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os olhos do jacaio18

Published by Paroberto, 2019-07-29 18:50:13

Description: os olhos do jacaio18

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Amanhecia e o sol refletia nas turbinas dos aviões uma tênue luz Jairo Ferreira Machado triste, fugidia, para o mesmo rumo de sempre: o continente europeu. U Longe, no infinito, iam também os sentimentos de Edu que 201 diziam: “Bem que eu podia ter a coragem de Foice Pequena e fugir desse lugar inóspito para os braços de Lúcia”. Tudo que almejava era sobreviver àquele momento, para estar novamente com ela... Dias e meses de penúria, torcendo que a guerra logo acabasse para cair novamente nos braços de seu amor. Bastava Lúcia o esperar mais um pouco, e voltaria, cheio de esperança. Difícil mesmo era sobreviver à umidade e frieza da caverna, e aquela imensa ociosidade que as circunstâncias assim exigiam, sem nada a fazer, com o pensamento vagando à toa. Pior ainda era aquele cruel sentimento que não lhe saía do coração. O cinema adiado; sabe-se lá até quando... Onde estaria Lúcia naquele momento, perguntava-se? Quem dera uma noite nos braços dela. O tempo se eternizava, perpetuava-se de tal maneira que os dias pareciam se amontoar como se fossem vários dias num só, várias noites numa só. Aborrecia-se ver tudo na mesmice como um vôo de pássaro na enorme extensão do céu anil, quando eventualmente punha a cabeça fora da caverna, ou ouvia um enjoado chiado de grilo ali por perto. Quando não, era o farfalhar contínuo de um galho enroscando- se ao outro, empurrados pela força do vento lá fora, enquanto no interior da caverna perpetrava um mormaço insuportável, que às vezes pensavam que logo estariam mortos. E mais o entardecer que parecia eterno, consumindo aos poucos sua esperança. E mais ainda a aragem da noite que chegava invadindo o recinto da caverna, driblando os arbustos, trazendo de longe a friagem e o uivo de um lobo no cio.

Os olhos do JacaióNesse momento, Edu se lembrava de Tami; embora seu coração reclamasse mesmo a ausência de Lúcia. Talvez, uma única noite com ela. Como não tinha lanterna e tampouco podia fazer fogueira para alumiar e aquecer o recinto da caverna quando anoitecia, fechava os olhos e suas mãos iam acariciando o vão do escuro, procurando, em vão, por Lúcia. Uma noite daquelas encontrou foi Rói Osso, soluçando baixinho, e o puxou para os seus braços. E o acalentou. Não estava de todo, órfão, e muito menos da liberdade de pensamento UV V 202

Aguerra pusera-os no mesmo saco, no mesmo balaio: como Jairo Ferreira Machado milho, amendoim, feijão, fava, arroz e intenção. Na mesma U toca, como bichos do mato. Sem levar em conta separadamente os valores e os sentimentos de cada um deles ali, e dos que 203 estavam indo para a guerra, para lá morrer. Talvez, de todos que fossem, alguns estivessem preparados para matar, para morrer, se preciso fosse, quem sabe até concordando que era por uma causa justa. Foice Pequena tinha razão, ao evadir-se cedo. Estava longe àquelas horas. A esperada escassez da guerra não demorou a chegar ao esconderijo. A falta de alimentos, de vestuário, de produtos de primeira necessidade era um acontecimento corriqueiro, tanto ali, como nos países onde acontecia, de fato, a guerra. Também ali, pois quem os abastecia até então, também vinha passando necessidades. Somente certas nações e regiões que não tomavam parte na guerra é que usufruíam vantajosamente com as perdas de quem estava nela. Os fabricantes de armamentos, fuzis, balas, canhões, aviões, roupas e calçados especiais para os combatentes, os produtores de alimentos industrializados, a tecnologia de ponta tudo e todos agora, voltados para a ciência do morticínio e do enriquecimento próprio de quem o vendia. Assim, quanto mais pessoas uma arma ou uma bomba matasse, mais rico se tornaria o fabricante.

E os dias ali ficando cada vez mais difíceis. Passaram-se meses e as provisões foram se escasseando, vez que os alimentos que deveriam ser colocados em pontos estratégicos da “serra”, à distância da “pedra do urubu”, para que fossem recolhidos por eles, quando pudessem, já vinham faltando. Isso, causava inquietações ao grupo, obrigando-os a se virarem e procurarem alimentos – raízes, frutos, caças – em outras estâncias o que os colocava em risco de serem descobertos fora do Os olhos do Jacaió esconderijo num dia daqueles. Um bilhete em letra de forma, sem assinatura, falava dos últimos acontecimentos e da própria necessidade deles nos trabalhos das lavouras – a razão principal da falta de recurso das famílias que deveriam sustentá-los enquanto permanecessem V ali, na “pedra do urubu”. Embora fosse aquele apenas um acordo formal, na guerra, 204 é cada um por si. Não se pode dizer: “e Deus por todos”. Deus, bem provável, não colocasse ali suas bênçãos. De que lado estaria Deus?... Ainda que nem todos tivessem a ordem da família para fugir do compromisso patriótico, agora, todos eram uma só família. E se apiedavam um do outro, conforme as posses de cada um. UV

Era noite e a lua alumiava distante a sua boniteza. Edu Jairo Ferreira Machado lembrava a influência da lua no primeiro encontro com U Lúcia, lá no sítio, quando a beijou pela primeira vez. Agora, novamente a lua vinha falar ao seu coração, pedindo que ele, 205 Edu, fosse encontrá-la. E decidiu ir ao encontro dela, mesmo que para isso corresse riscos, tanto na ida quanto na volta. Claro, na volta, isso se não fosse preso e mandado para a guerra e sem querer, deixaria os companheiros à deriva, pois o exército ia querer saber onde ele estava. Logo faria o trajeto com muito cuidado, vencendo o matagal, desviando-se dos caminhos habituais onde circulava o povo da região, de preferência, seguindo por trilhas paralelas, dentro das matas, indo pelo rumo. Haveria, no entanto, de cuidar-se das armadilhas da natureza. A todo momento, um tombo, uma cobra, um buraco, um abismo. Rói Osso, de tanto o escutar e observar, já lhe adivinhava os pensamentos, e não gostava nada daquele silêncio, quase fúnebre, do companheiro e amigo inseparável. Assim, não lhe tirava os olhos, avocando para isso a atenção também dos demais ali presentes, já calculando que Edu podia colocá-los em risco, caso fosse apanhado ou seguido até o esconderijo onde estavam. E então, todos seriam presos. E em tempo, mandados para a guerra. Deste modo, pediu aos companheiros para alternarem a vigília; fosse preciso amarrariam Edu no tronco de uma árvore

Os olhos do Jacaióqualquer ou talvez o peasse dentro da caverna, até que lhe passasse o cio e se desfizesse daquela ideia maluca na cabeça. Rói Osso adivinhava-lhe os pensamentos. Tinhoso e apaixonado como estava, Edu era capaz de tudo para estar com Lúcia; aquele ar tristonho, de alguma forma, os preocupava. Melhor não mais pedir que ele lhe contasse as façanhas amorosas, como de praxe, que o assunto recairia sempre no mesmo nome – Lúcia – e isto o deixava mais triste ainda. UV V 206

Corria por ali próximo aonde se encontravam um límpido Jairo Ferreira Machado riacho, as águas esquivando-se em meio a vegetação, U driblando as rochas e os pedregulhos em chorados tombos, como mechas líquidas se enovelando umas sobre as outras. 207 O ruído, às vezes como um cintilar de brincos, outras vezes ruidosos quando o riacho despencava-se dos lugares mais altos. Os pássaros vinham beber e se banharem nas poças como que formadas de propósito, para que os refugiados se banhassem também. Um salutar presente da natureza. Nadavam ali pequenas espécies de peixes refletindo as cores na réstia de uma claridade do sol que transpunha os arbustos, cintilantes, brincalhões, parecendo os olhos de Lúcia, que vinham e desapareciam, no labirinto das águas. Edu perguntava-se, sem tirar os olhos do riacho, ouvindo o coração: onde andaria Lúcia? Pelos arredores da “pedra do urubu”, agora os bichos eram vítimas das armadilhas montadas pelo grupo. Desde que se convenceram de que ou caçavam ou morriam de fome. Era uma questão de sobrevivência. E a contragosto, Edu os aprisionava e os sacrificava, assando- os em seguida no braseiro que agora formavam no interior da caverna, cuidando, no entanto, de não formarem muita fumaça, de modo não serem notados. Rói Osso, mais do que nunca, se sentia um pecador, razão por que se benzia antes da comida, agradecendo, de estômago e de coração, aquela caça. A fome era maior que o pesar.

