Velhas castas Manoel Alves Proença
Velhas castas
Velhas castas Manoel Alves Proença
Manoel Alves Proença © Nelson Guimarães Proença, 2021. Pãooupães Editorial Rua Pascoal Vita, 347 – Ap. 16-B 05445-906 São Paulo – SP Brasil e-mail: [email protected] Original: Manoel Alves Proença, 1968. Adaptação: Nelson Guimarães Proença, 2021. Revisão: Maria Cristina Proença e Ruy Proença. Capa e editoração eletrônica: Luciana Inhan.
Apresentação Manoel Alves Proença nasceu em 1894 em São Paulo, capital, em casa localizada nas proximidades do Largo do Arouche. Era filho de Francisco Octaviano Proença (1866), pertencente a uma família tradicional de proprietários rurais que tudo perderam nos anos 1880. Sua mãe, Manuella de Alvarenga Peixoto Pinto de Mello (1874), era descendente direta do inconfidente mineiro Alva- renga Peixoto. Deste casamento nasceram três filhos, sendo meu pai o primogênito. Manuella ficou viúva em 1899 quando morava em pequeno lu- garejo rural, nas proximidades de Botucatu. Vivendo em condições de absoluta penúria, foi ela quem educou meu pai, pois a ele não foi possível oferecer sequer a educação primária em grupo escolar. Ele tinha, porém, forte atração pelo estudo e pela leitura. Tornou-se um autodidata. Em 1910, aos dezesseis anos de idade, tentou se fixar na Capital. Com este objetivo, procurou uma livraria da Rua Álvares Penteado com a intenção de vender um manuscrito, um romance que escre- vera. Para contar o episódio, vamos acompanhar a descrição que ele próprio fez, em sua autobiografia. .7.
❧ — Quem é o dono desta casa? — Aquele senhor que está sentado ali no escritório, senhor Pedro Magalhães. Fui até ele com o embrulho na mão e falei, com a maior ingenui- dade deste mundo. — O senhor é o dono? — Sim, sou o dono. — Escrevi um romance e venho ver se o senhor quer comprar para imprimir. Desamarrei o pacote e mostrei-lhe o manuscrito. Tomou-o de minhas mãos e pôs-se a folheá-lo, rapidamente. Viu logo tratar-se de grossa baboseira, mas não deixou de conversar comigo paternal- mente, dizendo que escrever romances não era das melhores coisas. Grande número de escritores enfrentavam enormes dificuldades, muitos até passavam privações. Não me aconselhava a escrever, en- tretanto, prometeu examinar o assunto. Contei-lhe que minha vinda a São Paulo se prendia à necessida- de de obter colocação, minha família era muito pobre e eu precisava trabalhar. Ficar-lhe-ia muito agradecido se soubesse de alguém de- sejando empregado. — Vamos ver, se souber avisarei. Tem curso de ginásio? — Não, senhor Magalhães, tive que parar no terceiro ano do grupo escolar. Olhou surpreendido para mim, examinando-me. Possivelmen- te impressionou-se com minha conduta. ❧ .8.
Foi graças a Pedro Magalhães, que o empregou, que meu pai pôde iniciar sua vida em São Paulo e assim reconstruir a família de sua mãe. Abrindo o caminho que permitiu, depois, construir uma nova família, à qual pertenço. Seu gosto pela leitura e pela redação não esmoreceu. Aos vinte anos fez uma viagem pelo Rio Paraguai, com passagem pela Argen- tina, que motivou um excelente diário, cujo manuscrito permane- ceu guardado em sua gaveta. Fomos nós — seus filhos — que o im- primimos, após seu falecimento. O mesmo se deu com a biografia em que recorda a incrível tena- cidade de sua mãe, na luta que ela travou para conseguir sobreviver, nas mais adversas situações. Ao completar setenta e quatro anos — 1968 — meu pai decidiu que iria aproveitar todo o tempo disponível para realizar seu velho sonho dos tempos de juventude: redigir um romance. E assim foi! Redigiu um romance em estilo clássico: “Velhas castas”. Romance que foi datilografado nas antigas máquinas de escrever e, depois de terminado, permaneceu guardado em sua ga- veta. Como também esteve guardado em nossas gavetas, as de seus descendentes. Foi quase meio século depois que retomamos o tex- to original datilografado e ele aqui está, integralmente transcrito, sem qualquer modificação. Cumpre agradecer, postumamente, a Pedro Magalhães. Foi sua compreensão, há um século atrás, que permitiu a meu pai migrar de um lugarejo paupérrimo, em uma zona rural, para a cidade grande, oferecendo a oportunidade que transformou sua vida. E que, depois, originou a vida de seus descendentes. Nelson Guimarães Proença Filho do Autor .9.
I No verão de 1928, pela estrada poeirenta que vai do Arraial em direção a Jaguariúna, seguia um trole conduzindo duas mulheres, uma delas beirando os quarenta anos, a outra ainda adolescente. Protegiam suas cabeças com chapéus de palha de amplas abas, a fim de se resguardarem dos cálidos raios de sol. A condução da via- tura cabia à de mais idade. Regressavam de breve visita a uma fa- zenda nas proximidades, onde tinham ido visitar uma conhecida, que estava enferma. — Dá pena ver como tudo isto está mudado! — murmurou a mais velha, soltando imenso suspiro. Parecia falar consigo própria, a mais jovem não poderia com- preender o sentido das suas palavras e daquilo que se passava no seu âmago. Era uma espécie de solilóquio, um desabafo incontido, entretanto ouviu-a perguntar: — Que é que mudou, tia Camila? — Nada demais, Márcia, eu estava falando comigo mesma — tergiversou a companheira. — Não disfarce... estava pensando em alguma coisa... posso saber? Camila voltou-se para ela, esboçando um sorriso melancólico. .11.
— Nunca poderia compreender, Márcia. Seria preciso viver os tempos passados, quando meus pais existiam, sentir as peripé- cias que encontramos ao longo da nossa infância e mocidade, para poder avaliar as transformações por que passou esta região. Cada recanto desta paisagem fala à nossa alma, como se fossem cenas de ontem, cada uma destas colinas foi testemunha da nossa vida despreocupada de então. Às vezes chego a pensar nos caprichos do destino, em como somos manejados por cordéis invisíveis que nos tangem como bonecos. São reminiscências de nossa meninice que vivi, que agora não vêm ao caso e nem devem ser lembradas. Suspirou novamente, volvendo a cabeça para o outro lado e agi- tando as rédeas. A sobrinha insistiu. — Ah, titia, a senhora me deixou curiosa... em que estava pen- sando? Bem gostaria de ouvir falar dos tempos passados... — Nos tempos em que eu tinha a sua idade, eu era cheia de ilu- sões e de esperanças, tinha tudo a meu favor... riqueza, adulado- res... hoje não passo de uma velha solteirona vivendo a expensas alheias... — Não fale assim, titia. A senhora não é velha e mamãe ficaria ofendida, se ouvisse. Nós todos a estimamos tanto e não podemos dispensar a sua companhia. — Sim, querida, você tem razão. Não posso esquecer o carinho de que sou cercada, seria injusto da minha parte. O que saiu da mi- nha boca foi um desabafo inconsciente, de recordações, de saudade. — Por que acha tudo diferente? — Talvez seja eu quem mudou, Márcia. Envelhecemos e os olhos da idade nos fazem ver as coisas por um prisma diverso. Quando se tem dezesseis anos, como você, ou catorze, como sua irmã Isabel, .12.
