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Lava Jato e organizações Criminosas

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:07:54

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COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”: … | 201 ções da utilização do vocábulo “voluntariedade” pela Lei de Orga‐ nizações Criminosas, principalmente na prática forense. Assim, acerca da diferença entre esses termos, dispõe Ursula Boeng: As expressões voluntária e espontânea trazem significados distintos. Como aponta o magistrado Nilton João de Macedo MACHADO: ‘A diferença é fundamental. Quando alguém age sem coação física ou psicológica, mas incentivada, moti‐ vada por outras pessoas, está agindo voluntariamente. Dife‐ rentemente, só haverá ato espontâneo se não houver incitação ou qualquer motivação. A pessoa, por si, julga conveniente tomar a atitude, e toma, sem que ninguém a incite’. (MACHADO, 2000, p.4, apud BOENG, 2007, p. 47-48). Como se percebe, a principal distinção entre a voluntariedade e a espontaneidade reside no fato de que para que seja configu‐ rada esta não é necessária nenhuma forma de motivação ou inter‐ ferência na sua tomada de decisão, constituindo, pois, uma verdadeira expressão da vontade do colaborador em contribuir com a investigação. A voluntariedade, ao contrário, requer moti‐ vação, isto é, um incentivo que a faz decidir se quer ou não contribuir com a justiça, assinando ou não o acordo de colabo‐ ração premiada. Em consequência, sendo a voluntariedade o termo previsto pela Lei de Organizações Criminosas e a partir da análise do conceito acima citado, é possível aferir que, na colaboração prevista por dito diploma legal, constitui legítimo o uso de meios que visem o incentivo e a motivação do colaborar para a reali‐

202 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS zação do acordo com o Ministério Público ou com a Polícia, não constituindo óbice, a priori, à homologação pelo magistrado. No entanto, há uma forma de “motivação” que tem se tornado comum na prática forense, é dizer, na operação lava jato, que diz respeito à decretação da prisão preventiva do investigado e sua soltura logo após firmar o acordo de colaboração premiada. A utilização da prisão preventiva na lava jato como forma de obrigar, ainda que indiretamente, o individuo sob suspeita a realizar a negociação com o Estado tem suscitado importantes discussões entre os juristas e não juristas brasileiros, dado que dita prática ofende vários dos mais preciosos direitos que tem a pessoa, dentre os quais o da dignidade humana e o da liberdade, afrontando, pois, não apenas o Código de Processo Legal, que prevê expressamente as hipóteses de admissibilidade de prisão preventiva, mas também a Constituição Federal. Dentre os defensores da utilização da prisão preventiva para favorecer a realização do acordo de colaboração está o juiz federal Sergio Fernando Moro, que cuida dos processos da operação lava jato na 1ª instância. Assevera dito magistrado que: Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encon‐ trar em uma situação difícil. De nada adianta esperar ato da espécie se não existem boas provas contra o acusado ou se este não tem motivos para acreditar na eficácia da perse‐ cução penal. A prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos. (MORO, 2004, p. 58-59).

COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”:… | 203 Como se percebe, para o magistrado, é justificável o uso da prisão preventiva como forma de fomentar o acordo entre o acusado e o Ministério Público, uma vez que é através da prisão cautelar que o indivíduo terá conhecimento da seriedade do crime que supostamente cometeu. Ocorre, porém, que, ao fazer uso da prisão preventiva para forçar o indivíduo a cooperar, o que se está tentando legitimar é o uso da tortura psicológica como forma de obtenção de informações, constituindo a volunta‐ riedade do indiciado importante requisito para aferir a validade do acordo e não é a prisão preventiva motivação pertinente nem mesmo legal à colaboração (SANTOS; ASSAD, 2015). Dessarte, a castração da liberdade do indivíduo não pode configurar medida a ser utilizada visando à celebração do acordo, ainda mais sob a justificativa de que através da prisão cautelar é que será evidenciada a eficácia da ação penal, visto que existem outros meios de investigação e obtenção de prova que efetiva‐ mente preservam as garantias asseguradas pela Constituição ao cidadão (LOPES, 2015 apud SUXBERGER; MELLO, 2017, p. 197) e não o expõem a uma evidente situação de tortura. Acerca do uso da prisão preventiva como forma de torturar com a finalidade de obrigar o investigado a assinar o acordo de colaboração, assim entendem Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa: A prisão espetacular gera o incentivo para delatar, tanto do segregado, como dos ainda soltos, no rastilho de delações que se verifica. Mas se é um negócio, e, como tal, precisa ser livre de coação, parece um tanto estranho que a liberdade fique vinculada à delação. Delatou pela manhã, solto pela tarde. A mensagem aos demais é: antecipe sua delação e não seja preso.