Os olhos do JacaióE para ratificar o sentido do apelido, roía até as sobras dos ossos que os outros deixavam. Comia e em seguida lia a bíblia e orava. A lua, as lembranças de Lúcia, o cio e mais o caos a cada momento pior, punha Edu cada vez mais na ponta dos pés, a cabeça longe, pensando em socorrer o grupo, mas muito mais com saudades de Lúcia, como um lobo no cio. Os aviões iam e voltavam, devagar, cintilantes, formando um caminho de estrelas no céu. Podia imaginar também os navios de guerra, seguindo o mesmo caminho, através das águas e dentro os Pracinhas, tão desiludidos e tristes quanto eles ali. Decidido, Edu aproveitou o descuido dos colegas e partiu naquela noite, quando todos já dormiam, levando a tiracolo um V embornal com sobras de ossos. Precavido, sabendo que podia 208 ser atacado por algum cão bravio e aqueles ossos o acalentaria, enquanto dava no pé ou apanhasse dali o que precisava. Decerto encontraria alguma provisão pelos caminhos: frutas, folhas, tubérculos ou alguma carne-de-sol da dispensa de algum morador da região, pelas circunvizinhanças onde passaria. Na cidade, poderia surrupiar das janelas os pães recém saídos das fornalhas e ali colocados para os clientes habituais. Isto, naturalmente, depois de sondar a casa e o quarto de Lúcia, às escondidas, antes de amanhecer. Precisava antes chegar à cidade sem ser visto. Esse era o grande desafio. Um descuido e viraria de imediato, um desertor que faltou a obrigação pátria, logo, seria preso. Precisava somente que Lúcia abrisse-lhe a janela. Atroz dúvida! Poderia estar indo direto para o holocausto, sozinho, já que jurara pra si mesmo: nunca trairia os amigos refugiados.

O tempo faz estragos no coração, quando os sentimentos não Jairo Ferreira Machado são alimentados com pequenos goles de afeto, beijos e carícias. U Lúcia era muito bonita e decerto ele, Edu – além da ausência 209 e falta de notícias – teria de se superar os demais rivais. Ainda mais que era um caipira e estava em desvantagem no amor, perdendo campo para os ladinos. Sabia que à distância onde agora se escondia e mais grave carregando a culpa de desertor, nada acrescentava àquele sentimento que apenas começava. Acrescia-se a isso ainda a sua natureza rústica: tinha as mãos calejadas, a pele queimada de sol, a timidez, que nenhuma moça da cidade aturava. Lúcia era uma jovem prendada e muito sensual e não esquecia aquele dia, lá no sítio, aquele toque de mãos, fazendo, pela primeira vez, o seu coração disparar no peito. Quando Rói Osso, naquele início de noite, olhou ao redor, Edu já estava longe – lobo no cio. Os pássaros, anus, jacus, almas de gato, pegos de surpresa, espantavam-se voando dos seus esconderijos, como atacados por um bicho qualquer. Era ele, Edu, rebentando cipó no peito, alucinado de saudade. Os cães latiam, quando ele passava por perto das moradas. Contudo, as pessoas habituadas aos bichos do mato rondando por perto, não iam se importar com mais um “bicho”, àquelas horas da noite, ou fosse já madrugada... Lúcia, provavelmente, ao abrir a janela – se realmente o fizesse – não o reconheceria, tão maltrapilho estava. Antes, talvez aprontasse uma gritaria dos infernos, fechando a janela na sua cara. E decerto, logo viriam os pais dela, a vizinhança toda, e chamariam a polícia, o exército, e num piscar de olhos, estaria encarcerado. E no dia seguinte, a caminho da guerra, com

conselhos de ser mandado para o batalhão da frente, ou servir de bucha de canhão... Era possível que nunca mais visse Lúcia. Logo, estaria fatalmente fora de combate; sem dar um tiro! Mas a morrer na guerra, como era comum o pracinha morrer, morreria tentando uma sorte melhor; acostumado à lida, nos tempos difíceis de roça, um desafio a mais, não iria desmerecê- lo em nada; ao contrário. Os olhos do Jacaió O cão latiu no quintal da casa de Lúcia quando o relógio da matriz badalava quatro horas da madrugada. Antes que ele latisse a segunda vez, Edu jogou para dentro do muro uma porção de ossos que levava na sacola, e logo o cão aquietou- se, roendo os ossos. V Roí Osso, nesse momento, estaria debruçado sobre um salmo, lendo a bíblia, desejando-lhe melhor sorte. Naquela noite, 210 no esconderijo, na “pedra do urubu”, é provável que ninguém dormisse. Ou melhor, tinham saído dali para dormir no mato, com medo de serem surpreendidos, caso Edu fosse preso. O grupo estava fraquejando, no número de refugiados, na fé, e na saúde física e emocional. Primeiro desertara-se o doido do amigo Foice Pequena, que ninguém sabia-lhe o paradeiro. Em seguida, escafedeu- se, como bacurau na noite, o apaixonado Edu. E isto, de certa maneira, afetava a moral do grupo, já um pouco abalada pelas circunstâncias do momento. Sabe-se lá se Edu voltaria daquela aventura, ou se naquela hora já se encontrava preso, coagido na moral, na mente, os guardas fazendo tudo para que ele delatasse seus companheiros. E logo viriam os soldadescos, com seus mosquetões, levar o bando inteiro para o xilindró.

Uma vez ali, Edu sussurrou o nome de Maria Lúcia entre Jairo Ferreira Machado as frestas da persiana, mas pouco adiantou. Lúcia dormia num U profundo pesadelo. Repetiu mais alto o nome dela, desta feita sussurrando mais junto da janela 211 – Lúcia... Lúcia virou-se sob os lençóis e logo os sentidos identificaram aquela voz, sussurrante. Sentou-se rapidamente na cama, ainda sob o efeito do pesadelo daquele momento. Levou a mão ao coração e ele estava a todo o galope. Havia um homem lá fora chamando pelo seu nome, e era uma voz conhecida, carregada de sofrimentos. A voz cansada e rouca novamente entrou por sua janela. Agora, já mais desperta do pesadelo. – Lucinha – assim ele a chamou quando se conheceram lá no sítio – Sou eu, Edu. Abra a janela! Preciso de ajuda. A janela dava para os fundos do quintal, onde agora o cão roía, de fato, o osso. O muro da casa não era tão alto que não pudesse escalá-lo, como bem o fez, como um gato no cio, depois da certeza do entretenimento do cão. Lúcia levou uma das mãos ao trinco, abafando o barulho com a outra, modo ninguém ouvir a janela se abrindo. Assustada, esperava ver o moço bonito daquele dia do lual, lá na roça. Ou o mesmo do piquenique à beira do rio. E tudo que viu foi um olhar de lágrimas vindo de um trapo humano. Assustou-se mais ainda e levou a mão ao coração, preocupada! Mas antes que dissesse alguma coisa, Edu já tinha pulado para dentro do quarto, feito um gato do mato. E agora, estava sentado em sua cama, tremendo da cabeça aos pés. Tremiam os dois. Ele, de frio e fome, mas muito mais de emoção; a emoção, que superava todos os outros sentimentos.

Tinha a pele e as vestes rasgadas dos arranha-gatos, das malícias, braços e pernas cheios de hematomas, e medo de que ela não abrisse a janela, ou que lá, em sua cama, houvesse outro homem. Ou o pai dela esperando-lo de arma engatilhada. Lúcia tremia tanto de medo quanto de susto. A claridade que penetrava o quarto vinha da luz de um poste próximo de sua janela; não era tão inocente de acender as luzes de dentro. As mãos dele estavam frias, geladas, quando tocaram as suas. Mas não o seu coração. Ela apostava que não. Ao tempo Os olhos do Jacaió em que ela era uma pira, com todos os efeitos das emoções correndo ao mesmo tempo pelo seu sangue: o medo, a tristeza de vê-lo daquele jeito, a raiva da guerra e a felicidade de ele estar vivo. Tremia, angustiada. Salvava-lhe a tranca da porta do quarto V por dentro, e mais ainda o pai –maquinista de trem – que viajara de 212 véspera. A mãe tomava calmante antes de se deitar, só acordando já com o sol alto. Era o comum. Com irmãos, não precisava se preocupar, era também filha única. Ajudou-o a retirar os trapos molhados e o enfiou sob os cobertores até que esquentasse a água do chuveiro, onde logo entraram – os dois num só – sob o calor da água. Lúcia ensaboou-o, banhou-o, enxugou-o. E acomodou-o novamente sob os cobertores, encostando, amaciando nele a sua total nudez. Ele tinha os olhos rasos d’água. Ameaçou dizer alguma coisa e de imediato ela tocou-lhe os dedos nos lábios, silenciando-o e depois os abriu suavemente com a avidez de sua língua quente. Edu gemeu o júbilo que de dentro de si acordava. Não estava morto, não ainda! Pesarosa, ou mais saudosa que pesarosa, Lúcia permitiu as coxas dele invadirem o meio das suas. Bem vindo o calor

daquelas coxas. Vez que momentos antes ela sonhava com ele – Jairo Ferreira Machado viu-o morto, com a bandeira do Brasil estendida sobre o caixão. U E algumas pessoas por perto, chorando, orando; inclusive ela, Lúcia. E nem tinham feito amor uma vez sequer. 213 Agora, beijavam-se, com a ânsia e avidez de principiantes. De fato, eram iniciantes, no amor. Lúcia queria esquecer aquele pesadelo de antes; Edu estava vivo, muito vivo, ali, em sua cama. Ele, igualmente, queria não lembrar todo o sofrimento daquela noite até chegar a sua casa, na cidade. Logo começou a soluçar, fazendo um pequeno parêntese no beijo, para deixar a emoção sair por sua garganta, como uma bala disparada de um fuzil – já que não podia gritar. Lúcia era o gatilho que tocara a espoleta. Lembrou-se dos companheiros, todos lá, sob a frieza marmórea de uma pedra assentada ao chão pela natureza, como verdadeiros trapos humanos, passando fome, frio, incertezas e necessidades. José Surtido, então, nunca tivera uma namorada – por conta da enormidade daquela sua hérnia – que os moços, para mangar das raparigas – suas pretendentes – diziam ser “aquilo dele” grande demais. Toninho, esse, só pensava em botar o pé na estrada, cidadão do mundo, livre, que nem pássaro de arribação. Parecia que ainda não fora embora, por consideração ao grupo. Foice Pequena era o mais largado, talvez tivesse uma família algum dia, mas não tinha o coração mole, assim como o seu, pensava Edu. Foice Pequena sabia trabalhar suas emoções! Lá fora, o silêncio inusitado da noite. Lúcia acalentou-o como uma mãe abraçada ao filho pródigo. E como amante, beijava-lhe a boca e tudo o mais dele. E como concubina, naquela hora, roçava-lhe os seios nus, noviços,

