e por consequência reações físicas incontroláveis; uma delas, a Jairo Ferreira Machado aceleração, a palpitação do peito. U Meses depois do encontro no sítio, ao tomar as primeiras 101 anotações da matéria, alguém veio entregar-lhe um bilhete de poucas palavras: “Preciso encontrá-lo no pátio, no intervalo!” Não tinha certeza se era mesmo a assinatura de Lúcia. Respirou fundo, pensativo, e afundou-se na carteira – medroso da verdade ou já receoso dos resultados do encontro, ali, no pátio do colégio, como o sugerido. Seu coração não suportaria a emoção. Não era hábito encontros entre eles na pausa das aulas. Tampouco pelos jardins, ou noutro lugar qualquer da cidade. Edu já pensava que podia esquecer aquele fim de semana, de uma vez por todas, Lúcia já esquecera. Ela se escondera dele todos aqueles anos e ainda continuava distante depois do primeiro encontro; quem sabe a advertência dos pais, por ser ela ainda muito jovem e ele Edu, já moço, além do peso de ser um roceiro, caipira. A notícia da convocação para a guerra de jovens como ele, colocava as namoradas com o pé atrás, evitando se comprometer, com receio que eles não voltassem ou mesmo de perder um partido de mais futuro. Havia algo de estranho no ar, que não eram somente os aviões levando jovens para a guerra. Depressa Edu enfiou o bilhete no bolso, evitando que alguém visse e fosse importuná-lo com brincadeiras de mau-gosto. Até então, era como se aquele dia lá no sítio não tivesse existido; lembrando sempre, que ele e Lúcia pertenciam a mundos diferentes. Mas o encontro com Lúcia havia acontecido; seu coração bem o sabia. Tomara soubesse também o coração de Lúcia...
Fosse um desses acasos da vida ou mesmo o destino, o certo era que o encontro estava por se repetir. Melhor que viesse da sugestão de Lúcia, e que o encontro fosse ali, no pátio do colégio – foi o que ela escrevera no bilhete. Pensou estar sonhando. Também a Prima, quando em companhia dos colegas da cidade, só eventualmente o saudava nos intervalos das aulas, nem ligando ou preferindo a companhia dos ladinos. Enquanto ele, o Os olhos do Jacaió primo bobo da roça, tinha a companhia do grupo menos seleto, isolado nos cantos do pátio, sem muito se meter a enxerido. Lúcia deveria comportar-se à semelhança da Prima (atinava consigo mesmo!), razão por que se surpreendeu com o bilhete, embora se sentisse lisonjeado com o desenho do coraçãozinho V vermelho no canto superior esquerdo da folha de papel. Coisa um tanto infantil, pensou de imediato, esquecido da 102 idade da sua moreninha de olhos negros, bem mais nova que ele. Mesmo assim, não se iludiu com o recado; o que Lúcia teria a dizer? Tratar-se-ia de uma reprimenda ou algo parecido como “Esqueça o que houve entre nós, lá na roça. Aqui, não o conheço!” Mas, e o símbolo do coraçãozinho no canto da folha de caderno? Animou-se. Também o bilhete podia ser brincadeira de algum colega malicioso que soubera do caso entre eles; ou facécia da própria Prima. Não se tratando disso, surpreendia-se com a atitude de Lúcia e o coração palpitava-lhe no peito, tão forte de poder ouvi-lo. Ansioso, contava os minutos até o momento do recesso das aulas, sem nada entender da matéria dada. Chegado o momento, lá estava Lúcia – a jovem que naqueles últimos meses roubara-lhe a paz de espírito. Lúcia o observava do canto do pátio, para onde, sabidamente, ele, Edu, se dirigia.
Estava linda no seu uniforme cáqui, de gravatinha borboleta Jairo Ferreira Machado grená. A maquiagem recém retocada, assim, pareceu-lhe. U A saia-colegial curta deixando amostras suas coxas, onde seus 103 olhos pousaram primeiro, cheios de malícia. Exibia-se, naturalmente, sem a intenção de chamar a atenção – a sensualidade nata – predicado esse que a natureza lhe presenteava a seu bel-prazer. Não precisara esforçar-se para parecer uma deusa Olímpica; muito menos, tinha a intenção de desafiá-lo. Teve vontade de abraçá-la e beijá-la, mas conteve-se. Foi prudente, considerando os muitos olhares curiosos; publicamente, ainda não eram namorados; talvez, nunca o fossem! Nem mesmo teria coragem de beijá-la sem que desmaiasse de emoção. Já se dava por satisfeito com ela lhe dando importância, como se fosse um dos ladinos da cidade. Só os caras-de-pau, os ladinos, beijavam suas namoradas em público e, decididamente, este não era seu caso. Lá no campo, com a ajuda dos duendes da noite, do esplendor da lua cheia e com a malandrice da Prima, fora até audacioso demais, pensava. Mas ali, em público, eram outros quinhentos – vinha- lhe a inconveniente timidez. Lúcia sorriu ao vê-lo, mas não teve a intenção de beijá-lo. Tanto melhor, pensou. Caso ela quisesse um beijo e ele não desse, decerto, poderia perder as esperanças; passaria por boboca; papel o qual não lhe cabia bem, agora. Antes de trocarem meia dúzia de palavras, a Prima aproximou-se. Tal Lúcia, a Prima também vestia uma curtíssima saia colegial. Em comum, a fartura das coxas. Nesse particular, não tinha o que reclamar da parenta: ela fazia de tudo para aproximar os casais que se gostavam. A sexualidade própria, a animação libidinosa e os envolvimentos amorosos faziam parte do seu
mundo, e quem pertencesse a esse mundo – de Platão – ela sempre dava uma mãozinha. Entrona, a Prima permaneceu ali, idealizando um novo encontro: tipo aquele lá no sítio; porém, com mais requinte. À distância de onde estavam, Tami observava, com o olhar faiscante, aparentemente colérica de ciúmes; não demoraria muito e ela faria um escândalo ali – bastava ter certeza que Lúcia fosse sua rival, já desconfiada do desencantamento de Edu por Os olhos do Jacaió ela. Maliciosa, mas com razão. Sem perda de tempo, a Prima disse: – Ficamos assim: vamos retribuir a cortesia. Desta feita, nós é que organizamos o passeio, o piquenique... Disse, e despediu-se. Naquele dia, na sua volta do colégio para casa, Tami seguia V descontente, emburrada, arredia, longe do grupo. Era compreensível que alguém fosse falar com ela e na opinião dos colegas de jornada, 104 melhor que fosse ele, Edu, já que era o mais “amigo” dela. Edu optou por não se dispor, na esperança de que os próprios colegas resolvessem o problema, mas não obteve êxito nas intenções. Intimado, adiantou-se no passo e pareou-se à colega, já dando explicações. Na conversa acabou convencendo a parceira de que tudo que ela presenciara lá no pátio do colégio, não passava de uma simples amizade, destacando sempre a presença da Prima por perto. E a persuadiu, enfaticamente, mostrando-lhe o rigor do tesão que sentia por ela – o falo já a prumo, intumescendo sua braguilha. Os olhos de Tami chisparam como dois brilhantes numa noite sem luar. Mais um pouco e um novo encontro foi marcado. Bastaria que ela, Tami, convencesse seus familiares das dificuldades em matemática; e, naturalmente, da necessidade da ajuda de uma colega, a vizinha mais próxima, que era astuta na matéria, enquanto ele, Edu,
pensava num meio de facilitar o encontro, coisa que bem podia Jairo Ferreira Machado fazer, bastasse sair de casa para as obrigações rotineiras – como de U hábito fazia – e teria o álibi perfeito... 105 No sábado seguinte, no horário combinado, lá estava Tami, faceira, sob a sombra do bambuzal. Mostrava-se ansiosa, segurando debaixo do braço um desmazelado caderno cheio de orelhas. Edu sorriu-lhe e apeou da montaria. Tami o acolheu nos braços, aos abraços, mais mordendo-o que o beijando na boca abastada de desejos. Vestia saia tão curta quanto à de Lúcia, como de propósito, as coxas à mostra e uma camiseta cor rosa, sem nada por baixo – a não ser o nu dos seios em brasa. Por certo com o objetivo de que o parceiro desinteressasse da outra; não tinha se convencido do argumento de que a outra não passasse de amizade. Sem tempo a perder, Tami cuidou de achar um lugar mais isolado, onde ninguém pudesse desconfiar da presença deles. Precisavam daquele momento a sós; carecia, no entanto, que ela, Tami, depois do encontro passasse na casa da colega para discutir algumas fórmulas de matemática. Afoita, Tami quase o comia de tantos beijos. O tesão à flor da pele. Vários dias sem transar, embora esse fato não fizesse a menor diferença. Era insaciável, de qualquer maneira. Associado a esse fato, a vontade de superar a rival; ainda que a outra não servisse a este propósito – era moça requintada. Remoía as lembranças daqueles dias de aventura, interrompidos pela volta à normalidade das aulas e precisando se masturbar sem se satisfazer de forma plena. Agora, o parceiro estava ali e não entraria em detalhes nas suas justificativas de que Lúcia era apenas colega. Era o seu momento, a sua vez. O ciúme deixara-a mais excitada ainda. A deusa Hera, protetora da fecundidade e do matrimônio; que matrimônio
