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MdeMemória

Published by Paroberto, 2020-10-08 12:26:26

Description: MdeMemória

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M Maria Esther Maciel de Memória tlO.. n



M de Memória

Tlön Edições Rua Tomé de Souza, 557/1301 Savassi 30.140-131 | Belo Horizonte, MG

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Copyright © 2020 Maria Esther Maciel Copyright © desta edição Tlön Edições Capa e projeto visual original Julio Abreu | Leonora Weissmann [Jiló Design] Editoração Paulo Roberto da Silva Revisão Luiz Morando Ficha catalográfica M152m Maciel, Maria Esther, 1963- M de memória [Recurso eletrônico on-line] / Maria Esther Maciel. 1. ed. – Belo Horizonte : Tlön edições, 2020. 208 p. : 18 x 26 cm Inclui bibliografia ISBN 978-65-80504-00-8 (e-book) 1. Literatura moderna – História e crítica. 2. Ensaios brasileiros. 3. Arte e literatura. 4. Enciclopédias e dicionários. I. Título. CDU: 869.0(81) – 4 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071 2020 Tlön edições Rua Tomé de Souza, 557/1301 Savassi CEP 30.140-131 | Belo Horizonte, MG

Para José Olympio, in memoriam



ainda de maneira incompreensível e inexplicável, tenho certeza de que lembro o próprio esquecimento, que encobre aquilo que lembramos Santo Agostinho há um tempo para desviver o tempo. Orides Fontela



SUMÁRIO Prólogo 11 A de Artifício 15 B de Borges 23 C de Cinema 31 D de Docência 39 E de Enciclopédia 47 F de Formação 55 G de Greenaway 67 H de Hibridismo 73 I de Inventário 81 J de John Coetzee 87 L de Lucidez 93 M de Memória 99 N de Não 105 O de Octavio Paz 109 P de Poesia 117 Q de Quando 127 R de Ruptura 141 S de Sedução 149 T de Trans 157 U de Universo 165 V de Viagem 171 X de Xadrez 177 Z de Zoo 181 Et Cetera 189 Lista de orientações e supervisões 193 Bibliografia consultada 197 Agradecimentos especiais 207



PRÓLOGO O que não está ordenado de um modo definitivamente provisório o está de modo provisoriamente definitivo. (Georges Perec) Não é a primeira vez que evoco um breve ensaio de Borges, de 1943, para discorrer sobre o ato de escrever a história de vida de alguém ou traçar o percurso literário-intelectual de um escritor. Trata-se de “Sobre o Vathek de William Beckford”, do livro Outras inquisições, em que o escritor argentino, após dizer que a vida poderia resultar em um número indefinido de biografias de acordo com a escolha que se faz dos fatos e acontecimentos que a compuseram, lança a interessante hipótese de que, se pudéssemos reduzir uma vida a vinte mil fatos, seria perfeitamente possível descrevê-la com trinta e cinco, cem ou duzentos e vinte, selecionados arbitrariamente. Uma das possíveis biografias poderia seguir só os números ímpares dos acontecimentos; outra, a dos múltiplos de sete; outra, a dos múltiplos de dez, e assim por adiante. A história de uma pessoa a partir de todos os livros que ela leu ao longo dos anos não seria, sob essa perspectiva, descabida. Tampouco a de suas viagens, a de seus sonhos ou de suas noites de insônia. Isso parece condizer também com a escrita de um memorial acadêmico – gênero que se situa instavelmente entre a autobiografia, o relato, o ensaio e o currículo. Quantos dados, acasos, desvios, acontecimentos, viagens, livros lidos e escritos, cursos e alunos, encontros e desencontros comporiam a vida de alguém que tenha dedicado décadas de sua vida ao ofício de docente e pesquisador de uma universidade? Creio que nenhuma memória daria conta de registrar tudo, e tampouco seria possível construir um relato completo das lembranças que permaneceram vivas e das que poderiam ser resgatadas do esquecimento. Não me arrisco, à maneira de Borges, a mencionar aqui um suposto número de itens que poderia abranger os quase 27 anos de minha vida como professora da Faculdade de Letras da UFMG. Mas digo que, por também considerar o caráter múltiplo e fragmentário de qualquer história de vida – seja esta pessoal, profissional ou literário- intelectual – foi que decidi construir este memorial a partir de uma seleção, certamente subjetiva, insuficiente e arbitrária, das coisas

que compuseram minha trajetória ao longo desse tempo. E, para ser coerente com o meu pouco apreço pela ideia de tempo sucessivo e linear, optei por “costurar” temporalmente os itens de minha seleção a partir da articulação entre continuidade e descontinuidade, sucessão e simultaneidade, caminhos e desvios – que acredito ser a mais condizente com o tecido da memória e da escrita memorialística. Confesso que, em decorrência de tais escolhas, fiquei bastante em dúvida quanto à estrutura que adotaria para este trabalho. Mesmo porque eu queria encontrar uma configuração que pudesse corresponder, de certa forma, aos temas, acontecimentos e experiências selecionados para o relato de minha carreira acadêmico-literária. Foi, então, que tive a ideia de uma estrutura em forma de inventário ou coleção, que pudesse funcionar também como uma espécie de combinatória – estratégia, aliás, já presente no meu romance O livro dos nomes, de 2008, por vias ficcionais. Soma-se a isso o fato de que os próprios temas “inventário” e “coleção”, conjugados aos de “lista”, “enciclopédia” e “constelação” já vêm fazendo parte, há muitos anos, do meu repertório de interesses crítico- teóricos. Definida, assim, a configuração física do memorial, foi necessário estabelecer também os critérios de ordenação de suas partes. E como a ordem alfabética, que sempre me foi cara, pareceu-me a mais viável para o tipo de trabalho que eu tinha decidido fazer, pus-me a selecionar os temas/termos de acordo com as letras do alfabeto, para em seguida enfrentar o desafio de tentar transformá-los em verbetes, à feição de uma enciclopédia, e criar possíveis conexões entre eles. É, portanto, o resultado dessa tentativa que apresento aqui neste volume. Esclareço que sua leitura permite diferentes movimentos: na ordem sequencial do abecedário, na ordem aleatória e no fluxo/refluxo das remissões de uma parte a outra. No caso desta última opção, é só seguir os termos correlatos ao tema, que aparecem acima de cada definição dicionarizada da palavra/título de cada seção. Numa versão eletrônica do trabalho, seria apenas “clicar” num dos termos listados para se deixar conduzir a uma outra seção correlata, que contém dados suplementares à precedente. Para quem considera importante seguir um roteiro cronológico das atividades arroladas e comentadas no memorial, é só ir ao verbete/ capítulo “Q de Quando” para se inteirar das datas por uma via mais linear e sucessiva. Nos itens “D de Docência” e “F de Formação”, informações mais objetivas e contínuas sobre minha carreira também podem ser encontradas. E para maiores esclarecimentos sobre minha concepção de memória, é só ir ao “M de Memória”, onde discorro sobre o tema. 12 Maria Esther Maciel

Já para quem deseja obter maiores informações sobre a composição do memorial, recomendo uma visita ao “X de Xadrez”. Alguns nomes próprios também ocupam as letras do alfabeto, todos eles dos autores medulares que cumpriram (e ainda cumprem) um papel decisivo no meu percurso acadêmico, literário, intelectual e pessoal. Em vários momentos do trabalho, vali-me também de remi- niscências pessoais, afetivas e familiares, intrinsecamente vinculadas a algumas lembranças de ordem acadêmica. E não deixei de me reportar também a episódios banais e acontecimentos fortuitos, por estar ciente, como diria Roland Barthes, de que “na atividade de uma vida é preciso sempre reservar uma parte para o efêmero” (BARTHES, 2005, p.13). Muitas coisas ficaram de fora, certamente. Mas elas não deixam de estar presentes, mesmo que em estado de ausência, na categoria “Et Cetera, que indica o não lugar do que sobrou, do que foi esquecido ou resistiu aos critérios de classificação empregados. • ESTE MEMORIAL, escrito inicialmente para minha promoção a Professora Titular, em 2015, foi ampliado e modificado, de forma a abarcar todo o meu percurso acadêmico até o final de 2019. Fica, assim, como o registro dos meus 28 anos de docência, na Faculdade de Letras da UFMG, desde meus tempos de estudante de graduação. Meus agradecimentos às professoras Eneida Maria de Souza (UFMG), Lúcia Helena (UFF), Eneida Leal Cunha (UFBA), Maria Lúcia Barros Camargos (UFSC), que avaliaram e comentaram a versão inicial deste trabalho em outubro de 2015. Maria Esther Maciel 13



