COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 151 como vem ocorrendo, das garantias fundamentais do colabo‐ rador e do devido processo legal, que acabariam por fragilizar, ainda mais, a situação do acusado preso. Quanto à metodologia, o presente trabalho se vale de conceitos do instituto da colaboração premiada na doutrina, legislação brasileira e jurisprudência e utiliza revisão bibliográfica e análise de casos do tema eleito. Palavras-chaves: Colaboração premiada; Prisão preventiva; Voluntariedade; Legitimidade. 1 INTRODUÇÃO O Instituto da Colaboração Premiada, embora não se trate de uma figura nova no ordenamento jurídico, vem se popularizando nos últimos anos. Dentro ou fora do campo jurídico, são encon‐ tradas inúmeras críticas acerca do instituto, prova disto são os inúmeros acordos divulgados pelos meios de comunicação nas investigações da Operação Lava Jato. A Operação Lava Jato tornou-se uma das maiores investiga‐ ções, quiçá a maior das investigações contra os crimes financeiros no Brasil, sendo assim, devido à notoriedade que o Instituto ganhou na referida operação, é que houve um enfoque maior na análise do tema quanto aos acordos ocorridos na dita operação. Nesse contexto, o assunto em questão influi diretamente na siste‐ mática processual e, sobretudo, no desfecho de casos concretos submetidos à jurisdição. O estudo da colaboração premiada, dada a sua importância e relevância no cenário em que o Brasil se encontra, bem como a amplitude de temas que merecem um estudo preciso, buscou-se realizar um estudo especificamente voltado para a questão da legitimidade do instituto da colaboração premiada com relação ao réu preso, em razão do enfoque que vem sendo dado, sobre‐ tudo quanto a sua aplicação. Em sede acadêmica, analisou-se o instituto desde o seu
152 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS aspecto mais amplo, percorrendo a sua evolução história no direito brasileiro e realizando um estudo comprado com outros países, a exemplo da Itália, para então estabelecer uma compa‐ ração com a realidade no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, são analisadas as especificidades do instituto, como análises conceituais e de leis, casos concretos e decisões no âmbito da operação lava jato, bem como uma análise de críticas e problematização do tema, com enfoque nas prisões preventivas decretadas na referida operação. Nesse sentido, em matéria teórica, a colaboração premiada trata-se de um meio utilizado como forma de alcance probatório, o qual se busca reunir elementos ou provas decorrentes de ilícitos cometidos por organizações criminosas, em que o chamado cola‐ borador ou como vulgarmente citado pela mídia, “delator”, auxilia os investigadores repassando o retrato claro do ambiente criminoso o qual integrava em troca de um benefício (prêmio). A figura “premial” inserida no ordenamento pátrio, em teoria, surge como forma de auxilio no combate ao Crime Organizado, que atualmente supera as barreiras nacionais, com aplicação em alguns casos exclusivos, não obstante a aplicação constante no Estado Brasileiro, inclusive muito defendido e aplicado pelos Procuradores do Ministério Público Federal. Embora já recepcionada pelo ordenamento jurídico, a Cola‐ boração Premiada passa pelo crivo de parte da doutrina, que se posiciona de forma contrária a figura premial, havendo entre nossos doutrinadores a divergência no uso do instrumento para com o réu que se encontra preso, diante de um dos requisitos estabelecidos pela Lei 12.850/2013, que é a voluntariedade do colaborador. O dissenso apresentado não se dá apenas em relação à even‐ tual conformidade entre os institutos da prisão e da voluntarie‐ dade da colaboração premiada, mas até mesmo em relação ao modus operandi dos casos que fomentam a discussão entre opera‐
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 153 dores do Direito, a exemplo do doutrinador Cézar Roberto Bitencourt1 defende que a prisão para forçar a confissão é espécie de tortura psicológica e remonta a Idade Média. Nesse sentido, a proposta da pesquisa é analisar se o instituto da Colaboração Premiada tem legitimidade para com o réu preso, bem como contextualizá-la a partir de uma análise detida do tema, isto é, o fato de a pessoa encontrar-se presa preventiva‐ mente por ordem da autoridade judiciária retira a legitimidade do acordo de colaboração premiada? Daí a escolha do tema que se apresenta como título do presente trabalho. Por fim, com a pesquisa se busca analisar os posicionamentos da doutrina e jurisprudência acerca do questionamento anterior‐ mente apresentado, bem como problematizar as divergências oriundas da tônica, colaboração e prisão, que muito embora, venham caminhando juntas, não podem e não devem ser anali‐ sadas como sinônimas. E ainda, analisar os aspectos normativos da legislação brasileira, a fim de demonstrar os paradigmas norteadores de sua aplicação pelos operadores do direito, sobre‐ tudo no respeito ao devido processo legal e normas fundamen‐ tais, como a dignidade da pessoa do colaborador preso preventivamente. 2 COLABORAÇÃO PREMIADA – NOÇÕES GERAIS 2.1. Conceito e Considerações Iniciais Importante esclarecer inicialmente que, embora a maioria dos autores, estudiosos da área ou mesmo os meios de comunicação utilizem o termo “delação premiada”, ao longo deste trabalho também será utilizado o termo “colaboração premiada”, inclusive porque é assim denominada no texto legal. A expressão delação, segundo o dicionário Aurélio2 significa denunciar, revelar. Ainda, no mesmo dicionário há a definição da palavra premiar, definida como ato de recompensar ou
154 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS remunerar3. Portanto, tem-se que o termo ora em estudo, em resumo, significa a concessão de um prêmio, uma recompensa, aquele que denunciar, fornecer informações importantes acerca da prática de um delito. Segundo o Professor e Doutrinador Guilherme de Souza Nucci4, colaboração premiada e delação premiada devem ser entendidas como sinônimas, assenta o autor: [...] colaborar significa prestar auxílio, cooperar, contribuir, associando-se ao termo premiada, que representa vantagem ou recompensa, extrai-se o significado processual penal para o investigado ou acusado que dela se vale: admitindo a prática criminosa, como autor ou partícipe, revela a concor‐ rência de outro(s), permitindo ao Estado ampliar o conheci‐ mento acerca da infração pena, no tocante a materialidade ou autoria. Embora a lei utilize expressão colaboração premiada, cuida-se, na verdade, de delação premiada. Por outro lado, adota entendimento diverso, o Doutrinador Renato Brasileiro de Lima 5 ao defender que a colaboração premiada é gênero, do qual a delação premiada é espécie. Entende o referido autor que a colaboração ocorre quando o acusado confessa sua autoria no fato delituoso e colabora com as investigações, sem, contudo, incriminar terceiros; enquanto que na delação premiada, além de confessar sua autoria ele delata terceiros envolvidos. De toda sorte, faz-se o parêntese desde já, que apesar das discussões acerca dos conceitos, não serão feitas diferenciações técnicas dos termos colaboração premiada e delação premiada e,
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 155 portanto, ao longo desse trabalho, as duas expressões serão utili‐ zadas como sinônimos. Feitas tais considerações, passemos para a análise conceitual do instituto da colaboração premiada. Para Renato Brasileiro de Lima, trata-se de uma técnica inves‐ tigativa tida como especial, onde os envolvidos (coautor ou partí‐ cipe) de uma dada infração penal confessa a sua participação em uma ação delituosa e oferece as autoridades dados e/ou elementos capazes de indicar um fato delituoso, em troca de receber um dos benefícios previstos em lei.6 Desse modo, a colaboração consiste, a priori, no fato de o criminoso assumir voluntariamente a sua culpa, entregando tanto os “comparsas” da conduta delituosa quanto os elementos possí‐ veis à autoridade judiciária ou policial, obtendo assim, o delator, os benefícios previstos em lei. E nesse sentido, posiciona-se De Plácido e Silva: Originado de delatio, de deferre (na sua acepção de denunciar, delatar, acusar, deferir), é aplicado na linguagem forense mais propriamente para designar a denúncia de um delito, praticado por uma pessoa, sem que o denunciante (delator) se mostre parte interessada diretamente na sua repressão, feita perante autoridade judiciária ou policial, a quem compete a iniciativa de promover a verificação da denúncia e a punição do criminoso. [...] Desse modo, mais propriamente, emprega-se o vocábulo delação para indicar a denúncia ou acusação que é feita por uma das próprias pessoas que participam da conspiração, revelando uma traição aos próprios companheiros.7.