tudo se torna alegre e risonho, tudo desperta arrebatamentos em nossa alma, tudo encanta a nossa vida. Outra coisa é chegar à ma- turidade, com as rugas começando aparecer e o nariz ficando de- pendurado... Soltou uma risada e continuou: — Eu estava pensando que na minha infância os campos pa- reciam ser mais f loridos e mais verdes, havia muita fartura, mais animação. Quando voltávamos da França, por ocasião das férias, sentia imenso prazer em andar pelos pastos, colhendo araçás e gua- birobas. Como achava maravilhosa a nossa fazenda! — Continua tudo bonito... — É verdade que seu pai conseguiu um milagre, restabelecendo um pouco do antigo esplendor, mas não passa agora de uma quarta parte das terras. Fomos forçadas a vender, aí é que está o motivo do meu desabafo. — Pois eu gosto dela assim mesmo, não imagina como adoro estes lugares, principalmente quando estou guiando o trole. Quer deixar-me guiar o resto do caminho? A tia passou-lhe as rédeas e o trole continuou rodando ao passo cadenciado do animal, penetrando na área da fazenda. Atravessa- ram uma pastagem bem cuidada, onde se viam sossegados bois, nédios e bem nutridos, de raças apuradas, charolesa e da Holanda, de malhas branco-pretas e branco-vermelhas, atestando a qualida- de da criação. Mais adiante, cavalos agitando as caudas para espan- tar as moscas. Finalmente deram entrada no parque arborizado, seguindo pela alameda ensombrada por velhas árvores, até estacio- narem junto à vivenda, entregando a carruagem ao empregado ali em serviço. .13.
❧ Subiram os degraus da imensa varanda, onde Isabel conversava animadamente com Nazário Pinto, funcionário da família na cida- de de Campinas. Nazário levantou-se, cumprimentando cerimoniosamente as recém-vindas, enquanto Isabel dirigiu-se à tia, reclamando: — Bonito, hein? Foram passear de charrete e se esqueceram de me convidar! — Saímos muito cedo e não te encontramos — respondeu a tia. Devia estar ainda dormindo. — Ou então saracoteando por aí... interveio Márcia, em tom malicioso. — Como você costuma fazer — rebateu a menina. Camila interveio, pacificadora: — Soubemos que dona Berta estava doente e fomos fazer uma visita. Havia outras pessoas em casa dela, pouco nos demoramos. Nesse instante Ifigênia apareceu no terraço, conversou com Na- zário Pinto a um canto e a seguir o despachou. Era uma mulher magra, de olhar incisivo e aspecto pouco agradável, rosto esguio e nariz aquilino. Mirando-a à primeira vista, tinha-se a impressão de ter os olhos muito juntos, ombros levemente caídos para a frente. Administrava a vida doméstica com pulso firme, seus familiares lhe concediam o crédito de jul- gá-la altamente judiciosa e enérgica, não obstante abrigar algu- mas vezes elevado sentimento de orgulho ao se tratar do bom nome da família. Dirigiu-se à irmã para saber de dona Berta. .14.
— Está passando melhor depois que o Dr. Enzo Ungaretti medi- cou — respondeu Camila. Nossa permanência lá foi bastante curta, porque tinha mais visitas. Sabe quem encontramos em casa dela? Prima Henriqueta, na companhia da esposa do médico! Ifigênia redarguiu com veemência: — Esposa? Você se anima chamar de esposa, uma mulher que vive no concubinato com um homem casado? Camila comungava com a irmã dos mesmos preconceitos, en- tretanto não participava da forma agressiva com que ela tratava o assunto, procurando uma evasiva para se descartar. — Dona Berta os recebe e mantém boas relações com o casal, você não ignora como é ela informal. — Que dona Berta os recebe eu sei, que mantém boas relações com o casal também sei e nada tenho com isso. O que não posso admitir e acho profundamente deplorável é prima Henriqueta, de nosso sangue, fazer a mesma coisa! Ela vive visitando e mantendo amizade com pessoas que não receberam o sacramento do matri- mônio, perante Deus e segundo as leis da religião, é isto o que não posso conceber. E não vá me dizer que não foram juntas! — Foram juntas, sim, levadas pelo filho em seu automóvel. — Esse coitado não tem culpa dos erros dos pais, entretanto não desejo intimidades de minhas filhas com esse mancebo. Desde já as quero advertir para não se aproximarem dele. Márcia ouvia o diálogo e interveio. — Eu sei colocar-me no meu lugar e não tenho dado confiança a ele, mas acho bom prevenir Isabel. — Por que me prevenir? — rebateu Isabel, desabridamente. .15.
Ifigênia apaziguava em todas as ocasiões em que as duas conten- diam, por bem conhecer o temperamento impetuoso de Isabel. — Não deve fazer julgamento antecipado, minha filha, isto não é correto. Isabel já tem bastante juízo para não fazer aquilo que o bom senso condena. — Não seria nada de admirar, mãe — comentou Márcia. A senhora não reparou na maneira burguesa com que ela falava ao Nazário aqui na varanda, com risadas impróprias, como se fossem iguais? — E somos amigos, sim! — ripostou a menor — Que tem de mais conversar com Nazário, que trabalha para a família e me conhece desde pequena? Ele é bastante respeitoso e não vejo nada demais! Ifigênia ouviu-a paciente, mas aproveitou para fazer a recomen- dação de sempre, revigorando nas filhas o amor e respeito à raiz de suas origens. — Minhas filhas, vocês estão ficando mocinhas e nunca é demais ficarem prevenidas a respeito de alguma coisa que os colégios não ensinam. Nossa família descende de uma estirpe nobre, altamente considerada, todos nós temos o dever de manter bem alto o conceito que a cerca. Isso não significa tratar mal os outros, mas não devemos ser prosaicos nem vulgares. Márcia tem razão quando fala na liber- dade excessiva que concedemos a certas pessoas, o que dá ensejo à licenciosidade da parte deles. Nazário é um bom moço, mas não da nossa grei e acho bom ir encurtando os cordéis para com esse triguei- ro. Siga o exemplo da sua irmã e não vai se arrepender. Não era a primeira vez que a mãe recomendava a Isabel seguir os exemplos de Márcia, com quem afinava pouco. A irmã mais ve- lha não era bonita, saíra ligeiramente à mãe, esguia e amorenada, .16.
enquanto Isabel lembrava o pai, desenvolta e bela, exuberante no rosado do rosto bem conformado e na decisão das atitudes. Entre- tanto, o que mais a feriu, foi aquele adjetivo de “trigueiro” com que a mãe procurou fustigar o simpático servidor, tão devotado à famí- lia e que ela muito estimava. De origem humilde, Nazário fora companheiro de ginásio do seu tio Fernando e por ele admitido mais tarde a serviço dos Pe- çanhas. Era um belo moço, bem dotado e alegre e jamais poderia esquecer o quanto lhe era afeiçoado desde pequenina, quando a cumulava de guloseimas. Entretanto, curvou-se à advertência ma- terna, compreendendo ser inoperante qualquer resistência. — Está bem, mãe, vou seguir os exemplos da Márcia. ❧ Ifigênia e Camila desceram para uma inspeção ao pomar e à horta. Verificavam o estado das recentes plantações e o jardim re- feito, iam trocando impressões acerca da transformação operada na fazenda, em sua nova fase, depois da restauração feita pelo ma- rido de Ifigênia. Quantos fatos haviam decorrido desde os tempos em que o pai imperava na política, nos tempos do fastígio da família. Para quem conheceu as adjacências de Campinas nos fins do século anterior, a paisagem sofreu radical transformação: as velhas e pródigas fazen- das de café, com seus costumes e tradições, seus senhores potenta- dos e donzelas de saias-balão e anquinhas, cederam seu primado a novas lavouras multifárias, mostrando a variedade de culturas por colinas ondeantes, a perder de vista. .17.