204 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS A prisão cautelar é completamente desvirtuada, para servir como instrumento de coação, qual seja: delate antes de ser preso e evite a prisão (e o espetáculo); ou, se já preso, delate logo para abreviar o sofrimento. Em última análise, o cerceamento da liberdade (ou risco real de) é uma poderosa moeda de troca a ser manipulada pelo acusador. O problema é que isso, além da completa deturpação do instituto da prisão cautelar e grave retrocesso democrático e civilizatório que representa, fulmina um dos pilares de legitimação de qualquer negociação: a liberdade para aceitar ou não a proposta e a necessidade de uma livre manifestação de vontade. É inegável que existe um constrangimento situaci‐ onal que elimina uma das bases de qualquer ‘bargaining’. (LOPES JÚNIOR; ROSA, 2015).2 Dessa forma, como bem asseveram os autores acima transcri‐ tos, é inegável que o uso da prisão preventiva na operação lava jata tem como finalidade precípua a de obrigar o acusado a cola‐ borar, dado que se realmente dita prisão tivesse por fundamento quaisquer das hipóteses elencadas no art. 312 do Código de Processo Penal3, não haveria como decretar o seu fim horas depois de ter o individuo assinado o acordo de colaboração, levando-se em consideração o teor e a relevância de cada hipótese. Ao permitir que se utilize da prisão preventiva como forma de obrigar o indiciado ou o acusado a firmar acordo com o delegado de policia ou Ministério Público, respectivamente, o Estado não está somente forçando o cidadão a abdicar dos direitos e garan‐ tias que lhes são assegurados pela Constituição Federal, mas também está permitindo que se utilize da tortura como meio de obtenção de informações, prática medieval e totalmente incom‐

COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”:… | 205 patível com o Estado Democrático de Direito (SANTOS et al, 2016, p. 17). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do presente estudo, buscou-se traçar um percurso acerca da utilização da colaboração premiada na operação lava jato, bem como as implicações da utilização, nesta operação, da prisão preventiva como forma de coagir o colaborador preso a realizar o acordo em troca de sua liberdade, o que configura uma modalidade de tortura psicológica, conforme o entendimento de alguns juristas e do ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes. Para entender as implicações da má utilização do instituto negocial na mencionada operação, foi feita uma breve análise deste caso específico e da inserção da colaboração no Direito brasileiro, assim como da sua previsão e aplicação nos ordena‐ mentos jurídicos da Itália e dos Estados Unidos, que serviram como base para a criação da legislação pátria sobre o assunto e que ainda hoje influenciam a prática forense. A partir das leituras e análises realizadas foi possível obter importantes conclusões e resultados acerca do tema, quais sejam: a operação lava jato constitui indiscutível marco na luta contra a criminalidade econômica e financeira no Brasil; a colaboração premiada é um relevante instituto de política criminal anti-orga‐ nizações criminosas que, quando devidamente usado, permite o desmantelamento das organizações; fazer uso da prisão preven‐ tiva para obrigar o colaborador preso a realizar o acordo invalida o instituto, pois atinge a voluntariedade que o caracteriza, bem como ofenda as garantias fundamentais previstas na Constitui‐ ção; a prisão preventiva configura prática de tortura psicológica para com o colaborador preso e, assim, põe em risco o Estado

206 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Democrático de Direito, que pressupõe o devido processo legal e na inadmissibilidade da tortura. Os resultados obtidos neste simplório estudo chamam atenção para um enorme problema que tem acometido a operação lava jato e que põe em discussão a legalidade e a legiti‐ midade dos procedimentos nela realizados, notadamente aqueles que dizem respeito aos acordos de colaboração premiada, vez que, se antes da realização destes o indivíduo se encontrava preso preventivamente, é discutível a sua voluntariedade, pois esta pode estar viciada pela coação psicológica, lê-se, tortura psicológica. Conseguinte, ao permitir que o indivíduo suspeito seja preso preventivamente unicamente para obrigá-lo a cooperar com a justiça, o que o Estado institucionaliza não é a cooperação dese‐ jada, mas sim uma forma de tortura psíquica e descabida, total‐ mente incoerente com a dignidade da pessoa humana, princípio, direito e fundamento desta República. REFERÊNCIAS ALMEIDA, RAISSA TUYANNE GOMES DE. Delação premi‐ ada: presença no ordenamento pátrio e embate ético. Disser‐ tação (Bacharelado em Direito) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2011. ARAS, Vladimir. Sétima crítica: a prisão preventiva do cola‐ borador é usada para extorquir acordos de colaboração premiada, 2015. Disponível em: <https://blogdovladimir. wordpress.com/2015/05/13/setima-critica-a-prisao-preventiva- docolaborador-e-usada-para-extorquir-acordos-de-colaboracao- premiada/>. Acesso em 10 de novembro de 2018. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras

COL ABORAÇÃO PREMIADA NA “OPERAÇÃO L AVA JATO”:… | 207 providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L8072compilada.htm>. Acesso em 11 de novembro de 2018. BRASIL. Congresso Nacional. Lei Nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras provi‐ dências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L8137.htm> Acesso em 9 de novembro de 2018. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2018. BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investi‐ gação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto- Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2 de agosto de 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/ 2013/lei/l12850.htm>. Acesso em 10 de novembro de 2018. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial, Rio de Janeiro, RJ, 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em 11 de novembro de 2018. BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou ocultação de bens: lei 9.613, 03.03.1998. In: GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério

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CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS CRIMINAIS E A REPERCUSSÃO DE UM CONCEITO DE DESVIO NA PERSECUÇÃO PENAL MARIA FLAYANE DOS SANTOS PINTO; JOSSEANE FÁTIMA DE LIMA; MARCELO D’ANGELO L ARA 1 INTRODUÇÃO O PRESENTE TRABALHO TEM POR ESCOPO REALIZAR UM ESTUDO sobre a influência midiática no âmbito criminológico, mormente, no que se refere à persecução penal, à luz dos principais pontos debatidos pelas Escolas da Criminologia Positiva e Crítica, bem como, principalmente, as teorias do interacionismo simbólico e etiquetamento social ou labeling approach. Nesse sentido, leva-se em consideração o conceito de criminologia “midiática” aperfei‐ çoado por Eugenio Raul Zaffaroni (2013), na obra “A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar”, tendo em conta o crescente aumento do poder simbólico exercido pela mídia, considerada por algumas teorias jornalísticas como o “Quarto Poder” devido à sua tamanha influência na opinião pública. Com isso, este trabalho pretende averiguar, a curiosa forma através da qual se constroem estereótipos criminais socialmente, em razão da influência midiática, considerando que esta constrói um discurso que passa a ser recepcionado pelo seu público, na opinião de Zaffaroni (2013), em razão da legitimada diferenci‐

212 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ação que faz entre o “nós” e o “eles”, de modo que cria-se uma separação entre aqueles que defendem serem os “decentes” frente aos enquadrados como “maus”. Assim, busca-se entender como essa manifestação dialética se legitima e, concomitantemente, repercute na criação de estigmas que se estruturam e carregam um significado social, tendo por resultado a interiorização daqueles pelo próprio sujeito estigmatizado e, sobretudo, culmi‐ nando em políticas criminais voltadas ao combate do que se considera um “mau”. Para tanto, serão esmiuçados os principais pontos pertinentes à consecução de tais fins, de modo que, a partir da metodologia de pesquisa exploratória e bibliográfica, serão reunidos, essenci‐ almente, como referencial basilar, as lições extraídas da obra de Zaffaroni, acima mencionada, a qual permite desenvolver o objeto de estudo pretendido, considerando o seu aprofunda‐ mento teórico no tocante à relação mídia e criminologia. Ademais, ter-se-á, também, como sustentação teórica, a obra de Alessandro Baratta (2002), “Criminologia crítica e crítica do Direito Penal”, e de Howard S. Becker (2008), “Outsiders: estudos de sociologia do desvio”, que são sumamente relevantes para a compreensão da ideia de desvio, de reação social e de repressão as condutas consideradas desviantes. 2 A CRIMINOLO G IA “ M I D IÁT I C A” A relação entre mídia e criminalidade esteia um diálogo que parece representar duas tangentes que em certo momento se interseccionam, uma vez que, de um lado, tem-se uma rede de comunicação que exerce um papel simbólico sobre os seus inter‐ locutores, criando nestes a ideia de que a tudo conhecem ou podem conhecer; por outro lado, a criminalidade aparenta ganhar, em tal rede, uma representação direcionada à construção