carregados de tesão – precisava esquecer a imagem dele, imóvel, naquele caixão. O cão lá fora, ainda roendo o osso. O tempo lhes era favorável. Lúcia estava em período infértil, apressou em dizer-lhe, quando ele quis saber da menstruação. E deixou-se seduzir, naquela noite, mil vezes, decididamente carnal, lasciva, esquecendo as horas. Recordava aquele dia, o encontro arrumado pela Prima e que Os olhos do Jacaió não acontecera e o cinema adiado. Ele tinha fugido e ninguém sabia para onde. Mais tarde diziam que ele fugira para a selva e já estaria morto naquelas horas. Veio-lhe o sonho, o pesadelo, e ele no caixão, definitivamente saindo de sua vida, para o sempre. Fora apenas um pesadelo, logo, doava-se inteira de corpo e V alma para ele. Ressuscitava-o com o encanto de seu corpo, com o calor dos hormônios, com a luz de sua alma. 214 Tempo depois, exausto, ele virou-se para o canto e desmaiou. O corpo másculo, suarento, catinguento de mato e gozo. Acordou na manhã seguinte com Lúcia curando-lhe os arranhões da cara, do peito, dos braços e pernas. Ela, que já lhe dera um alento de cio e espírito, abria-lhe a janela do coração. Pensativa, imaginava o quanto ele padecera para chegar ali: pelo amor que ele lhe tinha, jurava que sim. Correu o risco de ser preso – e ainda corria – e mandado para a guerra e se assim sucedesse, por certo, nunca mais o veria vivo, ou quem sabe o visse, mutilado. Senão, morto, como no sonho. Pensava, enquanto uma réstia de sol entrava pela fresta de sua persiana, no exato momento em que a mãe bateu-lhe a porta, dizendo que o café estava na mesa, que iria à casa de uma amiga e voltaria a tempo de fazer o almoço. Que ela fosse fechar a porta, pois não queria levar as chaves.

Lúcia recompôs-se do susto, levantou-se e a acompanhou, Jairo Ferreira Machado como se nada de anormal acontecera naquela noite. Voltou em U seguida, trancou a porta do quarto, despiu-se, abraçou-o com toda a sua nudez, e novamente fizeram amor à exaustão. Naquele 215 momento, mais do que nunca, ela o amou. Era um dia de sábado. Serviu-o de guloseimas que Edu engoliu avidamente e novamente virou-se para o canto, esquecido de tudo. Inclusive que estava na cidade onde era procurado. Não ali, na casa de Lúcia, pois já o consideravam morto, como desertor. Mas, bobeasse e a qualquer momento um batalhão inteiro poderia chegar e iria preso, e por certo ela, Lúcia, também, como transgressora da pátria. Lúcia trancou o quarto, escondeu as chaves, e foi aos afazeres da casa. A varrição dos quartos, da sala, a arrumação da cozinha, abriu janelas, como se tudo estivesse normal, vez que nos fins de semana aquelas atividades eram por sua conta. A mãe cuidava do almoço. Edu soubera disso, antes de pegar novamente no sono, só não lhe era permitido roncar alto, Lúcia brincou. O cão lá fora, deitado à sombra de uma árvore, deveras, empanturrado. Já acabada a empreitada do osso. A sobra, de certeza, enterrara no quintal, em algum lugar de onde mais tarde, com fome, ele desenterraria. Lúcia ligou o rádio; enquanto trabalhava, cuidava de ouvir música, para saber notícias do mundo lá fora e do Brasil. Vez por outra o repórter interrompia a melodia e dava notícias da guerra. Quantos aviões abatidos, quantos navios afundados, quantas mortes, quem perdia a guerra, quem ganhava... mas ganhando, de fato, ninguém estava, concluía cá em seu juízo

Nesses momentos ela encostava os ouvidos ao rádio, interessada em saber notícias dos brasileiros, se mais pracinhas seriam mandados para o exterior, e se o exército convocaria mais outros, amigos seus, para se apresentarem aos quartéis. Por hora, sabia que ele, Edu, estava a salvo, na sua cama, dormindo furtivamente o sono dos deuses; que gozara com ele, também furtivamente, o gozo mais sublime de sua vida. Futuramente, eram outros quinhentos! Os olhos do Jacaió Cuidou de ajudar a mãe a fazer o almoço, feliz, mas sem muito exagerar na afinação, para a mãe não desconfiar. Afinal, tinha um homem dormindo no seu quarto, na sua cama. O que já seria uma bomba das maiores. E ainda mais que aquele era um desertor do exército brasileiro. V Que ela tivesse um paquera, a mamãe sabia, mas o pai renegava, por ser um caipira, como o pai mesmo dissera no dia 216 que a mãe lhe contara do romance, assim, sem pretensão, só para testá-lo e saber se ele aprovaria ou não com o namoro? E o marido fora enfático, dizendo que nunca sua filha casaria com um caipira. Terminado o almoço, a mãe foi deitar-se e Lúcia continuou nos afazeres, na arrumação da cozinha, já de caso pensado. Não demorou muito e Edu batia mais uma suculenta refeição. Depois ela se justificaria, a ração do cão acabara – como de fato acabara – e ela dera o restante do almoço ao cão. O seu cão, de estimação. Não era verdade, mas por outro lado, o cão não passaria fome: já tinha roído muitos ossos. O quarto continuava trancado. A mãe, ao acordar, olhou a porta fechada e desconfiou que Lúcia estivesse na casa de alguma de suas colegas, como de praxe acontecia. E foi à missa da noite. O ruído da chave trancando a porta era tudo que queriam ouvir e Lúcia foi lá

confirmar se estavam a sós e leu o bilhete deixado sobre a pia Jairo Ferreira Machado – fui à missa, depois visitarei a comadre... U Descansado, alimentado, agora sim Edu se esbaldaria daquela 217 sensualidade a toda prova, cuja inspiração dos últimos dias – em pensamento – o levava à loucura, como um lobo uivando o cio, em plena lua cheia. Rói Osso era quem pagava o pato! Foram para debaixo do chuveiro. Agora, era Edu quem a ensaboava deixando maliciosamente suas mãos escorregarem sobre aqueles hirtos seios, como se os lapidasse para sua boca melhor abarcá-los, os mamilos, naturalmente, esses, de tão eretos, exibiam-se pingando os últimos fluidos da água caída do chuveiro. Lucinha fechou os olhos, excitada aos limites, pondo-se a mercê dele, lembrando quantas vezes o quisera ali. Tinha feito planos para aquela noite, depois do cinema, mas em vez disso viera-lhe a notícia: Edu se evadira sem rumo certo. Mas agora, ele estava ali, inteiro, só para ela. Demorou a acreditar que fosse verdade. E já que era verdade, usufruiria de corpo e alma daquele momento. Podia ser o único da sua vida com ele. As horas, os minutos passando tão certos quanto o amante ressurgido da noite. Ele a acariciava. Edu estava vivo, muito vivo, e foi descendo os lábios, agora ele sugava o seu umbiguinho, e mais um pouco o calor da língua dele entrava em seu antro e queria urrar de prazer feito uma loba no cio, mas não podia. As paredes tinham ouvidos. Logo já era o falo dele, bruto, intumescido, dentro de si, e ele queria urrar igualmente, feito um lobo no cio, mas Lúcia cerrou-lhe os lábios. Seria o fim dos dois e daquele romance

inacabado. Edu um amante, ou se não era, podia ser um dia, caso, ela, Lúcia não fosse sua mulher. E por certo não seria. Considerando os últimos acontecimentos. Assim, buscou o gozo mil vezes e mil vezes encontrou, no silêncio do seu corpo, com sua alma gritando de prazer. Edu estava ali, ao menos por enquanto... Acariciou-lhe o peito cheio de cicatrizes de arranhões de matos pela última vez, depois que ele veio para a cama e dormiu. Os olhos do Jacaió Enquanto isso recolhia algumas sobras num saco para que ele levasse; só não podia ir junto, embora a vontade fosse de se enfiar dentro do saco e cair no mato junto. O crepúsculo descia o seu manto de escuridão quando Edu pulou de volta a janela e o muro de arrimo do quintal. Não antes de V jurar que voltaria. E se enfiou no matagal, pelos fundos da cidade – feito bicho do mato – levando no saco sobras de mantimentos. 218 Oferta da família Lucinha. Exausta, Lucinha deitou-se no lugar onde ele se deitara, para usufruir mais um pouco do calor dele. E chorou. Talvez fosse aquela a última vez, e em seguida, cansada, dormiu. Acordou com sua mãe batendo-lhe à porta, querendo saber se estava doente... Estava apenas exausta. E disse que logo levantaria para o lanche da noite. UV