Para os lados de Santa Bárbara D’Oeste e Americana viam-se planícies pontilhadas de manchas douradas de canaviais entre- meadas de plantações polimorfas, a se estenderem na direção de M onte Mor e Capivari. Para os lados de Pedreira e Amparo, terras outrora férteis se converteram em reduzidas lavouras hortigranjei- ras, não raro em pastagens extensas, não mais recordando a fera- cidade passada. Próxima do Rio Atibaia havia uma fazenda de nobres tradições, das mais importantes ao tempo do Império. No topo de uma colina, abrigada por arvoredo vetusto, bela mansão senhorial dominava a paisagem com a imponência da sua fachada de grandes colunas, com um alpendre amplo e aprazível, de onde podia descortinar-se panorama maravilhoso, em que sobressaia lá muito distante, no ho- rizonte, a fímbria quase esmaecida da Serra da Mantiqueira. Fazenda Paraíso! Essa fazenda pertencia ao Barão de Valinhos, da antiga estirpe dos Almeida Braga, homem de cultura e de proje- ção, ao tempo em que os grandes senhores enviavam os filhos aos colégios europeus. Era conhecida pela fertilidade de suas terras e igualmente pelo fausto das recepções que oferecia aos amigos. Com a morte do Barão passou ela às mãos do filho Agostinho Braga, ho- mem sociável e estimado em Campinas, maneiroso, não tardou ser envolvido pela política. Galgou postos, até atingir o Senado Estadual. A fazenda não pôde furtar-se ao acontecido por toda a parte: o exaurimento das terras, a abolição da escravatura com a dispersão de muitos escravos, gastos políticos, maus investimentos e o f lagelo das geadas, tudo isto agravado pela perda da esposa, Agostinho foi levado à falência. Não resistiu a tão graves eventos, sucumbiu de um enfarte. .18.
Foi assim que deixou minguado espólio às duas filhas, Ifigênia e Camila, jovens educadas em afamados colégios franceses, habi- tuadas ao luxo e a periódicas viagens marítimas pelos melhores transatlânticos. Liquidado o espólio, apenas restaram às herdeiras modesta casa na cidade e a fazenda com a antiga mansão. Em fase de decadência, elas ficaram despojadas de recursos e tiveram de vender muitas terras, parceladamente, por estarem ao abandono, sem conservação. Foi uma época terrível para as duas mulheres. E de desgostos. Quando seu pai dispunha ainda de incontrastável poder pes- soal, fizera nomear promotor público em Campinas um moço re- cém-formado, de bela aparência e brilhante inteligência, Alcides Fajardo. Que não demorou a entrar na intimidade da família, tor- nando-se em breve tempo noivo da filha de Agostinho. Sobrevindo o cataclismo que empobreceu o Senador, esse jovem não teve escrú- pulo em romper o compromisso assumido. Por essa época, Ifigênia mantinha estreita amizade com Celia Medeiros, filha de um novo-rico tornado opulento por força de ou- sados investimentos. A esperta mocinha teceu a teia habilmente, desviou o promotor para o seu lado, desposando-o. O casal transfe- riu-se para outra cidade As duas descendentes da velha estirpe do Barão de Valinhos — Ifigênia e Camila — sumamente orgulhosas de sua progênie e já pouco dadas a relações na cidade, feridas em sua incomensurável soberbia, mais e mais se encastelaram na altiva solidão da modesta vivenda herdada. Raramente eram vistas em sociedade, suas visitas se resumiam a reduzidas pessoas. Entre estas destacava-se a prima Henrique- .19.
ta, sobrinha de sua mãe, parente do ramo pobre da família, casa- da com Carlos Azambuja, um advogado bastante conhecido e bem conceituado, que cuidava dos negócios dos A lmeida Braga. Não há mal que sempre dure e a penúria das duas jovens real- mente deixou de persistir. Esta é uma nova história que também merece ser contada. ❧ Vindo de sua pátria aportou em Campinas um imigrante por- tuguês de nome Peçanha, que com muito esforço e muito tino sou- be acumular recursos e crescer no conceito local. Casou com uma descendente de imigrantes italianos, nascendo dessa união cinco filhos. Homem de boa formação moral, Peçanha esforçou-se para dar aos filhos aprimorada educação. Destes, Arnaldo — o mais velho — desde muito cedo revelou acentuados pendores para a vida monástica. Auxiliado pelo bis- pado de Campinas, foi enviado à Itália para concluir seus estudos teológicos na Ordem franciscana, retornando ao Brasil como Frei Bibiano. Rogério, o segundo, estudou ciências econômicas, fazendo excelente carreira. Dele contava-se possuir as qualidades do rei Midas, da antiga Frígia que, segundo a mitologia grega, transfor- mava em ouro tudo quanto tocava. A verdade é que era dotado da extraordinária qualidade de análise e previsão, hábil no manejo dos negócios e com grande capacidade de fazer amigos. O terceiro dos irmãos era a exceção, quanto a seu aspecto fí- sico. Fernando fora atingido por algumas doenças em pequeno, .20.
tornando-se pouco desenvolvido, o que o tornou casmurro e um pouco infenso ao estudo. Entretanto, bem aproveitado mais tarde pelo irmão R ogério, revelou-se ativo empreendedor, demonstrando ótimos predicados administrativos. Seguia-se uma filha, casada com Cláudio, funcionário da Pre- feitura. E ainda o caçula, Paulo, que decidiu pelo estudo do Direito. Rogério, jovem prático, compreendeu que convinha procurar nas tradicionais famílias campineiras um casamento que o situas- se em alto nível social. Confiou suas pretensões ao amigo advogado, Azambuja. Este o compreendeu e combinou com a esposa colocá-lo na presença das primas de Henriqueta, Ifigênia e Camila. Em reuniões familiares nasceu essa aproximação da qual resultou o casamento de Ifigênia com o filho do imigrante português. Feliz ensejo permitiu a Rogério transferir-se para São Paulo, adquirindo o controle acionário dos Moinhos Santa Helena, em momentânea dificuldade. Não descurou, entretanto, de proceder a uma completa recupe- ração das terras da Fazenda Paraíso, adubando-a e plantando. Re- formou os pastos, o jardim, os gramados, reorganizou os pomares e depois de tudo feito, mandou restaurar a velha mansão, devolven- do-lhe parte do antigo esplendor. Desejava reunir ali, nos fins de se- mana, amigos e homens de negócios, para agradáveis passatempos e descanso. Essa transformação foi acompanhada com grande euforia e jú- bilo das duas jovens mulheres, que sentiram revivescer a grandeza do velho solar. Olhando para tudo aquilo, Ifigênia não pôde conter um vivo sentimento de alegria, desabafando para a irmã: .21.