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 213 de uma opinião pública sobre o crime, os culpados e o sistema punitivo. Nessa perspectiva, o que se percebe é que no mundo Globali‐ zado, os meios de comunicação de massa, cada vez mais influen‐ tes, fomentam julgamentos, na maioria das vezes, em tom sentenciador, que repercutem de forma direta no modo de enxergar realidades por parte de seus interlocutores. Assim, é baseando-se nesta expressiva influência midiática na construção de pensamento social, mormente no que se refere à significação que é atribuída ao crime, que se vislumbra o que passou a chamar-se de “criminologia midiática”. Consoante disposição de Zaffaroni (2013), as pessoas que não comungam de uma criminologia acadêmica voltada para estudos ou trabalhos específicos da área, nutrem-se do que dispõe a criminologia midiática, isto é, possuem uma visão de crime criada especificamente pelos meios de comunicação. Nesse sentido, o autor afirma: “a criminologia midiática sempre existiu e sempre apela a uma criação da realidade através de informação, sub-informação e desinformação, em convergência com precon‐ ceitos e crenças” (ZAFFARONI, 2013, p. 290). Nesta seara, defende Zaffaroni (2013) que os discursos propa‐ gados pela mídia são recepcionados pelos indivíduos em razão da legitimada diferenciação que faz entre o “nós” e o “eles”, de modo que se cria uma separação entre aqueles que defendem serem os “decentes” frente aos enquadrados como “maus”, conforme se observa:

214 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identifi‐ cada através de estereótipos que configuram um eles sepa‐ rado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomo‐ dam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros e imaculados (ZAFFARONI, 2013, p. 308). Na obra “Em busca das penas perdidas: a perda da legitimi‐ dade do sistema penal”, preleciona o autor que “na América Latina, o estereótipo sempre se alimenta das características de homens jovens das classes mais carentes” (ZAFFARONI, 1991, p. 131). Preponderantemente, relaciona em suas obras os estereó‐ tipos midiáticos às classes mais baixas e as que vivem em pontos periféricos. Nesse contorno, observa-se que o se constrói é uma caracterização negativa de determinados indivíduos e localida‐ des, tendo em conta que, mesmo os expondo superficialmente, constroem uma identidade de sentido em torno da periculosi‐ dade que representam. Nesse contexto, cabe trazer à tona pesquisa realizada por Ramos e Paiva (2007), cujo enfoque se deu no fato de que, no Brasil, as reportagens relacionadas à comunidades que vivem em morros (favelas), em grande parte, apenas destacam as operações policiais, os agentes delituosos (com traços específicos) e as inva‐ sões, não deixando espaço para explorar outros pontos da comu‐

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 215 nidade, os quais possam lhe atribuir efeitos positivos. Com isso, defende-se: A mídia apresenta uma imagem ideal do jovem, com atri‐ butos de beleza, saúde e alegria. Esse padrão corresponde perfeitamente ao perfil do jovem de camadas médias. Há, no entanto, uma outra juventude, pobre, que na retórica da mídia, passa a ser representada como delinquente, drogada e criminosa. O discurso sobre esses jovens, moradores das periferias e favelas, pelos meios de comunicação, está asso‐ ciado frequentemente à questão da marginalidade. Dessa forma, os meios de comunicação, que muitas vezes têm a função de denunciar situações de desrespeito aos direitos de cidadania, também contribuem para a construção e a manu‐ tenção dos estereótipos negativos dos jovens pobres, tratando-os como “criminógenos” (MINAYO et al., 1999, p. 18). O interessante, por esse viés, é que para construção do “eles” faz-se questão de mostrar os crimes cometidos pelos estereotipa‐ dos, de forma que parecem ser selecionados os delitos conside‐ rados mais perversos ou violentos, a fim de encaixá-los simetricamente ao estereótipo indicado; enquanto que, delitos realizados pelos indivíduos que não adaptam-se ao “eles”, são minimizados e apresentados de forma distinta, pois não servem para subsidiar aquilo que pretende dar efeito negativo. Portanto, enfatiza Zaffaroni (1991), que tais estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, em contrapar‐ tida, deixa de fora outros tipos de delinquentes (delinquência de colarinho branco, dourada, de trânsito, etc.). Assim, com base

