos numa lição de amor. Comovi-me. Pouco mais adiante, ainda sob o impacto da cena testemunhada, e já me sentindo aquecer pelos raios do sol, dispus- me a exercitar-me segundo a técnica corporal do Lian Gong. Mal tinha feito os primeiros movimentos, uma sensação de bem-estar levou-me a fechar os olhos e a permitir que uma viagem astral se desse início. Formou-se, então, um quadro vivo na minha tela ima- ginária: a paisagem modificara-se. A água de uma lagoa que mais parecia ser dos Açores, em razão da montanha e dos muitos verdes ao fundo, espelhava-se. De uma lagoa tirada da realidade, apareceram águas escuro-prateadas, com matizes em ouro, lisas, silentes. Um barco, vindo da esquerda, aproximava-se em velocidade assustadora, impulsionado pelos braços fortes de uns seis homens que remavam com extremo vigor. O barco de forma abaulada, como se dois remadores, dos oito, estivessem lado a
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