Edu já estaria longe. Jairo Ferreira Machado Andaria a noite inteira com seu arrojo e riscos antes de U alcançar novamente a “pedra do urubu”. Naturalmente, abatido pelo excesso da orgia, porém mais alimentado que antes, levando 219 na lembrança a beleza física e a fragrância inusitada de Lucinha em seu corpo, em suas roupas, em sua alma. Mas os detalhes do que aconteceu naquele quarto, ele jamais contaria ao amigo Rói Osso, pois era capaz de o coitado se matar de amargura. Alem do que, Lucinha não era como Tami; era moça para se ter com ela um bom casamento. E oxalá, filhos... Levava no pensamento aquela incomparável biometria e mistérios próprios. Somente seus olhos e mãos a tinham tocado e mais nenhum outro homem haveria de conhecê-la tão bem, pensava, sem crer muito nesse privilégio. Lucinha não era mulher para ficar solteira, seria um desperdício – quase um desdouro – toda aquela sensualidade e energia física, perdendo-se, ou pior, nas mãos de qualquer um. Pensava enquanto andava a passos largos, já com a madrugada vindo. Nas costas o alimento e o cansaço. Amanhecia quando o agudo de um assobio invadiu as profundezas da caverna. Era o sinal entre eles, que se qualquer outra pessoa daquelas bandas ouvisse, confundiria com o assovio do Saci-Pererê – o facínora tinha mania de assoviar para assustar quem estivesse por ali à noite.

Foi um único riso de satisfação. Era Edu. Trazendo o semblante cansado, mas alegre, a sacola carregada de provimentos. Na volta, demorara um pouco mais no trajeto, em razão do peso que carregava e por que vez em quando se desviava da trilha, com o propósito de que ninguém o perseguisse. Porém, se o perseguissem, por mais experiente que fosse o rastreador, perder-se-ia no meio daquela mata, para o sempre. Por mais doido e truculento que fosse o indivíduo – Os olhos do Jacaió algum representante da lei, por exemplo –, não se meteria a transitar por lá, nos vestígios da trilha que ele deixava para trás, com os aclives, os declives, o matagal, as rochas a serem escaladas. E os riscos iminentes de um acidente fatal. Aí sim, o indivíduo estaria no bico do urubu, pois nenhum outro se V encorajaria em procurá-lo. Exausto, Edu jogou-se de corpo e alma ao lado das labaredas 220 formadas no chão da caverna e dormiu. Na realidade, desmaiou. Rói Osso, nem sequer o interpelou sobre as novidades. Mas orava, como que agradecido da chegada do companheiro de refúgio, com a aparência de bom estado de saúde. Toninho logo se interessou pelas vestimentas recém- chegadas, presentes de Lucinha. No íntimo, arrependido de não ter ido junto, ainda que fosse mais atrapalhar que ajudar. Só mesmo a força do amor faria alguém cometer aquela loucura. Edu dormiu como se morto estivesse, respirando suave, como nem tivesse forças para tragar todo o oxigênio que seu corpo precisava. Vez em quando descontraía a face, num ligeiro sorriso, como que sonhasse com Lucinha, com aqueles lábios pedintes de mais beijos, de mais alguns minutos com ele.

Só não podia sonhar alto, para os demais não ficarem Jairo Ferreira Machado U sabendo os detalhes do que se passara naquele quarto. Toda a luxúria e a intensidade daqueles momentos. 221 Horas depois já dava as notícias. Muita gente morria naquela insana guerra. Muitos aviões eram derrubados, tinham afundado um navio carregado com pracinhas brasileiros. O exército ainda cumpria ordens de alistar combatentes – mesmo quem não treinamento – para o caso de precisarem de novos Pracinhas. Haja vista a grande perda de soldados, por doença, acidentes, tiros e mortes. Morrera, em combate, um filho do município. E o pai, orgulhoso, dissera que podiam vir buscar o seu outro filho mais novo, para também seguir para guerra, intuído pela emoção do patriotismo. Os trens andavam abarrotados de gente, soldados, provisões e armamentos, numa agitação sem fim. Notícias desencontradas – o Eixo dava uma versão da guerra, os Aliados, outra. Cada qual buscando para si a simpatia da opinião pública. Cá, do outro lado mundo, faltavam jovens nas frentes de trabalho das lavouras, nas cidades e também nos colégios, porque muitos ainda nem tinham chegado à Universidade. Irmãos de mais idade iam para a guerra e os mais novos assumiam os seus afazeres em casa, na roça, no plantio, nas colheitas e, com isso diminuíam a frequência nas salas de aula e os recursos da lavoura. Perplexos, os companheiros ouviam Edu contar o que Lúcia contara – que por sua vez ouvira no rádio – naquele único dia em que ele estivera em seu quarto. De certa maneira, sentiam-se inúteis – quando quase o mundo inteiro vivenciava um momento de intensa comoção

social, pelas perdas humanas e territoriais. Mesmo quem não estava diretamente ligado à guerra, estava ali enfurnado naquele lugar e até dias antes, dependiam da ajuda de poucos que sabiam do esconderijo. O rádio noticiava a guerra de meia em meia hora. E em outros momentos, em regime de urgência, quando o acontecimento daquela hora requeria mais urgência. O mundo precisava de informação sobre essa dramática novela interminável, já indo Os olhos do Jacaió para o seu quarto ano de extermínio humano. Até então, cada dirigente das nações envolvidas tinha sua razão pessoal e territorial e a conivência de outros políticos para a guerra e a carnificina que acontecia. Pensavam mais nas vantagens políticas e pessoais da conquista do que nos V homens, esta maioria jovem inexperiente, que morria em função destes atos bárbaros. 222 Assim, pensavam em escapar da convocação, sobrevivendo àqueles momentos difíceis, embora representasse uma atitude covarde, mas morrer cedo não fazia parte dos planos de ninguém ali, mesmo que fossem chamados de desertores da pátria. Teria sido melhor que nunca ficassem sabendo o que acontecia lá fora; não se sentiriam tão irresponsáveis, não atenderem aos chamados da pátria. Mais cedo ou mais tarde – tomara que fosse mais cedo – deveriam encarar a situação, voltando para casa e se apresentando à convocação do exército, com as perdas e danos em virtude da deserção. Talvez não fossem punidos, mas já estavam pagando os próprios pecados. Se é que fugir de uma guerra brutal fosse mesmo pecado. Os aviões continuavam passando nos céus, indo e voltando, dia e noite. Distante, entre dois morros, passava o trem de ferro

cortando a planície das vargens, e logo adiante o maquinista Jairo Ferreira Machado puxava o apito, num silvo triste, longo, cortando os seus corações. U Quem o trem levava? E para onde? Quem o trem trazia... 223 Sabiam, somente, que o trem levava gêneros alimentícios, armamentos, gente, uma moça bonita olhando da janela, com os olhos rasos d”água, abanando a mão, um soldado com o olhar perdido na imensidão... Tinha embarcado na estação de Recreio, para um destino desconhecido... Foram dias de muita tensão. Lembravam os tantos outros irmãos que a guerra já matara e receosos de terem a mesma sina, adiavam o momento de deixarem a “pedra do urubu”. Ainda que ali houvesse uma inimiga ferrenha chamada fome. Em sã consciência, não encontravam nenhuma justificava para lutar e/ou matar semelhantes, mesmo que esses fossem um estrangeiro. Eram gente como eles, mandado por dirigentes inescrupulosos. Haviam nascido ali, no campo ou na cidade pequena, conheciam uns aos outros, uns até freqüentavam juntos as cadeiras escolares. Ninguém estava preparado para o sacrifício. Viviam em sua simplicidade pelos quintais de suas casas, pelos currais, pelos terreiros, e de noite ouviam as mães lerem a bíblia, rezar, pedindo pela saúde de todos e pela paz mundial. Todos, de alguma forma, tinham a sua religião a sua fé. Arma mesmo, até então, só o estilingue, assim mesmo às escondidas. Tinham razões de sobra para entenderem que a vida era somente isso: brincadeira, trabalho, liberdade, natureza e amor uns aos outros, como base de tudo. Quem teria inventado essa tal de guerra? Ares, o deus grego sanguinário, agressivo, que personificava a natureza brutal da guerra, alimentando sua alma com os horrores da luta armada? Quem diria que não?

Era bem possível que Ares, naquele momento comandasse as forças do mal, ao lado de Hitler, Mussolini e Hirohito, contra o amor, contra a boa fé, contra a paz mundial... E contra ele, o próprio Edu. Contra as vontades de Lucinha. E não se sabia até quando lutariam. Quantos deveriam morrer, até que alguém levantasse a bandeira branca da paz e se desse por vencido. Quantos jovens estariam como eles, foragidos, enfurnados em outros lugares, tentando escapar daquela mortandade ilógica, Os olhos do Jacaió já com precedentes nefastos – a primeira guerra mundial. O que sabiam, é que dali a pouco, não teriam mais alimentos e nem forças para chegar às suas casas, à cidade, de onde tinham saído às pressas. Já estavam entojados de comer inhame, taioba, cará, broto V de palmito, maxixe, mandioca, ramas disso, ramas daquilo, ou mesmo nada – como bichos do mato, em tempo de escassez. Só 224 vez em quando alguma caça. Embora vivessem os conflitos da matança, mas o alimento era bem-vindo. Aquela cobra que não voltasse ali novamente, que dessa vez, acabaria no braseiro. Castanhas, colhidas dos confins da selva, era o sustento habitual, quando aproveitavam para montar lá armadilhas para os bichos que também vinham comer delas à noite. Certa vez Rói Osso se intoxicara e vomitara quase as tripas. Salvou-lhe o chá da casca do para - tudo, que ele mesmo, Rói Osso, aprendera a fazer com a mãe, que sabia alguma coisa de erva medicinal. Muitas vezes já tinha se curado com isso. Edu sentia-se como o pai de todos. Precisando resolver muito dos problemas surgidos entre eles, inclusive as diferenças pessoais e as discussões por coisas banais, pois andavam com os nervos à flor da pele, como filhotes de hienas, no mesmo ninho, querendo espaço!