216 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS nesses fatores, acaba havendo um olhar da sociedade centrado diretamente para tais indivíduos, bem como a atuação seletiva por parte do sistema de controle penal, tendo em vista o fato de que atuam pautados em tipos pré-fixados, deixando ilesos indiví‐ duos que também operam violando a legislação e que, todavia, não se encaixam no “eles”. Além disso, essa catalogação repercute de forma direta na problematização que se dá aos delitos cometidos pelos indivíduos estereotipados, em que se observa que, quanto a estes, há o fomento de um debate em torno de segurança pública, um sistema penal e punitivo mais assíduo (gravoso) e toda uma estru‐ tura de proteção (pública e particular) contra “eles”. Nessa conjuntura, ao passo em que se estimula um sistema protetivo pautado na proteção e distanciamento daqueles considerados perigosos, articula-se a ideia de que apenas a repressão violenta terá eficácia, não devendo-se estender garantias penais a indiví‐ duos que violam direitos alheios e que, por isso, merecem ser coibidos severamente. Outrossim, há, ainda, a construção da ideia de que se esses sujeitos não são criminosos, possuem, ao menos, potencialidade para o ser: A mensagem é que o adolescente de um bairro precário, que fuma maconha ou toma cerveja na esquina, amanhã fará o mesmo que o parecido que matou uma anciã na saída de um banco e, portanto, há que se afastar todos eles da sociedade e, se possível, eliminá-los (ZAFFARONI, 2013, p. 310). Outrossim, cabe salientar que essa construção ideológica de um tipo subversivo, distinto dos “bons” cidadãos, corrobora inti‐ mamente com os preceitos difundidos pela escola criminológica Positiva, cujo arcabouço teórico fixou-se, basicamente, na figura

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 217 do criminoso e em seu reconhecimento através de tipos conclusi‐ vamente fixados através de estudos científicos. Nessa percepção, construiu-se a ideia de que existem fenótipos específicos de criminosos, os quais podem ser visualizados por um estereótipo pré-definido, o que denota o fato de que, embora tenha a socie‐ dade evoluído em largas escadas após o período de estudo dessa escola, não se desvencilhou da catalogação e da procura por criminosos exaustivamente caracterizados. Realizadas essas considerações acerca da “criminologia midiá‐ tica”, como temática aprofundada por Zaffaroni (2013), é de expressiva importância considerar algumas teorias que se inter‐ ligam diretamente com a problemática abordada, conforme será feito a seguir. 3 O INTERACIONISMO SIMBÓLICO E A ECLOSÃO DA TEORIA DO ETIQUETAMENTO SOCIAL OU “LABELING APPROACH” Analisada a interação mídia-criminologia, é de imprescindível valia trazer à baila a teoria sociológica do “interacionismo simbó‐ lico”, a qual contribui para que se verifique que o modo através do qual se projetam estereótipos em determinados sujeitos culmina em sua absorção por eles mesmos e, além disso, esmiúça o fato de esse processo repercutir na criminalização de condutas e distan‐ ciamento dos sujeitos julgados perigosos. A teoria em comento foi desenvolvida a partir da década de 1930 e teve como expoentes George Mead, Erving Goffman e Herbert Blummer. O termo utilizado refere-se, intimamente, à interatividade existente entre os seres humanos, em um contexto no qual uns atribuem significado às ações dos outros. Desta feita, de acordo com essa corrente, de modo geral, todos os indivíduos possuem uma individualidade, cuja formação se dá a partir das exigências projetadas pelos outros, ou seja, o modo como cada

218 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS sujeito se vê decorre da reação de seu “eu” à forma através da qual os demais o enxergam. Destarte, considerando a interação entre o indivíduo e aquilo que ele verifica ser projetado ou esperado pelos demais frente a ele, sedimenta-se uma questão crucial: Se os outros o têm por diferente ou inferior, provavelmente ele também se verá dessa forma e assim será tratado. Isso traz também consequências para o processo de criminaliza‐ ção, já que é preciso considerar duas coisas diferentes: uma é cometer um ato definido como crime, outra é ser definido como criminoso. O rótulo de criminoso gera para o indi‐ víduo consequências individuais e sociais. Faz com que seja visto pela sociedade, no processo de interação, como alguém de caráter negativo, ruim. Como sua percepção é influen‐ ciada pela sua imagem social, ela também será afetada. E esse fato poderá, inclusive, por si só, gerar a chamada delinquência secundária (VERAS, 2016, p.93). Conforme se observa, essas expectativas de conduta podem culminar em uma atuação reflexa por parte do sujeito, a qual pode ser positiva ou negativa. Em vista disso, se nele apenas se projeta uma estigmatização de cunho negativo, é assim que isso pode vir a ser recepcionado na sua individualidade, fazendo com que de fato responda aquilo que nele enxergam. Nesse ponto, enfatiza Veras (2016), que o indivíduo dotado de estigma é desprezado socialmente e passa a desacreditar em si mesmo, fazendo com que tenha suas oportunidades reduzidas em sua vivência social, o que contribui ainda mais para que haja um afas‐ tamento dele perante a sociedade. Tendo em conta esse fenômeno de interação social abordado