— Graças a Deus, minha irmã, espero vivermos daqui para diante mais tranquilas e vou me agarrar de unhas e dentes para que nossa vida não mais resvale para a pobreza. Interrompeu por um instante, a seguir completou. — Não sei se estou ofendendo nosso pai, mas para nós, que des- frutamos uma vida opulenta, a pobreza torna-se até humilhante! Parece que todo o mundo nos olha com olhares desdenhosos, talvez contentes em nos verem por baixo. Não quero que minhas filhas venham a passar pelas provações que nos atingiram. Finalmente o brasão dos Braga voltou a resplandecer e vou dedicar o resto da mi- nha vida para elevá-lo bem alto, custe o que custar... .22.
II O Dr. Enzo Ungaretti terminou o almoço ao meio dia em ponto, segundo seu hábito. Apreciava estirar-se na cadeira preguiçosa após a refeição, para se beneficiar de breve repouso antes de iniciar suas atividades do dia, no atendimento de seus clientes. Estranha personalidade a desse homem! Enorme de corpo, enxundioso e de gestos lentos, possuía completo autodomínio e controle emocional, que raramente o abandonavam. Estoico por temperamento, devido certamente à sua profissão em permanente contato com os doentes, sua existência se repartia entre a família e o consultório, repetindo-se todos os dias com a regularidade dos ponteiros de um relógio. Ao fim de trinta minutos a esposa o chamava, quando ainda não desperto. Dirigia-se então ao dormitório para completar a ves- timenta, ia em seguida ao pequeno escritório contíguo à sala de vi- sitas, apanhava uma pasta sempre repleta de papeis, mais a bengala de castão de prata. Nesse instante Olinda, a esposa, procurava afir- mar a sua presença sob um pretexto qualquer, ora arrumando-lhe a gravata ou escovando o paletó. .23.
Nesse dia notou Olinda leve palidez no semblante do marido, em contraste com as faces rubicundas de sempre. Interpelou-o na sua voz de timbre suave: — Não dormiu bem esta noite e comeu pouco... está sentindo alguma coisa? O médico fitou-a placidamente, enquanto ela ajeitava a gravata. — Não, mulher. Dormi o suficiente e estou bem. Tomou o chapéu que Olinda lhe entregou e não falou mais nada. Habitualmente seus diálogos eram curtos, pouco se falavam, entre- tanto quanta carícia na simples troca de olhar, em que a estima e afeto recíproco pareciam transmitir-se. Ungaretti dirigia-se então até o ponto do bonde na esquina não distante, à espera do veículo em seu horário regular. Tomava sem- pre aquela condução, era conhecido dos motorneiros condutores e de seus usuários, quase sempre os mesmos. Os seus passos podiam ser cronometrados. A costureira D. Alice, moradora nas proximidades, costumava alertar o filho para dirigir-se à escola, ao vê-lo passar. O Dr. Ungaretti firmara reputação de bom clínico, com grande clientela, até vinda de cidades mais distantes. Sua enfermeira fora instruída para atender apenas dez consulentes por dia e exatamente a uma hora recebia em sua sala o primeiro cliente. Não obstante a rigi- dez dos hábitos, não raro ficava no consultório até mais tarde, quan- do acontecia receber algum doente especialmente r ecomendado. Nessa tarde, ao sair a última visita, dirigiu-se preocupado até uma velha poltrona de couro já poluída pelo tempo e pelo uso, jun- to à janela, ali sentando-se para descansar. Pela primeira vez tinha dispensado a enfermeira, ordenando-lhe trancar a féria na gaveta do móvel e engolfou-se em profunda meditação. .24.
— Que mulher perspicaz a minha — pensou. Como ela conseguia penetrar em seus pensamentos e suas in- quietações. De nada valia subtrair-se em sua presença, tinha a sen- sação de achar-se ela igualmente desassossegada a seu respeito. Na realidade, naquela noite uma dor aguda havia trespassado o peito enquanto dormia, provocando instintivo movimento. Tentou apa- rentar serenidade, ocultando à esposa sua preocupação. Contudo foi ela quem menos dormiu em seguida, tão solícita e cuidadosa para com ele. Tinha uma reparação moral a cumprir em relação à família. Tentava os passos necessários há alguns anos, seu amigo e advoga- do Carlos Azambuja estava incumbido das medidas cabíveis e sen- tia agora aproximar-se uma crise em sua saúde. — Também, que diabo! Azambuja bem podia apressar um pou- co mais as providências, embora seja um homem muito ocupado — pensou. ❧ Por sua mente perpassou então toda uma existência de luta e de trabalho, relembrando a extensa caminhada desde os primórdios da infância, na velha cidade de Agrijento, na parte sul da Sicília, no Mediterrâneo, onde nascera. Estudou medicina em Palermo e regressou à cidade natal, con- sorciando-se com Gina, a jovem de seus sonhos. Muito breve aper- cebeu-se do erro cometido. Gina possuía um caráter violento e tem- peramental, mostrando-se muito oposta a seu gênio tranquilo. A convivência entre ambos evidenciou-se desde logo impossível, sepa- .25.
rando-se o casal após um ano. Gina gostava de bailados e um dia in- corporou-se a uma companhia que seguiu para Roma e Enzo, bastan- te desgostoso e tendo perdido o pai, nessa ocasião, decidiu emigrar. Foi um seu colega de turma, de nome Falavigna, quem suge- riu-lhe o Brasil, onde tinha um parente. Este era residente em São Paulo, a ele escreveu fazendo carinhosa recomendação. Quando Enzo aqui chegou revalidou o diploma perante as autoridades fede- rais, como determinava a lei, escolhendo então a cidade de Campi- nas para radicar-se. Desconhecido na cidade e contando com limitados recursos, Enzo procurou acomodação em alguma casa de família, com pouca gente. Indicaram-lhe uma viúva que dava pensão apenas a um casal de hóspedes, poderia aceitá-lo também. Dona Ofélia, a proprietária, que tinha uma única filha, alugou-lhe dois compartimentos, alojan- do-se ali confortavelmente e iniciando uma vida de intenso labor. Os anos passaram, a clientela do facultativo foi aumentando aos poucos e Olinda, filha da viúva tornou-se moça, muito auxi- liando a mãe nos arranjos da casa. Olinda não era bonita, entre- tanto era altamente eficiente, seus predicados não podiam pas- sar despercebidos de Ungaretti. Um dia necessitou de alguém para o ajudar em seu consultório, como assistente e enfermei- ra, convidou-a para trabalhar. Olinda tinha suas tardes livres e sua mãe consentiu em que ela se empregasse, a fim de ajudá-la nas despesas. Dona Ofélia era bastante enfermiça e um belo dia despediu-se deste mundo, deixando a filha sozinha. Ungaretti tinha se acos- tumado tão intensamente ao trabalho da moça, com sua atuação discreta e eficaz, paciente no trato dos clientes e temeu perdê-la. .26.
