O A C U M U L A D O R Sérgio Medeiros
O A C U M U L A D O R
O A C U M U L A D O R Sérgio Medeiros
SUMÁRIO NOTA DO AUTOR 7 POEMAS QUE SE DESLOCAM 9 APRESENTAÇÃO 11 PRIMEIRO LIVRO: Viagens e passeios às ilhas (2013) 13 NOTA DO AUTOR 15 O PASSEIO NÚMERO 1 17 VINTE URUBUS SOBREVOAM UMA ESCUNA (fragmento) 21 CENTENAS DE INSETOS COMEM UMA ESCUNA (fragmento) 23 A VIAGEM NÚMERO 1 25 ... NÚMERO 2 31 ... NÚMERO 3 33 ... NÚMERO 4 41 ... NÚMERO 5 51 ... NÚMERO 6 55 ILHAS DESTE & DO OUTRO MUNDO 59 O PASSEIO NÚMERO 7 75 ... NÚMERO 8 79 ... NÚMERO 9 85 ... NÚMERO 10 89 ... NÚMERO 11 95 ... NÚMERO 12 101
A VIAGEM NÚMERO 13 133 O PASSEIO NÚMERO 13 145 SEGUNDO LIVRO: Pé de magnólia – Texto mixomiceto (2014) 153 A PRIMEIRA MAGNÓLIA 157 A SEGUNDA MAGNÓLIA 223 A TERCEIRA MAGNÓLIA 231 A QUARTA MAGNÓLIA 233 UM PERFORMER SEM TETO 237 OUTONO E INVERNO (fragmento) 247 TERCEIRO LIVRO: “Onçanta”, como construí o meu totem (2015) 255 1. DUAS OU TRÊS CITAÇÕES 257 2. “O RAPAZ, A ONÇA E O FOGO” 259 3. ELOGIO DAS TRANSFORMAÇÕES 275 4. LÉVI-STRAUSS, ESCRITOR (UM POEMA DESLOCADO) 283 5. ANTA, A DONA DA METÁFORA 285 6. HAROLDO DE CAMPOS 297 7. O JAGUAR E A “ONÇANTA” 299
NOTA DO AUTOR O acumulador que dá título a esta obra não é uma pessoa (o autor), mas sim um livro, aliás, já antigo, pois comecei a escrevê-lo em 2013, sob o título Poemas que se deslocam; posteriormente, dois outros livros se juntaram a ele, formando um tríptico. De repente, no ano passado, esse tríptico começou a acolher entre suas páginas hieróglifos imaginários. Tornou-se, assim, um acumulador. E está agora nas mãos do leitor. *** Os hieróglifos, ou glifos, estão organizados em pequenos livros, cada um com doze páginas que contam uma história. Por exemplo: voos sem bombas sobre a obra Merzbau de Kurt Schwitters; o alfabeto arbóreo (druídico) de Enrique Flor, músico português sonhado por James Joyce; uma gruta no quintal com uma divindade pagã iluminada por velas... O livro “vendo vento do brasil” é de 2019 e vem com um apêndice imaterial; os outros são todos de 2020. Os livros hieroglíficos aparecem nesta sequência, entre as páginas de Poemas que se deslocam: 1) “folhasdefolhas” 2) “insetos” 3) “corpos celestes no quintal” 4) “o alfabeto das árvores do músico enrique flor” 5) “luasdeluas” 6) “voos sobre kurt schwitters” 7
O acumulador 7) “folhas para paul cézanne” 8) “somas” 9) “as declinações de jerônimo tsawé” 10) “petróglifos sob o sol” 11) “códices: os passos das desleituras” (incompleto) 12) “vendo vento do brasil” / “apêndice imaterial”: [[...]], [[[...]]]. [[[[...]]]] etc. Verão de 2021 8
POEMAS QUE SE DESLOCAM
APRESENTAÇÃO Ao abordar aqui um mito indígena, Sérgio Medeiros escreve sobre a tentativa de “desvendar a onça sem essência definida (nem animal nem ser humano, mas ambas as coisas)”. A meu ver, essa espécie de me decifra e te devoro traduz algo da poesia de Medeiros: nem drama, nem narrativa, nem pesquisa, mas, sem prejuízo, as três coisas de uma vez. O primeiro livro deste volume é como uma proposta de reocupação do espaço. Coisas, bichos e pessoas antes descartáveis – por estarem cotidianamente imperceptí- veis – vão repovoando lugares, criando (mais do que cenários) um ecossistema afetivo de vivos e não-vivos que tem como lei principal a da metamorfose. Seguindo esse caminho, o segundo livro aqui reunido traz ao leitor a noção, vinda da biologia, de mixomiceto. Mixomicetos são seres que desafiam classificações. Às vezes plantas, às vezes animais, eles nos pedem para reconsiderarmos o que seja a vida. Neste instante, por exemplo, surge a voz de uma árvore – um pé de magnólia. E é no meio de abelhas que ouço: “O enxame cruza os meus galhos. Nenhuma folha ou flor estremece. O enxame me dá alegria. Então é como se juntos rodopiássemos no ar”. Por falar em rodopios, o último livro a integrar estas páginas surpreende mais uma vez ao lançar mão agora de um novo registro – o do depoimento pessoal do autor. Nele, Medeiros relê e reabita alguns de seus trabalhos já publicados, dando a ver outra voz entre as vozes aqui não- domesticadas. Trata-se de mais uma deriva destes Poemas que se deslocam na direção do desconhecido, ou melhor, na direção de encontros por acontecer. Então – entre xamãs, performers, ilhéus e outros figurantes de Sérgio Medeiros – é que penso na hipótese de isso que chamamos de poesia não desistir de sua inconstância e, ainda assim, buscar algumas formas de hospitalidade. Leonardo Gandolfi 11