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 219 pela teoria do interacionismo simbólico, vislumbra-se certa curi‐ osidade no que se refere a forma como os fatores que contribuem para estigmatização se desenvolvem socialmente, posto que, começam em comentários, posteriormente se legitimam na forma de discurso (estruturado pela mídia e aceito pelos seus destinatários) e, concomitantemente, repercutem na criação de estigmas/estereótipos que se estruturam e carregam um signifi‐ cado social, o qual termina sendo incorporado pelo próprio sujeito estigmatizado e culminando em políticas voltadas ao combate do que considera-se um “mau”, neste teor: O conceito de estereótipo é hoje indispensável para explicar como funciona a seleção criminalizadora policial ou judicial. No bairro, costumam chamá-lo de pinta de ladrão e é uma espécie de uniforme do outsider, mas por causa das demandas de papel não é algo apenas externo; seu portador vai incor‐ porando, vai se obrigando a engolir, a tragar o personagem, assume-o à medida que responde às demandas dos outros, seu mim vai sendo como os outros o veem, é como o estereó‐ tipo respectivo (ZAFFARONI, 2013, p.226). Nesse contexto, como enfatiza Zaffaroni (1991), a rotulação considerada pelo interacionismo dá expressividade ao fato de que todo o aparato do sistema penal se prepara para essa estigmati‐ zação e acaba por lhe dar reforço. Além do mais, o interacio‐ nismo descreve detalhadamente o processo de produção e reprodução da delinquência. É nesse paradigma que se desenvolve a teoria do “etiqueta‐ mento social” também conhecida como Teoria da Rotulação (ou Labeling Approach Theory), a qual delimita uma abordagem acerca dos termos “estigma” e “estereótipos criminosos”. Esta

220 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos da América e representou um marco para a teoria da criminalidade, em momento de transição da criminologia tradicional para a crimi‐ nologia crítica. Esta última estuda a criminalidade como crimina‐ lização, com base em teorias sociológicas e criminológicas, ilustrada por processos seletivos de construção social do comportamento criminoso como forma de garantir as desigual‐ dades sociais das sociedades contemporâneas. Alessandro Baratta (2002) sustenta que, a Criminologia Crítica possui como base o paradigma de estudar a criminalidade como uma realidade social construída pelo sistema de justiça através de reações sociais e definições de criminalidade. Desta forma, teria como conclusão o fato do criminoso ser um “status social” atribuído a certos indivíduos selecionados e rotulados pela sociedade, ou seja, o comportamento criminoso seria o comportamento rotulado como criminoso. Segundo o autor, os precursores da teoria supracitada, especi‐ almente Howard S. Becker, apontam a pesquisa em duas perspec‐ tivas: uma para a análise da formação “desviante” do indivíduo, que consiste no efeito de etiquetar o “criminoso”; e outra em explorar a construção do “desvio” como característica cominada aos comportamentos dos indivíduos. A rotulação seria o processo pelo qual cria-se o papel desviante e se mantém através da comi‐ nação rótulos delitivos aos indivíduos. Compartilhando dos ensi‐ namentos de Becker, criador da Sociologia do Desvio, explica-se que:

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 221 O fato central acerca do desvio é que ele é criado pela socie‐ dade. Não no sentido que é comumente compreendido, de que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação. O que se quer dizer é que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsi‐ ders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 2008, p. 21-22). Neste sentido, a Teoria do Etiquetamento Social é destacável no novo paradigma criminológico em que o conceito de desvio não está na negatividade da conduta praticada, mas sim na forma como a sociedade reage a ela, que distingue o cidadão comum do criminoso por meio da construção de estereótipos. Portanto, para compreender tal teoria faz-se mister desmembrar dois tipos de criminalização: a primária e a secundária. Associando a Crimino‐ logia Crítica, esta compreende que a criminalidade é um “status” atribuído aos indivíduos com base nessa dupla criminalização seletiva. A criminalização primária está relacionada com a rotulação do criminoso de acordo com conceitos culturais e históricos de uma sociedade. Além disso, refere-se à definição de condutas consideradas criminosas pelo legislador pela frequência em que são praticadas. Em contrapartida, a criminalização secundária, predomina a atuação das agências de controle social sobre o indi‐ víduo estereotipado como delinquente. Becker (2008, p.28)