A de ARTIFÍCIO correlatos: B de Borges; G de Greenaway; J de John Coetzee; L de Lucidez; X de Xadrez [Do lat. Artificium] 1 . Processo ou meio usado para a criação de um artefato. 2. Estratégia usada em um trabalho artístico. 3. Recurso engenhoso. 4. Astúcia, manha, fingimento, artima- nha. 5. Aquilo que é artificial, não natural, postiço, fingido. 6. Jogo. 7. A ficção como ficção. 8. Risco, impostura. 9. Funda- mento cruel da alegria.



Pelo menos no que tange à sua estrutura, este memorial guarda inegáveis afinidades com a primeira acepção da palavra/tema “artifício”: “processo ou meio usado para a criação de um artefato”. Uma acepção que explorei bastante na primeira fase de minha trajetória acadêmica, ao dedicar-me ao estudo dos processos de construção poética e ao experimentalismo formal em obras de vários poetas modernos e de vanguarda, como se pode ver no tópico “L de Lucidez”. A noção de artifício, entretanto, não se restringiu a esse sentido em meu trabalho, mas foi adquirindo novas nuances ao longo do tempo. Creio que o momento em que ela efetivamente se ampliou e passou a manter uma relação prismática com as demais acepções do termo foi por volta de 1998, quando criei uma entrevista ficcional com um suposto professor dinamarquês de Estética, chamado Lars Olsen, que teria publicado, na Universidade Copenhague, um estudo comparativo sobre Borges e Kierkegaard, com incursões também na obra de Fernando Pessoa. No prólogo a essa “entrevista”, intitulada “Poéticas do artifício: Borges, Kierkegaard e Pessoa”, compus uma breve descrição do personagem e expliquei – misturando referências reais e inventadas – as condições em que eu o teria conhecido em Buenos Aires, assim como as circunstâncias em que nossa conversa teria se consumado. O jogo de perguntas e respostas, por sua vez, foi elaborado com vistas a abordar não apenas questões relacionadas ao tema do livro de Olsen, como também detalhes do relacionamento pessoal que ele teria mantido com o escritor argentino nos anos em que esteve em Buenos Aires para realizar suas pesquisas para o trabalho. Inicialmente, publiquei o texto sem qualquer referência ao seu caráter fake, o que serviu de teste para sua verossimilhança. Porém, para surpresa dos que acreditaram na existência do tal professor dinamarquês (houve quem se manifestasse nesse sentido), a entrevista foi republicada em 1999, com a revelação de seu caráter ficcional, na revista Variaciones Borges da Universidade de Aarhus e, em seguida, no meu livro Voo transverso – poesia, modernidade e fim do século XX, do mesmo ano. Ao valer-me de um artifício para tratar dos artifícios literários dos autores mencionados nessa “conversa” com Lars Olsen, procurei exercitar uma prática que venho cultivando ao longo de minha trajetória: articular o trabalho acadêmico com o trabalho literário e, em certos casos, embaralhar os limites entre esses dois campos de atuação, como nessa “entrevista”. A escrita desse texto, aliás, foi que me conduziu à instigante teoria sobre o artifício elaborada pelo filósofo francês Clément Rosset, no livro Antinatureza (publicado no Brasil em 1973), que acabou por se tornar a referência mais importante não só para esse trabalho específico, como Maria Esther Maciel 17

também para várias incursões posteriores no tema. Abordando os vários graus da artificialidade na filosofia e nas artes, Rosset parte do que chama de “miragens do naturalismo” para chegar à “estética do artifício”, seção em que discorre sobre os graus em que essa estética incide nas obras de Ravel, Baudelaire, Mallarmé, Shakespeare, Kierkegaard e Huysmans, entre outros escritores e artistas. Percorre depois as filosofias artificialistas de Baltasar Gracián, Maquiavel, Hobbes, os sofistas, comparando-as com as filosofias naturalistas, para chegar à conclusão de que o artifício é uma “verdade” da existência, o único modo de existência real, tendo seu fundamento no tempo presente, no “factum” (considerando que a palavra latina aponta para dois sentidos ao mesmo tempo: o que existe, o fato real, e o que é fabricado, faturado). (ROSSET, p. 298-300) Outras obras de que me vali para fundamentar a pesquisa sobre o tema a partir de então foram A dialética da duração, de Gaston Bachelard, Da sedução e Simulacros e simulação, de Baudrillard, além de vários textos de Emil Cioran e dos românticos alemães. Assim, munida de um sugestivo referencial teórico, parti para a elaboração de um projeto de pós-doutorado, a que dei o título de Estéticas do Artifício: Peter Greenaway à luz de Jorge Luis Borges. Esse projeto foi desenvolvido, entre setembro de 1999 e agosto de 2000, na Universidade de Londres, com estágios de pesquisa no Theory, Culture & Society Centre da Nottingham Trent University. Para tanto, contei com o apoio da CAPES, que me concedeu uma bolsa de pesquisa. A temporada de um ano na Inglaterra possibilitou-me descobertas e experiências memoráveis. Acompanhada de meu marido José Olympio e de meu filho Ricardo, vivi um ano magnífico para o meu aprimoramento intelectual, pessoal e literário, tendo tido a oportunidade não apenas de participar de seminários, eventos e viagens acadêmicas a outras cidades e países europeus, como também de construir sólidos laços afetivo-intelectuais com pessoas envolvidas com a pesquisa. A minha opção pelo Departamento de Estudos Hispânicos do Queen Mary College da Universidade de Londres deveu-se, sobretudo, ao Prof. Peter Evans. Especialista em cinema, autor de livros reconhecidos sobre Luis Buñuel e Pedro Almodóvar, ele sempre transitou entre os estudos literários e os estudos fílmicos, com um forte vínculo com as literaturas de língua espanhola e o cinema internacional. Já havia participado também de convênios com a Faculdade de Letras da UFMG. Numa de suas visitas ao Brasil, conversamos longamente sobre o tema que eu gostaria de explorar, e ele, com generosidade, não só aceitou acompanhar a minha investigação, como ainda ofereceu- me o cargo de Pesquisador Visitante no departamento que chefiava na universidade londrina. 18 Maria Esther Maciel