Um sentimento instalou-se então em sua consciência, já vinha há algum tempo ref letindo sobre ele e eis que emergia repentinamen- te, vindo à tona! Encorajou-se para uma conversa entre ambos, pois tinha vinte anos mais que Olinda e a explicação seria bastante difícil. Começou por analisar a estranha situação em que se encontra- vam os dois. Ela imprevistamente sem a mãe e sem ninguém, ele necessitando de uma boa companheira. Confessou que aprendera a ver nela todas as condições para tornar-se uma esposa ideal, de- sejava sinceramente desposá-la. Verdade, era bem mais idoso, no entanto poderia tornar-se um marido paciente e paternal. Levava vida austera e regrada, ela bem o sabia, amava o recesso do lar e conseguira amealhar não poucos recursos para garantir uma exis- tência cômoda e tranquila. Havia, porém, um óbice a transpor: era um homem casado em sua terra de origem, fora infeliz nessa união, e tanto as leis brasilei- ras como as leis italianas impediam o divórcio. Poderiam, contudo, procurar um país onde legalizar um novo casamento. Olinda pediu prazo para pensar. Levou pouco tempo indecisa, considerou a precariedade de sua posição af litiva, pois não tinha parentes próximos nem relações pessoais a quem prestar contas, acabou assentindo. Comemorando as núpcias, Enzo levou-a a passear à Europa, demorando-se três meses na vilegiatura, percorrendo os principais países. Olinda deliciou-se nesse passeio, aproveitando para adquirir interessantes objetos para guarnecer a nova morada. Comprou roupas variadas, para mesa e corpo, louças de Limoges, faianças na .27.
Itália, rendas valencianas e f lorentinas, porcelanas de Ginori e, ao fim dessas andanças, retornaram à Campinas, para nova etapa na vida, agora em comum. ❧ A sociedade recebeu o casal com certa relutância, notando-se apenas reduzida tolerância, dentro dos estritos limites da cortesia, quando eram vistos juntos em lugares públicos. De resto isso muito pouco os afetou, desejando ambos deixar transcorrer placidamente a existência e bastando-se reciprocamente, insensíveis às considera- ções alheias. Acresce que o casal foi em breve tempo enriquecido pelo nascimento de um filho, sentindo-se Olinda plenamente realizada. Enzo era patriota ardoroso, permanecendo seu coração fiel- mente vinculado à Mãe-Pátria e desejou dar ao filho um nome tipi- camente italiano: poderia ser Dante, Pompeu, Tibério ou Júlio Ce- sar. Olinda preferiu simplesmente Cesar, por achá-lo mais bonito e mais eufônico. Ao começar esta narrativa — no correr do ano 1928 — contava Cesar dezoito anos e estudava medicina em São Paulo, onde passa- va a maior parte do ano. Aparecia em Campinas somente por oca- sião das férias. Ungaretti começou a preocupar-se com a regulamentação do matrimônio, a fim de transmitir à família agora constituída uma situação normal. Inquietava-se com a dificuldade de descobrir o paradeiro de Gina, sua esposa legítima. Intensas investigações que encomendou foram empreendidas e indicaram ter ela emigra- do para os Estados Unidos e seus passos haviam sido ali perdidos. .28.
Azambuja comunicara-se por intermédio da Embaixada Brasileira com um escritório especializado em investigações, da América do Norte, e uma carta precatória foi enviada àquele país, para autori- zar as buscas. Naquela noite, inteiramente absorvido em suas cogitações, U ngaretti não sentiu o tempo passar e somente deu acordo do adiantado das horas ao ouvir o sino da Matriz próxima pingar com- passadamente as sete badaladas da noite. Fazia-se escuro, levan- tou-se para partir. Olinda bem poderia achar-se preocupada com a sua demora. Ia virar o comutador da luz, quando ouviu o ruído de passos subindo a escada. O prédio era bastante antigo e alguns degraus rangiam ao peso do recém-vindo, estalando mais alto um deles, à chegada. O facultativo aguardou curioso o imprevisto visitante, quando viu surgir Carlos Azambuja à soleira da porta. — Boa noite, Dr. Enzo, desculpe vir a esta hora mas vi luz na janela e entendi trazer-lhe a interessante novidade. O médico agradeceu o cumprimento com um gesto, indican- do-lhe uma poltrona com a mão carnuda, fitando-o com particular interesse. — Temos notícias de Gina — tornou o advogado. Como sabe, nossos correspondentes da Capital americana estavam no encalço dela e conseguiram uma pista segura... — Vive? — Não, o que tornou mais simples o nosso caso. Depois de uma existência atribulada ela foi parar em Boston, onde veio a falecer. Há comprovantes de toda essa caminhada. .29.
Azambuja observava a reação do médico, que ouvia atento. — Informam nossos agentes ter deixado um filho pequeno que foi recolhido a um asilo de menores e deve contar atualmente quin- ze anos. Ungaretti ref letiu longamente depois externou. — Foi uma insensata. Tinha um gênio irascível e me deixou sem uma razão plausível, quando podia ter tido uma vida tranquila. Como vê, o filho não é meu e nada tenho a fazer nesse particular. Que providências devo tomar agora? — Em primeiro lugar pedir uma certidão do óbito para poder- mos juntar ao processo e isso levará mais um mês. Pequeno silêncio e Ungaretti ajuntou: — Como sabe, faço empenho em que se apresse esse negócio. Quero regulamentar minha união com Olinda o quanto antes, em benefício dela e do filho, mesmo porque... — Mesmo porquê?... — Não quero que diga nada a Henriqueta, para não ir parar nos ouvidos da minha mulher, mas tenho que contar um segredo quan- to a minha saúde... meu coração começa a dar os primeiro sinais de que pode parar a qualquer momento. — Por que diz isso, Dr. Enzo? — Esta noite senti uma fisgada violenta no peito, uma dor agu- da aqui na frente, no esterno, que pode se repetir imprevistamente. O advogado procurou atenuar. — É claro que não devo ensinar o padre-nosso ao vigário, mas não serão dores ref lexas? — Não, Carlos, tenho bastante experiência. Não vamos drama- tizar nem exagerar. Tenho inúmeros clientes que superaram casos .30.
semelhantes e vivem muito bem. É por esse motivo que não deve- mos desassossegar minha mulher. Agradeço o esforço que você tem despendido para resolver o meu caso e conto agora com um resul- tado final rápido. Azambuja compreendeu ter terminado seu objetivo e levantou- -se, no que foi acompanhado pelo médico. Ao descer a escada per- guntou cauteloso: — Quer que o leve até a casa? — Não é necessário, obrigado. Tomarei um táxi. ❧ Olinda o aguardava, sem dissimular sua apreensão. Tomou-lhe o chapéu e a bengala, fitando-o inquisitorial. — Como passou o dia? — Passei bem, mulher. — Por que veio de táxi? Ouvi o barulho do motor... — Tive de ficar até mais tarde para conversar com o Carlos. Ele tinha algumas notícias para me comunicar... Em parte, Olinda sabia do que se tratava, pelas revelações par- ticulares de Henriqueta, entretanto procurou esconder seu conten- tamento. Genoveva, a empregada que acompanhava o casal desde muitos anos, avisou ter servido o jantar e passaram ambos à outra sala. Un- garetti despojou-se da gravata, libertando o pescoço taurino, mais o paletó, que a esposa levou a dependurar no quarto. Desabotoou o colete, como seu costume, e sentou-se à mesa. .31.