que nada, queria apenas ele, Edu, para afogar a sua fogosidade. Simplesmente, Afrodite! Ele que cuidasse de contentá-la até as profundezas do corpo e da alma. Já fizera sua opção: curtir os bons momentos do gozo, não importando se para isso fosse fútil. Edu, por acaso, metera-se em seu caminho, quando da passagem para o seu promissor futuro de meretriz – era assim que os colegas alardeavam, prevendo o Os olhos do Jacaió seu futuro. Naquele instante, já de caso pensado, nem esperou o parceiro agir. Ela mesma foi tirando-lhe a roupa, depois de se pôr totalmente nua, despudorada, sobre a grama. Foi quando Edu lembrou-se do coxinilho que cobria a sela V da montaria, o tecido grosso amenizaria em parte a dureza do chão. Num instante desvencilhou-se dos abraços dela, 106 pegou o pelego e o estendeu ao chão, onde se deitaram, ou se engalfinharam, mais confortavelmente. Tami caiu por inteira em seus braços e ele tratou de atendê-la nas necessidades mais prementes, massageando-lhe a umidade do estreito, e ela retribuía as carícias, com toda a maestria e presteza de futura mulher da vida. Não demorou muito e ambos gozaram, ali mesmo, sobre a maciez do tecido. Tami contorcia-se ao ritmo do orgasmo, mesmo antes de ser penetrada, contraindo todos os músculos do corpo, ainda que preferisse a introdução de fato, enquanto esfregava-se ao parceiro, roçando-lhe os genitais, os seios, modo ambos chegarem juntos ao êxito ejaculatório. Segundos depois, prontamente Edu a satisfazia, sabia que sim. E se fez receptiva, feito uma leoa no cio; precisava daqueles
momentos a sós com ele, lembrando-se que podia ser aquela a Jairo Ferreira Machado última vez que estariam juntos. Ele que cuidasse de não engravidá- U la, gozando fora, como já o fizera antes! 107 Suspirava profundo, quase deixando o pranto superar o sentimento do gozo. Ouvira dizer que a guerra o levaria, mais cedo ou mais tarde, para o outro lado do mundo; como levava outros jovens de mais idade, era só ele completar os seus dezoito anos. Só de pensar nele, e nesse fato, seus fluidos vertiam de todos os pontos G de seu corpo, que eram infinitos. E o fazia como se a alma tivesse desprendendo-se do seu corpo, como, quando se goza de verdade durante o coito. Mordia-lhe os lábios, os ombros, de modo a senti-lo na sua plenitude. O tempo parecia ter pressa. Tami também. Pedia que Edu fosse mais fundo dentro dela, o seu falo em riste, e que ele fosse verdadeiro, naquele instante, que seu gozo jamais seria igual, quando transasse com outra. Permitiu-se chegar ao clímax várias vezes antes de o parceiro lançar fora a sua primeira golfada de sêmen. E ainda que nem de toda satisfeita, sabia, passado aquele momento, começariam tudo de novo, muitas vezes... Em cada ponto erótico do seu corpo havia um lugar que ele, Edu, ainda não conhecia. E foi assim até o entardecer, num manancial de gozo! Edu tentou satisfazê-la em todos os caprichos, antes de tombar exausto sobre o coxinilho. Tentou... Preocupou-se, quando Tami, antes de partir, disse que já tinha em mente um novo encontro, naquela tarde de setembro. UV
Os olhos do JacaióEdu vinha pela estrada imaginando, tanto tivera a sorte do seu lado naqueles últimos tempos, quanto essa mesma sorte mudara sua vida. A começar pela gripe: a enfermidade, em vez de levá-lo para a cama – como fizera com os colegas – havia lhe proporcionado um verdadeiro frenesi sensual. De jovem rústico e tímido, foi ao auge dos atos pecaminosos; de caipira ingênuo a quase um ladino como aqueles da cidade por V conta do envolvimento com Tami e depois com Lúcia. 108 Inicialmente com Tami e seu jeito liberal chegou às vias da iniciação sexual; pois dependesse dele mesmo para aproximar- se dela, Tami morreria virgem. E ele, casto e tísico de tanto se masturbar pensando nela. Também o cavaleiro, naquele dia, sem saber, prestara-lhe um grande benefício, obrigando-os a refugiarem-se sob a sombra do cajueiro, onde, próximo dali, havia a transa dos animais. Todo aquele fuzuê lúbrico, lembrava, contribuíra para o seu ingresso ao mundo dos pecados da carne. Tinha a considerar também, toda a força que vinha das divindades, dos deuses e deusas. Devia muito do que aprendera à Tami. Haveria sempre de querer-lhe bem por isso. Mesmo que essa, em contrapartida, o enveredasse por caminhos impuros. Mas quem lhes podia atirar a primeira pedra?
Por outro lado, ainda que nunca ouvisse falar da deusa do Jairo Ferreira Machado amor Afrodite – somente soubera da paixão e das aleivosias porque U o primo lhe contava – foi com Lúcia que descobriu as muitas outras reações do corpo, as emoções e os sentimentos nunca antes 109 imaginados. Por isso, agora, o coração palpitava-lhe triste no peito. Descobriu, naquele dia, a diferença entre a paixão e o fogo do tesão, ao qual, seu corpo estava habituado, ao menos até o dia em que viu Lúcia e suas mãos se tocaram pela primeira vez. O toque do verdadeiro amor. Da excitação sexual se livrava com certa eficácia – bastava que se masturbasse, mesmo não sendo essa a melhor maneira de amenizar seus desejos, ao passo que a paixão, para essa, não tinha o remédio apropriado. Se é que existe remédio para esse sentimento e que alguém o conhecesse... Situação que o levara pelos caminhos da perdição de onde agora, sem muito pedir aos deuses, aos poucos era resgatado. Os sonhos fantasiosos com a Prima e a experiência com Tami ficariam em segundo plano; ao menos, quando acordado; coisa estranha de se pensar. A mente e o corpo já não respondiam de pronto e tampouco com a intensidade de antes. Os pensamentos já não se alinhavam ao puro desejo carnal, como naqueles últimos meses, antes de conhecer Lúcia. Pensasse na Prima e em Tami, já o cérebro ordenava suas glândulas sexuais a produzirem testosterona – a substância máscula que lhe dava o prazer de estar junto delas. Imaginá- las nuas, já lhe apregoava um aperto nos grãos e a qualquer momento, em qualquer lugar, masturbava-se em louvar às duas, ainda que o gozo sempre lhe parecesse insuficiente. Precisava de algo superior que o levasse à satisfação plena, ao verdadeiro êxtase físico, de alma e de sentimento,
Os olhos do Jacaiósimultaneamente. Lúcia, pelo que vivenciara naquele dia do primeiro encontro, proporcionar-lhe-ia isso e muito mais... Todo o seu sistema glandular – da hipófise aos testículos – arvorava coeso e lúbrico, quando se aproximava de Lúcia. A hipófise – com sua supremacia hierárquica na importância dos órgãos do corpo humano – é quem dava as ordens do desfecho sentimental, embora àquela não ultrapassasse em tamanho um grão de ervilha. O sistema límbico recebia os estímulos que lhe vinham dos sentidos: visão, audição, paladar, olfato, tato e os distribuía aos setores nobres do seu cérebro e esse os decifrava ao bel prazer – vá em frente, goze, é bom, ou freie-se, vá devagar, cuidado com os tropeços, como muitas vezes já acontecera. V A mensagem recebida era codificada e tinha um nome: Lúcia. 110 Só de imaginá-la, faltava-lhe ar no peito, o coração galopava, o testículo intumescia pondo o seu falo a prumo, numa intricada e sensual reação orgânica. Diferente de tudo aquilo que sentia quando ao lado de Tami, quando os fluidos vinham aloucados, sim, mas com um foco único – o sexo. A aura de Lúcia, a fragrância, o toque daquelas mãos nas suas, mexia com a integridade do seu corpo e, não somente com sua libido. As reações vinham-lhe em cascata, despertando os seus sentimentos. O cérebro as identificava e subia-lhe uma sensação de calor, como uma reação química em demasia, inundando os seus órgãos. Aflição, angústia, o que fosse que sentisse – era como algo tomando seu espírito, além de acordar todo o seu corpo. Mas era bom.
A enorme vontade de apertar Lúcia em seus braços, mesmo Jairo Ferreira Machado que ainda não tivesse dividido um gozo mais profícuo com ela, ao U menos, até aquele momento. 111 Dali em diante, tudo nele se transformava: a visão dela, a forma de senti-la, de sentir seu toque, a voz de Lúcia e o gosto daquela boca, e toda a fisiologia do seu corpo, em apenas uma semana, tornara-o outro ser, outra pessoa. O que fizera de errado ou de certo, para que tal coisa ocorresse, não sabia. Pouco sabia de si mesmo, quanto mais daqueles eventos estranhos vindos do seu íntimo, coisas que não podia ver nem tocar, nem ouvir, somente sentir. Mas no fundo do pensamento havia uma pitada de tristeza quando ouvia falar de guerra. O cenário dentro do seu peito estava promissor para o amor naqueles últimos tempos. UV
Os olhos do JacaióApós o encontro com Lúcia no intervalo das aulas, a semana pareceu não ter fim. Contava os dias, as horas, os minutos para a chegada do sábado, na esperança do tal piquenique. Evitava comentar o assunto com os colegas, de modo a não precisar dar maiores detalhes, ainda em dúvida se o evento aconteceria mesmo, ou não... Tratando-se de coisa arranjada pela Prima, tudo podia acontecer; ela era meio-aluada. V Sábado, pela manhã, barbeou-se e se foi. Ainda receoso, mas 112 se foi. Sabe-se lá se a Prima se esquecera de incluí-lo na lista dos convidados, pensava! Contudo, não perdeu a esperança. Decerto Lúcia lembraria. Não custava acreditar... Pensou certo! Dia, hora, no endereço tratado, surpreendeu-se com a quantidade de jovens e a parafernália de coisas que eles levavam para o afamado passeio. Era a sua primeira gafe do dia – fora de mãos vazias; mas nem por isso apavorou-se. Lúcia adiantou-se em sua direção, o sorriso largo no rosto, tão receptiva, quanto sensual. Trazia merenda para ambos, cuidou logo de lhe dizer. Naquele momento, Edu sentiu no corpo uma friagem cortante, mais no plexo da barriga, onde ainda digeria um recém tomado café da manhã. Imaginou-se entregando a ela um buquê de rosas, como fazem os românticos. O primo da cidade lhe falara disso. Mas logo acordou do sonho.