Já o meu vínculo com o Theory, Culture & Society Centre, um prestigioso centro internacional de estudos e pesquisas sobre culturas contemporâneas, aconteceu graças ao seu diretor, Prof. Mike Featherstone, também editor da Theory, Culture & Society Journal. Intelectual transdisciplinar, afeito ao cinema de Greenaway, versado em tecnologias contemporâneas e estudioso das teorias sobre o artifício, ele já havia publicado, no ano anterior, um artigo meu sobre Octavio Paz na revista do Centro. Manifestando interesse no tema da pesquisa, aceitou acompanhar o meu projeto, não sem antes confessar sua antiga admiração pela obra de Borges. Digo que esse meu estágio no Theory, Culture & Society Centre foi o início de algumas das atividades mais relevantes da minha vida acadêmica, uma vez que o Prof. Featherstone, poucos anos depois, convidou-me para participar de um instigante projeto internacional de pesquisa, o The New Encyclopedia Project, que integrou pesquisadores de vários países do Ocidente e do Oriente, com a finalidade de repensar os sistemas de classificação no contexto contemporâneo, considerando os impactos da globalização e da informatização. Vale acrescentar ainda que entrei em contato com Peter Greenaway assim que iniciei meus estudos em Londres. Para minha surpresa, o cineasta não apenas acolheu minha pesquisa, como também colocou seus arquivos à minha disposição, sob a assistência de sua secretária, Annabel. No seu escritório de Londres – no bairro de Hammersmith – tive acesso a roteiros cinematográficos inéditos, cartas, entrevistas, vídeos de seus primeiros filmes (não comercializados), teses acadêmicas, catálogos de instalações, libretos de suas óperas, além de um rico material iconográfico. Pude, inclusive, tomar parte desse material emprestada e fotocopiar vários textos e manuscritos. Foi quando conheci o lado escritor do cineasta, o que me levou a redimensionar a relação de seus filmes com a literatura e a abrir meu projeto a uma investigação mais consistente sobre essa questão. No que tange a Jorge Luis Borges, o principal acontecimento nesse período foi a visita que fiz à Universidade de Aarhus, na Dinamarca, em março de 2000, onde havia um importante centro de estudos borgianos, o J. L. Borges Center for Studies & Documentation. Lá, tive acesso a um vasto material sobre a obra do escritor argentino, o qual pude examinar ao longo desse tempo, além de ter podido participar do Seminário Permanente do Centro, com a apresentação da palestra “Jorge Luis Borges y Peter Greenaway”, em que tratei dos aspectos borgianos presentes em dois filmes do cineasta britânico (The Falls e Prospero’s Books) e enfoquei a lógica taxonômica inerente aos dois autores. Tentei mostrar como o apreço de Greenaway pelas listas, catálogos, séries, Maria Esther Maciel 19

simetrias e enciclopédias poderia ser articulado ao exercício borgiano da prática enciclopédica e das taxonomias fantásticas. Esse trabalho, transformado em artigo, foi publicado no ano seguinte na revista Variaciones Borges, sob o título “Peter Greenaway, lector de Jorge Luis Borges”, e depois republicado, em português e inglês, respectivamente, nas revistas Cinemais (Brasil) e Corner – an electronic online journal dedicated to the avantgarde (EUA). O que procurei mostrar com esse ensaio foi que, ao construir o seu mundo ficcional enquanto um compósito de saberes, referências eruditas, textos, linguagens e jogos ficcionais, Greenaway teria se valido da lógica desconcertante dos sistemas borgianos, visto que Borges sempre foi um conhecido mestre nessas estratégias, bem como um aficionado por listas, enumerações, séries temáticas, duplicações, desdobramentos e combinações heteróclitas. Outros ensaios relacionados ao tema dos artifícios em Borges e Greenaway foram incluídos no livro A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, que publiquei em 2004. Já os artigos voltados para os artifícios heteronímicos e teatrais de Fernando Pessoa entraram no livro anterior, o já mencionado Voo transverso. Embora as poéticas do artifício tenham estado mais presentes em minha vida acadêmica entre os anos 1998 e 2004, continuei envolvida com o tema de forma esparsa, sendo que, por volta de 2007, passei a sondá-lo na obra de J. M. Coetzee, um escritor também afeito ao uso de estratégias ficcionais e jogos de autoria em seus romances. Entre eles, está A vida dos animais, que reúne duas conferências forjadas em forma narrativa e atribuídas a uma fictícia escritora australiana chamada Elisabeth Costello, autora de “nove romances, dois livros de poemas, um livro sobre a vida dos pássaros e um corpo de trabalhos jornalísticos”. (COETZEE, 2004, p. 7) E cujas palestras, num total de oito, foram reunidas no livro Elizabeth Costello, publicado por Coetzee em 1999, com tradução brasileira em 2004. Outro romance interessante do autor sul-africano nessa linha dos artifícios é Verão, em que ele se utiliza dos recursos da autoficção para criar uma autobiografia em 3a pessoa, com vários narradores. Nele, um biógrafo inglês realiza uma série de entrevistas sobre um escritor chamado John Coetzee, já então falecido, com vistas a escrever um livro sobre sua vida nos anos 1970. À procura de depoimentos e esclarecimentos sobre a vida de Coetzee, vai atrás de pessoas que teriam convivido com ele, para entrevistá-las. No entanto, o que elas lhe oferecem são referências negativas sobre o biografado. O resultado de cada uma dessas entrevistas ocupa um capítulo do romance, e o que se origina do conjunto é uma biografia controversa que é, ao mesmo tempo, 20 Maria Esther Maciel

uma autobiografia irônica, atravessada de artifícios narrativos. Graças a esses recursos ficcionais, aliados a densas questões de ordem ética e política, o escritor passou a ser um dos meus autores contemporâneos de predileção, ao qual reservei, neste memorial, um verbete/capítulo com o seu nome, na letra J. No segundo semestre de 2016, voltei a revisitar o tópico dos artifícios, ao oferecer a disciplina de pós-graduação “Literatura e Artifício”, com ênfase nas obras de Kierkegaard, Pessoa, Borges e Coetzee. No caso de Pessoa, tive a oportunidade de, pela primeira vez, abordar duas obras recentes, voltadas para a constelação heteronímica do autor: Teoria da heteronímia (2012), que inclui um catálogo de 106 “autores-personagens” inventados pelo poeta desde a infância, e Eu sou uma antologia – 136 autores fictícios (Tinta da China, 2013), considerado, até então, o mais completo inventário dos “eus” pessoanos. Entre os seus 136 “outros” inventados, há de tudo: Firmino Lopes (tradutor de poemas gregos), Dr. Abílio Quaresma (compilador de contos policiais), Raphael Badaya (astrólogo e estudioso do ocultismo), Dr. Florêncio Gomes (autor de um tratado de doenças mentais), Joaquim Moura-Costa (poeta satírico, antimonárquico e anticlerical), Jean Seul de Méluret (heterônimo francês, autor de três ensaios sobre os costumes franceses) e Carlos Otto (poeta, tradutor e teórico dos esportes, em especial, da luta livre). Há também tradutores e ensaístas ingleses, charadistas, decifradores de enigmas, dois primos de Alberto Caeiro, um irmão de Ricardo Reis e até alguns espíritos astrais que escrevem do Além, a exemplo de Jacob Satan, com quem Alexander Search teria assinado um “pacto para a vida”. E muitos, muitos outros. Eles compõem um inventário não apenas na acepção de “rol”, “levantamento” de nomes, mas também no sentido aberto de “uma coleção de inventos, de invenções”. Assim, ainda que minha pesquisa sobre o tema dos artifícios tenha se encerrado, a questão permaneceu cada vez mais viva. Maria Esther Maciel 21



B de BORGES correlatos: A de Artifício; E de Enciclopédia; I de Inventário; M de Memória; U de Universo [Sobr. port., top.fr.] O genealogista Juan Torres Muñoz assegura que esse sobrenome surgiu em Portugal, graças ao heroico cavaleiro Rodrigo Anes que, em combate na França, conseguiu tomar a cidade de Bourges, cercada pelos exércitos cátaros, recebendo por isso o título de Chevalier de Bourges. Ao regressar a Portugal, firmou-se em Trás-os-Montes e, lá, teve sua alcunha mudada para Borges. Outra explicação menos lendária atribui o sobrenome a uma deformação do nome espanhol Borja. Fontes herméticas, porém, dão a Borges o significado de “nome dado a uma pessoa que talvez não exista de verdade ou, se existe, é várias ao mesmo tempo”.