156 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS No mesmo sentido, Damásio de Jesus: Delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu inter‐ rogatório (ou em outro ato). \"Delação premiada\" configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.).8. A Colaboração premiada assim, conforme delineado pelos autores citados, deve ser eficaz no sentido de que as informações trazidas pelo colaborador sejam suficientes para a constituição dos fatos que levaram os agentes envolvidos a prática dos atos da infração penal, principalmente no que concerne ao colaborador para a obtenção do prêmio. Ou seja, o Estado oferece “vantagens” a quem confessa e entrega seus comparsas e informações úteis para o deslinde da ação criminosa. No plano dos benefícios que podem ser aplicados no Brasil, ainda que posteriormente serão objeto de análise em capítulo próprio, destacam-se benefícios que podem ir desde o perdão judicial a possibilidade de substituição da pena privativa de liber‐ dade por restritivas de direito, dentre outros. Em relação ao colaborador, não seria exagero elucidar que para a configuração da colaboração premiada é necessário que àquele tenha participado da mesma conduta criminosa de seus “parceiros”, pois se assim não fosse, estaríamos falando de uma simples testemunha. Ademais, vale salientar que a colaboração premiada não se confunde com os institutos da desistência voluntária (o agente desiste de prosseguir com a execução do crime); do arrependi‐ mento eficaz (o agente impede que o resultado se produza) ou do
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 157 arrependimento posterior (onde sem violência ou grave ameaça, após o ato executório, o agente repara o dano ou restitui a coisa), pois são institutos em que há a confissão da participação do agente no ato criminoso, sem a imputação a terceiros envolvidos, como ocorre nas associações criminosas. Por último, ainda no campo das conceituações, destacamos as palavras de Vinicius Gomes de Vasconcelos9: É um acordo realizado entre acusador e defesa, visando ao esvaziamento da resistência do réu e à sua conformidade com a acusação, com o objetivo de facilitar a persecução penal em troca de benefícios ao colaborador, reduzindo as consequências sancionatórias à sua conduta delitiva. Nesse contexto, se tem a colaboração premiada, no Brasil, como um instrumento que auxilia na investigação de um crime, em qualquer fase da investigação criminal ou do processo, nota‐ damente naqueles tidos como associação ou quadrilha, consoante dispõe o artigo 288 do Código Penal Brasileiro10. Por outro lado deve-se destacar a importância do respeito às regras do devido processo legal, inclusive que haja limites nos acordos de colabo‐ ração, em respeito às regras, estas que são claras e objetivas na legislação, de modo a se evitar a generalização e o uso desen‐ freado do instituto da colaboração premiada. 2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E DIREITO COMPARADO A colaboração premiada não é um instituto novo na história, desde os primórdios, passando inclusive pela antiguidade até a modernidade é possível identificar o referido instituto. Ademais, não se trata de uma criação brasileira. Cuida-se de um instituto
158 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS advindo de outros países, mas que recebeu uma “versão” brasi‐ leira e com ela, diversas críticas. No campo do direito comparado, a colaboração premiada se faz presente fortemente em algumas nações, veja-se, em linhas gerais, como o instituto se desenvolveu em alguns países. 2.2.1 NO DIREITO NORTE AMERICANO Cumpre destacar inicialmente que se analisaremos um sistema distinto do brasileiro, trata-se do sistema common law, que é o adotado nos EUA o qual utiliza-se um método indutivo, ou seja, os casos são resolvidos com base na jurisprudência, enquanto que no Brasil se utiliza de um método dedutivo, onde os casos são solucionados com base na lei. Nesse interim destacamos uma peculiaridade no que concerne ao órgão do Ministério Público, no sistema brasileiro o MP é obrigado a propor a ação penal, enquanto que no sistema americano o membro do Ministério Público pode optar por não propor a ação, inclusive tem a liberdade de escolher a imputação atribuída ao acusado11. Destacamos ainda no sistema americano, a figura do plea bargaining, onde a acusação negocia a pena com o acusado cola‐ borador. A atuação do Ministério Público é bem ampla, podendo, por exemplo, conduzir investigações policiais ou até mesmo realizar acordos com a defesa ou levar o processo para solução no Poder Judiciário12. Quanto às modalidades de plea bargaining no direito estaduni‐ dense, nas palavras do jurista William Rodrigues dos Santos Estrêla13, são as seguintes:
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 159 a) a sentence bargaining (em troca da declaração de culpabi‐ lidade do acusado, é-lhe feita a promessa de aplicação de uma pena determinada, ou de que fará o Ministério Público recomendações benevolentes ao juiz – que não está obrigado a aceita-las – ou de que não se oporá o Ministério Público ao pedido de moderação de pena feita pela defesa); b) a charge bargaining (em troca da confissão de culpa do réu com relação a um ou mais crimes, o Ministério Público se compromete a abandonar determinada imputação que origi‐ nalmente lhe foi feita, ou a acusa-lo de um crime menos grave que o realmente cometido); c) forma mista (há a apli‐ cação de uma pena atenuada e diminuição de imputações em troca da confissão do acusado). 2.2.2. No direito italiano O instituto da colaboração premiada no direito italiano foi incentivado nos anos 70 pela luta contra o terrorismo e a extorsão mediante sequestro, de forma mais detalhada ensina Eduardo Araújo da Silva 14ensina que: No direito italiano, as origens históricas do fenômeno dos ‘colaboradores da Justiça’ é de difícil identificação; porém, sua adoção foi incentivada nos anos 1970 para o combate dos atos de terrorismo, sobretudo a extorsão mediante sequestro, culminando por atingir seu estágio atual de pres‐ tígio nos anos 1980. O referido autor destaca ainda que nos anos 80 houve uma atuação maior do instituto, sobretudo no combate à máfia.
160 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Outro ponto importante a ser citado é que na Itália existe diferença quanto ao significado de: pentito, dissociado e colabo‐ rador da Justiça. Pentito deu origem ao pentitismo, onde o sujeito confessava e informava as autoridades detalhes dos crimes conexos com o terrorismo, bem como apontava outros agentes criminosos, destarte se trata de um termo criado pela imprensa. Já o dissociado, também tinha relação com o terrorismo, no entanto, era definido na legislação e não na imprensa, além de se exigir do delator uma ruptura com a ideologia política que moti‐ vava o seu comportamento criminoso. E, Por fim, a figura do colaborador da Justiça, este que decorre dos demais modelos, contudo mais genérico, bem abarcando aqueles que generica‐ mente colaboravam com a Justiça apresentando informações úteis durante as investigações, independentemente de serem coautores, partícipes, testemunhas ou qualquer outra pessoa. 15 Este último tem como objetivos: a diminuição dos efeitos do crime, a confissão de sua participação nas condutas delituosas ou o impedimento de que sejam cometidos crimes conexos ao que foi compartilhado na colaboração. 2.2.3. NO DIREITO ESPANHOL Na Espanha, a colaboração premiada, tanto é tratada pelas normas penais quanto pelas normas processuais. Foi introduzida pela Lei Orgânica nº 3, de 25 de maio, que incluiu uma figura “premial” para os participantes do crime de terrorismo que cola‐ borassem com a justiça. No novo Código Penal (L.O. nº 10, de 23 de novembro de 1995), o instituto não só foi mantido para o terrorismo (art. 579.a), como foi estendido para os delitos relacio‐ nados ao tráfico ilícito de entorpecentes e contra a saúde pública (art. 376); sendo chamada no cotidiano como delincuente arrepen‐ tido (delinquente arrependido, tradução do espanhol), este que
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 161 poderiam receber remissão parcial ou total da pena, de acordo com as circunstâncias. 16 Outro ponto importante é que o legislador espanhol consagra a utilização da colaboração premiada tanto de forma preventiva quanto repressiva, desde que seja eficaz (confesse seus atos, iden‐ tifique ou leve diretamente até a justiça os demais membros da organização criminosa ou evite que o resultado criminoso se consuma) para sua concessão. 3 A COLABORAÇÃO PREMIADA NO DIREITO BRASILEIRO 3.1. Evolução Histórica De acordo com os ensinamentos de Pachi17, o instituto da colaboração premiada no Brasil, encontra origem na época em que o Brasil era colônia e vigoravam as Ordenações Filipinas, estas que apresentavam em seus títulos a figura do perdão, mas também do prêmio ao indivíduo que apontasse o culpado18. Mais tarde tal instituto foi perdendo força, tal como aponta Pachi19, sua aplicação assumia uma conotação pejorativa, tal quando ocorreu nas Ordenações Filipinas em que o Coronel Joaquim Silvério dos Reis, mediante a promessa do perdão de sua dívida com a Fazenda Real, entregou todos os planos de seus companheiros inconfidentes, culminando no fim do conflito e na execução de Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, em 21 de abril de 1792. Posteriormente, a colaboração premiada deixou de existir em 1830, revogada pelo Código Criminal do Império, só retornando ao ordenamento jurídico pátrio 160 anos depois, a partir do ano de 1990, com a instituição da lei nº 8.072/90 (Lei de crimes hediondos). Ainda, acerca da concepção do referido instituto no direito