E no instante seguinte, o muito que fez foi beijar-lhe a Jairo Ferreira Machado face; ainda assim, no tremor da vergonha! Contudo, olhou U profundamente dentro daqueles olhos, como se quisesse arrancar dela algo de muito bonito, que ele mesmo não sabia o quê... 113 Estudava cada situação, as atitudes dos companheiros de piquenique e procurava imitá-los, modo não cometer mais gafes. Meia hora depois, abarcaram-se na enseada do rio – num pequeno banco de areia – onde os casais iam chegando e se posicionando, estrategicamente, à distância uns dos outros. A Prima, a mais animada, também levava o seu par – o moço, um tanto introvertido, quieto, comparado ao alto astral dela, que o exibia orgulhosamente como um troféu. “Que o moço fosse disposto, bem disposto”, pensou, considerando a pujança mamária dela, e sua sensualidade. Punha-se orgulhosa, virtuosa, recheada num curtíssimo short vermelho e uma blusa branca, bem decotada. Em tempo, Edu conteve-se nos pensamentos. Afinal, Lúcia era a verdadeira razão de ele estar ali. Quanto a Prima, se muito, podia imaginá-la com os olhos de primo – dizia a si mesmo – coisa, obviamente quase impossível para os seus anseios adolescentes. Voltou-se em pensamento para Lúcia. Naquele momento, Lúcia estendia a toalha na areia, bem de frente para o rio que seguia mansamente o seu curso. Deitava ali todo o esplendor de sua sensualidade, o corpo lascivo num primor quase divino, subjugada pelos primeiros raios solares daquele dia, o corpo e os gestos femininos atraídos pelos olhos do astro rei. Mais sedutora foi a forma como ela ajeitou os cabelos e a serenidade de quando desabotoava a blusa amarela de muitos
botões, como se quisesse expor o físico aos poucos, sem pressa. E logo depois, num toque sensual, desfazia-se da saia, revelando toda a sutileza anatômica de uma deusa vestida num biquíni azul claro. Aquela ousadia deixava-o ensimesmado. Por certo, era aquele o seu natural modo de ser; bem diferente de Tami. De qualquer modo, não carecia compará-la à outra naquela hora, e tampouco via ali parecença com ninguém Os olhos do Jacaió que conhecesse. Lúcia era única. Ela não necessitara mais do que um fim de semana para mudar seus pensamentos e atos, raciocinava. Não só os seus pensamentos e atos, mas toda a química do seu corpo; química que sempre estivera sob o domínio do furor sexual – fosse a V masturbação de fato ou em sonhos. Agora, tudo se arvorava diferente, não sabia o que se passava 114 consigo mesmo... Apenas que estava feliz por estar ali. Nunca esqueceria o murmúrio das águas e aquele momento. O murmúrio como música em seus ouvidos – num cenário propício e romântico, seduzindo suas emoções. Vinha das mais distantes células do seu corpo aos seus mais nobres órgãos, inusitadas reações químicas, em cachoeira, como o rio que passava por ali e mais à frente se espraiava no ar. A química da paixão sentida em seu peito, como se algo de muito forte o sufocasse. Não podia entender a acepção daquele sentimento; somente tinha uma única certeza: muita coisa mudara no seu modo de ser e pensar depois do primeiro contato com ela, depois do toque de mãos, quando ela acordara seus sentimentos, indo diretamente ao seu coração. Vinha do seu córtex cerebral, do seu tálamo, da sua massa cinzenta, algo de incomum, grandioso, imenso, que logo se
alastrara em todos os espaços e tecidos do seu corpo, em cada Jairo Ferreira Machado célula, deixando-o animado. U Não sabia ao certo de qual sentimento se tratava, somente 115 que sentia imenso prazer em estar ao lado de Lúcia naquela enseada de rio. Em suas veias sucediam-se fenômenos que o apraziam. Em princípio, pacíficos. Ainda que, em contrapartida, se prendesse cada vez mais à própria armadilha do coração. Um alude de substâncias desconhecidas, fluídicas ou materiais, cheias de vigor, nascidas das reentrâncias mais distantes de seu corpo, vinham-lhe encher de vida e de satisfação. Lúcia possuía algo de muito especial naquele olhar, naquele corpo, que o atraía tanto quanto enchia de esplendor o seu coração. E também sua alma. Chegara a hora de borrar-lhe o batom. Curvou-se devagarinho e penetrou sua língua por entre aqueles lábios sedentos de desejo. E já não sabia o que mais lhe acendia o fogaréu: se o calor do sol das onze horas daquela manhã, a evaporação vinda da areia quente ou da química que de seus corpos emanava como águas de cachoeira... Os lábios de Lúcia, o gosto do batom, o perfume daquele corpo juvenil e cheio de vida, deixam-no confuso. Aqueles olhos brilhavam intensamente, reluzindo à luz do sol, feitas o reluzir de duas pepitas de ônix. Seus lábios aos poucos, lapidando os dela, contendo-se de não ser rude e afoito. Lúcia não tinha a mesma pressa de Tami, como se não precisasse, ou antes, agisse com o coração. Muito delicada para ser tratada de forma incivilizada, embora se comportasse como liberal, com aquele biquíni bem cavado – à moda, das meninas da cidade. Já, moderna no vestir. Apenas no vestir.
Gestos e sutilezas de uma impubescente ainda. De tal modo, não era aconselhável tratá-la com o ardor imposto à Tami; melhor que não a assustasse já no primeiro dia que ficariam realmente a sós. Deste modo, cuidou apenas em lhe afagar tão somente os lábios, tragando para si o sabor quente que vinha daquela boca, embora os hormônios interferissem entre sua vontade cortês e seu instinto animalesco. Lúcia, Afrodite, civilizada. Os olhos do Jacaió Mais uma vez provava o exato sentimento que o primo da cidade denominava paixão; e o que essa representava de mais belo e sagrado naquele instante. Pensando assim, conseguiu, aos poucos, conter o seu lado bestial. Precisava ser coerente nos seus atos, embora o tesão V fosse premente – a disposição juvenil tão rumorosa quanto as águas da cachoeira rolando rio abaixo, 116 No instante seguinte debruçou-se sobre Lúcia, sufocando-a de beijos, esmagando-a de tesão. Em tempo Lúcia arredou-se de lado, arredia, já sentindo o rígido falo dele comprimir suas coxas. Mas como evitar aquela boca sensual e aquele beijo adocicado de batom, a pele macia e o dourado natural de sua tez, a fragrância dela reacendendo-lhe o tesão? E já não podia esconder a anatomia erótica estufando-lhe o short que o deixava sem graça. Tampouco sairia dali sem que Lúcia notasse seu estado de armado, revelando o quanto havia de tratá-la diferentemente de Tami. Quem sabe Tami não merecesse tantas preocupações, mas a sensatez advertia que se limitasse aos beijos, tão somente aos beijos e carícias, até que ele, Edu, se acostumar com menos. Coração e tesão, em concordância, mas educadamente.
Afeiçoara-se aos deleites com Tami cedendo sempre aos Jairo Ferreira Machado seus caprichos ou quando se masturbava pensando nela, quando U Tami era a sua salvação. Mas a jovem ali, deitada na areia, não era Tami. Era a sua Lúcia! 117 Voltou a si, no pensamento, ainda sentindo aqueles lábios adocicados de batom colados a sua boca e a língua quente de Lúcia tocando a sua – a essência do prazer que lhe faltava para, finalmente, sentir-se pleno. Estava prestes a correr dali, mas não conseguia. Era como se um ímã os atraísse um para o outro, sem trégua, num frenesi sem precedentes. Corpos e almas, uma só coisa. Afrodite dando as ordens. O seu falo sinalizava um gozo iminente. Já não podia enganar a si mesmo, ouvindo apenas os ditames do coração, agindo como bom moço. Naquele instante, o juízo veio salvá-lo, como algo recrudescido do seu íntimo, quando se lembrou da escapada, lá do caminho, dia em que Tami incitara seu tesão aos limites e ele correu para o meio do mato e masturbou-se. Novamente a situação requeria uma opção semelhante. E saiu em desembalada carreira. Atravessou a distância da areia que o separava das águas onde se jogou de corpo inteiro, ainda levando na boca o paladar daquele suculento beijo. Beijo, com gosto de batom e de paixão. Lúcia permaneceu na areia, imaginando qual seria a causa de toda aquela pressa. No fundo, decerto, ela bem desconfiava. Uma vez na água, não se fez de rogado e masturbou-se tão rápido quanto pode, por precaução. Logo Lúcia viria para as águas, nesse caso já teria se livrado da fluência hormonal que o comprometia moralmente.
Enquanto isso pensava em um jeito de conter-se, de dosar- se na condução de seus instintos bestiais. Do contrário, acabaria ainda em maus lençóis. Não era a toda hora que teria por perto uma moita ou as águas mansas de um rio, onde pudesse desaguar seu descarrego. Lúcia exigia mais prudência de sua parte. As moças da cidade eram mais maliciosas sim, mas Tami, mesmo não sendo da cidade, fugia à regra. Ao contrário, Lúcia Os olhos do Jacaió exigiria mais lisura de sua parte – concluiu! – se é que não quisesse perdê-la na mesma rapidez que a encontrara. Precisava conquistá-la civilizadamente, o que significava agir mais com o coração, com carícias, do que com a presteza do falo. O que significava ter controle mental sobre si mesmo, sobre o seu V corpo, sobre a jovialidade de seus órgãos sexuais. Os acontecimentos daqueles últimos meses o levaram a perder 118 alguns quilos por conta dos excessos; continuasse no mesmo ritmo, morreria caquético e já começava a se imaginar doente. Não mais a preocupação com a virose, mas doente na alma. Se não podia conter o desejo, menos ainda controlava o sentimento que lhe irrompia do peito toda vez que estava com Lúcia. Nunca imaginara tornar-se prisioneiro da paixão, e muito menos que a força daquele olhar e do inusitado beijo o deixassem tão confuso. Não precisava ser perito no assunto para entender- se apaixonado. Lúcia parecia corresponder, mas era melhor não se iludir. Ela era muito jovem, delicada e cheia de atributos, os mais admiráveis, na beleza física, na meiguice e na civilidade. Quanto a ele, confabulava consigo mesmo, não passava de um bronco, com muito a aprender e apanhar no quesito desse sentimento, que o primo chamava de paixão.