Por volta de 1980, quando eu ainda vivia em Patos de Minas, o poeta e mestre Altino Caixeta de Castro falou-me do argentino Jorge Luis Borges. Até então, Borges designava, para mim, uma das famílias poderosas da cidade, adversária política da minha, Maciel. Curiosa, fui no dia seguinte até a Casa do Livro, do cultíssimo “seu” Josias, onde havia livros preciosos. Lá encontrei um exemplar do Elogio da sombra, em tradução para o português, que incluía também um ensaio autobiográfico do a utor, intitulado “Perfis”. Ao abri-lo ao acaso, deparei- me com os “Fragmentos de um evangelho apócrifo” e, num passar de olhos pelas duas páginas que o texto ocupava, detive-me no fragmento: “Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia...” (BORGES, 1977, p. 53). Não sem antes perguntar ao “seu” Josias o que significava a palavra “apócrifo” (nos meus 17 anos, eu nunca a tinha visto antes), pus-me a folhear o resto do volume com encantamento. Comprei o livro, claro, e ainda pedi ao livreiro que encomendasse para mim outras obras do autor, com ênfase na que Altino tinha mencionado: Ficções, em tradução de Carlos Nejar. Ao chegar em casa e começar a ler o Elogio da sombra, descobri uma modalidade de poesia que, embora se me afigurasse um tanto complexa e quase impenetrável, não deixou de me instigar a mente e a imaginação. Mas foi ao entrar no texto autobiográfico de Borges que fui definitivamente “capturada” por ele. Na verdade, uma autobiografia mais literária que propriamente vivencial. Ou melhor: era o memorial de alguém que tinha feito da literatura a sua própria vida. E hoje, mais do que nunca, vejo que Borges, ao longo de seus oitenta e sete anos, soube, como ninguém, conjugar vida e literatura, transformando em escrita praticamente tudo o que vivenciou, ao mesmo tempo em que moldando sua própria existência a partir do que leu. E dessa forma, converteu-se numa ficção de si mesmo. Até hoje, uma das últimas frases dessa autobiografia chama minha atenção, por me fazer pensar no poder da memória em provocar conclusões inesperadas a uma pessoa vivida. A frase é esta: “Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás.” (BORGES, 1977, p. 124) Ao que acrescento: a literatura foi essa sua felicidade atingida. Ainda que, como ele mesmo já tenha dito, a literatura necessite da infelicidade para poder existir. De paradoxos como esse, a vida e a obra de Borges foram construídas. Tanto que, em 2009, ao proferir uma palestra sobre o escritor argentino num evento do SESC, em São Paulo, optei por intitular minha apresentação de “Borges e as vertigens do paradoxo”. Publicada posteriormente como capítulo do livro Tertúlia – o autor Maria Esther Maciel 25

como leitor (2013), organizado por Tiago Novais, a palestra enfocou os muitos paradoxos da história do escritor argentino, começando pela constatação de que ele, sempre afeito aos jogos, disfarces, burlas e artifícios, valeu-se dessas estratégias para compor não apenas sua obra, mas também sua persona. Retornando ao relato sobre minha relação com o escritor, digo que, tão logo entrei no curso de Letras da UFMG em 1981, passei a frequentar a literatura de Borges com mais assiduidade. Aos poucos, fui me inteirando de outros aspectos de sua obra, graças, sobretudo, às aulas da minha então professora Eneida Maria de Souza que, na época, já tratava do autor com um olhar inovador. Foi por suas mãos que me dei conta de que Borges, no exercício exclusivo das formas breves – poemas, contos e ensaios – fez caberem, numa única página, eternidades e infinitos. Além disso, aprendi que o infinito, o inumerável, a eternidade e os tempos simultâneos eram motivos recorrentes em sua obra, o que não impedia que nela também aparecessem temas menos grandiosos, como o tango, a milonga, os duelos, os compadritos, as armas brancas, os objetos prosaicos. Mesmo ao assumir o cargo de professora de Literatura Portuguesa na Faculdade de Letras, em 1991, não deixei Borges de lado. Frequentemente eu o evocava nas minhas aulas sobre Fernando Pessoa, por já identificar alguns traços de afinidade entre os dois. E foi nesse período que passei a prestar mais atenção nos artifícios autorais do escritor argentino, os quais eu retomaria – já como professora de Teoria da Literatura – em minhas incursões no tema. Acrescente-se a isso um dado pessoal relevante para o meu convívio cada vez mais estreito com a obra borgiana: meu casamento com José Olympio Borges (de quem herdei o sobrenome) e que era um leitor fervoroso da literatura do escritor. Na biblioteca de José Olympio encontrei toda a obra de Borges, algumas muito antigas, além de inúmeros estudos críticos sobre o autor, a maioria publicada fora do Brasil. Para não mencionar nossos frequentes diálogos sobre aspectos da literatura borgiana e as viagens que fizemos aos lugares de referência do escritor, como sua antiga casa da Rua Maipú, em Buenos Aires, a livraria Casares – que ele frequentava na Rua Suipacha e pertence a Alberto Casares, sobrinho de Bioy – e seu túmulo no cemitério de Genebra, no qual se encontra uma enigmática inscrição em saxão, atribuída a Ulrica, uma de suas personagens. Em agosto de 1996, quando fez dez anos da morte de Borges, organizei – pelo Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NELAM) – uma mesa-redonda intitulada “Borges: dez anos depois”, que contou com a participação dos professores Eneida Maria de Souza, Wander Melo Miranda e Mariângela Paraízo, cujas palestras foram reunidas, depois, 26 Maria Esther Maciel

num livro que organizei com o Prof. Reinaldo Martiniano Marques, publicado sob o título Borges em dez textos. Mais tarde, ao dedicar-me de forma mais incisiva ao tema “Poéticas do Artifício”, que culminou na já referida pesquisa de pós-doutorado que realizei na Inglaterra, passei a investigar de forma detalhada os jogos taxonômicos do autor, bem como o caráter enciclopédico de sua obra. Dados sobre essa pesquisa podem ser verificados nos tópicos “A de Artifício” e “E de Enciclopédia” deste memorial. No entanto, vale retomar aqui a referência à viagem que fiz a Aarhus, para conhecer o Centro Borges da Universidade de Aarhus, dirigido pelos argentinos Ivan Almeida (professor de filosofia e semiótica) e Cristina Parodi (professora de literatura hispano-americana), onde pude não apenas consultar os arquivos relacionados ao escritor, como também fazer uma palestra e entrevistar os diretores. Essa entrevista foi publicada num livro organizado pelas professoras Maria Antonieta Pereira e Eliana Lourenço, da FALE, intitulado Literatura e Estudos Culturais (2000). Nela, procurei provocar uma discussão mais voltada para os aspectos transversais do universo borgiano, que eram o cerne do Centro Borges. Tanto que, na introdução, fiz questão de enfatizar essa transversalidade. Os entrevistados falaram sobre isso e outros assuntos relacionados às atividades do Centro, além de discorrerem sobre o próprio Borges. A partir dessa interlocução, passei a ter um contato frequente com ambos, a colaborar com a revista dirigida por eles e a receber regularmente os demais números do periódico. Em termos de ensino, ofereci pelo menos três disciplinas optativas na graduação totalmente centradas na obra de Borges: uma em 2002, “Introdução ao universo ficcional de Jorge Luis Borges”, e outra em 2004, com a inserção também de Fernando Pessoa, intitulada “Jogos ficcionais em Borges e Pessoa”. À parte esses cursos, Borges esteve presente em quase todas as disciplinas de pós-graduação que ofereci desde então, embora entrelaçado a vários outros escritores e artistas contemporâneos, de acordo com os meus temas de pesquisa do momento. Creio que os textos de Borges mais estimulantes, até hoje, para o meu trabalho acadêmico (e também ficcional) foram os que se prestaram ao exercício inusitado do paradoxo e os que articularam livro, biblioteca e mundo. Como mencionei no início do capítulo a propósito da palestra do SESC, o Borges paradoxal é o que me importa desde sempre. Na minha tese de doutorado sobre Octavio Paz, defendida em 1995, eu já cultivava um vivo interesse pelos paradoxos, o que me levou a explorá-los na abordagem que fiz do pensamento paziano à luz dos desenhos do artista E. M. Escher. Borges, aliás, também esteve presente Maria Esther Maciel 27