Comeram em silêncio. A esposa respeitava o refrão por ele anunciado alguma vezes — “primum vivere, deinde philosophari” — contudo não deixava de espreitá-lo furtivamente, tentando lo- brigar em sua face vestígios do sofrimento da noite anterior, fato que a trazia apreensiva. ❧ Quase ao fim do jantar, falaram do filho. Era propósito do mé- dico transferir-lhe o consultório logo que se formasse, entretan- to Cesar reagira a essa ideia, pretextando inclinação para o ramo operatório, onde iria encontrar melhor perspectiva e motivação. Desejava, assim, permanecer na Capital, onde o campo era mais propício. Ungaretti argumentava levar muito tempo para conseguir re- putação nessa especialidade, além de muitos riscos, dizendo pre- ferir não abrir o corpo dos outros, contentando-se com suas me- zinhas — o que importava era diagnosticar com exatidão e dar o remédio certo. A esposa redarguiu sentir-se desconsolada com essa perspecti- va, por sentir o filho sempre longe. Novo silêncio. O médico acendeu um charuto toscano e fixou a mulher. — Soube notícias de D. Berta? — Já sarou, Henriqueta telefonou-me esta manhã. — Era uma dessas gripes que andam pegando todo o mundo; no caso dela, complicado, com bronquiectasia. Reagiu bem ao tra- tamento. .32.
Pôs-se a acompanhar a fumaça do charuto a espiralar, forman- do volutas bizarras, deliciando-se durante algum tempo voluptuo- samente com a cinza alva que ia se formando e tornou: — Recebemos convite do Rogério para o almoço que vão ofere- cer no domingo, comemorando a reforma da Fazenda Paraíso. Pelo que ouço, vem muita gente de São Paulo, afora os daqui. — Eu sei — respondeu pensativa. Não se fala na cidade em ou- tra coisa e há muitas pessoas excitadas com a festa. — Vamos comparecer? — Eu não! Vá você sozinho. Ungaretti conhecia a velha quizila da esposa para com as filhas do Senador e procurou contornar. — No meio de tanta gente podemos nos disfarçar perfeitamen- te e pouco sermos notados... — É o que você pensa. Por que ir lá, quando sei que não me estimam? Com você a coisa é diferente e não sei em que possam estranhar a minha ausência! Apresente uma desculpa qualquer e garanto que ficarão bem contentes. O médico tinha os Peçanhas em bom apreço, investindo cons- tantemente em fundos, através de Rogério e de Fernando, que lhe proporcionavam vantajosos proventos. Além do mais, eram eles fi- lhos de descendente de uma compatriota sua, coincidentemente da mesma Província. Não deixou de perguntar: — Afinal, vocês não conseguiram desfazer a diferença? — Ora Enzo, há tempos comentamos o assunto e certamente se esqueceu. Essas mulheres vivem empanturradas de nobreza, cheias de preconceitos e nunca me procuraram, nem demonstraram von- .33.
tade de ter relações comigo. Há uma porção de coisinhas que nos afastam, eu não sou tão cega que não perceba! Conclusão: elas não gostam de mim! — Afinal, sem uma razão explicável... — Já disse que existem várias. Para começar, uma delas é o fato de morarmos nesta casa, que pertenceu a elas. — Não vejo porque. Comprei esta casa do Senador, quando ele ainda vivo, ela estava à venda e paguei o justo preço, sem regatear, além do que, nunca residiram nela. — Não importa. Mas fazia parte do patrimônio. Com a morte do pai, as filhas ficaram pobres, morando em casa modesta, en- quanto eu vim residir aqui, na casa que foi delas. Compreenda que não foi muito agradável para as duas. — Isso de uns empobrecerem e outros subirem, faz parte da vida. Existem exemplos semelhantes todos os dias. — O caso deles é diferente. O velho estava apertado e foi for- çado a vender. É verdade que não moraram aqui, mas é uma casa confortável e é duro terem de me ver nela, eu que não passava de uma pobretona que vivia na dependência da família. Você sabe que meu pai foi empregado do Senador, homem de toda a confiança para todo o serviço, mas ganhava pouco. Minha mãe costurava na casa delas para ajudar nas despesas, eu era ainda pequena, então as duas moças me utilizavam para pequenos serviços. Compreenda que não viam com bons olhos aquela menina pobre subir, enquanto elas caiam. Não guardo rancor, mas não posso consentir que me tratem com pouco caso. — Fizeram alguma desfeita? — Algumas. Uma tarde atravessaram a rua para não passarem por mim e terem de me cumprimentar. Ainda nesta semana, na .34.
casa de dona Berta, encontrei lá a Camila e a sobrinha mais velha e precisa ver como se comportaram! A baronesa não falou comigo e a sobrinha ficou vendo uma revista no fundo da sala, espreitando-me com o rabo dos olhos, eu bem que percebi. Que vão para os diabos com tamanha empáfia! Serenou novamente e procurou sorrir para o marido. — Enzo, você deve ir ao almoço. Não é pelo motivo de entrega- rem o convite no consultório, em lugar de trazerem na minha casa, que estou aborrecida. Você tem seus negócios com eles e não fica bem faltar. Ficarei contente se comparecer. Ungaretti ouvia, agora bem humorado. Depôs o resto do charu- to na borda do cinzeiro e levantou-se, contornando a mesa do jantar, com seus passos lentos, vindo postar-se atrás de Olinda. Pousou levemente as mãos nos ombros da esposa, dizendo com brandura: — Pensem o que quiserem, mas não irei sem minha mulher- zinha. Olinda afagou suas mãos gordas em sinal de agradecimento, aproximando-as do rosto, num gesto carinhoso. .35.
III O mês de julho decorria inconstante, entrecortado de dias úmi- dos, com intermitentes garoas e ventos gelados a fustigarem a pele, desanimando os colegiais em férias. Cesar Ungaretti encontrava-se entre estes, lançando continua- mente os olhos pelas janelas abertas, vendo a neblina lá fora a molhar os telhados e a folhagem ressequida das árvores, deixando escorrer o líquido das folhas, qual pranto a ensopar a terra. Os dias iam transcorrendo lentamente, enchendo-o de tédio e obrigando-o a engolfar-se na leitura dos autores preferidos, ame- nizados nalgumas ocasiões pela presença de Roberto Linhares, a quem estimava por seu gênio folgazão. Estranha combinação faziam estes dois rapazes, de tempera- mentos completamente antagônicos. Efetivamente, Roberto era a antítese de Cesar: obeso, rosto redondo, cabelos negros e bem pen- teados, lisos à custa de cosméticos, olhos cintilantes, extrovertido e brincalhão, encontrando sempre um comentário jocoso para as si- tuações mais sérias. Cesar, ao contrário, tinha o olhar fixo, voltado .37.
para dentro, o que lhe emprestava a aparência de precoce maturi- dade. Embora seguindo cursos diferentes, um estudando direito e o outro medicina, estimavam-se profundamente, formando inco- mum simbiose. Foi assim que, no alvorecer daquele dia, dirigindo os olhos para os lados da janela ainda cerrada, Cesar experimentou intenso júbilo ao constatar a viva claridade a insinuar-se pelas frinchas da vene- ziana, a antever um dia imprevistamente belo. Saltou do leito e correu abri-la, permanecendo algum tempo ex- tasiado ante a luminosidade da manhã, olhando as folhas crestadas da jabuticabeira e do caquizeiro, conservando ainda os respingos formados pelo orvalho noturno, qual pérolas iluminadas pela cla- ridade. Distendeu os braços e pernas em rápido exercício muscular, entregou-se à higiene matinal com a costumeira disciplina que o caracterizava e dirigiu-se à copa, onde sua mãe se entregava aos afazeres domésticos. Aproximou-se por detrás, envolvendo-a com seus braços vigo- rosos. — Bom dia, minha velha. — Está querendo estrangular-me? — perguntou ela em seu tom carinhoso. — Quero apertar esta mãezinha boa. — Pelo visto, levantou-se bastante alegre. — E não é para menos, depois de tantos dias horríveis. — Já tem algum programa? — Não sei bem, ainda. Caminhar por aí, à toa, talvez até o Tênis Clube, se Roberto topar. .38.