Discutiam, brigavam entre si, por comida. O mais grave era a Jairo Ferreira Machado enormidade do tempo, a ociosidade, o pequeno espaço dentro da U gruta, a escuridão, e a falta de perspectiva do fim da guerra e da volta pra casa; mesmo que sem honras. 225 No fundo sabiam: quem voltasse vivo da guerra iria às glorias, ao menos por uns tempos, antes de caírem no esquecimento do povo, ou morrerem de tédio ou de depressão – cada um procurando dentro de si uma explicação lógica para o que fizera. E se tinham mesmo a obrigação de fazer o que fizera, trazendo sempre o peso na consciência. Por outro lado, se perguntando se um dia eles seriam perdoados pelas suas decisões impatrióticas; mesmo sabendo que o principal motivo de o Brasil entrar na guerra, foi a morte de irmãos da pátria. E para isso a necessidade do revide, naquele momento. Sem esquecer, naturalmente, que era a segunda guerra mundial – o mundo inteiro, ou quase, estava em guerra... Edu sentia saudades de Lucinha, mas temia pelo resultado de visitá-la novamente, expondo-se, expondo-a e a todos aos riscos de serem pegos e caçados como bicho do mato. O seu coração pedia, mas o senso dizia não. Dividido! As cidades, os quartéis continuavam em alerta. E se alguém soubesse que Lúcia dera guarida a um desertor, por certo, a família toda dela pagaria o pato; desonrada! Por conta da traição. Lúcia não medira esforços em ajudá-lo, inclusive pegando roupas em desuso do pai, que mais tarde diria ter presenteado a um pobre pedinte; o que era comum! A sorte talvez não estivesse ao seu lado, nas próximas vezes que voltasse lá, pensava Edu, embora a saudade dela, daquele corpinho abrasador, fosse enorme. UV

Os olhos do JacaióNas andanças por ali à procura de alimento Edu pensava no pássaro jacaió – lá no galho do cajueiro – onde iniciara sua vida sexual com Tami; parecia, onde quer que fosse, lembraria o pássaro, indefeso e sozinho; sozinho sim, indefeso, talvez... A consciência crucificando-lo pelo promíscuo passado, muito diferente dos sentimentos de agora, tendo o amor como direção de sua vida. O jacaió testemunhara os momentos de sua mais impura V devassidão com Tami. Um olho no céu, numa presa passando por 226 ali, outro lá embaixo na sombra do cajueiro. Lágrimas fluíam pelos seus olhos, embora não se permitisse fraquejar frente aos demais – Edu chorava para si mesmo, em profundo silêncio. Não queria melindrar os companheiros, já bastante injuriados daqueles longos dias de penúria e confinamento. Dentro da caverna, ao menos podiam dividir entre si o calor humano e de um fogo brando cozinhando os alimentos conseguidos nos arredores. Dividiam, em pensamento, a fome de uma mesa farta ou de simplesmente um prato de arroz com feijão e um pedaço de carne e uma bênção, num almoço de domingo. Dividam a saudade da família, dos colegas, dos companheiros de lida, dos irmãos, das irmãs e das conversas, enquanto sentados em volta do terreiro, sob o luar, ou mesmo brincando de contar as estrelas, quando ainda meninos, e de muito mais outros momentos vividos.

Onde estaria Foice Pequena, naquele momento? Edu Jairo Ferreira Machado perguntava-se. U Teria o companheiro alcançado o seu objetivo? Estaria 227 preso ou já morrera na guerra, ou muito antes, fora devorado por onça ou picado de algum animal peçonhento, no meio da selva por onde fugira? Não tinha respostas para nada. Aos poucos iam concluindo que a permanência naquele local se tornara a pior das decisões, ao menos naquela situação de penúria em que viviam no momento. O que seria deles, amanhã, ou mais tarde, quando a guerra acabasse? Depois de saírem dali, fisicamente abalados, desnutridos, doentes mentalmente, moralmente combalidos e mortos psicologicamente, como já se achavam... Não tinham respostas para a maioria das perguntas, ainda que até aquele momento se safassem do pior – ao menos estavam vivos. Mas e os Pracinhas que iam para a guerra, e por lá morriam? E aqueles que decerto voltariam mutilados, inutilizados? E quem voltasse com honras de bom soldado – carregado de medalhas no peito – e que logo depois estaria esquecido das merecidas glórias alcançadas? Logo, a guerra, antes de se tornar mortandade da carne, concluíam, era um acinte à moral humana, aos bons preceitos da humanidade, da paz, da civilidade, da religiosidade e acima de tudo, da espiritualidade. De todo jeito, a guerra deixava uma cicatriz funda no peito de cada homem, indo ele para frente da batalha ou mesmo refugiado ali, na “pedra do urubu” ou noutro confinamento qualquer fora dos quartéis deste mundo. Ainda que tivessem os gorjeios dos

pássaros e usufruindo da fragrância das flores silvestres e se encantando com a beleza da natureza. Em contrapartida, obrigavam-se a se manterem em silêncio, enquanto a barriga cada vez mais reclamava à fome. Gritassem, ainda que fosse de indignação, botando a raiva para fora, ou pelas necessidades de desafogar o peito – uivando feitos lobos no cio – como era o caso de Edu – ainda assim, não estariam livres. E pior, logo seriam descobertos. E os resultados Os olhos do Jacaió disso, já sabiam. Mas o silêncio era como uma camisa de força em volta do peito, impedindo-os de se expandir; ou uma mordaça na boca, prendendo-os, calando-os. Situação, que não era só pior que a guerra... V Das alturas da “pedra do urubu” viam o amarelo ouro dos arrozais maduros em tempo de colheita, sabendo que não 228 estariam presentes para a colheita e a esse evento de grandeza e júbilo; talvez nas colheitas seguintes, no ano seguinte, isto, caso a situação revolvesse favorável. Quando então voltariam ao trabalho, aos livros, às famílias, com dignidade, e mais que isso, aos encontros amorosos, e à vida. Lucinha ainda o esperava... Edu pensava! De todos ali, somente Jose Surtido não tinha uma namorada, por conta do aleijão. E as tantas outras mulheres que ficavam viúvas, antes de se casarem e depois de já casadas, por causa da guerra... A guerra estava em cada moradia, em cada rua, em cada bairro, em cada cidade, em cada estado, em cada país. Poucas nações do mundo não sofriam as mazelas negativas ou falsas positivas da guerra. Negativas pelas perdas financeiras, territoriais, sociais e muito pior, pessoais, sentimentais. Positiva,

para quem se enriquecia financeiramente com ela; nas vendas de Jairo Ferreira Machado armamentos e apetrechos bélicos. Era a segunda guerra mundial e o mundo via-se perplexo diante dos acontecimentos, já orando que a guerra acabasse e a vida voltasse ao normal; ao menos ao que era antes. UV U 229

Os olhos do JacaióR ói Osso sobrevivia dos salmos. Sua bíblia se resumia num trapo, as folhas viradas em orelhas, pois vez em quando, sonolento, ele dormia sobre ela; outras vezes a fazia de travesseiro, mas muitas vezes: de alento para a alma, de sustento para o corpo, pois enquanto lia aquelas páginas, ele esquecia a fome. Por certo, algum outro soldado naquela hora, no campo de batalha, teria como travesseiro o próprio fuzil, ou uma cartucheira de balas, com alguém a ler para ele um salmo, como prece de V despedida – antes de, definitivamente, seu corpo descer a uma 230 trincheira, a uma vala comum, para sempre, enterrado em solo estrangeiro. E de lá viriam as cinzas, em vez do homem. Um enterro simples, simplório, sem glórias, sem as bênçãos ou queixumes de uma mãe ou de algum parente próximo. E mais tarde o rádio anunciaria quantos morreram naquele dia, filho de quem, esposo de quem, de qual cidade, de qual país... Edu pensava, recapitulando-se na difícil infância que tampouco tivera. As brincadeiras que tampouco foram de fato brincadeiras – amanhecia no trabalho e ia dormir já no fio da exaustão; situação, senão igual, parecida com todos que estavam ali: gente trabalhadora e corajosa. Agora, foragidos do exército. Mais recentemente, sua adolescência pecaminosa, que tampouco achava que fosse; apenas dava vazão às necessidades da sua juventude e por acaso Tami surgiu em seu caminho, dando vulto à sua vida.