162 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS brasileiro, não se pode deixar de citar Beccaria, que, em meados do século XVIII, publicou a obra “Dei delitti e delle pene”. Além das citadas leis, o ordenamento jurídico brasileiro dispõe sobre o instituto da colaboração premiada em diversas normas, notadamente as seguintes: Decreto-Lei nº 2.848/40 (Código Penal Brasileiro); Lei nº 7.492/86 (Lei de crimes do cola‐ rinho branco); Lei nº 8.137/90 (Lei de crimes contra ordem tributária); Lei nº 9.034/95 (Lei de prevenção ao crime organiza‐ do); Lei nº 9.613/98 (Lei contra a lavagem de dinheiro); Lei nº 9.807/99 (Lei de proteção à testemunha e à vítima de crime); a Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas), Por fim, chega-se à Lei nº 12.850/2013 (Lei das Organizações criminosas leia-se Associação Criminosa). A título ilustrativo, citamos alguns artigos das refe‐ ridas leis que dispõem acerca do instituto: No Código Penal Brasileiro há a previsão do crime de Extorsão mediante sequestro: “Art. 159, § 4º: Se o crime é come‐ tido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”. Na Lei nº 7.492/86, acrescentada pela Lei 9080/95 - crimes contra o sistema financeiro nacional, contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo assim dispõe em seu “Art. 25, § 2º: Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”. Lei 8072/90- Lei dos Crimes Hediondos: “Art. 8º, parágrafo único: O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”. Lei nº 9.613/98- crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 163 para os ilícitos previstos 5 identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. Lei nº 9.807/99- Lei de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas e, acusados ou condenados que tenham voluntaria‐ mente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal: “Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requeri‐ mento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: (...)”. Lei nº 11.343/06- Lei de repressão ao tráfico de drogas: “Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços”. E, por fim, a Lei nº 12.850/13, revogou a Lei nº 9.034/95- Lei de prevenção ao crime organizado: “Art. 4º. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: (...)”. Nesse contexto, podemos verificar que cada norma tem sua forma de tratar sobre o assunto, não havendo uma exclusividade quanto a tema, mas, de forma genérica é possível retirar das legislações supra que, para que seja o beneficiado com o insti‐ tuto, o colaborador precisa contribuir de forma a indicar os demais envolvidos no delito, bem como trazer informações e/ou documentos que comprovem a infração, ais como estrutura da
164 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS organização criminosa, a localização de bens e valores, dentre outro. Não obstante essa generalidade quanto às legislações que tratam do tema, verifica-se que a Lei 12.850/13 trata sobre a o instituto da colaboração premiada de forma mais completa, inclusive regulamentando o instituto nas demais leis. Noutra banda, no tocante aos requisitos, em geral, os acordos de colaboração exigem a voluntariedade do investigado em “dela‐ tar”, a efetividade da colaboração, a personalidade do colabora‐ dor, além de observar as regras presentes nas leis que preveem o instituto. Quanto aos benefícios, a legislação brasileira prevê diversas formas de beneficiar o acusado ou réu, a depender da análise ao caso concreto, podendo resultar na diminuição da pena, aplicação de regime de cumprimento da pena mais brando e, até mesmo, no perdão judicial. 4 CRÍTICAS E POLÊMICAS A colaboração premiada vem sendo alvo de inúmeras críticas seja no âmbito jurídico ou não, no que se refere a sua aplicação em busca da “verdade” processual, principalmente por que vem se popularizando nos últimos anos. Prova disto são os inúmeros casos que envolvem tal instituto na Operação Lava-jato, diaria‐ mente exibido nos noticiários do Brasil e do mundo. Neste ponto, importante destacar a Operação Lava-Jato como razão para o estudo da colaboração premiada e sua legitimidade para com o réu preso, principalmente nas hipóteses de prisões preventivas ocorridas nessa operação. A Operação Lava-Jato foi deflagrada em março de 2014 e recebeu este nome, devido ao alvo inicial que eram os postos de combustíveis e os lava-jatos comandados por organizações crimi‐ nosas que se aproveitavam desses espaços para cometer ilícitos,
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 165 conforme informações retiradas do sítio eletrônico do Ministério Público Federal20. A referida Operação avançou e com ela descobriu-se a formação de outras organizações criminosas, como a investi‐ gação de doleiros que deu ensejo a um esquema criminoso envol‐ vendo a Petrobrás, as maiores empreiteiras do Brasil e políticos de todos os partidos, tornando-se assim a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro já existente no Brasil21. Diante disso, destacamos que a Operação Lava-Jato foi desen‐ volvida principalmente com base nas delações premiadas dos envolvidos: empreiteiros, doleiros, agentes públicos e políticos. Dada a indicação de agentes públicos detentores de cargos por prerrogativa de função, os processos foram distribuídos para o Supremo Tribunal Federal e, em primeira instância, para as sessões judiciárias da Justiça Federal de Curitiba22. De acordo com o Parecer do Ministério Público Federal23 enviado ao Tribunal Regional Federal da 4º Região, em que este Órgão se manifestou acerca de Habes Corpus em favor do paciente Ricardo Ribeiro Pessoa, executivo da empresa UTC Engenharia, a colaboração na persecução processual passou a ser defendida como hipótese justificadora da prisão preventiva, tendo como fundamento a conveniência da instrução criminal: A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que os acusados destruam provas, o que é bastante provável no caso dos pacientes, que lidam com o pagamento a vários agentes públicos, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-los na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos.
166 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Com efeito, a conveniência da instrução processual, requisito previsto artigo 312 do Código de Processo Penal, deve-se acrescer a possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal, como se tem observado ultimamente, diante dos inúmeros casos de atentados contra a administração e as finanças do país. Nesse propósito, por razões óbvias, as medidas cautelares alternativas à prisão são inadequadas e impróprias aos fins previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal24. Deltan Dallagnol, Procurador da República que coordena a força-tarefa do Ministério Público Federal nas investigações e ações penais da Operação Lava Jato, enfatizou que o fundamento das prisões preventivas é legítimo, pois teria por finalidade “pro‐ teger a sociedade de mais corrupção” 25. A conveniência da instrução criminal nem a garantia da ordem pública não podem e não devem ser justificativas para que a prisão seja decretada com base em mera conveniência, tampouco utilizada como justificativa da prisão preventiva como estímulo para colaboração. Não há como negar que essas reflexões despertam uma preo‐ cupação sobre a compatibilidade entre a colaboração premiada e as garantias constitucionais. Basta analisarmos o próprio artigo 282, §6º do Código de Processo Penal 26determina que a prisão preventiva somente deverá ser decretada quando insuficientes ou inadequadas outras medidas cautelares diversas da prisão. O entendimento dominante, a exemplo do doutrinador Renato Brasileiro, é de que a conveniência instrução criminal deve ser invocada quando o acusado estiver impedindo a livre produção de prova, intimidando testemunhas ou peritos ou turbando de alguma forma a apuração dos fatos. Assevera ainda o autor, que ainda que o acusado não possa obstruir o arca‐
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 167 bouço probatório, não se pode admitir que sua prisão seja decretada a fim de que o obrigue a contribuir com as inves‐ tigações 27. Ainda no campo acadêmico, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa28, em artigo publicado no sitio Empório do Direito, tendo como tema: “Delação premiada: com a faca, o queijo e o dinheiro nas mãos”, apontam uma crítica, dentre tantas outras acerca da colaboração premiada, assentam os autores: Prender para colaborar ou colaborar para não ser preso é a tônica do modelo “Moro” de processo penal. O acusador fica com a faca, o queijo e todas as cartas para negociar. Não aceita a negociação, segue-se instrução processual e decisão condenatória com pena alta: xeque-mate. Depois de conde‐ nado, com a nova interpretação do Supremo Tribunal Fede‐ ral, no sentido de que a pena se cumpre imediatamente ao julgamento em segundo grau, o acusado é constrangido a colaborar. Não delatar é estratégia dominada, para usar a gramática da Teoria dos Jogos. No mesmo sentido, Carlos Eduardo de Araújo Rangel29, ao afirmar que se trata de um instituto que permite que a acusação formal e o devido processo legal sejam desnaturados imponto ao sujeito que faça a escolha entre enfrentar a acusação formal ou negociar. Tais afirmações nos levam a outras reflexões: a prisão do réu retira a voluntariedade necessária para a colaboração premiada? Limites éticos estariam sendo respeitados com a tônica, colabo‐ ração e prisão? Afirma o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello em palestra proferida no 7º Congresso Brasi‐
168 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS leiro de Sociedades de Advogados, ocorrido em São Paulo, segundo o Ministro: Acima de tudo, a delação tem que ser um ato espontâneo. Não cabe prender uma pessoa para fragilizá-la para obter a delação. A colaboração, na busca da verdade real, deve ser espontânea, uma colaboração daquele que cometeu um crime e se arrependeu dele30. Nessa linha, Cézar Roberto Bitencourt31 defende que a prisão para forçar a confissão é espécie de tortura psicológica e remonta a Idade Média, in verbis: Prende-se para investigar, prende-se para fragilizar, prende- se para forçar a confissão e, por fim, prende-se para desgas‐ tar, subjugar, ameaçar e forçar a “colaboração premiada”! Aliás, a própria autoridade repressora reconhece, oficial‐ mente, em seu parecer, que esse é o objetivo maior das prisões e tem sido exitoso: arrancar a confissão e forçar a “delação”! Retornamos à Idade Média quando a ordalhas e a tortura também tinha o objetivo de arrancar a confissão, e também eram cem por cento exitosas! Só falta torturar fisi‐ camente, por que psicologicamente já está acontecendo! Essa admissão oficial do fundamento das prisões escan‐ cara a sua ilegalidade, a sua arbitrariedade e a sua ilegitimi‐ dade! Certamente, não resistirá aos crivos dos tribunais superiores! Ao menos, é o que se espera em um Estado Democrático de Direito, que consagra a prisão como última ratio.