Desatou os braços que a cingiam, libertando-a. Olinda voltou- -se para ele, fixando-o nos olhos, aqueles olhos esverdeados que ela achava tão formosos e que não se cansava de admirar. De índole in- trospectiva, como o marido, inteiramente devotada ao lar e à famí- lia, pouco amiga de cultivar relações, despejava sobre o filho único toda a ternura acumulada em seu cofre materno. Sorriu inteiramente feliz. — Aproveite, meu filho, o dia está bonito. A mesa da copa estava posta. Genoveva trouxe o leite aquecido e Cesar tomou assento para servir-se. Olinda postou-se por detrás, vendo-o comer, examinando atentamente sua bela cabeça e as es- páduas avantajadas, maravilhada ao notar a extraordinária mu- dança operada nos últimos anos, transformando o adolescente de ontem no belo rapaz que tinha à sua frente. Viu-o repetir o café com leite, que a empregada tornou a aque- cer, cortar uma nova fatia do bolo de nozes que muito apreciava, elogiando o sabor. — Muito gostoso, parabéns Genoveva. A empregada achava-se rente ao batente da porta e respondeu: — Eu também sei fazer, mas este foi nhá Olinda que fez. — Mas aprendeu bem, o seu não fica atrás. ❧ Cesar terminou a refeição e ligou para Roberto. Quando este apareceu, estava ainda indeciso. — Onde vamos, Cesar? — Se não tem coisa melhor, o Tênis, que acha? .39.
Roberto virou-se para Olinda, em risada expansiva. — Este seu filho é formidável! É ele quem escolhe sempre, e pergunta: “que acha?”. Claro que não adianta contrariar, por- que encontra sempre um jeito de ir onde deseja. Está bem, vamos ao Tênis. Com a natural espontaneidade de velho frequentador da casa, sentou-se à mesa da copa, saboreando uma fatia de bolo. Os dois amigos saíram, empreendendo a caminhada à pé. Co- mentaram os últimos acontecimentos nas respectivas faculdades, onde uma onda de novas ideias começava a agitar a mocidade das escolas, em busca de novos rumos. Chegando ao clube foram gen- tilmente festejados por Bauer, gerente e instrutor de tênis, que os acomodou em uma mesa, enquanto aguardavam uma quadra livre, todas já ocupadas. Nem bem tinham sentado e uma mão pousou no ombro de Cesar, ouvindo-se alegre exclamação: — Olá, quem está aqui! Era Dudu, sumamente popular nas rodas campineiras, bastan- te requisitado por seu comportamento extrovertido e brincalhão. E também temido pela mordacidade de seus comentários, pois ninguém melhor conhecia as mazelas da sociedade e os aconteci- mentos mais íntimos, possuindo um terrível faro para detectar os deslizes alheios. Dele se conta ter um dia enfiado na cabeça conhecer Paris. Ami- gos se cotizaram, oferecendo-lhe passagem de ida e volta de tercei- ra classe em navio de segunda categoria e não teve dúvida. Lá se foi o nosso herói, desembarcando no Havre com minguados níqueis nos bolsos. Ficou quatro dias na cidade-luz e ei-lo de volta à pátria, .40.
feliz pela façanha, malgrado o exíguo tempo em que ali permane- ceu. Divertia então os ouvintes com as jocosas peripécias da aven- tura, nas quais injetava, não raro, muitas das habituais patranhas. De resto, era tolerado por algumas de suas particularidades notáveis: contador de anedotas, emérito tocador de serrote, desse instrumento tirando maviosas melodias havaianas. Embora não dotado de bom volume de voz, quando instado não se fazia rogado, entoando velhas árias napolitanas. — Eu também estou aqui — interveio Roberto. — Eu falo desta figura difícil, do Cesar, que nunca vi no Tênis. Não esperou convite, arrastando uma cadeira para junto da mesa e chamou o garçom. — Uma geladinha para mim, na conta dos amigos. Pode trazer também um sanduíche daqueles que já sabe. De acordo, Cesar? O moço assentiu com um sorriso. Roberto Linhares era alvo da maioria dos passantes, alguns pa- ravam para rápidas prosas com Cesar e os companheiros. Súbito, Dudu escancarou os olhos, admirado. — Vejam quem, as baronesas! As duas filhas de Rogério Peçanha chegavam na companhia de Helena Sturner e Roberto levantou-se, cumprimentando-as em efusivo galanteio. Cesar e Dudu continuaram sentados e elas não demonstraram notar suas presenças. Quando Roberto retornou o boêmio abanou a cabeça, comen- tando: — São uma convencidas, difíceis de engolir! Você não devia fa- zer tanto rapapé a essa gente. — Noblesse oblige, meu caro. Sou um homem educado. .41.
— Elas iam passando muito empinadas, sem olhar para o nosso lado. Pois que fiquem com o seu dinheiro e com a sua importância. Cesar fez o que devia, não ligou. Você sabe, Roberto, como elas tra- tam os daqui. São orgulhosas, cheias de grandeza! Tirando o Rogé- rio e os irmãos, as mulheres são intragáveis... — Até parece que está despeitado, Dudu... — Por que não nos cumprimentaram? Pois tomem cuidado com essas moças, cheias de titica de galinha, porque pode sobrar algu- ma coisa nojenta. ❧ As quadras de tênis estavam todas ocupadas, o que não impe- diu duas turmas interromperem as partidas para que as jovens pu- dessem praticar imediatamente. Meia hora mais tarde chegou a vez de Cesar e Roberto. Por coincidência foram jogar na cancha ao lado das duas moças. Dudu acompanhou os amigos, vendo-os iniciarem a peleja. Isabel contendia com Helena Sturner, enquanto Márcia aguar- dava sentada a um lado, entretida a ler um livro, parecendo não no- tar a aproximação dos rapazes. Na realidade viu-os chegarem, pela refração do olhar. Isabel se empregava com bastante vivacidade e entusiasmo, rosto esfogueado pelo exercício, atirando e rebatendo a pelota com extremado vigor. Helena obrigava-a correr constantemente de um canto a outro, a fim de superá-la. Numa das ocasiões em que ela corria para o fundo da cancha, foi infeliz, pisou em falso e torceu o tornozelo, caindo de comprido, sem ocultar a dor. Tentou levantar- -se, sem o conseguir. .42.