Rói Osso, aos domingos ia à missa e rezava o Ato de Contrição, Jairo Ferreira Machado a Ave-Maria, o Pai-Nosso. Isso, o colocava em vantagens espirituais U aos demais colegas presentes na “pedra do urubu”; Rói Osso estava definitivamente perdoado. 231 Agora, além de pecadores, desertores, entre outras coisas, eram também ladrões; ladrões de galinha; ladrão barato. Roubavam as lavouras dos sitiantes por perto, de onde recolhiam espigas de milho, aqui, acolá – cuidando de enterrar as palhas, modo o dono do plantio não desconfiar – e as comia assadas. Ou usufruíam de um ou outro alimento dos quintais das casas da região, outras vezes, feito gambás, roubavam galinhas e ovos dos galinheiros, escolhendo sempre os lugares distantes de onde estavam, por que numa hora daquelas podiam levar um tiro e morrer como ladrões, sem honra, e não como ferrabrases combatentes. Edu concluía, divagando. Lúcia estaria triste, se é que não arranjara outro namorado, como devia, considerando sua longa ausência. Desconfiava, em sua baixa-estima! Vez em quando a aragem da noite trazia a fragrância da açucena, nascida e crescida ali às beiras do riacho que a serra sangrava morro abaixo. A bulbosa nascida naquele chão, sem nunca sair do lugar, apenas se cobrindo de uma flor branca e perfumosa, fazia lembrar que ali existia um dom celestial, e que a natureza não se cansava de repeti-lo. Mesmo que antes não houvesse ninguém por perto para dela usufruir, somente as abelhas, os mandarovás, que assim que o sol se abria, vinham desfrutar do néctar que transformavam em mel e mais cedo ou mais tarde ele, Edu, e seus cúmplices, estariam furtando dos ocos dos paus. Onde, sábias abelhas perpetravam

os seus favos. A doçura que os mantinha alimentados naqueles dias. Era somente uma questão de tempo. Como na vida tudo é também uma questão de tempo, naquele momento não tinham muitas opções. O céu era testemunha. A natureza era testemunha. As estrelas eram testemunhas. Era impossível um ser humano sobreviver naquelas condições por mais tempo. Imaginavam a penúria dos índios, vivendo em selvas. Mas não eram índios. Os olhos do Jacaió Os companheiros que ali estavam, todos, eram testemunhas de que tinham feito o máximo para ficar longe da guerra, e para isso, haviam enfrentado outra, de proporções menores, é claro. Tinham se tornado ladrões, senão compartes desertores, párias, perante os familiares, os amigos e à sociedade. E Deus, V manifestado em sua criação – a natureza ao redor e a própria “pedra do urubu” –, também testemunhavam. Os deuses e 232 deusas testemunhavam. UV

Num dia daqueles, durante uma tempestade, um raio partiu ao Jairo Ferreira Machado meio um imponente fedegoso próximo dali fazendo todos U sentirem na própria pele o quanto o céu era soberano, mandão, certeiro, quando queria demonstrar sua força e sua revolta. 233 O chão estremeceu e a pedra que os abrigava também pareceu abalar-se junto, sem se mexer um milímetro do lugar. O relâmpago insinuou sua enorme língua através do recinto da gruta, fazendo rendas fulgentes na escuridão do labirinto, como as línguas de fogo de um dragão. Por instantes ficaram cegos. Como cegos ficariam, se permanecessem longo tempo na escuridão só saindo à noite para caçar e encontrar comida. No mais, era um lusco-fusco sem trégua. Edu bem que desejava sentar-se sobre a rocha, feito o urubu, e olhar distante os arredores, e quem sabe voar para longe dali. Mas não tinha asas, só imaginação. E já não se sentia uma criatura de Deus e tampouco pássaro. Tivesse asas, como aquele urubu, voaria para os braços de Lucinha. Mas não podia. Deus, por certo, tinha outro propósito para ele, e para quem mais estivesse ali na “pedra do urubu”. Só o tempo diria, de que lado estaria Deus, se do lado deles ou dos combatentes da guerra. Pensasse nos soldados, esquecesse o civismo doentio e os dirigentes das nações onde esses soldados tinham nascido, quem seria o inimigo entre os combatentes, entre eles? Edu não encontrava resposta à altura.

Agora, uma vez refugiados, não seria tão fácil como simplesmente voar e desaparecer. Onde quer que fossem, teria de ser com seus próprios pés e braços, fazer suas próprias trilhas e escalar rochas e abismos que houvesse pela frente, com os mesmos sacrifícios de quando para ali foram. Teriam de retornar às suas casas antes que fosse tarde... E de cabeça baixa – vencidos pelas circunstâncias da guerra, pelos conflitos internos e pela fome. A “pedra do urubu”, Os olhos do Jacaió definitivamente, não era lugar de gente morar. Ainda assim aquele era um sofrimento irrisório comparado ao dos patrícios que sofriam na carne a guerra. Muitos morriam de balas no peito, sangrando pela boca, sem tempo de articular o nome do pai, da mãe, da namorada, da esposa e dos filhos, V aquele que já fosse casado e tivesse filhos, pois ainda muito jovens. Mas morriam patriotas. 234 Quanto a eles ali, só o tempo poderia dizer, se mereciam algum dia que alguém contasse suas histórias e seus sofrimentos físico, moral e espiritual. Talvez, só Rói Osso estava preparado, de espírito, para superar as dificuldades encontradas. O que significava o civismo, o patriotismo? O sentido da guerra ainda não se incorporara com o seu nível de compreensão de pátria, de divisas, e da necessidade de defesa dessas. Os pássaros, até onde ele sabia, não respeitavam divisas, batiam asas, subiam as alturas do céu e alcançavam o horizonte, o infinito, o espaço. Numa infinita liberdade. E ainda assim aquele urubu ali adotara a pedra que levara o seu nome, onde se aninhava a cada primavera. Era um patriota? Por certo, nunca sairia dali, mas haveria de, algum momento impor-se aos rivais e opressores. Na natureza, os bichos também fazem sua guerra particular e os mais fracos se omitem de lutar,

já se dando por vencidos antes de começá-la. Era o caso deles, refugiados. Um direito de opção. Mas eram os vencedores os escolhidos pelas fêmeas, na hora da reprodução. O lobo alfa era aquele que caia nas graças da loba. Logo, Lucinha, de certeza, não lhe daria preferência, Edu passou a se preocupar. Rói Osso, José Surtido e Toninho a cada dia se tornavam mais abatidos com a situação. A falta de alimentos, a prisão particular, sem poder ir a lugar nenhum, o viver em tocas, como bichos do mato, a falta de expectativa... A prática do roubo não lhes trazia nenhum prazer, muito ao contrário, somente desgosto. Estavam comendo o que não tinham plantado. Eram trabalhadores braçais e sabiam o quanto era difícil plantar. Somente Rói Osso que morava na cidade, optara por ser bóia-fria, assim, dormia na cidade e amanhecia no campo, no roçado. Agora, todos viviam momentos inusitados em suas vidas. A deserção prematura estava deixando-os de moral-baixa, e de mal com suas próprias consciências. Certo dia, Surtido viera dizer que Rói Osso já não comia o que os outros traziam de alimento e tampouco saía à procura do seu próprio sustento. Permanecia o tempo todo deitado sobre um emaranhado de folhas secas, lendo a bíblia. Como se estivesse em transe ou longe dali, noutros mundos, no seu mundo particular de espiritualidade, esquecido do próprio corpo. Se muito levantava era para fazer as próprias necessidades e buscar água no riacho, e era só disso que vinha vivendo – da água fresca, tomada aos pequenos goles, como se fosse apenas

para molhar os lábios; os lábios que balbuciavam sozinhos, alguma reza. Assim, não demoraria muito e Rói Osso morreria à míngua, ou antes, viraria santo e desmaterializava-se. Rói Osso jamais poderia ter sido convocado para a guerra. Morreria sem dar um tiro. Toninho, esse então, só falava em estrada e caminhão, em sumir por esse mundão afora, numa estrada só de ida. “O melhor daqui, ainda sou eu”, pensou Surtido, ainda que lhe incomodasse a enormidade da hérnia. Ele próprio, Edu, andava no mundo da lua; diziam que logo, logo estaria pirado das ideias. Devia ser por causa daquela moça lá da cidade, diziam. Antes conversava e dava força para todos, mas agora voava no espaço, planava no ar feito o urubu, procurando uma corrente de vento que o levasse para longe – como ele, o urubu, em faro de carniça. Edu, lá a busca de Lucinha. Ninguém mais sabia o que fazer. E muito menos se estavam certos, permanecendo ali, escondidos de uma insana guerra, que não era deles. Edu ouvia atento o reclame dos demais. Ao menos Surtido aprendera muito naqueles dias. O jovem estava, de fato, passando-lhe um senhor sabão. Era herniado sim, mas apenas na bolsa escrotal. UV