num dos capítulos dessa tese, quando – para tratar do que chamei de “a ilusão da plenitude” na obra do poeta-crítico mexicano – evoquei o conto “Aleph” com o intuito de explicar esse caráter ilusório da plenitude a que se reportou Paz. Para tanto, referi-me ao pós-escrito do conto borgiano, no qual o Borges narrador/personagem põe em dúvida a legitimidade do Aleph que ele tinha visto no escuro porão da casa da Rua Garay, alegando que era um falso Aleph (BORGES, 2008, p. 153.) O que me levou a perguntar se não seria esse engano o que atravessa as figurações da totalidade relatadas por escritores, filósofos, místicos e visionários ao longo dos séculos. Uma questão que ainda me inquieta e à qual retorno no verbete/capítulo “U de Universo”. Outro aspecto paradoxal trabalhado na obra de Paz e que tentei, posteriormente, relacionar a Borges, foi o conceito de “outridade”, ou seja, “a percepção simultânea de que somos outros sem deixar de ser o que somos” (PAZ, 2012, p. 272). Um conceito que aparece, problematizado ou encenado poeticamente, em vários textos do autor mexicano, incidindo, inclusive, na forma como ele lidou com a noção de subjetividade. Mesmo que na escrita paziana o jogo de “eus” ancore-se, à diferença de Borges, num imaginário conceitual de feição mais surrealista e tangencie, em certos momentos, uma dimensão mística, achei interessante articulá-lo aos jogos autorais borgianos, de forma a explorar o que chamei de “os paradoxos do eu” na obra de Paz. Na época, o texto borgiano que me ocorreu de maneira mais incisiva foi “Borges e eu”, em que o autor argentino mistura, pela via do paradoxo, os limites entre o Borges civil e o Borges escritor, o Borges “pessoa” e o Borges “persona”. Enfim, o que até hoje me instiga é a maneira como Borges lidou com categorias aparentemente incompatíveis, como o limitado e o infinito, a realidade e a ficção, o possível e o absurdo, o uno e o múltiplo. Questão esta, como foi dito, presente em diferentes autores com que trabalhei, sob diversas perspectivas, ao longo de minha trajetória acadêmica, a exemplo de Octavio Paz, Fernando Pessoa, Kierkegaard, Juana Inés de la Cruz, Peter Greenaway, Bispo do Rosário e John Coetzee, só para mencionar alguns. Quanto à articulação entre livro, biblioteca e mundo, devo dizer que Borges foi e ainda é a referência mais importante, como evidencio em várias partes deste memorial. Mas vou retomar aqui, como uma espécie de ponto de irradiação para essas outras abordagens, o conto “O livro de areia”, que integra o livro homônimo de 1975 e pode ser considerado uma versão minimalista de “A Biblioteca de Babel”. Um conto, aliás, que parece legitimar, nos domínios da ficção, uma assertiva 28 Maria Esther Maciel

de Borges incluída em Sete noites, segundo a qual “um mesmo livro muda em relação a um mesmo leitor, já que mudamos tanto”. Isso porque, no caso do “livro de areia”, “nenhuma página é a primeira; e nenhuma, a última” (Borges, 2009, p. 102) Ou seja, uma vez lida ou folheada, nenhuma página pode ser reencontrada num próximo manuseio, por ter se tornado outra. O clima de pesadelo que envolve o relato sobre esse livro é explícito, embora o texto mantenha uma intrínseca relação com elementos de realidade (os dados toponímicos, as referências temporais e os detalhes da conversa entre os personagens) que garantem o caráter plausível dos fatos narrados. E ao final, o leitor perplexo fica sem saber ao certo se a história foi uma experiência vivida ou apenas um sonho do narrador. Outro artigo meu, “Enciclopédias da noite: Dante, Borges e Joyce”, explora exatamente esse mote do sonho/pesadelo borgiano, presente nesse conto e em outros textos de Borges. Nele, tomo como referência a conferência “O pesadelo”, que faz parte do livro Sete noites, e – a partir das considerações borgianas sobre o ato de sonhar e as possibilidades semânticas derivadas da palavra “pesadelo” – investigo alguns aspectos oníricos do “Inferno”, de Dante, e do Finnegans Wake, de Joyce. Borges, como se vê, incide em diferentes momentos de minha vida literária e intelectual. Cada vez mais, sua obra – assentada no equilíbrio instável entre o hipotético e o existente, a exatidão e a pluralidade, o mesmo e o outro – parece multiplicar-se, como diria Maurice Blanchot, “por um movimento que lhe é próprio e no qual a diversidade do espaço em que se desenvolve, segundo diversas profundezas, realiza- se necessariamente” (BLANCHOT, 1984, p. 171) Nesse sentido, a obra borgiana se estende para dentro e fora de si mesma, como também (e aqui parafraseio Octavio Paz) o próprio Borges é sempre outro Borges desdobrado em outros Borges, ad infinitum. Maria Esther Maciel 29



C de CINEMA correlatos: G de Greenaway; P de Poesia; R de Ruptura; T de Trans [Do gr. Kínema, atos.] El. Comp. = “movimento”: cinemascó- pio. [Equiv.: cinemat (o)-: cinemática, cinematógrafo] 1. Arte de compor e realizar filmes cinematográficos. 2. Projeção ci- nematográfica. 3. Sala de espetáculos, onde se projetam filmes cinematográficos. 4. Em certos casos, é a arte de um perfeito isomorfismo rítmico-visual. 5. Para Buñuel, é a arte que pode “refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo”.



O exercício da memória pode perfeitamente prescindir de uma visão nostálgica do passado. Mas, em certos momentos, a nostalgia torna- se inevitável mesmo para quem se recusa a tomar o passado como paradigma para o tempo presente ou para o que ainda virá. Se digo isso, é porque me lembro, neste instante em que escrevo, da efervescência cinematográfica da época em que comecei a estudar literatura no curso de Letras da UFMG. Efervescência, aliás, que eu já presenciara, anos antes, em Patos de Minas, graças a um cineclube que alguns artistas de lá fundaram, onde eram exibidos filmes de vanguarda e clássicos do cinema de arte. Lá, tive o privilégio de ver alguns filmes de Eisenstein, Godard, Orson Wells, Glauber Rocha e Buñuel. E ao chegar a Belo Horizonte em 1981, deparei-me com os de Resnais, Antonioni, Kurosawa, Mário Peixoto e Nelson Pereira dos Santos, também por causa dos cineclubes e de alguns excelentes cinemas de rua que havia na cidade. Sei que minha paixão pelo cinema surgiu nesse contexto, e se passei a me dedicar aos estudos cinematográficos em certo momento de minha vida acadêmica, devo isso ao impacto causado pelos filmes a que assisti nesses anos de formação. Foram os filmes de Peter Greenaway que me instigaram a pesquisar, de forma mais efetiva, o cinema e suas relações com a literatura. Ao começar a escrever sobre o cineasta britânico no final dos anos 1990, a antiga paixão pelo universo cinematográfico voltou à tona com intensidade, levando-me não apenas a retomar alguns filmes e diretores que tinham me impactado tempos atrás, como Eisenstein, Resnais e Buñuel, como também a me deter em outros mais contemporâneos, como Wim Wenders, Jim Jarmusch, Júlio Bressane e Eduardo Coutinho. Como se vê pelo repertório apresentado, interesso-me parti- cularmente por filmes de linha poética e/ou experimental, o que justifica a pesquisa que fiz sobre as relações entre cinema e poesia, da qual resultaram artigos, cursos (de graduação e pós-graduação) e palestras. No livro A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, inseri os textos sobre esse tema, além de um artigo voltado para o processo de adaptação literária do filme Amor & Cia., do mineiro Helvécio Ratton, baseado na novela Alves & Cia., de Eça de Queirós. Artigo, aliás, publicado primeiramente na Inglaterra, como capítulo do livro The New Brazilian Cinema (2003), organizado por Lúcia Nagib. Já em 2001 eu tinha preparado, em parceria com minha colega Marli Fantini Scarpelli, um número temático da revista Aletria (Pós-Lit/ UFMG) sobre o tema “Literatura & Cinema”, no qual foi incluído um artigo meu, “São Jerônimo em tradução” – em que trato, à luz de textos de Haroldo de Campos, do filme São Jerônimo, de Júlio Bressane. Em 2004, saiu também o livro Textos à flor da tela: relações entre literatura Maria Esther Maciel 33