Acorreram diversas pessoas, Cesar entre elas, por estar mais próximo. Abaixou-se decididamente, tomando o pé da jovem. — Deixem comigo, é uma torção, coisa da minha especialidade, nada grave. Ouviu-se a voz estridulada de Márcia: — Não consinta, Isabel. Não deixe ele pôr a mão em você! A outra respondeu com as feições contraídas pelo sofrimento. — Eu não chamei ninguém. — Não deixe, não deixe... Sem atender à recomendação de Márcia, Cesar deu forte empu- xão no pé da menina, sentindo pelo tato ter voltado à posição nor- mal. Foi quando ouviu Isabel reclamar: — Largue-me... largue... Agitou o pé com tamanha violência, arrancando-o de suas mãos, que quase atingiu o rosto do rapaz. Cesar, estupefato, lançou um olhar severo e magoado para Isabel, mais magoado ainda pela agressiva advertência da irmã. Levantou-se com o rosto incendiado por repentina cólera, excla- mando entre dentes: — Gata estúpida e selvagem! Virou-se para o boêmio ao seu lado, procurando serenar-se. — Você tem razão, meu velho... — Eu bem que preveni, tinha de acontecer. Roberto procurava desculpar-se diante das mocinhas, voltando a disputar a partida com Cesar, enquanto Isabel se retirava meio manquitolando, pelos braços de Helena e de Márcia. ❧ .43.
Regressaram à fazenda e Isabel recolheu-se ao seu quarto. Rogério tinha passado a manhã percorrendo a propriedade, na companhia do administrador Aparício. Viu ordenhar as vacas, mostrou-se satisfeito pela produção abundante de leite e terminou por retornar para o almoço. Ifigênia esperava-o no alpendre e dirigiu-se ao seu encontro. — Estava a sua procura para mandar servir a mesa. Depois de uma bela caminhada, deve estar com apetite. — Este passeio faz bem. — Está corado, com ótima disposição! — Vi que as meninas já voltaram da cidade. O carro está na ga- ragem. — Faz quase uma hora que chegaram. Isabel sofreu leve torce- dura no pé, quando jogava tênis e está repousando no quarto. Nada de importância, ao que parece, mas está impossível, mal humorada. Vá ver e convencê-la a levantar-se. Peçanha encaminhou-se ao quarto onde Isabel descansava, com a perna estirada no leito. — Sei que aproveitaram a manhã bonita para um passeio à ci- dade, e também que foram ao Tênis Clube... — Estivemos lá... Beijou a filha, sentando-se na borda da cama. — E que deu mal jeito no pé... está incomodando? — Não tanto, apenas umas fisgadinhas, de vez em quando, ao mexer. — Conte como foi. — Jogava com Heleninha, escorreguei de repente e caí de compri- do, ao pisar em falso. Torci o pé e senti uma dor muito forte. .44.
— Como conseguiu consertar? — Me atenderam logo e deram uma puxada... o pé ficou direito. — Devia ser incômodo. — Nem fale, tinha muita gente a olhar. — São coisas que acontecem, não há nenhum ridículo numa queda imprevista e nem motivo para ficar aborrecida. — Quem disse que estou aborrecida? — Sua mãe disse que você não está de bom humor... — Mamãe exagera um pouco, ralha por qualquer motivo. Rogério tinha grande afeição pela filha e entendeu voltar a um daqueles adjetivos carinhosos: — Precisa ter paciência com ela, minha gatinha. A reação da menina foi impetuosa e imprevista. Rogério viu o sangue af luir-lhe à face, tingindo a fronte da filha e foi assustado que ouviu-a responder com alguma exaltação: — Não quero que me chame mais de gatinha, sabe? Estou cheia de ouvir me chamarem todos os dias de gata ou de gatinha... As lágrimas saltaram-lhe dos olhos. O pai observou-a, preocupado, tentando compreender a razão daquele desabafo intempestivo e constatou, pela primeira vez, nes- se exame, o quanto ela estava desabrochando. O busto a insinuar-se sob a fina blusa, fixou-a com enternecido orgulho e passou o braço nas costas da jovem, aconchegando-a a seu peito. A voz saiu-lhe levemente alterada. — Você está sofrendo, minha filha. Não desejava magoá-la, bem sabe quanto papai a estima. Desde pequenina habituei-me a tratar você por essa forma e recebeu sempre com alegria esse tra- tamento. Agora está ficando mocinha e não quer mais ouvir que a .45.
tratem assim. Pois bem, não vai mais ouvir chamar você de gatinha ou de gata... se bem que irei ter muita saudade! O importante é que não sofra e que não chore... Isabel despregou-se dele, enxugou os olhos e sorriu com mei- guice... — Desculpe... foi sem querer... — Posso saber porque zangou? Ela torceu o lencinho entre os dedos. — É que... é que... não é só o papai que me chama de gata... — Quem mais? — Nada... — disfarçou Isabel. .46.
IV Quando Rogério e Fernando Peçanha transferiram a casa atacadista de Campinas aos novos donos, convencionou-se que R ogério Pinto continuaria prestando a ela seus serviços, pelo co- nhecimento que tinha da freguesia. Ao fim de dois anos de negócios sofreram virtual paralisação. Nazário foi dispensado, substituído por funcionário mais modes- to, retirando-se da firma praticamente sem nada receber. Bom vi- vedor e perdulário, amando a vida ao sistema dos gregos antigos, andava sempre em débito para com a casa, sem levar em conta as advertências de Fernando, que o concitava à poupança. Fernando tinha por ele particular estima, desde os tempos es- colares da meninice, quando juntos estudavam na mesma escola. De físico pouco desenvolvido, Fernando era por Nazário socorrido nas disputas com os conhecidos de rua, não permitindo que o mo- lestassem. Fernando não esqueceu a dedicação do amigo, procu- rando encaminhá-lo mais tarde. De origem humilde mas extraordinariamente dotado, N azário confiava demasiado na sua capacidade. Foi assim que se viu repen- tinamente desempregado e quase sem recursos para aguentar dois .47.
meses, necessitando vender o automóvel que lhe proporcionava grandes alegrias, a fim de liquidar dívidas pendentes. Ao deixar o emprego após as contas ajustadas, dirigiu-se a pé ao centro da cidade, caminhando pela Rua Treze de Maio, dando mentalmente balanço na situação financeira quando, ao chegar ao Largo da Catedral, encontrou Dudu pela frente. O boêmio tomou-lhe vivamente o braço. — Foi Deus que pôs você no meu caminho, Nazário. — Que aconteceu? — Vamos até a Confeitaria e lá podemos conversar. Nazário pressentia tratar-se da costumeira investida para be- ber, mas aceitou a sugestão e foram aboletar-se em uma mesinha dos fundos. Havia raros fregueses àquela hora, Dudu confessou: — Ainda não almocei hoje, não comi nada até agora. Posso pe- dir um sanduíche? — Claro que pode. — E uma “gelada”? Ando muito por baixo ultimamente, não sei o que aconteceu. Meus melhores amigos estão desertando e infeliz- mente não vejo jeito de fazer o mesmo. Acho que o fim é enterrar os ossos aqui mesmo, no Cemitério da Saudade. — Então não admira que venha a perder mais um, o que não muda muito a situação. Esta terra não oferece grandes oportunida- des e vamos ter de emigrar. Enquanto mastigava o sanduíche o boêmio ia dizendo: — Quando meu pai era vivo eu dizia a ele. Pai, tome cuidado, porque quem dá aos pobres acaba ficando um deles. Tinha um co- ração largo e quando morreu não me deixou nada. Não ouviu meus conselhos e agora tenho que me socorrer dos amigos. .48.
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