Ocrepúsculo trazia de longe um ar frio e já não tinham fósforos Jairo Ferreira Machado para acender o fogo daquela noite e muito menos o que U comer. Logo, tomaram uma decisão, partiriam no dia seguinte, bem cedo, de madrugada. De maneira que ninguém descobrisse 237 onde se encontravam todo aquele tempo. Acordaram cedo, quem dormiu, naturalmente, e partiram. Com lágrimas nos olhos. Haviam se acostumado àquele lugar, aos arbustos, aos bichos. Mas pesavam-lhes por demais as carências, o dolo da decisão anterior e o de partirem, com os riscos que teriam pela frente. Ainda assim, botaram o pé nas trilhas. Pros infernos aquela podridão de vida; eram gente. A guerra não era feita somente de tanques, mosquetões e fuzis, era uma guerra também de efeitos psicológicos que a todos enlouquecia. Até mesmo aqueles que estavam à distância da batalha, do lado de cá do mundo. Agora, o pior fisicamente deles ali, era o melhor da cabeça. José Surtido – o moço do “aquilo grande” – que o povo alardeava, zombando dele. Ele é que dava conselhos e pedia calma a todos. – Vamos enfrentar os homens com dignidade. Brilhava os olhos de contentamento da partida, já pensando que na prisão dos quartéis, ao menos teriam comida. E já tinha enfrentado sua guerra particular, de corpo e de alma. Aprendera muito naqueles dias. No mesmo dia, entregaram-se de corpo, miséria, e trapos ao delegado da cidade. Que imediatamente os encaminhou de

camburão para o terceiro batalhão na cidade próxima, de onde o comandante os enviou à enfermaria, em razão das péssimas condições em que se encontravam. E lá foram presos e medicados. José Surtido permaneceu ali por alguns dias recuperando a saúde física e logo foi dispensado da prestação de serviços. Não servia à pátria, considerando o defeito físico. Nem deveria ter sido convocado. Os olhos do Jacaió Como boi que não serve para a função de puxar carro e é mandado para o açougue, José Surtido, agradeceu, despediu-se dos companheiros e pegou o caminho de casa. Presentemente, era ele, Surtido, quem se via triste com a sumária dispensa dos serviços militares. Riam-lhe na cara. Tanto V sofrimento à toa. Aprendera a conviver com aquele grupo e a gostar daqueles companheiros e voltava ao lugar onde a 238 vida nunca lhe fora benfazeja, em razão das desventuras ali passadas. Deram-lhe apenas o dinheiro da passagem e alguns trocados para o lanche de ida. Levou na mochila o certificado de reservista carimbado – incapaz. – “Burro! Mil vezes, burro”, dizia para si mesmo. Atravessou a rua e caminhou em direção à morada, como João-ninguém. Haveria ainda de subir as escadarias da favela, e chegar a sua casa – um casebre numa pequena favela – sem honras, sem glórias; incapaz! O povo olhando, com olhar de desdém. Poucos com o olhar de compaixão. José Surtido não sabia quanto tempo se passara desde que o exército estivera ali, procurando-o, no dia em que ele evadiu-se pelos fundos da favela e ganhou o mato, sem olhar

para trás. Alguém já lhe falara da tal “pedra do urubu”, de onde Jairo Ferreira Machado estava voltando. U E durante todo aquele tempo fora considerado morto ou 239 foragido. Agora então é que ririam mais ainda dele, concluía lá de sua baixa-estima. Ou mais que isso, talvez o apedrejassem – a sociedade sempre procura um mártir, para apedrejar. A guerra continuaria ali pelas ruas da cidade, pelas favelas; cada pessoa tinha sua opinião formada sobre a deserção. A verdadeira guerra não acabava com sua dispensa do exército. E tampouco com o hasteamento da bandeira branca, pelo inimigo. A guerra tinha feito inimigos em todos os lados do planeta. As pessoas discordavam uma das outras, cada um, querendo que prevalecesse sua opinião. Ainda que aleijado, teria de guerrear. Batalhar pela vida, levando diariamente sua marmita fria debaixo do braço, todos os dias da semana, ganhando o suficiente para não passar fome. Ele e os irmãos menores. UV

Os olhos do JacaióNa enfermaria, Rói Osso era quem mais preocupava aos médicos e enfermeiros. Tinha vários ferimentos pelo corpo, como picadas de aranha, de mosquitos, chupões de morcegos. Seu sangue havia raleado, e estava muito debilitado e anêmico. Das feridas purgavam um líquido malcheiroso, que mesmo que fossem removidas, as bridas ressurgiam piores ainda. Rói Osso estava de fato, muito doente; mas só no corpo. A alma santificada. Por certo em razão daqueles dias de entrega total, não V querendo mais se alimentar e reagir à falta de expectativa, 240 contrariado com a situação dele e dos amigos. Ainda assim, não largava a bíblia, cuja capa já se mostrava um molambo bento, destroçado da lida. Vendo-o daquele jeito, qualquer um diria que ele jamais empunharia um fuzil para matar alguém, antes, primeiro, ajoelhasse, para morrer com a certeza de que assim, puro, ganharia os céus. Edu também se preocupava com Toninho. Toninho não permaneceria ali por muito tempo. Iria por o pé na estrada, no primeiro descuido da guarda. E o exército logo, logo o estaria procurando novamente. Além de desertor, fugitivo, talvez terminasse seus dias preso, nas unhas dos próprios compatriotas. Bastava que recuperasse as forças que aqueles homens de mosquetões nos ombros não teriam mais com quem se incomodar. Esperassem para ver.

Edu pensava e acenava de longe do seu leito, pedindo ao Jairo Ferreira Machado colega que se contivesse nas suas intenções – como se lesse U seus pensamentos. 241 Que ele não fizesse nenhuma bobagem, que o povo já falava que a guerra já se aproximava do fim. Os comandados de Hitler estavam encurralados. O chefe nazista os abandonava nas trincheiras da amargura. Numa daquelas manhãs, Toninho desconfiou – há muito olhava para o leito de Rói Osso e o coitado nem se mexia – então, com dificuldades levantou-se, calçou os chinelos e foi avisar Edu: – Há alguma coisa de errado com o nosso companheiro, ele não se mexe. E de fato havia. Rói Osso falecera naquela madrugada. Mas olhando no seu rosto, tinha-se a quase certeza de que ainda vivia. Ninguém acreditava que morrera de fato; seus olhos ainda tinham o brilho da lua. E os lábios soltos como quem rira para a morte, antes de ela o levar. Talvez até agradecido de morrer naquelas circunstâncias e não numa trincheira, sendo pisoteado por um batalhão de inimigos; homens-moços, enfurecidos, cruéis. Rói Osso morreu silenciosamente, podendo estar rezando a bíblia – em pensamento – ou dedilhando um rosário, e as pérolas, uma a uma iam passando pelos seus dedos, até que perdesse totalmente a força das mãos. De certeza, Rói Osso rira para a morte. Como se essa fosse um anjo, um anjo bom, vestido de branco, correndo para os seus braços. E tivera tempo de rezar um terço para cada um de seus companheiros de fuga, lembrando os momentos difíceis vividos lá na “pedra do urubu”. E também para os familiares. Rezara para a

mãe, que lhe dera a bíblia, e o pai, de quem tinha vaga lembrança, antes de ele partir para o além. Rezara, com mais fervor, por ele, Edu. Gostava de ouvir os relatos do amigo, e rindo, balançava a cabeça, como se achasse aquilo pura loucura ou mesmo, no íntimo, desaprovasse Edu pelos seus atos libertinos. Quando apoderava-se da bíblia e rezava, era como se rezasse para ele, Edu, mudar seu modo de agir, que pudesse deixar esse Os olhos do Jacaió seu mundo de perversão sexual. Toninho notou que a bíblia já não estava nas mãos de Rói Osso, como estivera todos aqueles dias, desde a vinda da “pedra do urubu”. E alertou ao companheiro Edu, que quis saber o paradeiro do símbolo sagrado. V Rói Osso jamais daria aquela bíblia a alguém, que não fosse a um deles ali. 242 Morreria abraçado a ela, se soubesse que ia morrer. Ou então, entregaria a bíblia sagrada a qualquer um dos companheiros ali, para devolvê-la a sua mãe, quando partisse desse mundo. E não a outra pessoa, enfermeira, assistente de enfermagem, médico ou serviçais do ambulatório, conhecidos seus. Como não acontecera assim, pelo visto, alguém lhe tirara das mãos o objeto mais sagrado, enquanto ele dormia. Ou já o sabendo morto! UV

No mesmo instante Edu pediu ao chefe da enfermaria e Jairo Ferreira Machado depois ao cabo, que por sua vez pedisse ao sargento, U ao comandante geral do exército, ao diretor do hospital, que recuperassem a bíblia, o símbolo sagrado de estimação que, 243 aberta ou fechada, todos aqueles dias estava nas mãos do companheiro de deserção, agora já morto. Era dever que a devolvessem à mãe de Rói Osso, no ato da entrega do corpo do filho. Sem as glórias da guerra, mas com as glórias de Deus, pois que Rói Osso deixava um imenso ensinamento de fé, até o último instante de sua vida. Nas semanas seguintes, várias reuniões foram avocadas para discutirem o assunto. E quando Toninho e Edu – os únicos dos refugiados restantes na enfermaria do exército – receberam alta dali direto para a prisão – como era de se esperar – ainda não se sabia o paradeiro da bíblia. Se muito, foi aberto um processo administrativo e alguém se comprometeu a descobrir a verdade. O exército, naquele momento, estava mais interessado no assunto da guerra: quantos morreram, quantos aviões foram abatidos, quantos navios afundados, quantos pracinhas feridos. Qual país perdia, qual ia para as glórias, se tinham cumprido com a obrigação-pátiria ou não... Por que as consequências de suas falhas viriam depois... não tinham dúvida disto. Aquele seria o momento de Toninho, Edu pensava em silêncio. Sem comprometer-se ou tentar removê-lo da ideia da fuga.