Um ardor no peito como se tivesse brasas dentro assando Jairo Ferreira Machado algo desconhecido de si. U Passados reles minutos, Lúcia fez o esperado: levantou-se e 119 veio refrescar-se nas águas do rio, andando como quem flutuasse sobre a areia da enseada. À distância, ele a admirava lembrando a destreza daquela língua em sua boca. Lúcia sorria como lhe sorria o sol daquela manhã, revelando sua pele morena e bronzeada. E chegava como uma deusa saída das areias; assim, olhava-a, pensativo, inquisidor: “Qual a razão, de não estar ali junto dela, um ladino qualquer daqueles da cidade, e sim ele, Edu?” Obviamente, nunca saberia a resposta; o amor não tem respostas para a maioria de suas questões. Já refeito da masturbação, foi ao encontro dela, guiando-a aos pontos mais seguros do rio, lembrando um ao outro que não sabiam nadar; melhor que não se arriscassem. Os demais integrantes do piquenique também iam se acomodando por ali; inclusive a Prima e o tal paquera dela. De biquíni, a Prima parecia mais gostosa ainda. Finalmente, podia vê-la de corpo inteiro – as tais coxas e pernas, que tanto o excitavam. E aqueles seios, sobrando-lhe sobre o sutiã do biquíni. O mais incrível, falava consigo mesmo, imaginá-la com a saia curta dava-lhe mais tesão do que vê-la naqueles trajes. Ou, quem sabe, fosse resultado do recente gozo, que o contentou a ponto de agora ser mais exigente no julgamento. De qualquer maneira, a Prima esbanjava feminilidade e simpatia; predicados que a colocavam como líder do grupo, a grande mentora das festas e do piquenique daquele dia! Num instante, estava ali, no remanso do rio, a maioria dos pares convidados para o piquenique.
Alguns já se banhavam ao som do murmúrio das águas. Mais tarde, já refrescados, os pares iam saindo à procura de lugares ermos, afim de que um não constrangesse o outro, com o propósito de uma aventura mais ousada e proveitosa a dois. Edu e Lúcia optaram por ficarem à beira do rio onde as águas, se muito, cobriam-lhes um segmento do corpo – das pernas ao tronco – e enquanto refrescavam-se, olhavam as ondas das águas indo em frente. Conduzidos pela atração e o calor envolvente, beijaram-se, na Os olhos do Jacaió mesma ânsia de antes; as línguas, tanto quanto as mãos, em mútuas carícias; agora, ele, Edu, mais comedido nas suas investidas. Num dos galhos do ingazeiro que se dobrava sobre as águas – permitindo que a correnteza o arrastasse sem arrancá-lo do lugar –, um casal de beija-flores arquitetava o seu ninho. V A luz do sol cintilava o colorido das penas dos pássaros à 120 medida em que trabalhavam em perfeita sintonia com a paz do lugar. Vez por outra, as aves davam-se ao direito de descansar ao lado do ninho, enquanto tricotavam as penas, alisando-as uma a uma, para o seu pleno desempenho no sobreviver do dia a dia. A cada momento, a fêmea voava e retornava com mais penugem no bico; e, aos poucos, ia erguendo o contorno do ninho, simetricamente arredondado, de forma que no ninho coubessem seus ovos e os futuros filhotes. Naquele momento, Edu lembrou-se do jacaió. Embora tivesse muito distante do cajueiro, sempre o lembraria. Os lábios adocicados e divinos de Lúcia faziam seu corpo flutuar, sem poder esconder a sanha que de novo o fazia convulsionar dentro das calças; com cuidado, deixou o falo adiantar-se e tocar-lhe as coxas; não custava acreditar. Em transe, ela permitiu, mas logo retrocedeu, como se não fosse ainda o momento. Enquanto isso o beija-flor macho
aproveitou-se da anuência da fêmea e pousou sobre ela, num leve Jairo Ferreira Machado frenesi. Um bando de garças retornava ao lugar do pernoite habitual, voando rio abaixo. Também a turma do piquenique, naquela hora, retornava às suas casas, na cidade – cada um levando consigo os encantos daquele dia. Era um capítulo a mais. Edu sentiu forte o aperto no peito, querendo que aquele dia nunca acabasse; e despediu-se de Lúcia, naquele fim de sábado. UV U 121
Os olhos do JacaióDaquele dia em diante, os eventuais encontros com Lúcia deixavam Tami mais convicta de que havia algo mais sério entre Edu e aquela sirigaita da cidade. O adolescente, seu amante e agora, moço feito, já não lhe dava a mesma atenção de antes. Ainda que se fizesse de desentendida, Lúcia notava os olhares da outra procurando Edu pelos corredores da repartição de ensino. Contudo, agia com prudência, evitando o confronto direto. Sabia lá o que havia entre eles? Só sabia que eram da mesma V classe. Ou seja, gente que por pouco era capaz de uma guerra. 122 Desde que fosse a guerra deles. Tami sempre chamava atenção com aquele rebolado imódico e desafiador. Como pertencia ao bando de Edu, quem sabe fosse apenas consideração dela por ele, talvez um pouco de afeição e só. Não havia nada de tão sério naqueles olhares, pensava Lúcia. De qualquer maneira, ficou atenta. Por outro lado, Tami entendia que as diferenças sociais entre Edu e Lúcia, de certeza interfeririam nas pretensões do companheiro de estudo, ele que não se iludisse – Edu não passava de um caipira. Logo, logo acordaria de seus sonhos. E aquela aproximação cairia por terra. Se é que de fato existia ali algum sentimento, desconfiava Tami. Sabendo disso, Edu agia com precaução, não queria sair ferido daquela mais recente e propensa aventura. Sonhar sim, mas de olhos bem abertos.
Fazendo-se de desentendida, Lúcia agia cautelosamente. A Jairo Ferreira Machado maioria das vezes ignorando a rival – evitando qualquer confronto U ou se aproximar dela. Quando muito, era Edu quem devia dar explicações à destrambelhada. 123 Ainda assim o confronto parecia inevitável. Uma questão de tempo e de oportunidade. Tami tinha sangue quente, aborígine, e fama de encrenqueira na defesa de seus princípios ou no amparo de algum colega do grupo. Num certo dia, na hora habitual do recesso escolar, Tami cuidou de se esbarrar na rival, tendo o propósito da provocação. Irritou-a e ficou no aguardo da contra-reação. Sem mais delongas, além de reles palavrões, as duas partiram para o confronto direto: puxões de cabelo, tapas, arranhões, além dos xingamentos habituais. Formou-se em volta a roda dos deixa-disso. Os citadinos torcendo por Lúcia, enquanto os companheiros de Tami a aplaudiam. A cidade contra o campo. Briga entre alunos era sempre uma boa ocasião para os bandos medirem forças. Em particular, naquele momento. Edu era o pivô do imbróglio, embora só as duas jovens moças soubessem disso. Restava aos espectadores tão somente desfrutarem e torcerem. E era tudo o que faziam naquele momento – torcerem e se divertirem. Não era sempre que se presenciava uma discórdia feminina ser resolvida nos tapas, em puxões de cabelo e eventuais mordidas. Briga de mulher, embora fosse um confronto incomum naquela época, era original e costumava render aos espectadores gratuitas vantagens: pernas de fora, peitos nus e calcinhas à vista. Coisas raras, naqueles tempos da “decência”. Estupefato, Edu deu no pé, uma vez que nada podia fazer e com medo de que fosse identificado como o agente
principal da desavença; o que seria inconveniente. O coração dividido – mesmo que torcesse por Lúcia, preferia não ver Tami humilhada. E, pelo que presenciava, não veria mesmo: Tami parecia uma silvícola, o jeito moleque, envolvendo valentemente a adversária. Para isso, a malandragem e a destreza física. Magra, mas ligeira. Rodopiava a rival no chão, puxando-a pelos cabelos, sem que Lúcia tivesse como se defender. Era cômico, não fosse trágico. Lúcia xingava exaltada, ao tempo que se debatia no chão, Os olhos do Jacaió deixando à mostra a calcinha azul rendada. A turma, em volta gritando: – Gostosa! Gostosa! Incomum visual; uma raridade no recinto escolar, onde a ordem era a barra da saia dos joelhos para baixo e comportamento exemplar. V Em desvantagem, Lúcia tratou de se superar, aplicando na 124 rival uma rasteira, deixando-a estatelada no chão, de pernas para o ar. A proeza acentuou a adrenalina no sangue da moçada, enquanto a turma do contra esgoelava: – Peladona!... Peladona!... Hora uma por cima, hora a outra por baixo, num fuzuê dos infernos. Logo a briga chamou a atenção da coordenação do colégio. Lúcia levava a pior, mas modo não sair no prejuízo, virou- se e deu uma cruzada de pernas na oponente, imobilizando-a no chão. Recurso que, se por um lado a ajudava na luta, por outro expunha-lhe mais as partes íntimas. A moçada num delírio incontido. Tami utilizou-se da única saída que lhe restava: arrancou num único puxão os botões da blusa da adversária, deixando-a mais despudorada ainda. Lúcia deu o troco, erguendo-lhe a saia, pondo-a nua com as coxas à vista dos espectadores.