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 169 Outro posicionamento importante que merece destaque são as declarações do advogado Leonardo Sica32, Presidente da Asso‐ ciação dos Advogados de São Paulo (AASP): Essa combinação entre prisão preventiva e delação premiada soa para nós como uma espécie de tortura soft é como um pau de arara virtual, as pessoas são presas preventivamente e só são soltas se confessarem. Isso é muito preocupante e não é necessário, existem outros métodos de investigação e de colheita de prova sem violar os direitos e garantias do cidadão. Nesse sentido, a prisão, que é uma exceção, deve ser analisada com o principio da presunção de inocência e, portanto, como última ratio do sistema. A temática apresentada encontra-se muito distante de um caminho de consenso. Aliás, o dissenso não se dá apenas em relação à eventual conformidade entre os institutos da prisão e da voluntariedade da colaboração premiada, mas até mesmo em relação ao modus operandi dos casos que fomentam a discussão entre operadores do Direito. 5 PROJETO DE LEI N. 4.372/2016 Inicialmente, importante esclarecer que este tópico será apresen‐ tado de forma sucinta e meramente expositiva a fim de ilustrar o estudo em questão. Dada as inúmeras críticas apresentadas no tópico anterior, o dissenso apresentado ganhou campo no cenário político dando
170 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS origem ao Projeto de Lei nº 4.372/2016 de autoria do Deputado Federal Wadih Damous. Entre outros pontos, o referido Projeto de Lei apresentado a Câmara dos Deputados, estabelece como condição para a homo‐ logação judicial da colaboração premiada a situação/estado de o acusado ou indiciado responder em liberdade à investigação ou persecução penal. Sendo assim, segundo a referida proposta, o art. 3º da Lei 12.850/13 passaria a conter um terceiro parágrafo33, com a seguinte redação: Art. 3º. [...] § 3o No caso do inciso I, somente será considerada para fins de homologação judicial a colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor. Ademais, no que concerne a justificativa34 do projeto apresen‐ tada pelo Deputado Wadih Damous, merece destaque o seguinte trecho: Assim, a colaboração premiada pressupõe para sua validade ausência de coação, impondo uma clara e inafastável liber‐ dade do colaborador para querer contribuir com a justiça. A voluntariedade exigida pela legislação desde 1999 e assimi‐ lada pelo legislador de 2013 é incompatível com a situação de quem se encontra com a liberdade restringida. É uma contradição em termos. Posteriormente o projeto foi encaminhado para a Comissão
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 171 de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Debutados, oportunidade em que foi apresentado e discutido, porém, aquela Comissão entendeu pela sua inadmissi‐ bilidade e, portanto rejeitado o projeto de lei. O parecer35 foi fundamentado nos seguintes termos: Com efeito, a voluntariedade – necessária para a validade da colaboração premiada, nos termos do art. 4º da Lei nº 12.850, de 2013 – diz respeito à liberdade psíquica do cola‐ borador, que não pressupõe a sua liberdade de locomoção. Aliás, a prisão cautelar não tem qualquer relação com a cola‐ boração premiada, seja porque não pode ser imposta como forma de pressionar uma colaboração, seja porque não pode ser revogada simplesmente porque houve a colaboração. Por último, ressaltamos que o projeto se encontra na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), e, portanto, não houve avanço quanto a sua aprovação ou alterações realizadas. 6 LEGITIMIDADE DO INSTITUTO DA COLABORAÇÃO PREMIADA PARA COM O RÉU PRESO O fato de a pessoa encontrar-se presa preventivamente por ordem da autoridade judiciária retira a legitimidade do acordo de colaboração premiada? Daí a escolha do tema que se apresenta como título do presente trabalho. Um levantamento realizado pelo sítio Consultor Jurídico36 acerca das prisões preventivas e das prisões temporárias conver‐ tidas em preventivas, decretadas na Operação Lava Jato, aponta que dos 58 delatores em que seus acordos não estão sob sigilo, 25
172 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS estiveram presos e todos foram soltos após realizarem os acordos de colaboração premiada. Aponta ainda, o referido levantamento, que dentre os que não foram presos, estão familiares dos dela‐ tores que tiveram homologados os acordos de colaboração premiada. Do referido levantamento podemos fazer o seguinte questio‐ namento: Na hipótese de o acusado ser preso, com fundamento na possibilidade de realizar o acordo de colaboração premiada, sendo esse mesmo acusado considerado um risco concreto ao deslinde da persecução penal ou a ordem econômica e financeira do País, imediatamente após o acordo, todos esses ricos desapa‐ recem com a concessão da liberdade provisória? Nesse sentido, a título de exemplo temos os casos dos execu‐ tivos da empresa Andrade Gutierrez: o ex-presidente Otávio Marques de Azevedo e o ex-diretor Elton Negrão; da empresa Petrobrás, o ex-diretor Paulo Roberto Costa37, dentre outros, investigados da operação lava jato, que depois de homologados os acordos de colaboração premiada foram concedidas as respec‐ tivas liberdades provisórias. Importante destacar também a questão sob outro prisma, voluntariedade e espontaneidade. Para que o acusado se torne colaborador, deve realizar o acordo de maneira voluntária, contudo, seu ato de vontade não precisa ser espontâneo. Em outras palavras, segundo Busato e Bitencourt 38 em uma passagem do seu livro que versa acerca de comentários à Lei de Organização Criminosa – Lei 12.850/2013 trás essa diferencia‐ ção, aponta os autores, que há espontaneidade quando a ideia inicial parte do próprio sujeito, enquanto que na voluntariedade, ainda que a ideia inicial parta de terceiros, a decisão não é objeto de coação, asseveram os autores:
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 173 A delação premiada deve ser produto da livre manifestação pessoal do delator, sem sofrer qualquer tipo de pressão física, moral, ou mental, representando, em outras palavras, intenção ou desejo de abandonar o empreendimento crimi‐ noso, sendo indiferentes as razões que o levam a essa deci‐ são. Não é necessário que seja espontânea, sendo suficiente que seja voluntária: há espontaneidade quando a ideia inicial parte do próprio sujeito; há voluntariedade, por sua vez, quando a decisão não é objeto de coação moral ou física, mesmo que a ideia inicial tenha partido de outrem, como da autoridade, por exemplo, ou mesmo resultado de pedido da própria vítima. O móvel, enfim, da decisão do delator – vingança, arrependimento, inveja ou ódio – é irrelevante para efeito de fundamentar a delação premiada. Distanciando-se, contudo, dos aspectos informativos e semânticos do instituto, a preocupação volta-se para a forma como vem sendo aplicado. Do ponto de vista garantista, em muito se aproxima de um modelo inquisitório, muitas vezes usada como um instrumento a satisfazer a sede da “busca por um culpado” ou ainda “uma resposta ao clamor social” que não mais aguenta assistir diariamente nos noticiários escândalos de corrupção envolvendo as maiores empresas e estatais do nosso País e políticos de todos os partidos. Contudo, a Justiça e o Direito não podem ir de encontro aos direitos e garantias funda‐ mentais de um Estado Democrático de Direito, inclusive porque lhe dá sustentação, em especial o direito de defesa. O clamor social, a instabilidade política em que o Estado Brasileiro se apresenta e até a morosidade processual acabam por “fundamentar” medidas de “maior celeridade” nas investigações com procedimentos mais rápidos, mas, contudo, como
174 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS consequência a supressão de direitos e garantias previstas na Constituição Federal e no devido processo legal. No prisma do Estado Democrático de Direito não há margem para que ilegali‐ dades como estas sejam simplesmente “despercebidas”. Quando se decide estudar a voluntariedade dos acordos de colaboração premiada, não há como se esquivar das inúmeras críticas à restrição da liberdade do agente colaborador. Os insti‐ tutos da prisão preventiva e da colaboração premiada, embora não possuam e não devem possuir um vínculo natural de causa e efeito, veem-se intrinsecamente ligados na prática, conforme já apresentado. O art. 4º, caput, da Lei 12.850/201339 é claro ao eleger a voluntariedade como pressuposto para a homologação da colabo‐ ração premiada: Art. 4º. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena priva‐ tiva de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal [...]. Para muitos autores, conforme já mencionados, a condição de preso é incompatível com a voluntariedade exigida pela lei. O autor Gustavo Badaró40 defende que há uma incompatibilidade entre a voluntariedade e a prisão, sustenta o autor:
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 175 Voluntário advém do latim voluntarius, a, um, significando “que age por vontade própria”. Um agir voluntário é, portanto, um ato que se pode optar por praticar ou não. É atributo de quem age apenas segundo sua vontade. Ou, defi‐ nindo negativamente: voluntário é o agir que não é forçado. Por outro lado, que prisão é coação, é o que diz a própria Constituição, assegurando o habeas corpus para quem sofre “coação em sua liberdade de locomoção”, de modo ilegal. Já no tocante à segurança jurídica, cabe frisar que o benefício tem como base não um valor moral positivo, e sim um objetivo político-criminal, conforme se apresenta no caput do artigo 4º da Lei n. 12.850/13, o qual busca essa segurança ao condicionar a concessão do benefício a um ou mais dos resultados taxados nos incisos do referido artigo. No polo do colaborador, não se constata a mesma segurança, já que não há ainda impedimentos concretos de que o acordo, mesmo já tendo sido homologado pelo juiz, passe por novas apre‐ ciações, com a avaliação de critérios objetivos (como sua natu‐ reza) e subjetivos (como a personalidade do agente), para que seja concedido o benefício. Para Ferrajoli41, a colaboração premiada em sua estruturação na persecução penal é um instituto repleto de “espaços de insegu‐ rança”, marcados pela discricionariedade política e abertos a indeterminação da verdade processual. Nesse prisma, pergunta-se: O que mais uma pessoa que está privada de sua liberdade e de seu patrimônio, com base em medidas cautelares que a lei não estabelece prazo máximo de duração, diante de uma promessa de liberdade e liberação de parte lícita do patrimônio?42 Uma ação só será virtuosa se for responsável, ética e consci‐
176 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ente. A liberdade de uma pessoa pressupõe o mínimo de autono‐ mia, ou seja, deve resultar de uma decisão interior ao próprio colaborador e não da obediência a uma ordem ou uma pressão extrema de colaborar, se assim não fosse, ocasionaria uma restrição a liberdade física, suprimindo assim, a liberdade de opção ou a dita voluntariedade prevista no art. 4º da Lei 12.850/2013, citada anteriormente. Nesse viés, importantíssimo não deixar de mencionar que nos termos da legislação brasileira não há previsão acerca da inclusão no acordo de colaboração premiada cláusulas concernentes as medidas cautelares de cunho pessoal. Com isso, podemos chegar à conclusão de que não se pode estabelecer no acordo de colabo‐ ração premiada a concessão da liberdade provisória ao acusado preso preventivamente. Isso por que, de acordo com a Lei 12.850/2013, os acordos de colaboração premiada limitam-se ao alcance de penas futuras43. Toma-se aqui, os fundamentos também previstos no artigo 312 do CPP, também já destacado, o qual não permite que a prisão preventiva seja utilizada como estímulo para a colabora‐ ção, e, portanto, em teoria, os fundamentos apresentados para a decretação da prisão estariam apenas ocultando a real finalidade da prisão, que seria a coação. Frente a isto, é preocupante o fato da “contaminação” daquele pensamento nos Tribunais Superio‐ res, em especial o Supremo Tribunal Federal – STF, guardião da Constituição. Nessa conjuntura, temos que deve haver uma ponderação entre os interesses da funcionalidade e garantia, apresentando como limite à indispensabilidade das garantias que se fizerem necessárias à tutela da dignidade da pessoa humana, as garantias do processo penal contemporâneo, sobretudo, tratando-se de um Estado Democrático de Direito, visto que a Constituição Federal Brasileira de 1988 estabelece este modelo. Assim, as opções escolhidas pelos agentes estatais devem ser
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 177 coerentes com o modelo de Estado e com os princípios dele advindos. Neste caso, para manter, inclusive a coerência deve-se respeitar, conforme já destacamos a supremacia da tutela da dignidade da pessoa humana. Ao passo que o procedimento do acordo de colaboração premiada, tal qual é aplicado, ainda se mostra carente no que tange as complexidades do instituto e as suas tensas relações com os limites processuais. Deste modo, em momentos de crise de legalidade, o que se deve buscar é a apli‐ cação da lei, e não sua aplicação com base no arbítrio e estrito descumprimento as garantias fundamentais. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Chegando ao término deste trabalho, resta evidente a amplitude do tema. A discussão revelou-se multidisciplinar, unindo vários ramos da Ciência Jurídica, sobretudo o Direito Constitucional até chegar ao específico Direito Processual Penal. Embasados em princípios e nas diversas teorias que envolvem o tema, doutrina‐ dores e juristas se digladiam buscando responder ao grande ques‐ tionamento que é o da legitimidade do instituto da colaboração premiada para com o réu preso. De todo modo, cumpre destacar, a importância do instituto da colaboração premiada no direito brasileiro, sobretudo no que concerne a atualização ocorrida na Lei 12.850/2013, pois trata sobre o instituto da colaboração premiada de forma mais completa, inclusive regulamentando o instituto nas demais leis. Como visto, os principais entendimentos possuem argu‐ mentos fortes e já foram adotados por nossa jurisprudência. Não há, ainda, um posicionamento que vincule magistrados ou tribu‐ nais, mas é certo que temos exceções que devem ser analisadas. Mostrar o debate e a problematização do tema, citando os funda‐ mentos e críticas levantados pelos operadores do direito, foi justamente um dos objetivos do presente trabalho.
178 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS A preocupação que tomamos pelo estudo dessa temática, principalmente quando se faz um estudo detido, não é pela apli‐ cação do instituto da colaboração premiada, seja na Operação Lava Jato ou qualquer outro meio investigativo que caiba a sua utilização, mas sim a forma como vem sendo aplicada e como vem sendo pensada, inclusive pelos Tribunais Superiores, estes que, em teoria, são o guardião da Constituição. O tema em estudo atingiu um campo extremamente sensível para o direito, a prisão. A coação do direito de ir vir de uma pessoa é algo que deve ser feito quando esgotados todas as outras formas de defesa, é a exceção quando colocada em contraposição à liberdade, inclusive por que é assim que determina a Consti‐ tuição Federal de 1988 e as normas infraconstitucionais. Note-se que este trabalho não tem a intenção de generalizar ou mesmo defender que todas as prisões ocorridas no âmbito da Operação Lava Jato visam a ocorrência de colaboração premiada. Em verdade, entende-se que a prisão não poder ser utilizada de forma generalizada e desenfreada por parte do Estado, mormente pelos atos serem contaminados de ilicitudes e irem de encontro as garantias constitucionais do agente colaborador, até por que a prisão é medida excepcional, mas não proibida, desde que reali‐ zada dentro dos ditames da lei, no caso, respeitando os requisitos da dita prisão preventiva. Porém, acredita-se que o combate a corrupção existente no Brasil não pode ser capaz de justificar arbitrariedades que impli‐ quem na violação de garantias fundamentais e no devido processo legal. Significa dizer, que limites precisam ser respei‐ tados e tutelados diante do flagrante desrespeito aos princípios constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana, leia-se do colaborador. É forçoso pensar que uma pessoa cerceada de sua locomoção, em situações degradantes, exposta pela sociedade, esteja psicolo‐ gicamente apta a realizar qualquer ato de forma voluntária, em
COL ABORAÇÃO PREMIADA: RÉU PRESO, LEGITIMIDADE? | 179 especial um ato que resultará em um “prêmio” que resolveria todos esses problemas e então o acusado que, há pouco causava influência e perigo para as investigações, como mágica, passa a ter sua liberdade de volta. Com base nisso, podemos entender que o verdadeiro problema na relação entre prisão preventiva e colaboração premiada não recai exatamente sobre os institutos em si, mas sobre os seus operadores. Acima de tudo -- o clamor social, a instabilidade política, a morosidade processual -- a colaboração tem que ser um ato voluntário, inaceitável que se prenda uma pessoa para fragilizá-la a fim de forçar uma colaboração, se assim o for, notoriamente é um ato eivado de vício e, portanto, nessas condições, capaz não apenas de contaminar todo o processo, como também tornar ilegítimo sua aplicação. Sendo assim, conforme demonstrado, o procedimento do acordo de colaboração quando da sua aplica‐ ção, ainda se mostra carente no que tange às complexidades do Instituto, e à sua tensa relação com os limites processuais. Por fim fica a certeza de que muito ainda será estudado sobre o tema e há muito para ser compreendido sobre as críticas e levantamentos apresentados. Até porque o direito é mutante, como também as diversas realidades sociais no intuito de buscar sempre a decisão menos injusta. E sem dúvida, o novo modelo da ordem constitucional exige dos operadores do direito a aplicação e respeito às regras constitucionais. REFERÊNCIAS BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4.372/2016. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=2077165> .Acesso em 17 Fev. 2018. _____. Presidência da República. Código de Processo Penal.