& cinema (FALE-UFMG), em coautoria com Sabrina Sedlmayer, o qual reuniu textos de vários estudiosos do tema. Todo esse envolvimento com a arte cinematográfica e suas interfaces com outras linguagens levou-me, consequentemente, a refletir sobre os limites da adaptação e a concluir que as relações do cinema com a literatura não se circunscrevem apenas ao trabalho de transposição de textos literários para a tela, nem tampouco à incorporação, por parte da literatura, de elementos e estratégias próprios do discurso cinematográfico. Como pontuei em um de meus artigos, intitulado “Para além da adaptação”, os diálogos implícitos, os cruzamentos imprevistos, as citações, as evocações oblíquas e as “transcriações” nunca deixaram também de atravessar e dinamizar o espaço dessas trocas, num movimento diverso daquele que – desde o surgimento do cinema no cenário cultural da modernidade – consagrou a transposição de enredos literários para a tela como a forma privilegiada de interseção entre os dois campos. Mesmo que eu já tenha feito isso uma vez ou outra, não me interessa arrolar e analisar excertos de enredo, estratégias narrativas e personagens que foram aproveitados, alterados, distorcidos, suprimidos ou acrescentados no processo de “tradução” cinematográfica de um determinado conto ou romance. Tampouco me instiga estabelecer, a partir de teorias legitimadas sobre a “arte da adaptação”, tipos de relação que um filme pode ou deve manter com o texto que lhe serve de ponto de partida, ou fazer distinções categóricas entre o que pode ser transferido de um meio a outro e o que, por depender das especificidades do sistema semiótico a que se vincula, não pode ser transferido. Como já foi dito, a via, a meu ver, mais instigante é a que permite investigar as confluências não convencionais entre os dois campos, com ênfase não tanto na narrativa, mas na poesia. Mesmo porque, enquanto os trabalhos convencionais de adaptação têm como principal ponto de referência os vínculos mantidos pelo cinema com o modelo narrativo da literatura do século XIX, as formas alternativas de interseção entre o literário e o cinematográfico buscam na linguagem poética os subsídios para essa relação. O que não significa, é claro, que essas duas vertentes se contraponham de forma excludente e não demandem um olhar mais matizado sobre suas diferenças. No que se refere especificamente ao cinema de poesia, a partir do qual emergiram formas alternativas de diálogo com a literatura, situa-se no início do século XX a sua efetiva constituição, sobretudo por meio das experiências radicais de Eisenstein, que buscou, sobretudo na poesia de várias tradições (inclusive a oriental) e nos experimentos narrativos de James Joyce, a base principal de suas formulações. 34 Maria Esther Maciel

Sabe-se que das interseções entre cinema e poesia surgiram experiências radicais, graças às imprevisíveis articulações entre imagem e palavra, como bem mostraram as reflexões teóricas de Jean Epstein, Luis Buñuel e Pier Paolo Pasolini, além, obviamente, de Eisenstein, sobre isso. No Brasil, Mário Peixoto também deu sua contribuição nesse campo, não apenas por ter se valido explicitamente da linguagem poética na criação do filme Limite, como também por ter tratado do “cine-poema” em seus escritos, ressaltando que neste a poesia estaria na “misteriosa e mágica metamorfose de uma emoção (que se ‘passa na mente’) em uma imagem” (PEIXOTO, 2000, p. 31) É inegável que a visão de cada um desses autores encontra-se atravessada por uma concepção de “poético”, visto ser esta uma palavra de sentidos múltiplos e cambiantes, que se presta a vários matizes, dependendo do conceito de poesia adotado – que pode ser o de viés formalista, o idealista ou a mistura/variação de ambos. Na maioria de minhas leituras da questão, preferi a combinação dos aspectos formais com os efeitos de ordem sensorial, por acreditar que ela é mais capaz de atingir a percepção íntima do espectador/leitor, provocando emoções sinestésicas, desafios mentais e experiências epifânicas. Um dos filmes que analisei durante minha pesquisa sobre a conjunção cinema/poesia foi O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, que, na onda criativa da Nouvelle Vague, trouxe à superfície da tela a força encantatória da imagem, conseguida graças aos movimentos vertiginosos da câmera e à sonoridade hipnótica do texto poético que constitui o roteiro de Alain Robbe-Grillet. Vali-me desse filme, inclusive, como ponto de partida para a análise de alguns elementos sinestésicos do filme O livro de cabeceira, de Peter Greenaway, por considerar que o cineasta britânico, ao fazer uso de um texto literário, buscou extrair sobretudo a corporalidade sonora, tátil e visual que o constitui, o que acontece também no filme A última tempestade (Prospero’s books). Para mais detalhes, ver o capítulo/verbete “G de Greenaway”. Dois outros filmes que tiveram sua presença marcada em meu trabalho, sob o prisma da poesia, foram Asas do desejo (1988), de Wim Wenders, e Dead man (1996), de Jim Jarmusch, ambos “inspirados” em textos de dois poetas – Rainer Maria Rilke e William Blake, respectivamente – e configurados como verdadeiros “filmes-poemas”. Cabe mencionar também o artigo que escrevi, em 2011, sobre as recriações cinematográficas da Divina Comédia, de Dante, intitulado “O inferno radical: Dante sob o signo das vanguardas”. Nele, abordo três filmes experimentais feitos a partir da Comedia: O Inferno (1912), de Maria Esther Maciel 35

Giuseppe de Liguoro, A TV Dante (1989), de Peter Greenaway, e Nossa Música (2003), de Jean-Luc Godard, que potencializam a força visual do inferno dantesco por meio do uso de sofisticados recursos tecnológicos disponíveis no tempo de cada um e pela incorporação de técnicas de colagem, também presentes no poema “The Waste Land”, de Eliot – que também se apropria inventivamente de passagens dantescas. Sob o viés do experimentalismo, tratei ainda do trabalho cine- matográfico de David Linch, num texto intitulado “David Lynch e a estética do pesadelo”, que serviu de apresentação à conferência feita pelo cineasta no Ciclo de Conferências “Sentimentos do Mundo”, da UFMG, em agosto de 2008. Nesse texto, comentei a obra completa de Lynch à luz das considerações de Jorge Luis Borges no texto/conferência “O pesadelo”, do livro Sete noites. Por fim, dediquei-me ao filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, bem como aos documentários de Eduardo Coutinho – neste caso, a partir da noção de “inventário de vidas”, como explico no capítulo/verbete “I de Inventário”. No que tange a Rio 40 graus, abordei-o na palestra “Nelson Pereira dos Santos and the rise of the Cinema Novo in Brazil”, que fiz numa mesa realizada na Tate Modern, Londres, em 2000, no âmbito da exposição Century City, dedicada às cidades modernas do século XX. A mesa foi intitulada “Rio de Janeiro: Ideals of Modernity” e contou com a participação de Michael Ashbury (um dos curadores da sala sobre o Rio de Janeiro), Paulo Sérgio Duarte (Centro Hélio Oiticica), John Gledson (Universidade de Liverpool) e Martin Grossmann (Museu de Arte Contemporânea de São Paulo). Uma experiência, sem dúvida, impactante, considerando a relevância do evento em um dos mais prestigiosos museus do Reino Unido. Quanto a Eduardo Coutinho, sabe-se que ele, enquanto um mestre do documentário brasileiro contemporâneo, embaralhou com destreza os limites entre realidade e ficção, criando filmes estruturados numa lógica serial, para contar diversas histórias de vida, a exemplo de Edifício Master (2002) e Jogo de cena (2007) e Canções (2011). No texto que publiquei sobre Coutinho no livro Modernidades alternativas na América Latina (Ed. UFMG, 2009), organizado pelos professores Eneida Maria de Souza e Reinaldo Martiniano Marques, foquei no tema “biografia”, concebida como uma espécie de “arquivo de vidas” e disposta à maneira de um catálogo/coleção de retratos e biografemas. Para isso, vali-me de dois ensaios de Borges: um sobre cinema, intitulado “El cinematógrafo, el biógrafo” (1929), e outro sobre as possibilidades seriais da biografia (“Sobre o Vathek de William Beckford”, de 1943). A partir desse referencial, priorizei a análise do filme Edifício Master, no qual são catalogadas histórias de vida de 37 dos cerca de 500 moradores 36 Maria Esther Maciel