A briga rendia muitos risos e aplausos antes de chegar a Jairo Ferreira Machado turma do “deixa-disso”, tratando de separar a briga. U Entre desaforos, a briga chegou ao fim. Ambas com as 125 caras bem amassadas. Enquanto Edu refugiou-se na sala de aula, ressabiado, sem saber como proceder daquele momento em diante. Sozinho nos pensamentos, restou-lhe somente lamentar o ocorrido. O entrevero chegara ao fim, mas ficava por sua conta administrar as implicações daquela discórdia. Em face às circunstâncias, era melhor fingir-se de morto, naquela hora. O arranca-rabo dominara o assunto no final das atividades escolares daquele dia. Lúcia tinha sido a vencedora, na opinião de alguns; para outros, Tami dera o troco ao pé da letra. Pensando bem, num julgamento mais frio daquele confronto, Tami fora a grande heroína, pois tivera a coragem de desafiar a rival no campo dela, onde a grande maioria era da casta dos citadinos. Tami não só enfrentara a concorrente, mas a todas e todos citadinos ao mesmo tempo. Não medira os resultados negativos de sua atitude ao provocar a outra para que ela reagisse. Agora, não interessava se perdera ou se ganhara a peleja; nada disso importava. Tinha os méritos garantidos, mesmo que perdesse o seu maior troféu, Edu. Confusão não era bem o forte de Lúcia. Só entrara naquela em defesa própria, por implicância de Tami. De natureza apaziguada, preferia a docilidade à luta, o amor ao ódio. Expressava sua força através do sensualismo, predicado esse que pegara Edu pelo coração, sem que se esforçasse.
Ao contrário, coragem e ânimo eram os maiores predicados de Tami; demonstrava isso na força física e nos atos libidinosos, sempre querendo mais; insatisfeita. De qualquer maneira, o embate acrescia- lhe a auto-estima, uma vez que essa andava em baixa, em razão da indiferença com que o parceiro a tratava nos últimos dias. Vingara-se, pois, da rival. Não somente isso, também impusera-se diante de um bando de ladinos, mostrando impavidez e fibra. Depois daquele dia, Os olhos do Jacaió os colegas do colégio, de certeza, respeitá-la-iam mais; era bem possível que o acontecido lhe rendesse alguma reverência e o efeito disso fosse positivo para os do seu bando. Não importava se as pessoas a considerassem encrenqueira; ao menos, vingara-se. Consolava-se, portanto! V Indo para casa, naquele dia, enquanto os colegas de estrada fuxicavam sobre o acontecido, Edu permanecia quieto, 126 descontente com a desavença das duas e caminhava lembrando a encrenca em que se metera. E como sairia dela? Andava um pouco triste com os colegas de jornada enaltecendo-a a todo instante. Pois quando assim agiam, sem querer, desfaziam de Lúcia – fato que muito o aborrecia. Se por um lado Tami tinha seus defeitos, o ciúme e o gênio fogoso, por outro, mostrava virtudes, não revelando as razões da briga em momento nenhum. Brigou, bateu, apanhou, mas escondia os fatos daquela reação, embora alguns colegas desconfiassem do real pretexto do duelo. Já na encruzilhada do caminho, finda aquela confusa sexta- feira, Tami despediu-se de Edu, como quem se despede de um colega qualquer, tentando fingir-se desinteressada, embora no fundo lembrasse o primeiro beijo à sombra do cajueiro e todas as intimidades e o clima de luxúria que tinham passado juntos.
A esperança de um dia tê-lo para si, conseguiu com a ajuda Jairo Ferreira Machado da virose, dos deuses e deusas, e do cavaleiro, mas agora, parecia que aqueles lindos momentos chegavam ao fim. Era véspera do recesso escolar, do primeiro semestre daquele ano. E ela estava em vias de deixar, definitivamente, o martírio das salas de aula. Ficar sentada numa carteira ouvindo a professora, não fazia parte de seus planos. UV U 127
Os olhos do JacaióMesmo havendo amor, desejo, ciúmes, discórdia, no coração dos três jovens, sabiam que isto não acontecia somente entre eles. O mundo estava preocupado diante de uma segunda guerra mundial, que afligia principalmente os moços. O tempo corria depressa e só se falava em guerra, em recrutamento, em mortes, ainda que essas acontecessem longe dali, daquela pacífica cidade do interior. As notícias eram anunciadas a toda hora pelos rádios, pelas esquinas, pelas bocas V das pessoas, num alardeio sem fim. 128 Era o ano de 1942. Alguns anos antes a Alemanha invadira a Polônia, com a imediata reação da Inglaterra e França contra a invasora, formando, em consequência disso, uma política de alianças militares – os aliados: Inglaterra, França, Rússia e os Estados Unidos, contra o Eixo inimigo: Alemanha, Itália e Japão. O Brasil entra no conflito em 1942, e manda para a guerra – para a Itália – vinte e cinco mil soldados, alguns desses, recrutados na região de Juiz de Fora e adjacências, incluindo Recreio. Os recrutados, denominados mais tarde Pracinhas, eram treinados e imediatamente embarcados em navios, alguns chegando a combater em solo italiano, outros iam ficando pelo caminho – no oceano – quando seus navios eram bombardeados pelos inimigos. A guerra e a expectativa da convocação mexiam com os brios dos moços e de suas namoradas, e dos amores platônicos
– aqueles ainda não revelados – como se já não bastassem os Jairo Ferreira Machado próprios conflitos internos da passagem da juventude para a U vida adulta. 129 Valia mais a esperança de um futuro mais promissor do que apenas um balaço no peito. Mesmo que a guerra fosse a revide dos Pracinhas brasileiros mortos na viagem ou em pleno combate. No que se referia à maturidade sentimental, Edu estava longe da verdade; reconhecendo as próprias dificuldades com Tami, com todo aquele jeito assanhado, e de como lidar com o incontido amor por Lúcia. Agora, moço-feito, diziam que também ia ser convocado para a guerra. Era só questão de tempo. Pensava em tudo, menos nessa hipótese desagradável, nesse revés da vida. UV
Os olhos do JacaióDespertou cedo na manhã do dia seguinte, tendo já, arquitetada na mente, a ideia de distanciar-se por algum tempo. Uma ótima maneira de desanuviar um pouco a cabeça, fugir do assunto da guerra e da intensidade sentimental daqueles últimos tempos, situações mal resolvidas, até então. Como os desencontros com Lúcia. Sem esquecer a desaprovação das famílias, em razão das diferenças sociais (ele, jovem do campo, e Lúcia, da cidade, com atributos para um bom partido) o que o V colocava em situação incerta. 130 Mesmo que viessem a colocar as alianças, teriam que ceder às forças de uma sociedade cheia de regras e preconceitos. Caipira casa com caipira, moça da cidade casa com citadino. Logo, não havia cenário nem ambiente propício para uma convivência saudável e duradoura. Edu já com planos de dar uma guinada no seu futuro, largar os estudos para trabalhar e quiçá um dia casar, embora Lúcia não estivesse bem certa disso. Sua vida mudaria do vinho para a água?... Quem sabe não pensasse assim, tão cheia de certeza, mas os pais pensavam. O amor, embora digam que seja cego, tem suas exigências, um pouco de coerência nos fatos. Com a prevista convocação para a guerra, mais difícil ficariam as conjunturas. Enquanto o tempo passava, Edu matutava um plano para tornar as perdas menos dramáticas para o seu coração; se é que houvesse mesmo saída para o seu caso...
A mente pedindo que resolvesse os seus conflitos longe dali, Jairo Ferreira Machado distante da confusão que a vida o arrastava, embora seu coração U quisesse permanecer próximo de Lúcia. 131 Tomada a decisão, se foi. Seus olhos buscavam em cada esquina os olhos de Lúcia, de quem pretendia se despedir, ou ao menos dar-lhe uma satisfação e, quem sabe, marcar um novo encontro para quando voltasse. O cavalo indo às rédeas frouxas. A cidade, até então, nunca lhe pareceu tão vazia. Tanto quanto vazio estava seu coração. Assim, seguiu em frente, pelo caminho que o levaria a uma velha e conhecida fazenda, nas bandas do rio Pomba. Já estivera lá, algumas vezes, quando menino. Trazia ainda na memória o ruído longínquo de um moinho se misturando ao murmúrio de uma cachoeira. Passaria, de passagem, por uma região de nome “Serra”, no alto da qual se avultava de longe a “pedra do urubu”, com seus mistérios e histórias mantidas em segredo pela população local. Vozes se emudeciam quando se falava daquele lugar, como se tudo ali fosse proibido. Afora, que era mesmo de muito difícil acesso. Edu empacou o cavalo e permaneceu olhando cada metro daquela subida, como se caminhasse pelas veredas da serra, em pensamento, escalando as rochas, os aclives, e toda a engenhosidade que a colina construíra para si, sabe-se lá com qual propósito. À distância, media com os olhos a “pedra do urubu”, deixando a imaginação por conta de adivinhar como seria chegar lá. Deu meia-volta na montaria e tocou em frente. Mil coisas passavam por sua cabeça – numa salada de amor, guerra, vida, morte, nostalgia e distância. Novamente a caminho do seu destino, para as bandas do rio Pomba, sentiu-se mais bem-aventurado, revendo os lugares por
onde um dia passara, embora de coração partido, por não ter se despedido de Lúcia, de véspera. Em parte inconformado, em meio a um turbilhão de sentimentos. Mas era melhor que fosse assim. Quanto antes desse um alento ao seu coração, mais tempo teria para se decidir. O mundo caminhava para um caos. Conhecidos seus iam e não mais voltavam da guerra, logo, seus dias de glória, encontros e desencontros afetuosos, Os olhos do Jacaió estavam por um fio. Levava consigo a esperança de que quando chegasse ao destino, reencontraria a paz de espírito que tanto necessitava e um alívio para o coração, quando recuperaria a serenidade perdida com as últimas notícias – os rádios anunciando mortes V a todo o momento. Mais que fugir de tudo aquilo, precisava entender melhor os 132 seus sentimentos, visto que os acontecimentos daqueles últimos tempos – da adolescência e agora moço já em vias de pegar em armas – deixavam-no revoltado, indignado. Apertou a espora no cavalo e seguiu em frente, levando Lúcia na garupa, a bem dizer, no pensamento. No fundo, perdia a esperança de que Lúcia teria a paciência necessária. O romance tinha muita coisa em jogo, que o coração não resolveria. Em cada curva, uma recordação. Aos poucos ia se identificando com a paisagem. As lembranças do passado vindo à sua memória e isto, em parte, contribuía para que Lúcia também fosse ficando pelos caminhos, embora seu coração batesse anímico, triste e a alma levemente machucada. À medida que cavalgava ia identificando-se com os lugares, com o passado, quando por ali transitava, ainda ingênuo menino. O percurso e os planos traçados na sua cabeça.