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COLABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO LAVA JATO”: UM ESTUDO SOBRE A PRÁXIS À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS MARIA LUIZA SOARES DOS SANTOS; MARCELO D’ANGELO L ARA INTRODUÇÃO A COLABORAÇÃO PREMIADA NÃO CONSTITUI NOVIDADE NO DIREITO brasileiro, no entanto, é inegável que dito instituto somente teve reconhecida notoriedade com a eclosão da denominada “ope‐ ração lava jato”, considerando a repercussão midiática desta e a realização de vários acordos entre Ministério Público e acusados visando principalmente a identificação dos demais coautores e partícipes envolvidos nos esquemas de corrupção, bem como as infrações penais por eles praticadas. Apesar de não constituir novidade no ordenamento jurídico brasileiro, a adoção do instituto como é concebido atualmente ocorreu de forma tardia no Brasil, uma vez que somente na década de 90 é que passou a ser prevista a possibilidade de concessão de benefício (prêmio) para o coautor que voluntaria‐ mente denunciar à autoridade o crime, facilitando a libertação do sequestrado (art. 7º da Lei nº 8.072/90). Assim, se comparado com outros países, a exemplo dos
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 185 Estados Unidos, onde foi instituída, na década de 60, a colabo‐ ração tal qual é conhecida hoje como parte de uma política anti- organizações criminosas, e da Itália, onde o instituto é previsto na legislação desde 1970, com a promulgação de leis voltadas para o combate ao terrorismo e à máfia (BOENG, 2007, p. 19), o Brasil apenas recentemente passou a prevê a possibilidade de premiar o réu disposto a colaborar com a investigação. Neste sentido, após um processo que evolução legislativa, é somente com a Lei nº 12.850/13 que o ordenamento jurídico brasileiro tem normatizada a colaboração premiada de modo mais estrutural, sendo esta, portanto, a mais importante norma no combate às organizações criminosas no Brasil e que, pois, tem sido aplicada nas investigações da operação lava jato, especifica‐ mente no que diz respeito ao procedimento para a realização dos acordos entre o Ministério Público e os acusados. Ocorre que, com a utilização do referido instituto na operação lava jato, várias críticas ao modo como ele vem sendo aplicado nesta foram e são levantadas, principalmente porque alguns acusados são mantidos em prisão preventiva até concor‐ darem com a realização do acordo, o que configura nítida forma de tortura psicológica para obtenção de informações, contrari‐ ando não somente o que dispõe a norma dantes mencionada, mas a própria Constituição Federal que veda expressamente a prática de tortura (art. 5º, inc. III, CF/88). Nesta senda, levando em consideração tais discussões e a própria relevância da colaboração premiada, principalmente com a sua crescente utilização na operação lava jato, é que este artigo se constrói, tendo como objetivo geral o de analisar a aplicação da colaboração premiada na operação lava jato à luz dos direitos fundamentais, e, como objetivos específicos, explanar as formas de colaboração premiada e apresentar a evolução legislativa no Estado Democrático de Direito brasileiro; mostrar, através do
186 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Direito Comparado, o modo como os Direitos estadunidense e italiano influenciam a aplicação da colaboração premiada no Brasil; evidenciar a existência de tortura institucionalizada quando, para a realização do acordo, o juiz submete o acusado à prisão preventiva por tempo excessivo. No que diz respeito à metodologia empregada, trata-se de pesquisa bibliográfica, haja vista que se tratar de uma proposta de cunho teórico, valendo-se de livros, artigos e alguns materiais disponíveis e publicados na internet como base para a sua elabo‐ ração. É também qualitativa e documental, com o emprego do método explicativo, vez que as análises e investigações, realizadas na busca pelo atendimento dos objetivos propostos, também são discutidas e explicadas. 1 AS FORMAS DE COLABORAÇÃO PREMIADA E A SUA CONSTITUCIONALIDADE NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O Brasil atualmente vive um verdadeiro marco em sua história de luta contra a criminalidade econômica e financeira, notadamente no que diz respeito aos crimes relacionados às organizações criminosas – principalmente a corrupção e a lavagem de dinheiro –, com a deflagração da operação lava jato, em março de 2014. Dita operação, que teve início a partir da investigação do uso de uma rede de postos de combustíveis e lava jato de automóveis (daí o porquê do nome “operação lava jato”) por uma das organi‐ zações criminosas investigadas com a finalidade de movimentar recursos ilícitos desta, já é tida como a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro do país1. A operação leva jato ganhou notoriedade com a descoberta dos desvios bilionários dos cofres da maior estatal do Brasil, a Petrobras, e o envolvimento de políticos e de grandes empresas
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 187 nacionais, a exemplo das empreiteiras Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, nos desvios. Segundo o Ministério Público Federal, no esquema, [...] que dura pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos execu‐ tivos da estatal e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% do montante total de contratos bilioná‐ rios superfaturados. Esse suborno era distribuído por meio de operadores financeiros do esquema, incluindo doleiros investigados na primeira etapa. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2018). Portanto, dada a sua dimensão, é inegável a relevância da operação para aferir e punir devidamente aqueles que desviam dinheiro público e o utilizam em proveito próprio, contrariando os supraprincípios que regem a Administração Pública, quais sejam, supremacia do interesse público sobre o privado e a indis‐ ponibilidade do interesse público, bem como a moralidade admi‐ nistrativa e todos os princípios e normas quem tem por finalidade proteger os bens e o erário público. No entanto, por ter como meios de prova a análise de transa‐ ções financeiras e as colaborações premiadas dos que suposta‐ mente participaram dos esquemas de desvio, a operação lava jato começa a ser objeto de críticas, principalmente no que se refere ao último instituto, tendo em vista que, apesar de previsto desde a década de 90 no ordenamento jurídico moderno deste país, foi apenas com a lava jato que ele passou a ser usado em grande escala. Diante disto, configura fundamental o entendimento do que
188 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS vem a ser a colaboração premiada, assim como o de sua mais comentada modalidade, a delação premiada, por isso, citam-se os conceitos apresentados pelos juristas Nestor Távora e Rosmar Alencar: Conquanto sejam, em regra, tratadas como expressões sinô‐ nimas, delação premiada e colaboração podem assumir contornos distintos: 1) a colaboração premiada é mais ampla, porque não requer, necessariamente, que o sujeito ativo do delito aponte coautores ou partícipes (que podem, a depender do delito, existir ou não, bastando imaginar a colaboração do agente que, arrependido, torna possível resgate de vítima com inte‐ gridade física preservada ou a apreensão total do produto do crime, porém não praticou o crime em coautoria); (2) a delação premiada exige, além da colaboração para a elucidação de uma infração penal, que o agente aponte outros comparsas que, em concurso de pessoas, participaram da empreitada criminosa, como uma forma de chamamento de corréu. Outras expressões são verificadas na prática para designá-la, tais como imputação de corréu, chamamento de cúmplice, pentitismo (alusivo a pentito ou arrependido), crown witness (testemunho da coroa) ou, ainda, colaboração processual. (TÁVORA; ALENCAR, 2017, p. 695). Destarte, a partir da análise dos conceitos supracitados, é possível concluir que, mesmo sendo usados muitas vezes como sinônimos, a colaboração e a delação premiadas são institutos distintos, sendo este espécie daquele e destinado especificamente com a finalidade de que o colaborador delate os demais envol‐
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 189 vidos e das infrações penais por eles praticadas em troca de bene‐ fícios previstos em lei, a exemplo dos que são trazidos no art. 4º, caput, da Lei nº 12.850/13: “perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos”. Portanto, sendo a colaboração o gênero é importante destacar a existência de suas espécies (ou subespécies), dentre as quais se encontram, segundo o professor Vladmir Aras: Nesta senda, reforçando, com maestria, o entendimento de que “delação premiada” e “colaboração premiada” são expressões diversas, confiram-se os escólios de Vladmir Aras que apresenta a colaboração premiada como gênero, da qual derivam 4 (quatro) subespécies, quais sejam: a) delação premiada (também denominada de chama‐ mento de corréu): além de confessar seu envolvimento na prática delituosa, o colaborador expõe as outras pessoas implicadas na infração penal, razão pela qual é denominado de agente revelador; b) colaboração para libertação: o colaborador indica o lugar onde está mantida a vítima sequestrada, facilitando sua libertação; c) colaboração para localização e recuperação de ativos: o colaborador fornece dados para a localização do produto ou proveito do delito e de bens eventualmente submetidos a esquemas de lavagem de capitai; d) colaboração preventiva: o colaborador presta informa‐ ções relevantes aos órgãos estatais responsáveis pela perse‐ cução penal de modo a evitar um crime, ou impedir a continuidade ou permanência de uma conduta ilícita. (ARAS, 2015. p. 428).