PRIMEIRO LIVRO: Viagens e passeios às ilhas (2013)
NOTA DO AUTOR As ilhas proliferam no mundo. São como moscas. Estejam rodeadas ou não de água. Descrevo-as a seguir. Sou eu mesmo ilhéu. Fiz este livro diante do mar. Inverno de 2013 15
O PASSEIO NÚMERO 1 UMA ESCUNA – encalhada na praia atrás de palmeiras verdes úmidas e iluminadas por um sol impensado a velha escuna negra se deixa rodear por duas outras iguais a ela que eriçadas de mastros se movem sem resgatá-la entre gargalhadas e gritos agudos – uma das bandeiras pretas da escuna encalhada diante do muro de pedra se desfia a sua única bandeira vermelha chacoalha como nova – um vasto urubu passa entre o verde do jardim circulando o seu poleiro habitual que é um poste de luz na praia dá com a enorme escuna encalhada ali com bandeiras pretas trêmulas e desbotadas como as suas penas opacas ..........– entre a escuna encalhada e outra parecida com ela mas um pouco afastada uma canoa agitada vai e volta aos saltos levando homens tontos 17
. [ilustração “folhasdefolhas” 1]
Sérgio Medeiros – no meio-dia chuvoso uma escuna clara faz companhia à escuna negra que encalhou em frente da casa onde um homem de macacão coloca infinitamente serpentinas de aço no muro de pedra – atrás do muro de pedra como se fosse uma alta e leve gaiola cheia de asas moles uma escuna gira mostrando apenas as bandeiras e os mastros – escunas fantasiadas de navio pirata se aproximam devagar do muro de pedra e mostram cada uma o seu único dedo fino em riste para a casa que encara desde cedo uma escuna negra que amanheceu defronte – desencalhada e roncando a escuna velha faz uma curva indo para trás sob assobios e sem parar mais se afasta vagarosa – depois que a escuna negra desencalhou e sumiu as palmeiras verdes parecem mais altas e bastas movendo-se levemente sob o céu cinzento – com homenzinhos correndo ágeis de cá para lá dentro dela a escuna negra com três bandeiras escuras passa sob o sol minguado da tarde bem menos imponente do que quando esteve encalhada diante do muro de pedra na manhã cinzenta 19
[ilustração “folhasdefolhas” 2]
Sérgio Medeiros VINTE URUBUS SOBREVOAM UMA ESCUNA (fragmento) – doze dias sem ouvir a escuna estridente que por ali sempre passava lenta no verão e que agora cruza a baía inesperadamente veloz e carregada de turistas sob o céu fechado – sem o sol pode-se ver claramente os urubus girando no alto enquanto as nuvens crescem : então eles descem em círculo um pouco mais um pouco mais um pouco mais sempre girando e trazem a brisa – uma canoa que parece um galho chacoalha um monte de gente ......e 21
[ilustração “folhasdefolhas” 3] ....
Sérgio Medeiros na árvore quase inteiramente desfolhada apenas um pássaro inquieto (sem a pachorra do urubu) ora de costas para o mar ora de frente para ele CENTENAS DE INSETOS COMEM UMA ESCUNA (fragmento) – as lufadas estão quase sozinhas na tarde há um vazio de pássaros e insetos no jardim diante do mar embora se ouçam cantos e ruídos vindos de galhos espessos e escuros – entre centenas de formigas espalhadas mortas com as suas asas transparentes na escuna que pela manhã atracou ao cais formiguinhas negras e calmas vão e vêm sem aparentemente ter o que fazer ali 23
[ilustração “folhasdefolhas” 4]
Sérgio Medeiros A VIAGEM NÚMERO 1 A BAGAGEM [Esta cena se passa em Moscou.] – parada na calçada a mulher busca um fio transparente que pende do seu casaco – um saco de plástico vermelho e branco bufando na calçada (ele parece estar amarrado ao fio transparente que a mulher procura na parte de trás do casaco) se arrasta na sua direção e para atrás dela – a mulher vai embora sem olhar para trás esquecida do fio transparente solto – sem bufar mais o saco permanece no mesmo lugar 25
[ilustração “folhasdefolhas” 5]
Sérgio Medeiros O AEROPORTO [Esta cena se passa em Chicago.] – o dinossauro balança a cabeça e abre e fecha a boca mas seus olhinhos sonolentos revelam que ele se esforça em vão para sair da letargia que aparentemente também tomou conta dos aviões do lado de fora do saguão envidraçado AS COMISSÁRIAS DE BORDO ....... [Esta cena se passa fora da Terra.] 27
[ilustração “folhasdefolhas” 6] ...