de um edifício de 12 andares e 276 apartamentos conjugados, em Copacabana. Além de Borges, evoquei dois outros autores que me serviram de referências para a análise do filme: Georges Perec (com o romance A vida: modo de usar) e Carlos Drummond de Andrade (com o poema “Torre sem degraus”). Assim, pude focar no edifício que serve de grande personagem do filme, à luz do prédio que assume o mesmo papel no romance de Perec e do prédio/torre surrealista do poema drummondiano. Dessa maneira, dispus-me a exercitar – via aproximações insuspeitadas entre filme e textos literários – o que defendi desde o início dos meus estudos no campo do cinema: a pertinência de aproximações entre o cinematográfico e o literário que levem em conta formas alternativas de interação e diálogo, para além dos trabalhos de adaptação. Maria Esther Maciel 37



D de DOCÊNCIA correlatos: F de Formação; L de Lucidez; M de Memória; P de poesia; Et Cetera [Do lat. docens, -entis, particípio presente de doceo, -ere, ensinar + -ia] S.f. 1. Ação de ensinar; exercício do magistério. 2. Qualidade de docente. 3. Transmissão de conhecimentos, de informações ou de esclarecimentos úteis ou indispensáveis à educação 4. “Mas a tarefa não se assenta apenas nos conteúdos; ela assenta também na relação, na coabitação entre corpos”, segundo Roland Barthes.



Eu devia ter cinco ou seis anos de idade ao dizer, pela primeira vez, que queria ser uma professora quando crescesse. Na época, eu começara a frequentar a pré-escola e tinha ficado fascinada com a realidade de uma sala de aula. Minha professora, chamada Nilza, era uma mulher elegante e sábia. Lembro-me de que, numa de suas aulas, leu para nós “A canção dos tamanquinhos”, de Cecília Meireles, que foi o meu primeiro impacto poético. Sempre que acabava a aula, meu desejo era ter alguém em casa que se interessasse em aprender também o que eu aprendera no dia. Não sei por que, mas achei que os botões das roupas poderiam cumprir esse papel de ouvintes, ou melhor, alunos. Comecei, então, a arrancá-los dos vestidos, blusas e calças que eu encontrava nos guarda-roupas da casa. Criada a coleção, montei um pequeno grupo de “alunos” a que eu poderia, finalmente, ensinar as coisas que aprendia com a professora. Isso, certamente, desagradou minha mãe, que não queria ver suas roupas e as do meu pai sem botões. Diante da repreensão e da proibição recebidas, a frustação foi inevitável. Até que meu pai, um homem sensível e criativo, deu-me uma ideia magnífica: recolher os vidros de remédio vazios que se acumulavam nas gavetas e nos armários e transformá- los em meus “alunos”. Assim o fiz. E consegui compor a minha turma com os vidrinhos. Verdes, marrons, transparentes, grandes e pequenos, largos e estreitos, eles faziam jus à variedade de tipos físicos de uma turma de verdade. Dei, para cada um, um nome. Havia os inteligentes, os rebeldes, os indiferentes, os dedicados e os que não gostavam de aprender. Todos tinham seus boletins e suas notas. E, dessa forma, com minha coleção de vidros, iniciei-me no trabalho docente. Aos quinze anos, candidatei-me à vaga de professora de inglês de um curso recém-aberto na cidade, o CCAA, do qual eu era também aluna. Passei. E lá comecei a lecionar para crianças. Um ano depois, já dava aulas para uma turma de adultos. Continuei nesse trabalho até me mudar para Belo Horizonte e começar meu curso de Letras na UFMG. Na condição de aluna de graduação, tornei-me estagiária de um curso de português para estrangeiros na própria Faculdade. Mas só mais tarde, depois de me formar, consegui meu primeiro emprego de professora num colégio de prestígio, o Pitágoras, migrando depois para o curso de Pré-Vestibular do mesmo grupo, onde passei a dar aulas sobre os livros de literatura que entrariam no vestibular do ano, bem como a preparar apostilas sobre algumas dessas obras. Poucos anos depois, ingressei na FAFI-BH como professora de literatura do curso de Jornalismo e, um ano depois, do curso de Letras dessa Faculdade. Data do ano de 1991 o meu concurso para Professor Assistente de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da UFMG, no qual Maria Esther Maciel 41

passei em primeiro lugar. Minhas provas versaram sobre dois temas distintos: um texto escrito sobre a chamada Poesia 61, em que abordei os aspectos da linguagem poética de um grupo de autores que buscaram fundar uma nova poesia em Portugal nos anos 1960, e uma aula sobre o romance História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, em que trabalhei as interseções entre história e ficção, sob o título “Os erros que corrigem”. A prova escrita foi posteriormente publicada, em forma de caderno, pela FALE e, em 1993, uma nova versão foi publicada, sob o título “O ritual da palavra: reflexões sobre a linguagem poética de Poesia 61”, no Boletim do SEPESP, revista da UFRJ. Assumi o cargo em 30 de abril de 1991, arcando com duas turmas de Literatura Portuguesa I – disciplina introdutória para alunos iniciantes do curso de Letras. Permaneci no setor de Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Vernáculas até julho de 1996. Durante esse período, fui membro do conselho do Centro de Estudos Portugueses (CESP) entre 1992 e 1995, da Câmara Departamental, entre 1995 e1996, bem como Chefe do Setor de Literatura Portuguesa, entre 1995-1996. Ministrei as disciplinas obrigatórias do curso e uma optativa sobre poesia portuguesa contemporânea. Digo que minha experiência como professora de literatura portuguesa foi fundamental para a minha formação intelectual e acadêmica, pois me deu a oportunidade de incursionar de maneira mais concentrada em autores que, mais tarde, passariam a compor o meu repertório de interesses, como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Maria Gabriela Llansol e vários poetas portugueses do final do século XX. Pessoa foi o foco do meu projeto de pesquisa “A conjunção poesia- crítica na obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos”, desenvolvido entre 1995 e 1997, e objeto de pelo menos três artigos. Sobre Llansol, escrevi o ensaio (adaptação de uma palestra) “Llansóis de areia: uma leitura de Onde vais, Drama-Poesia?”, publicado no Suplemento Cultural do Diário de Notícias de Lisboa, em 2003, e incluído em Um livro de asas para Maria Gabriela Llansol (Editora UFMG), em 2007, organizado por Lúcia Castello Branco e Vania Baeta Andrade. Ainda em relação a Llansol, escrevi para a revista Colóquio Letras, de Lisboa, uma resenha crítica do livro Um arco singular – livro das horas II, de sua autoria, em 2011. Minha transferência para o Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, em 1996, deveu-se à minha formação na área de Literatura Comparada e ao estudo da obra de Octavio Paz no doutorado, que me abriu um amplo espaço também no campo dos Estudos Latino- Americanos. Mas a Literatura Portuguesa, como disse, permaneceu no meu repertório de afetos e interesses. 42 Maria Esther Maciel