190 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Nesta senda, com base na classificação acima exposta, existem quatro subespécies de colaboração premiada, sendo a delação, conforme já mencionado, uma delas e indiscutivelmente a que gera mais discussões, não apenas no âmbito jurídico, mas também no plano ético e moral, tendo em conta que, através de dito instrumento, estaria o Estado oficializando a traição, que é “forma antiética de comportamento social” e que, “em regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena”, como assevera Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, 2016, p. 423). No que diz respeito à colaboração frente à observação das garantias constitucionais, em especial o princípio do devido processo legal (art. 5º, inc. LV, Constituição Federal), é impor‐ tante destacar que é sobre este ponto que se sustentam as princi‐ pais discussões sobre a constitucionalidade do instituto. Ocorre que quando o sujeito decide colaborar, há a necessidade de renúncia, de sua parte, de algumas garantias constitucionais na medida em que não será assegurada a publicidade (pois trata-se de acordo secreto), deverá o colaborador admitir o cometimento do crime (autoincriminação) para que seja válida a sua delação e não poderá, consequentemente, permanecer em silêncio. A presunção de inocência também é frontalmente atingida, dado que, antes mesmo de iniciar o processo, o colaborador será consi‐ derado culpado para poder negociar. Isto posto, para os que defendem a corrente de que a colabo‐ ração afasta do investigado ou acusado importantes garantias constitucionais, afrontando, deste modo, o Estado Democrático de Direito, é esta inconstitucional, bem como antiética, especial‐ mente na sua modalidade de delação, vez que por meio dela o Estado fomenta a traição em troca de um benefício, o que é soci‐ almente reprovável (JESUS, 2005). Já para os que entendem ser
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 191 os que entendem ser a colaboração instrumento necessário ao desmantelamento das organizações criminosas, sendo, pois, justi‐ ficável a marginalização de algumas garantias em prol da tutela do próprio Estado Democrático de Direito, dito instituto é cons‐ titucional (NUCCI, 2016, p. 424). Diante de tais discussões o que se tem é a notória falta de consenso por parte dos estudiosos do Direito acerca da validade constitucional da colaboração premiada. Mesmo com a existência dessas divergências, é certo que esta modalidade de negociação vem sendo aplicada em grande escala na operação lava jato, cabendo, pois, tanto aos que são a ela favoráveis como aos que com ela não concordam, analisar seu modo de aplicação, se este condiz com o que está legalmente previsto, notadamente pela Lei nº 12.85013, pois sua aplicação atinge diretamente a proteção do Estado Democrático de Direito, ponto convergente entre ambas as correntes. 2 A DELATIO CRIMINIS NO DIREITO COMPARADO: A INFLUÊNCIA DO PLEA BARGAINING ESTADUNIDENSE E DO PATTEGIAMENTO ITALIANO NO DIREITO BRASILEIRO 2.1 O pattegiamento na Itália No Direito italiano, a utilização da delação premiada está diretamente relacionada ao combate às organizações criminosas do tipo mafioso. Conforme sustenta a advogada Juliana Conter Pereira Kobren (2006), a máfia se intensificou na Itália entre os anos de 1950 e 1970, apropriando-se, primeiramente, das admi‐ nistrações locais e, posteriormente, da magistratura e dos órgãos de segurança, tornando-se, em determinado momento, um verdadeiro Estado paralelo, com suas próprias leis. Assim, dado o cenário no qual se encontrava o país, o Estado
192 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS italiano resolve reagir através da adoção de medidas emergenciais (BOENG, 2007, p. 18). Ainda na década de 70 o governo promulgou várias medidas visando desvendar as organizações mafiosas e pôr fim a esta forma de criminalidade, dentre as quais: conferir maior poder à polícia e posteriormente ao juiz; prisão compulsória; aumento do tempo das prisões cautelares; segredo instrutório; proibição de liberdade provisória e a previsão da delação premiada (BOENG, 2007, p. 19). Com a promulgação da Lei nº 497 de 1974, foi inaugurado o instituto da delação premiada no Direito italiano moderno com a finalidade de, através da indicação dos demais membros das organizações criminosas, desmontar as máfias. A esta função, exercida pelo referido instituto, de “desmontagem” das organiza‐ ções do tipo mafioso, chamou-se de pattegiamento (BRASILEIRO, 2009, p. 562). No entanto, mesmo sendo prevista desde o início dos anos 70, somente na década de 90, com a denominada “operação mãos limpas” (operazione mani pulite) – cujo objetivo era descobrir e extinguir os laços da máfia com determinados políticos corruptos –, é que delação premiada ganha significativa notoriedade (MACHADO, 2016, p. 21), haja vista que, assim como ocorre com a operação lava jato atualmente, existia naquela época grande midiatização e apelo popular sobre a investigação, principal‐ mente pelo teor das pessoas envolvidas nos escândalos de corrupção, dentre as quais estavam empresários e parlamentares (MORO, 2004, p. 57). É importante mencionar que pattegiamento também é chamado de pentitismo em referência a como ficaram conhecidos, pela mídia, com posterior adoção do termo pelo ordenamento jurídico italiano, os delatores (pentiti) – arrependidos, em tradução livre. Vale ressaltar, porém, que o delator nem sempre será considerado um pentito (arrependido), podendo também ser
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 193 considerados dissociati (dissociados) ou collaboratori della giustizia (colaboradores da justiça), dependendo do teor da delação, bem como do respectivo benefício concedido (BOENG, 2007, p. 19-20). A este respeito expõe Randes Machado, citando o professor Rafael Paranaguá, que Existem três espécies de colaboradores: o “arrependido”, que abandona ou dissolve a organização criminosa e em seguida se entrega, fornece todas as informações sobre as atividades criminosas e impede a realização de crimes para os quais a organização se formou. O “dissociado”, aquele que confessa a prática dos crimes, se empenha para diminuir as consequên‐ cias e impede a realização de novos crimes conexos. E o “colaborador”, que além dos atos descritos acima, ajuda no fornecimento de elementos de prova relevantes para o escla‐ recimento dos fatos e possíveis autores. Vale ressaltar que, em todos os casos descritos acima, a colaboração deve acon‐ tecer antes da sentença condenatória. (PARANAGUÁ, 2014, p. el apud MACHADO, 2016, p. 21). Percebe-se, pois, que dependendo do teor do que foi delatado pelo acusado, poderá este se enquadrar como “arrependido”, “dis‐ sociado” ou “colaborador da justiça”, o que refletirá também no benefício, podendo, no caso do pentito, ser considerada extinta a punibilidade; já no caso do dissociato, este pode receber como prêmio a diminuição de pena de um terço (não podendo superar os 15 anos) ou a sua substituição de prisão perpétua por reclusão de 15 a 21 anos; e, no caso do collaboratore, pode haver a redução de um terço até a metade da pena ou substituição da prisão
194 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS perpétua por reclusão de 10 a 12 anos (art. 4º da Lei nº 15/1980 – Legge 6 febbraio 1980, n. 15 – e arts. 1º, 2º e 3º da Lei Ordinária nº 304//1982 – Legge Ordinaria n. 304 del 29/05/1982 ). Ressalta-se que a delação premida, instituto de common law, foi inserida no ordenamento jurídico italiano através da adoção do sistema estadunidense, como bem expõe Cristiano de Oliveira Ferreira, citando Mendroni: Desse modo, bem delimitado nos problemas e inconsistên‐ cias estabelecidos na adoção de um instituto da common law em países da civil law, o referido autor menciona que o Código de Processo Penal de 1988 importou o modelo anglo-saxão estadunidense inserindo no ordenamento italiano diversos institutos, ampliando o enfoque do instituto da delação passando a prever um procedimento penal espe‐ cial baseado na celebração de um acordo (patteggiamento) entre o Ministério Público e o acusado no tocante à quanti‐ dade de pena a ser aplicada, sendo tal procedimento denomi‐ nado applicazione della pena surichiesta delle parti (aplicação da pena a requerimento das partes), existe desde a Lei n.º 689 de 24 de novembro de 1981 (MENDRONI, 2007, apud FERREIRA, 2011, p. 78). Como se pode perceber, no Direito italiano, o pattegiamento é uma adequação do modelo de negociação entre Ministério Público e acusado vigente nos Estados Unidos, com as devidas adequações, dado que na Itália impera a civil law. Assim, por meio do referido instituto, as partes envolvidas no acordo podem negociar a pena, sendo esta inversamente proporcional ao valor do que foi informado pelo delator, é dizer, quanto mais impor‐
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 195 tante for para a investigação o conteúdo delatado, menor será a pena aplicada ao acusado. Por fim, é indispensável relatar que a previsão normativa da delação premiada no Direito italiano deixou, inicialmente e por um longo período, muito a desejar em se tratando da proteção aos delatores e às testemunhas, haja vista que, em se tratando de organizações do tipo mafioso, cujo poderio e a existência de severo código de honra (omertà), que determina o silêncio sobre as atividades mafiosas (FERREIRA, 2011, p. 79), a segurança dos “arrependidos” (considerados pela máfia como persona non grata) deveria ter sido tratada com prioridade. Assim, é somente em 1991, com o assassinato do juiz Rosário Livantino, que o ordenamento jurídico italiano passa a dispor acerca da proteção para os colaboradores, as testemunhas e as autoridades envolvidas. É criado, pois, o Decreto-Lei n° 8, de 15 de Janeiro de 1991, convertido na Lei n° 82 de 15 de março de 1991, prevendo a proteção dos colaboradores e testemunhas (LUZ et al., 2017, p. 18). 2.2 O PLEA BARGAINING NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA Assim como ocorreu com a Itália, nos Estados Unidos a intro‐ dução do instituto da delação premiada teve como marco inicial a luta contra a máfia, ainda na década 60. Diante das dificuldades em desmontar os esquemas deste tipo de organização criminosa, bem como de identificar seus membros e coletar provas sufici‐ entes para que fosse possível a devida incriminação desses, o Estado se viu obrigado a se valer de um mecanismo que permi‐ tisse a negociação entre acusação e acusado em que este colabo‐ rasse com aquela em troca de benefícios. A esta negociação deu- se o nome de “plea bargaining” (LUZ et al., 2017, p. 16). A utilização do plea bargaining estadunidense serviu inspi‐
196 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ração para adoção de mecanismos de negociação entre o Minis‐ tério Público e o acusado em diversos países, a exemplo da Itália e do Brasil. Dito instituto funciona a partir da confissão do crime pelo acusado, considerando-se este culpado (guilty plea), possibili‐ tando ao prosecutor a realização de um acordo que visa a obtenção de informações, como a identificação dos demais membros da organização, com a finalidade de pôr fim ao esquema criminoso (LUZ et al., 2017, p. 17). Dessa maneira, cabe destacar que a atuação do Promotor está pautada na discricionariedade e na oportunidade que rege a sua função naquele país, tendo ele, portanto, uma significativa liber‐ dade para definir as diretrizes da negociação, bem como estabe‐ lecer os prêmios a serem concedidos à parte ré, inclusive podendo deixar de oferecer a denúncia. A este respeito é que se constroem as principais críticas a aplicação de dito instituto no direito daquele país: Uma das críticas ao sistema norte-americano é a concen‐ tração de poder nas mãos do Promotor de Justiça. Isto porque, em razão da ampla discricionariedade concedida àquele para fazer acordos com o acusado, o plea bargaining acaba ficando susceptível a falhas relacionadas à manipu‐ lação política e social na aplicação do Direito Penal. Desta maneira, inexiste ampla defesa e quase que a totalidade dos princípios constitucionais são atropelados. Ademais, este sistema sofre ainda com intensas censuras por apresentar diferentes soluções para os conflitos por meio do Judiciário e da promotoria e polícia, ou seja, por causa de suas diferentes bargains. (ALMEIDA, 2011, p. 19).