As colinas, as várzeas, os ribeirões, as capoeiras, as voltas Jairo Ferreira Machado que a estrada dava – todos guardados em algum lugar de sua U memória, que aos poucos afloravam frente aos seus olhos. 133 Sabia para onde estava indo. O seu coração parecia saber muito mais. No íntimo, tentando fugir do próprio destino. Do pico mais elevado da estrada, seus olhos deram nas águas barrentas de um rio correndo lá longe no vale. O rio o fez recordar Lúcia, tendo ele, Edu, feito um sinal de negação com a cabeça, preferindo não lembrá-la naquele instante, modo não se entristecer. Lembrava o sol se debruçando no horizonte, o beija-flor se aninhando nos galhos do ingazeiro e o rio, tudo isso o fazia voltar ao piquenique. Era melhor que afastasse Lúcia dos seus pensamentos o quanto antes, senão, era capaz de galopar de volta, o cavalo. Vez em quanto vinha à lembrança o jacaió pousado no galho do cajueiro. E com ele a lembrança de Tami. Antes que entristecesse revolveu o olhar noutra direção, tentando ludibriar a própria memória. Um cheiro agradável vinha encontrá-lo pelos caminhos; a fragrância inconfundível da garapa fumegante no tacho de cobre contíguo ao alambique. Esse, disposto lá nos arredores do terreiro da fazenda, lembrava. Mais adiante seus olhos colidiam com o telhado do casarão, parcialmente escondido em meio à vegetação e os mangueirais que circundavam a fazenda. Uma visão alvissareira, para o seu bem-estar espiritual, desviando o foco do pensamento em Lúcia, e mais para trás no tempo, cuidando de fugir daqueles dias com Tami.
Algo desconhecido e incrivelmente forte o convidava a chegar. Precisamente, abria-lhe as portas do tempo. Não sabia por que, mas o coração palpitava-lhe forte no peito. Esporeou o cavalo em frente. À medida que se aproximava, seus sentidos eram invadidos pelo murmúrio cada vez mais forte de um jato d’água tocando o moinho. Como se o moinho estivera todo aquele tempo calado no seu peito e agora acordava ruidoso, imenso, girando ao toque Os olhos do Jacaió da força das águas. Renascido do seio da terra onde estivera assentado e esquecido todos aqueles anos. Recordava os tempos de menino. Ele lá, em pé, admirando a roda d’água girar e a moenda, sem pressa, ia engolindo a cana, esmagando-a com seus dentes. Os espirros longe da garapa e o V líquido doce, saboroso, escorrendo do lado oposto da moenda, como um tênue riozinho. 134 A queda d’água dava-se em decorrência de um braço do ribeirão desviado da cabeceira da cachoeira, cujo murmúrio podia ouvir à distância de onde estava. Seus sentidos aos poucos, recordando. A água entrava por um canal estreito, lembrava-se, e despencava-se por uma tubulação de ferro, arquitetada ali, de forma a carga d’água cair nos coxos da roda, fazendo-a girar e tocar a moenda sem parar, noite e dia. No mais era encantar-se com a garapa se despejando numa grande tacha de bronze, onde era fervida ao sabor do fogo de lenha. Após destilada,a garapa tornar-se-ia uma ardida bebida que levantava o astral dos homens. Melhor ainda se estocada e envelhecida em tonéis de carvalho, até o ponto de ser consumida. Muita gente vinha de longe santificar a garganta com o doce- amargo daquela pinga, lembrava.
Os ruídos da cachoeira e do moinho soavam como música aos Jairo Ferreira Machado seus ouvidos. E aquilo tocava de alguma maneira o seu coração. U Após mover o moinho, as águas reconduziam-se de volta 135 ao seu leito natural, indo engrossar mais adiante o ribeirão que quilômetros depois, por sua vez, iam desembocar no rio: o rio Pomba. Confabulava consigo mesmo, deixando o cavalo conduzi- lo. O doce cheiro do bagaço da cana e o aroma da cachaça aguçavam os seus sentidos, a sua memória, como uma flor que exala o perfume modo o vento servir-se de sua essência. Vagamente suas lembranças começavam a fazer sentido. Por si só, seus sentimentos se avivavam nelas – o lugar, a fragrância, o ruído, a aflição que o acompanhava pelo caminho e que o fizera esquecer Lúcia por alguns instantes. Logo soube, algo de muito familiar e de bonito se passara ali, e ele estava presente, embora no lampejar da memória não recordasse nenhum fato concreto. Mas o aroma singular da aguardente, o murmúrio do moinho e o ruído da cachoeira, de alguma forma colocavam- no em contato com o seu passado, com o seu mundo-menino, vivenciado ali anos antes, ainda que fossem apenas em pequenos períodos de férias. Sem descer da montaria, observava a cachoeira precipitar-se do penhasco, dissipando-se em nevoeiro antes de alcançar o nível do ribeirão lá embaixo, proporcionando comovente panorama. Seduzido pela beleza, ele continuou em frente. Numa Incrível sensação nostálgica e sem que fizesse menção de ali parar – embora assim desejasse, o cavalo, tão instintivo quanto ele, empacou, como que captasse seus pensamentos: “vamos parar um pouco, aqui”.
Naquela hora, o cenário formava um singular arco-íris construído pela incidência dos últimos raios solares daquela tarde no nevoeiro levitado das águas despencadas do penhasco. E as nuanças do arco-íris fê-lo lembrar-se da Menina de tranças. Menina de tranças? Tinha ela os cabelos louros e cacheados. Podia vê-la correndo célere sobre o banco de areia, bem ali, na enseada do ribeirão, onde eventualmente se encontravam, naquele distante Os olhos do Jacaió passado. Crianças ainda, eles brincavam no raso do ribeirão, onde as águas se espraiavam, de forma que até enxergavam os peixinhos nadando. Edu corria o olhar nos detalhes em volta. Agora se insurgia do meio das cores do arco-íris, a lógica das V recordações que vinha suscitando vagamente de sua mente, no decorrer da estrada. 136 Aquele mistério, o coração palpitando cada vez mais forte no peito à medida que se aproximava da fazenda; nunca mais ouvira falar dela, da sua Menina de tranças, desde sua última estada ali. Os cães acuavam à distância, no terreiro da morada, num prenúncio de gente chegando; os cães sempre impunham respeito e medo a quem se aproximasse do casarão. Edu via-se entre o medo quase inconsciente e a força dos estranhos presságios acompanhado pelas boas recordações dela, da Menina de Trança. Desligou-se do pensamento, chicoteando a montaria por um estreito caminho, em direção a um límpido terreiro de uma casinha beira-chão. A claridade do sol já se apagando nas cores do crepúsculo.
Enfim, chegara. Jairo Ferreira Machado Daquela simples morada, onde na infância brincava sozinho U no terreiro, via a imponente varanda da fazenda no lusco-fusco de luzes geradas a dínamo. E, mais uma vez, a memória reconduzia-o 137 ao passado: à sua Menina de Trança! Um enigma tocava os seus sentidos: o lugar, o ruído da cachoeira, o aroma da aguardente e longe, muito longe, as recordações. Não sabia se tristes ou alegres. Contudo, algo de extraordinário intrigava-lhe a mente. Muitos anos se passaram e, desde então, nunca mais voltara àquele lugar, pensava, enquanto a mente tentava resgatar fatos daqueles momentos, com a esperança de compreender o sentido de todas aquelas recordações que vinham à sua mente. Por qual razão se identificava tanto com o lugar? Como se retornasse ali para terminar alguma coisa não acabada ou, quem sabe, redimir-se de algo muito ruim que teria feito no passado. Só o tempo poderia dizer-lhe... Naquele mesmo dia, durante as conversações de praxe, tomou conhecimento de que haveria – no dia seguinte no, salão da fazenda, um afamado baile. Pessoas de toda a redondeza estariam lá; e sem que soubesse por quê, a boa noticia fazia seu coração palpitar descompassado no peito. Na hora de dormir, lembrou-se dos tempos de criança, quando, de longe ouvia a música de uma sanfona soar a noite inteira, e longe, a conversação animada de pessoas. A imaginação já alimentando a expectativa de um acalorado fim de semana. Se não se enganava, pensou, chegara ali, num dia de graça. Embora, no fundo do peito, houvesse uma réstia de tristeza por Lúcia e pela perspectiva da guerra.