Desde 1996, então, passei a lecionar as disciplinas obrigatórias Teoria da Literatura I e II na graduação, além de poder oferecer optativas vinculadas às minhas pesquisas. Como minha base do doutorado tinha sido na área de poesia, dei preferência às aulas de Teoria da Literatura II, centrada nas teorias poéticas. Minhas disciplinas optativas variaram, nos primeiros anos, entre a poesia de vanguarda latino-americana e a tradição dos poetas-críticos modernos. Ofereci também disciplinas sobre “poesia e modernidade”, com ênfase na poética de Octavio Paz. Em março de 1996, ingressei como professora no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Pós-Lit), nas áreas de concentração Teoria da Literatura e Literatura Comparada. A primeira disciplina que ofereci foi “Poesia e crítica em Octavio Paz”, por meio da qual tive a oportunidade de apresentar os resultados de minha tese de doutorado. Outras disciplinas sobre poesia também entraram no rol de minhas atividades de pós-graduação: “Poetas-críticos da modernidade”, na qual abordei obras de Paz, Eliot, Pound, Valéry, Mallarmé e Haroldo de Campos, e “Poesia e fim do século XX”, voltada para a discussão do fim das vanguardas e da nova configuração poética da América Latina após os anos 1980. Ao voltar de meu estágio de pós-doutorado na Inglaterra, onde desenvolvi a investigação sobre Peter Greenaway e Borges, passei a oferecer disciplinas optativas relacionadas a essa pesquisa. Na graduação, ministrei uma centrada exclusivamente na obra borgiana, “Introdução ao universo ficcional de Jorge Luis Borges”, e outras sobre as “poéticas do artifício” e as relações entre cinema e literatura. A experiência com os alunos, nesse período, foi gratificante, dado o vivo interesse que demonstraram pelos temas híbridos dos cursos. Tanto, que realizei também algumas mostras de cinema vinculadas aos tópicos estudados, bem como algumas mesas-redondas sobre os filmes exibidos. As demais disciplinas ministradas na graduação e na pós, em anos subsequentes, seguiram o foco e o ritmo das minhas pesquisas realizadas com o apoio do CNPq: Poéticas do inventário, Inventários, coleções e enciclopédias na literatura e nas artes, Bestiários contemporâneos, Zooliteratura brasileira e Poesia e animalidade. Acrescento que as atividades docentes em outras universidades, como professora visitante, e também em cursos de extensão foram igualmente importantes para o meu percurso acadêmico, por terem me possibilitado novos diálogos, interações e experiências geográfico- culturais. Dar aulas sempre me colocou em uma relação muito dinâmica com a literatura, as artes e as teorias. E o contato direto com os alunos nunca deixou de ser, para mim, um estímulo ao pensamento e à Maria Esther Maciel 43

imaginação. Lecionar literatura está, sem dúvida, na ordem do “sal das palavras”, como já disse Roland Barthes ao definir a ordem do saber inerente à matéria literária. E nesse sentido, é a literatura o ramo das Letras que tem a maior potencialidade de fazer girar os saberes sem fixá-los, sem fetichizá-los, pois ao dar uma aula sobre essa matéria posso ensinar o que sei e o que não sei. Afinal, o saber se inscreve também na ordem do não sabido. Na literatura, esse saber é oblíquo (e por vezes paradoxal), que também age nos interstícios da ciência, da linguagem legitimada e não prescinde da criação. Aliás, creio que a imaginação como instrumento do saber é uma força capaz de nos revelar uma outra realidade, não previsível, dentro de nossa realidade verificável. Ela pode ser, inclusive, um poderoso antídoto contra a fixidez da sensibilidade, o enrijecimento dos sentidos e o obscurecimento da lucidez crítica. Provocar nos alunos o interesse e o gosto pela leitura de narrativas e poemas é também uma forma de estímulo à criação e à lucidez crítica. E talvez seja esse o maior desafio para quem leciona teoria da literatura. Ir ao texto literário/poético, antes de tudo; permitir que o próprio texto demande as teorias que lhe são propícias, ou extrair do texto as teorias explícitas e implícitas que ele traz em suas linhas e entrelinhas. A partir daí, então, evocar as teorias já estabelecidas, relacioná-las ao texto, somá-las ao que ele já propõe. Sobretudo no que tange ao ensino das teorias poéticas, essa prática, a meu ver, se faz mais que necessária. Sempre que comecei uma disciplina de Teoria da Literatura, chamei a atenção dos alunos para isso. No caso de Teoria I, entrava em sala de aula disposta a mostrar que as teorias têm buscado, ao longo dos tempos, formas possíveis (mas certamente não definitivas) de abordagem do texto literário, seguindo o fluxo das demandas culturais de cada época, os instrumentos crítico-teóricos disponíveis e as particularidades criativas de escritores de diferentes tradições. O que contribui para o caráter também múltiplo e cambiante do ato teórico diante da experiência literária. Em outras palavras, se a literatura é sempre outra de acordo não apenas com a época em que é feita, mas com as próprias condições subjetivas, culturais e sociais do escritor, a teoria também se pluraliza e se transforma, municiando-se de novos recursos e estratégias para lidar com os diversos tipos de produção no campo da literatura. Cada tempo fornece suas próprias diretrizes para o pensar teórico sobre as literaturas de determinados contextos e culturas. Só depois de fazer essas considerações, discuti-las com os alu- nos e apresentar minha proposta de trabalho, entrava efetivamente no programa proposto, ciente de que o gesto teórico-crítico pode ser também um exercício aberto e vivificante de leitura. 44 Maria Esther Maciel

Talvez essa necessidade de buscar no espaço da criação subsídios para a potencialização do saber teórico esteja relacionado com minha atividade também de escritora, o que considero relevante mencionar nesta parte do memorial. Frequentemente, em entrevistas, fazem-me a pergunta: como conciliar o trabalho de professora com o de escritora? E sempre respondo: são duas experiências diferentes, mas afins; uma contagia e potencializa a outra. Estou convicta de que minha formação/atuação na universidade foi muito importante para o meu aprendizado/ aprimoramento enquanto escritora. Tornou-me mais exigente em termos de linguagem, deu-me uma consciência maior do processo da escrita, sem, contudo, obliterar o outro lado, o da imaginação e dos sentidos. Por outro lado, o exercício literário também nunca deixou de incidir no meu trabalho como professora e pesquisadora. Volto, assim, à história dos vidrinhos de remédio, relatada no início deste texto. Explico: quando comecei a dar aulas para eles, resolvi transformá-los também em ouvintes e contar-lhes, à noite, as histórias que inventava durante o dia. Ou seja, os vidrinhos de minha coleção de alunos na infância foram meus maiores cúmplices no surgimento desse amálgama entre o ofício de professora e o de escritora, duas experiências que, juntas, definiram minha trajetória ao longo de todo esse tempo. Maria Esther Maciel 45



E de ENCICLOPÉDIA correlatos: B de Borges; G de Greenaway; I de Inventário; U de Universo [Do gr. egkuklopaideía, significa ‘círculo do conhe­cimento’] S.f. 1. Para Umberto Eco, “o conhecimento enciclopédico se- ria de natureza desordenada, de formato incontrolável, e pra- ticamente deveria fazer parte do conteúdo enciclopédico de cão tudo o que sabemos e poderemos saber sobre os cães, até a particularidade por que minha irmã possui uma cadela cha- mada Best – em suma, um saber incontrolável até para Funes, o Memorioso.” 2. Para Barthes, a enciclopédia “extenua uma lista de objetos heteróclitos, e essa lista é a antiestrutura da obra, sua obscura e doida poligrafia.”


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