Sérgio Medeiros – os pés das comissárias têm dedos danificados (as pontas estão quebradas como os dedos de velhos manequins) – como se o avião fosse uma loja as passageiras desse voo levemente trêmulo carregam roupas nos braços enquanto percorrem os corredores estreitos e abarrotados de mercadorias 29
[ilustração “folhasdefolhas” 7]
Sérgio Medeiros ... NÚMERO 2 NO PONTO DE ÔNIBUS – o urubu preto baixa-se tanto que parece uma mão espalmada gigante mas falha em dar um tapa na cara do rapaz que o vê afastar-se inesperadamente veloz – e sem tempo de projetar-se a sombra do urubu-mão não passa no ponto como se os olhos espantados do rapaz se fechassem nesse instante 31
[ilustração “folhasdefolhas” 8]
Sérgio Medeiros ... NÚMERO 3 UMA COMISSÁRIA ALGEMADA – na porta do avião a comissária albina mantém os braços estendidos para trás como se suas mãos estivessem algemadas e ela se submetesse ao julgamento dos que vão passando e olham para o seu sorriso brilhante e os seus cílios amarelos curvos O ATO TERRORISTA ....... – um homem entra correndo no avião e a mochila dele às costas se abre e vários copos brancos se espalham em cima dos passageiros 33
[ilustração “folhasdefolhas” 9] ...
Sérgio Medeiros sentados e afivelados em suas poltronas – alguém agarra um sanduíche envolvido em plástico (não sabe se é uma bomba que exalará à primeira mordida um cheiro ruim e obrigará o avião asséptico a pousar) e o devolve ao homem afoito – vários passageiros sentados se curvam sobre o piso do corredor para ajudar o terrorista precavido (a bordo não tem lanche nenhum) a catar os copos leves que se balançam encantados ali VOO ECONÔMICO ......... 35
[ilustração “folhasdefolhas” 10] .
Sérgio Medeiros – quando o avião faz uma curva lenta a asa que aponta para baixo se estica mais e mais enquanto a outra asa sempre para cima vai encolhendo até desaparecer então ele vai embora aparentemente com uma asa só AVE OU AVIÃO? ........ – no céu claro passa o inaudível avião que não se vê mas que arrasta um longo traço branco que depois se abre como um bico de pássaro sedento ou estridente 37
[ilustração “folhasdefolhas” 11] ..
Sérgio Medeiros num pescoço que não para de alongar-se até trincar: os pedacinhos engrossam descoloridos e somem! 39
[ilustração “folhasdefolhas” 12]
Sérgio Medeiros ... NÚMERO 4 O HOTEL PHANTASMAGORIA – a lancha negra e branca balançando vazia na baía de costas para o sol de repente recebe uma carga de brilho intenso que parece afundá-la um pouco na água tranquila – num pequeno triângulo de grama ........ à entrada do Phantasmagoria o pássaro nervoso para como uma estatuazinha alerta uma perna dobrada nada de abrir o bico apesar de ser célebre 41
[ilustração “insetos” 1] ..
Sérgio Medeiros pelos gritos estridentes – no banheiro do Phantasmagoria a máquina que sopra ar quente nas mãos descarnadas de um espectro também agita violentamente um saco de lixo debaixo dela espalhando ao redor pedaços de papel que os hóspedes depositaram ali – a longa mangueira azul enroscada nela mesma no piso do corredor verde mantém a cabecinha vermelha soerguida – no saguão um besouro ......... mergulha fundo em duas pétalas amarelas que parecem 43
[ilustração “insetos” 2] .
Sérgio Medeiros embrulhá-lo enquanto uma borboleta albina se choca com outra borboleta albina –?– e de repente elas afundam numa folhagem de plástico para logo saltar dali como leves projéteis sonsos – no fundo do Phantasmagoria atrás de uma porta branca tem uma área minúscula protegida por cerca elétrica que zumbe noite e dia – depois de lançar um pouco ......... de farelo aos gansos sujos o jardineiro doudo em pé na margem do lago mexe freneticamente a mão dentro do seu saco de plástico 45
[ilustração “insetos” 3] .
Sérgio Medeiros branco virado pelo avesso que se agita frouxo como se fosse uma ave voraz pousada no seu braço a bater as asas – à tarde no empoeirado estacionamento um cachorro adormece no chão de terra profundamente e todos os passarinhos que num pedaço de grama seca pastaram até saciar-se levantam voo juntos por cima dele – sob os trovões soam os alarmes do Phantasmagoria e continuam a soar depois que a chuva passa e os pássaros voam em bandos sobre o telhado escuro – o perfil colorido de um jogador ......... de futebol se acende e uma bola brilhante sobe e desce sem parar diante 47
[ilustração “insetos” 4] .
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