Os olhos do JacaióAntes de pegar no sono, lembrou-se de Lúcia, lá na cidade. E foi um momento triste aquele. Porém, o ruído da cachoeira trazia-o de volta àquele lugar, a algo que no íntimo não sabia o quê. UV V 138
Acordou com o sol da manhã entrando pela janela e Jairo Ferreira Machado acariciando o seu rosto; longe ouvia o ranger do moinho, U o que o fez lembrar mais uma vez os momentos da infância. Logo, algo de muito forte vivia em si, guardado em seu peito, 139 mesmo já passado de jovem púbere e, agora, rapaz-feito. Animou-se, com os sentidos aguçados para a festa da noite, já se considerando potencialmente convidado. O terno cedido por alguém acresceu mais estima ao seu ego. Soube de antemão que rapazes e moças eram bem-vindos aos bailes do interior. Melhor ainda que fossem pessoas conhecidas. Era o seu caso, pensava, já fazendo planos! Além do que, contava com os pré-requisitos da recente adquirida experiência. Mesmo que ainda vivesse o fantasma da convocação para a guerra. Queria esquecer, mas o assunto estava em todos os lugares; principalmente entre os jovens propensos a candidatos à convocação. Mesmo preso às lembranças das últimas façanhas, o recente envolvimento sentimental com Lúcia e a experiência libidinosa com Tami, os hormônios e os neurotransmissores, fluidos vitais de seu organismo, cobravam-lhe mais aventuras. Mesmo com as incertezas do futuro. Seu coração jovial disposto a arriscar-se. Os fluidos orgânicos avivavam a sua alma. A energia cósmica, as deusas e os deuses olímpicos, Eros, Afrodite, os ventos, todos foram ao
seu favor naqueles últimos tempos. Assim, a vida prosseguia, apesar das circunstâncias atuais. A harmonia do lugar sintonizada com o seu desejo de saber o que havia de importante e imprescindível aos seus sentidos. Por que estava ali, naquele momento? Qual experiência vivenciada, no passado, que ainda ele devia rever, como algo ainda a ser acabado? Era impressão sua ou mesmo os pássaros cantavam alegres naquele dia? Os olhos do Jacaió Tanta luz havia naquela manhã, que o sol parecia brilhar somente para si. Sentiu forte aperto no peito, antecipando os momentos vindouros, o baile da noite, que diziam ser o evento mais badalado da região. Que em nada ficava devendo aos bailes da cidade; a não ser, pelo singular som harmônico da sanfona, em V vez dos conjuntos musicais. 140 Este detalhe não o aborrecia, vez que quase nada sabia sobre dança. Chegado o momento, meteu-se num paletó e se foi garbosamente vestido. Sob o lusco-fusco das luzes da fazenda, adentrou a varanda, olhando de soslaio para o lado da sala onde, habitualmente, se aglomeravam as damas, maliciosamente faceiras, postadas de frente para os moços. A maioria maquiada e bem vestida, na simplicidade e nos conformes da época. Umas bonitas, outras, nem tanto. Susteve-se ali em pé encostado a uma das paredes do salão, um bocado de tempo, junto aos outros pretendentes. O sanfoneiro puxou o fole da sanfona e alguns se adiantaram à busca das damas, que antes responderam positivamente aos seus sinais. Observou-os chegar, tomar a mão da dama, envolvê-las pela cintura com um dos braços e seguir para o centro do salão. Não
demorou a perceber que ou o folião tomava coragem e chegava à Jairo Ferreira Machado dama ou podia ir embora para casa, dormir... U A dama tomar a iniciativa da dança, não era a prática 141 daqueles tempos; era desrespeitoso. Se muito, dançavam umas com as outras, as mais assanhadas, no afã de que dois cavalheiros batessem palmas e as pedisse em bailado. Aceitariam ou não o convite, e aceitando, cada uma saía com o seu par; mas o risco da aventura ficava por conta do cavalheiro! Do seu canto, Edu observava o envolvente bailado dos casais ao ritmo harmonioso da sanfona. Sentiu um fiozinho de esperança e tensão olhando os demais cavalheiros que ainda não encontraram o seu par preferido. Além do que, por conta da guerra, havia mais damas que cavalheiros. E, sobretudo, os tímidos, que ficavam só adiando o momento, como ele, Edu. Baile era um acontecimento de constantes variáveis; da exultação ao desgosto. Os moços vestiam a melhor roupa, contando com a sorte. As moças caprichavam na maquiagem, no penteado, torcendo que o cupido lhes desse a cara, durante a dança. Edu pôs-se atento. Era somente mais um entre tantos outros buscando sua dama, o par que lhe viesse dar um pouco de prazer e companhia – dançar, mesmo que fosse uma única vez, com a dama preferida ou a dama com o cavalheiro dos seus sonhos. Isso era o que todos ali pretendiam. Mas nem sempre acontecia. Quando rapazes e moças davam-se às mãos, ao iniciarem a dança, o mundo presumia-se favorável a eles; exceção é claro, dos rivais. Esses torciam por uma pisada no pé ou por um
desacerto no ritmo da dança de um dos dois, talvez, assim, um deles desistisse da dança. O que daria, em seguida, a chance para novos pretendentes. Uma loteria... Conquistava a dama aquele que fosse mais ousado, ou melhor, dançasse. Apenas durante a dança, homem e mulher se tocavam. Mas não como namorados, respeitando a distância um do outro, o que nem sempre era possível, devido ao aglomerado de pares. Os olhos do Jacaió Aconchego a mais, só em caso de namoro mais sério – já em vésperas de casamento. Edu manteve-se atento. O som da sanfona mistura-se ao murmúrio do moinho ao longe. As solas dos sapatos deslizando no encerado do tablado, onde os V pares rodopiavam em franco regozijo, no enlace temporário. Antes um pouco de o sanfoneiro puxar a terceira música, 142 Edu viu-se olhado insistentemente por uma morena, que pareceu piscar-lhe os olhos. Tão bonita que não se considerou merecedor. E mesmo que acreditasse, tinha receio de cortejá-la. Podia estar enganado, talvez o olhar tivesse outro endereço, como alguém ali ao seu lado; quem diria que não?... Titubeasse, um só momento, e tomaria “chá de cadeira”, concluiu, alertando a si mesmo! As moças mais bonitas, pela lógica, eram as primeiras a serem cortejadas. A arte na dança, a elegância, o aceite ao aconchego também eram motivos da insistência dos moços por aquela dama. Por outro lado, a falta desses atributos, significava desistência. Contudo, mesmo que o cavalheiro e a dama fossem exímios dançarinos, não significava que tivessem assegurados sua vez seguinte de dançar com o mesmo par.
Antes, havia a empatia e o fervor do sentimento. Até aquele Jairo Ferreira Machado momento, Edu sentia-se em dupla desvantagem – não era U dançarino, além de recém-chegado, desconhecido. 143 Somente animou-se, percebendo que alguém do outro lado do salão o olhava insistentemente. Precisava, no entanto, ser rápido. Bastava um simples aceno de mão e a dama consentia a dança. Podia ser também um gesto com a cabeça ou mesmo um piscar de olhos, um sorriso. Ao contrário, se o cavalheiro não fosse do agrado da dama, a moça fazia de conta que não era com ela e sumia lá para os quartos, voltando em seguida, na expectativa de melhor sorte, de um pretendente mais atraente. Cabia aos cavalheiros atravessar o salão, percorrer o espaço que os separava das damas, escolher uma e acompanhá-la ao centro do salão onde usualmente dava-se o início da dança. Edu agora sabia como deveria agir, para não perder a próxima sequência de música. Não fora ali passar por bobo. Quem menos entendia de dança, procurava o miolo do salão. Também ficava por lá o par mal intencionado, aproveitando-se do ensejo para efusivas carícias; o ritmo da dança era o que menos importava aos dois. Assim, Edu esperou pela próxima sequência musical, de olho na dama que bailava nos braços do outro, mas atenta ao seu olhar. No momento seguinte agiria – falava para si – confiando na sorte dos últimos dias. E posicionou-se estrategicamente modo estar mais próximo dela, quando começasse novo seguimento musical. Fosse quem fosse ela, demonstrava interesse; e isto já era o bastante para quem não tinha nada.
Aqueles grandes olhos mirando os seus, como ímã de luar... Logo infiltrou-se entre os foliões, já antevendo o aceite; porém, havia pensado, se ela não o aceitasse, fugiria daquele salão para nunca mais voltar. O rosto expressivo trazendo no complemento os grandes lábios rubros de batom. Os cabelos curtíssimos e sedosos, já imaginando tocando-os, assim convidou-a para dançar, sem pensar que mal sabia dar os primeiros passos e também no Os olhos do Jacaió próprio risco de pisar-lhe os pés! Mas a atração foi-lhe mais forte; o coração exigindo que se aventurasse antes que outro o fizesse; não; ninguém a roubaria, não dessa vez. A jovem consentiu com o sorriso nos lábios e, timidamente, ele V a guiou pela mão ao centro do salão. O coração batendo forte no peito, quase o sufocava, tanto quanto o sufocava o perfume dela. 144 Aquelas mãos delicadas e macias lembravam as de Lúcia. Porém diferenciavam no tamanho. Eram mãos de uma pianista, abarcando por inteira a sua. Subia-lhe dos arfantes seios um perfume indescritível que o pôs fascinado. Cuidou de não pisar-lhe os pés antes de aventurar os primeiros passos, desculpando-se da pouca prática. A jovem se fez compreensiva e soltou-se estonteante em seus braços, como se lhe confiasse a alma, além do corpo impecavelmente vestido numa seda macia, onde posicionava sua mão direita timidamente, firmando-lhe à cintura. Ela permitiu o corpo unir-se ao seu. Acompanhou-a no deslizar-se pelo encerado salão, tendo apenas o cuidado de no máximo e a muito custo, deslumbrar- se com o próprio feito – a coragem de convidá-la para dançar, motivado por aquele olhar divino, mas um pouco sinistro.