No trajeto da estrada – da transferência da Enfermaria para o presídio – Toninho simulou uma dor de barriga e pediu para ir ao sanitário. O camburão parou, mas em vez de ir em direção ao banheiro, evadiu-se pelos fundos do posto de gasolina, fazendo de conta de apressado, mas meteu-se num banhado, depois num matagal, e num mato fechado, para sumir feito veado campeiro corrido de cão; ninguém mais, nunca mais o pegaria. Os olhos do Jacaió Minutos antes Edu tinha lido naqueles olhos, mas nada fez para impedi-lo, pois a liberdade era tudo que Toninho almejava, e a guerra – a guerra que nunca fora dele – já estava por terminar. E uma vez terminada a guerra – desviadas as atenções até aquele momento voltadas para a Europa – os generais viriam para V cima dos desertores, tomar satisfações. Assim, Edu não impôs nenhuma restrição ao companheiro 244 de deserção. Nada podia fazer, senão atender aquele olhar de perdão, e em silêncio, desejá-lo muito boa sorte. O mundo estaria livre para ele. Estava certo. Logo depois Toninho foi-se, levando consigo a paixão pela liberdade. Como se tivesse – em vez de braços e pernas – duas asas, duas patinhas, como aquele urubu, que vez em quando alçava voo de cima da pedra, simplesmente para sentir no ar a sensação de ser livre; quem sabe... UV

Era um dia de domingo. Jairo Ferreira Machado Edu tinha a tristeza no olhar, como os demais jovens que U ali se encontravam no pátio da prisão, também refugiados da convocação para a guerra, aprisionados em outras estâncias, e 245 que se encontravam na mesma situação que ele. Ouviu seu nome pelo alto-falante – tinha visita – e que comparecesse à recepção do quartel. Já se considerando um ex-patriado, sem família, um ex- namorado, se é que Lucinha um dia o tivesse considerado namorado. Quem seria a visita, então? O próprio pai, não seria. Já havia morrido; a mãe, tinha ido por esse mundão afora; nunca mais a viu. Assim, não esperava por ninguém! Mas poderia ser Lucinha, pensou, já afastando de si essa ideia absurda; Lucinha já deveria estar comprometida com outro, não iria se aventurar por um frouxo, desertor. Também podia ser algum parente de Foice Pequena querendo saber notícias dele. Ou então seria José Surtido, o único que podia entrar e sair dali, sem medo de ser trancafiado e levado para a guerra. Sentiu verdadeiro júbilo quando viu José Surtido sorrindo para o seu lado, muito diferente do seu jeito antigo de andar. Agora, caminhava mais desenvolto parecendo garrote metido a touro; antes caminhava tal vaca leiteira, de úbere cheio, espandongado.

Edu notou-lhe a diferença física e já riu de volta, feliz. José Surtido era outra pessoa. A cirurgia fora obra de um médico político candidato à futura eleição para prefeito da cidade. Livrar Surtido daquele incomodo render-lhe-ia uma boa querença na cidade e no mínimo meia dúzia de votos. A visão encheu seus olhos d’água. Agora, Surtido podia viver sua vida, sem a implicância dos outros. Logo, sentaram juntos num reservado papo, mas no Os olhos do Jacaió íntimo Edu sabia que o companheiro escondia alguma coisa. José Surtido parecia não muito à vontade para falar, receoso do que tinha para dizer. – Desembucha companheiro! Nada mais me afeta tanto. Afetava sim! V – Não sei se devo dizer, mas não sou homem de meias- verdades... Lúcia está namorando um ex-combatente recém 246 retornado da guerra, com medalhões no peito. O sujeito levou dois tiros de raspão num braço, foi ferido, e logo foi dispensado dos serviços pátrios. Ganhou na sorte grande, o desgraçado. Surtido não voltara ali exatamente para entristecer o companheiro, mas sabia do amor dele por Lúcia. E se ele perguntasse por ela não teria coragem de acrescentar ilusão ao parceiro, assim, não mentiu. Os olhos dele se encheram de lágrimas. – Mas Lúcia não parece estar feliz... Acrescentou Surtido, tentando consolar o colega, embora nunca soubesse dos verdadeiros sentimentos dela antes. – Além do que, o povo alardeava que tínhamos morrido ou que tínhamos sido comidos por onça ou ofendidos por algum animal peçonhento e logo devorados por algum urubu. Antes tivessem ido para a guerra, diziam...

Qualquer um podia engolir aquela conversa, menos Lucinha Jairo Ferreira Machado – Edu estivera com ela, numa daquelas noites, não era sonho, e U parecia ainda que Edu trazia no corpo o calor dos seios dela. 247 José Surtido, continuou: – O estado de calamidade em que Rói Osso chegou à cidade, num caixão de terceira linha, e o desprezo com que foi deixado ali, causou certa indignação a quem o conhecera: menino e depois moço bom, ainda que os colegas zombassem dele – era coroinha – os mais velhos tinham respeito por ele. – Agora, a mãe de Rói Osso – depois que lhe contaram sobre a bíblia – quer a qualquer custo tê-la de volta. A única lembrança do dia em que o filho havia lhe pedido a sagrada escritura para levar com ele, onde quer que fosse. Edu, de cabeça baixa, ouvia atento a cada palavra de José Surtido, no intimo se perguntando, como Lúcia esquecera rapidamente aquela noite que passaram juntos... Depois, lembrava dos companheiros Toninho haveria de estar empoleirado na carroceria de um caminhão, indo por esse mundão afora, até um dia parar de fugir e ser cidadão da estrada, ajudante de caminhoneiro, motorista de caminhão e mais tarde possuir o seu próprio caminhão, a sua frota, e nunca mais parar de viajar. Foice Pequena e Toninho estavam certos, pondo o pé na estrada. Surtido, decerto, agora arranjaria namorada, confiante nas conversas tidas com Edu e já refeito do aleijão físico. A cabeça já feita e o riso alegre no rosto. Quem sabe arrumasse um emprego na cidade... Se é que o povo não fosse especular, agora, se Surtido tinha sido capado, “não tinha mais aquilo”, que os médicos haviam cortado fora – o povo com seu modo particular de importunar a vida alheia.

Os olhos do JacaióDo grupo de refugiados, somente ele Edu, ainda estava na prisão. Rói Osso também ganhara a liberdade, mas fora de um jeito definitivo, divinal, probo. A alma sublevada, como o vento que vai aonde quer. E a alma de Rói Osso só tinha um destino: o mais límpido e merecido céu, para onde vez em quando voava o urubu, levado pela correnteza do vento: à liberdade, à busca da infinita liberdade! UV V 248

Edu jurou para si que somente sairia dali levando a bíblia de Jairo Ferreira Machado Rói Osso; era o mínimo que podia fazer pelo amigo e pela U mãe do grande amigo. Já negara a assinar o alvará de soltura, duas vezes, teimoso, com os seus propósitos. O exército não 249 mais convocava jovens para a guerra, que essa estava com os seus dias contados. Os pracinhas que tinham ido já estavam de volta. Para a alegria dos familiares e namoradas. A vida aos poucos retornava à normalidade de uma cidade de interior; somente ele, Edu, tinha algo pendente, antes de pôr o pé fora dali. Já que não podia resolver o problema do desaparecimento da bíblia sozinho, pediu que fossem buscar um padre, simulando a necessidade da alma, embora se sentisse mesmo um pecador, com precisão de confessar, como muitas outras pessoas que praticam o mal, inocentemente ou não. Decerto, falando ao padre, esse ajudaria a amenizar os seus pecados e encontrar o livro sagrado. A história do sumiço da bíblia já transpunha as divisas do quartel para fora – Edu fazia todos crerem que aquela bíblia tinha levado Rói Osso para o céu, como um soldado, o verdadeiro soldado da fé. Morrera abraçado à ela. O corpo de Emanuel Rói Osso foi, mas sua bíblia tinha tomado rumo incerto naquela enfermaria, no dia de sua morte.

Agora, a mãe de Rói Osso fazia questão do objeto de estimação. Sonhara com o filho pedindo que ela lesse a bíblia, pois o mundo precisava muito de oração. E ele, Edu, também! O assunto daria uma ótima matéria de jornal – o que os homens do exército tinham verdadeiro horror. Jornais sempre os surpreendiam com notícias de dentro dos quartéis. Não que a bíblia fosse tão essencial, para quem trabalhava com armas, mas as pessoas andavam cansadas de guerra. O rádio Os olhos do Jacaió e os jornais, até então, só falavam em guerra. Quase cinco anos fazendo as contas de quantos morreram, quantos aviões de guerra foram abatidos, quantos tanques explodidos, quantos navios foram afundados e quantas bombas soltaram; quem ganhava, quem perdia a guerra... V A sociedade humana passava por uma enorme carência espiritual. Assim, a história de um fugitivo de guerra que morreu 250 abraçado à sua bíblia era um alento. Quem sabe mudando o foco das notícias o povo começasse a crer que o mundo ainda pudesse melhorar; que o mundo ainda tinha jeito e a vida poderia ser mais bonita? Para Edu, desertar-se da guerra, renegar a própria pátria, custar-lhe-ia alguma punição do estado, do exército, e já estava sendo punido, por isso. Primeiro, passara privações lá na “pedra do urubu”; depois, quando reconheceu que tinham errado e se entregaram naquele dia; em seguida, a perda o amigo, Rói Osso e agora, a notícia de que Lúcia tinha um namorado de medalhas no peito. Continuava ali, por questão de honra. Honra à uma bíblia, honra ao amigo Rói Osso. Também o comando, a direção do quartel estava perdendo a batalha, a moral. Ainda que fosse aquela uma simples bíblia,


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