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 197 Como se percebe, pois, a utilização do plea bargaining não está à margem das críticas feitas aos acordos entre Ministério Público e acusado, sendo que, neste caso em particular, estas se tornam ainda mais severas, uma vez que se pautam no fato de que, nos Estados Unidos, os Promotores são escolhidos politicamente, existindo na sua atuação determinado interesse na reeleição ou ascensão política e dito interesse se torna inegavelmente preocu‐ pante frente a todo o poder que lhe é concedido quando da reali‐ zação da negociação (HOWE, 2007, apud FERREIRA, 2011, p. 83-84). No entanto, apesar das críticas realizadas a liberdade de atuação que tem o presecutor no plea bargaining, estima-se que dito instituto seja utilizado em pelo menos 90% dos casos criminais (O’HEAR, 2007, apud FERREIRA, 2011, p. 83), fazendo com que em vários processos seja dispensado o julgamento. Vale destacar que, diferentemente do que ocorreu na Itália, nos Estados Unidos a previsão de proteção dos delatores é antiga no ordenamento jurídico estadunidense, datando de 1789, com a criação do US Marshall’s Service. Conforme destaca a advogada Juliana Kobren: O US Marshall’s Service destinava-se, inicialmente, à proteção de membros do Poder Judiciário e testemunhas de acusação em crimes federais. Devido ao crescimento do poder subversivo dos grandes grupos criminosos, e da necessidade de enfrentar — e vencer — o desafio do aumento da criminalidade organizada, o US Marshall’s sofreu, a partir de 1960, uma considerável mudança, passando a compreender outros tipos de crimes.
198 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Atualmente, o US Marshall’s Service atua por meio do programa Witness Security Program que garante a segurança de pessoas ameaçadas, que arriscam suas vidas colaborando com a justiça americana no combate ao crime organizado e demais atividades criminais significativas (FELIX, 2000, p. 293, apud KOBREN, 2006). Dessarte, através deste programa de proteção, além de proteger as vítimas e as testemunhas, tem-se a previsão da proteção àqueles que decidem colaborar com a justiça e firmam acordo com o Ministério Público. Uma vez inseridos neste programa de proteção, o delator poderá usufrui de nova identi‐ dade, alojamento, dinheiro ou, ainda, uma nova profissão (BECHARA; MANZANO, 2009, p. 163, apud FERREIRA, 2011, p. 83). Diante do exposto, são perceptíveis as diferenças do plea bargaining estadunidense do pattegiamento italiano e da delação premiada no Direito brasileiro, pois, ainda que aquele primeiro tenha servido como base para a constituição desses dois últimos, por se tratar de um sistema de common law, o ordenamento jurí‐ dico dos Estados Unidos comporta uma maior flexibilidade em relação à atuação dos personagens do Direito, a exemplo do promotor, vez que não há, por parte da norma, um enrijecimento do modo de agir destes, diferentemente do que ocorre, em teoria, com os Direitos italiano e brasileiro, pois, sendo ambos de civil law, a atuação desses personagens está estritamente ligada ao princípio da legalidade, não podendo dita atuação ultrapassar os limites impostos pela lei. Destarte, esta maior liberdade, que advém dos princípios da oportunidade e da conveniência, permite uma maior discriciona‐ riedade na atuação do promotor, no sistema estadunidense, possibilitando que este, por exemplo, deixe de oferecer a denún‐
COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 199 cia, ainda que presentes elementos suficientes de autoria e mate‐ rialidade, conforme o seu juízo de conveniência (FERREIRA, 2011, p. 68). Como dito anteriormente, a discricionariedade com a qual a tua o membro do parquet favorece a realização de acordos que visam seus interesses pessoais, podendo o plea bargaining funcio‐ nar, neste sentido, como uma forma de ele conseguir ascensão em sua carreira, por meio da concessão de excessivos benefícios a determinados acusados em troca de favores políticos. No sistema brasileiro, no qual imperam os princípios da indisponibilidade e obrigatoriedade da ação penal por parte do Ministério Público, o Promotor não pode desistir da ação penal, bem como, uma vez presente os elementos de autoria e materiali‐ dade delitiva, está obrigado a oferecer a denúncia. Existem, porém, previsões legais que permitem flexibilizar a obrigatorie‐ dade da ação penal, a exemplo do instituto da transação penal na Lei nº 9.999/95 e o próprio instituto da delação premiada, pois esta também pode ser realizada ainda na fase de investigação, pela autoridade policial (art. 4º, § 6º, da Lei nº 12.850/13) – o que não é possível no modelo estadunidense –, abdicando o Minis‐ tério Público de oferecer a denúncia face o acordo realizado. Mesmo com a mencionada flexibilização do princípio da obrigatoriedade, ao Ministério Público só é permitido atuar em conformidade com a legalidade e em respeito ao devido processo legal, assim que deve o promotor aplicar o instituto da delação premiada nos limites estabelecidos pela Lei – em especial a Lei n 12.850//13, que atualmente melhor disciplina o referido insti‐ tuto. Quando o membro do parquet, na realização da negociação, extrapola os limites legais e concede benefícios não previstos em norma, não está apenas desrespeitando o que dispõe o art. 4º da Lei 12.850/13, mas a própria Constituição Federal e o Estado Democrático de Direito.
200 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS 3 A VOLUNTARIEDADE DO ACORDO E A PRISÃO PREVENTIVA: A UTILIZAÇÃO DA TORTURA PSICOLÓGICA PARA OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES Após a explanação das questões introdutórias acerca do instituto em análise e do seu tratamento pelos ordenamentos jurídicos da Itália e dos Estados Unidos, bem como da influência destes na formação da colaboração e da delação premiadas no Direito brasileiro e as respectivas diferenças, parte-se, neste tópico, para o estudo da problemática envolvendo a voluntariedade que deve guiar o acordo e as implicações da realização deste acordo em relação ao colaborador preso preventivamente. Inicialmente cumpre destacar que a Lei nº 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) prevê que será válida a concessão dos benefícios, pela autoridade judicial, de redução de até 2/3 da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direito para aquele que tenha “colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal” (art. 4º, caput). Assim, a voluntariedade do colaborador constitui requisito subjetivo para a realização do acordo e para a sua validade. Em vista disso, vale mencionar que no ordenamento jurídico brasileiro não são todas as leis que tratam sobre o mencionado instituto que o preveem através da voluntariedade, isto é, algumas leis, a exemplo da Lei nº 8.137/90, Lei dos Crimes contra Ordem Tributária (art. 16, parágrafo único), dispõem que para a validade da colaboração é preciso que esta ocorra de forma espontânea. Diante da previsão de ambas as expressões no ordenamento jurídico prático, é importante destacar que elas não se tratam de termos sinônimos, mas sim bastante diferentes em sua essência e expor dita diferença configura importante no presente estudo, visto que é a partir desta análise que poder-se-á tratar as implica‐
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