Imaginava, por baixo daquele recato feminino transparecia Jairo Ferreira Machado uma afrodisíaca tentação – e era tudo que seu corpo varonil pedia U naquele instante. 145 A sanfona ressoava harmoniosa à meia-luz do salão. Mentes e corpos se juntavam lúbricos. O esfregar esfuziante dos casais, alguns tímidos, recatados, respeitando os princípios morais da época; a maioria das vezes, contidos pelos olhares alheios. Em tempo, Edu recorreu ao pequeno repertório de palavras e pronunciou, a todo esforço, uma única e curtíssima frase: – Qual o seu nome? A jovem, tendo postado seus lábios cobertos de batom bem de frente aos seus, respondeu: – Eu imaginava que não se lembrasse mesmo do meu nome... Disse de forma adocicada e calou-se, olhando-o bem fundo nos olhos. Edu, se muito, engoliu secas aquelas palavras – como haveria de saber-lhe o nome? – Perguntava-se – como que arrependido de ter aberto a boca. Agora, rebuscava outra expressão vocal que lhe viesse em socorro. Por nada no mundo lembrava aquele rosto, aquele fulgor de sensualidade, embora a jovem fosse enfática no responder. A frase soava a algo de pessoal, coisa que sua mente traiçoeira e quiçá anuviada, naquela hora, não lembrava. O sangue ruborizou-lhe a face, já corada do sol. Notando-o encabulado, a jovem logo o socorreu: – Decerto, seria pedir muito que se lembrasse de mim, depois de todos esses anos. Talvez lhe fosse mais fácil se ainda eu tivesse minhas tranças – arrematou, sorrindo-lhe a boca cheia de malícia. Naquele exato momento, o sanfoneiro deu pausa à música. Como de praxe fazia de tempo em tempo, modo os casais
trocarem de parceiros ou aqueles já afinados, arrefecerem-se da libido, quando então, outras damas e cavalheiros teriam a vez de encontrar o seu par. Ela se despediu e Edu a viu atravessar o salão de volta ao lugar de onde a tomara instantes antes, como se ela estivesse indo de seus braços para sempre. A timidez não permitiu que a chamasse de volta para saber mais detalhes, enquanto seu subconsciente tentava resgatá-la do seu passado. Os olhos do Jacaió Seria ela a Menina de tranças? – perguntava-se sozinho do canto do salão onde foi parar, depois que ela fora. O coração ainda pulsava-lhe no peito, assustado com aquelas palavras, quando a música recomeçou. Mais do que nunca a querendo novamente em seus braços. Olhou em direção onde V as damas ficavam, e viu outro cavalheiro levando-a para meio do salão, após convidá-la para dançar. 146 Lamentou-se... Mais que isso, detestou-se! Tivera-a em seus braços em um único instante e como num passe de mágica, perdia-a para outro no instante seguinte. Talvez, para sempre. Sentiu-se menos traído ao percebê-la buscando o seu olhar – como se se desculpasse e rogasse paciência. Haveria outras sequências musicais e oportunidades. Ainda assim, preocupou-se! O par com quem ela dançava puxava assunto, falava em seus ouvidos e ele ali, arriscando de não tê-la novamente nos braços! Ela bem podia ter negado aquela dança ou pisar com força aqueles pés, mas estava sujeita às normas do baile. Mas que aquele sujeito não se metesse a galanteador... A dama já lhe pertencia, concluía, achando-se no direito de ela ser sua e de mais ninguém.
Nesse ínterim, pensava na interjeição da resposta dela à sua Jairo Ferreira Machado pergunta, fazendo conjeturas: seria ela, a Menina de tranças? U Aquela que se dizia sua namorada e que ele – ainda um 147 tímido menino – em razão disso, odiava-a? E sendo verdade, ela teria razões de sobra para detestá-lo. Foi uma longa espera. O desgraçado do sanfoneiro parecia não querer parar a música. O intervalo não tinha fim. No momento em que a música preencheu o todo do salão, Edu acenou-lhe com um piscar de olhos, e ela veio-lhe ao encontro, sorrindo, entregando-se mansamente aos seus braços. Sem o menor acanhamento, ele a aconchegou ao seu peito; totalmente sua. Os seios dela tocando-o com enlevada sensualidade, como quem esperasse muito por aquele instante. Agora, a voz não lhe saía da garganta; nem sequer uma palavra! Percebendo isso, a jovem fez por ajudá-lo e indagou: – Lembrou-se? Sabe agora, quem sou? A música ressoava harmoniosa e pura no salão. A leveza daqueles passos flutuando no espaço, levando-o junto. E o doce aroma daqueles lábios bem juntos de sua boca sufocava sua respiração. Necessitou imenso esforço para arranjar as palavras da garganta e responder. – Não creio que sejas, a Menina de tranças? Ela sorriu, agora, envaidecida, de ele lembrar. No que ele enfático, disse: – Assassina... Disse, sem lhe tirar os olhos dos cabelos, em alusão à falta das tranças. E ela fez-se contente, apertando a mão dele, sabendo-se que no fundo, bem ou mal, ele se lembrava dela, daquele tempo.
E assim, rodopiavam radiantes no salão, ao som da melodia, enlevados pelo fulgor da emoção. Passados alguns segundos, depois de relembrar momentos da infância, – os dois brincando juntos lá no remanso da cachoeira – ela voltou a falar: – Mas ainda não disseste o meu nome... – E você, tampouco disse o meu, ele falou. – Edu, ela lhe respondeu no ato. A resposta dela o deixou desconcertado. Aquele singular Os olhos do Jacaió eufemismo, como se nunca mesmo esquecera o seu nome; como se o tivesse pronunciado todos os dias de sua vida. O hálito doce tomando os seus sentidos. Era tamanha a animação que teve vontade de beijá-la antes de tudo. Olhava aqueles lábios cuidadosamente torneados de batom V ruge, enquanto mergulhava a mente no passado, em busca de um nome. Estava em desvantagem, mais uma vez. 148 A estrada, a cachoeira, o arco-íris, o entardecer, o murmúrio do moinho, a fragrância do alambique, tudo que sentira quando ali chegou trazia lembranças dela; da sua Menina de tranças. Mas nunca o seu nome verdadeiro! Apenas vagas lembranças de uma menina que vivia de importunar-lhe o tempo todo. Tanto que precisava despistá-la nas horas das necessidades fisiológicas de praxe – nas vezes que estavam juntos ali – naqueles tempos de criança. O sanfoneiro mais uma vez interrompeu a dança, indiferente aos efeitos daquela pausa. O que lhes pareceu uma conspiração. Ressurgia-lhes de um anseio adormecido, de que um não devia largar mais o outro. Não era o momento propício da pausa... Logo no auge da emoção, quando seus corpos já se preparavam para um desfecho maior.
Contudo, não podia o sanfoneiro atender aos interesses de Jairo Ferreira Machado tantos. Se a uns a música era bem-vinda, a outros, incomodava. U Exemplo, quando os pares não se afinavam. Dançavam apenas por um cumprimento e respeito às regras do baile. 149 A interrupção da dança era temerosa. Não queria vê-la nos braços de outro novamente. A expectativa de perdê-la para um rival mais audacioso – fato que era um acontecimento corriqueiro dos bailes – mesmo na iminência do risco, permitiu ela retornar ao lugar de antes. Como exigir dela uma atenção maior, se nem mesmo lhe sabia o nome? Ela foi, mas segurou-lhe as pontas dos dedos, como quem não quisesse ir, mas era preciso. Enquanto isso, ele, Edu rebuscaria no seu subconsciente um nome. Haveria de tê-lo guardado em algum lugar de sua mente. E assim pensativo, retornou à varanda, modo tomar ali um pouco de ar, enquanto se inspirava no céu salpicado de estrelas, os olhos perdidos na imensidão da noite. Noite auspiciosa e única. Naquele instante, candidamente uma estrela cadente desprendeu-se do céu: – Cândida! O nome veio à sua mente. Sim, a Menina de tranças chama-se Cândida. Não sabia o que a estrela tinha a ver com o fato, ou se era apenas coincidência, mas o certo é que os astros vieram-lhe em socorro, mais uma vez. Espalmou a mão na própria testa, como que se punindo pela falta de primazia da memória. Ao tempo em que retornava ao recinto do salão, tendo o nome dela já na ponta da língua. – Cândida! Repetia para si mesmo, enquanto olhava em vão, procurando-a em meio a toda aquela gentalha.
Cândida tinha desaparecido. Como apareceu, tinha sumido como uma estrela cadente deslocando-se no céu. Sentiu uma sensação de vazio e de perda, embora imaginasse que aquele sumiço momentâneo seria uma estratégia para que outro cavalheiro não a convidasse a dançar; bem possível que fosse... Pensando assim, sentiu-se aliviado. Eventualmente as damas recolhiam-se para retocar a Os olhos do Jacaió maquiagem ou borrifarem-se de perfume, ou mesmo ajeitarem o absorvente. Tomara que fosse um desses o caso dela. E torcia pela sua volta o quanto antes. Surpreendeu-se, correto nos pensamentos. Cândida retornou procurando-o entre os outros cavalheiros V e ele se adiantou e convido-a para dançar, antes que outro o fizesse. Em tempo passou-lhe o braço pela cintura e sussurrou- 150 lhe no ouvido o nome: – Cândida! Esse é o seu nome. Ela sorriu, expondo certo sentimento que lhe pareceu confortante. A música lenta ocupava os espaços do salão como que lhes entrasse alma adentro, tal seus corpos embrenhando- se um no outro. Tomou-a para si, como um troféu do qual não pretendia mais largar. Cândida suspirou profundo deixando-se envolver. A fragrância do perfume misturando-se ao odor do cio do ambiente. Entregava-se aos braços dele como quem sonhasse muito com aquele momento. E pôs-se a deslizar altaneira pelo salão, muito pouco se importando com o olhar crivo dos presentes. O vestido de cetim cedia à força das coxas dele fazendo uma avenida em seus côncavos, agora cheios de malícias; ele aninhava- se ali, como dono seu.
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