222 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS afirma que: “Se um ato é ou não desviante [...], depende de como outras pessoas reagem a ele”, evidenciando, assim, a ideia do “desvio secundário”, em que o indivíduo será considerado desviado de acordo com o modelo de comportamento pré-esta‐ belecido por um grupo de indivíduos que atém o poder em socie‐ dade. Em razão disso, a criminalização secundária seria a responsável pela invenção de rótulos dentro de uma sociedade e disto nasceriam mais criminalizações, como a reincidência. Com base nessas teorias o que se verifica é a notoriedade do fato de que o processo de estigmatização de certos indivíduos como “desviados” do modelo padrão de sociedade, representa um processo que, inicialmente, delimita as condutas configuradas como desviantes e, posteriormente, organiza-se um modelo de repressão direcionado aquelas. Além disso, denota que uma das consequências de ambos os fatores é a projeção de uma expecta‐ tiva de conduta negativa no próprio indivíduo estereotipado, a qual tem a potencialidade de influir diretamente na sua visuali‐ zação enquanto sujeito social e fazê-lo responder, de fato, ao que dele esperam. Com esse aparato, vai desenvolvendo-se a criminologia midiática, que se volta contra o “eles” e estigmatiza qualquer situ‐ ação que não esteja dentro do padrão de construção de uma reali‐ dade considerada adequada. Por isso, como elencado por Zaffaroni (2013), esses estereótipos catalogam os indivíduos a serem distanciados do âmbito social, sendo isso perceptível quando se analisa a repercussão dada a um crime contra a admi‐ nistração pública e, do outro lado, um furto de caixa eletrônico, por exemplo. Contudo, cabe ressaltar que as teorias supracitadas são alinhadas à criminologia crítica e rompem com a corrente do pensamento criminal que considera personagens estereotipados em suas análises biológicas e psíquicas (Escola Positiva), uma vez que para a escola ora mencionada tem-se como ponto de partida

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 223 os mecanismos sociais que fomentam a criação e aplicação das definições de desvio e de criminalidade. Nesse sentido, o olhar científico-criminal passou a centrar-se na atribuição que é dada a determinados indivíduos, mediante a crítica de uma sistemática penal que parece corroborar com a seleção e controle de sujeitos expressamente estigmatizados. Diante disso, é de suma importância compreender que a “con‐ duta desviante” apresenta-se como um resultado direto de todo um contexto social, não se resumindo a uma qualidade do ato praticado pelo indivíduo ou de seus caracteres biológicos ou psíquicos, mas, aponta-se que pode ser uma consequência da incorporação pela sociedade das regras e sanções para o delin‐ quente, ou seja, rótulos do que é correto ou não. Dessa forma, leva-se a visualização de que a mídia, dada sua influência comu‐ nicativa e de opinião, tem uma participação muito grande na construção desse conceito de “desvio”. Compreendendo esse panorama conceitual pertinente ao tema, cabe destacar a forma como a mídia contribui no processo de estigmatização de determinados indivíduos, assim como na sua recepção pelas esferas estatais em razão da demanda social que passa a ser incentivada pelos meios midiáticos. 4 A ATUAÇÃO DA MÍDIA: ANÁLISE DE MANCHETES ELUCITADIVAS O “labelling approach” e o paradigma do papel desviante do indi‐ víduo têm maior expressão no processo de construção social da criminalidade através dos mecanismos de etiquetamento ou da seletividade das condutas e dos indivíduos. Assim, tem como ponto de partida a tese de que o desvio e a criminalidade não são uma qualidade inerente ao indivíduo, mas uma etiqueta a ele atri‐ buída através de complexos procedimentos de interação social, isto é, de processos formais e informais de definição e seleção do

224 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS sistema penal. Com isso, pode-se dizer que esse etiquetamento, que constitui base da teoria, é influência da construção de este‐ reótipos pela sociedade, os quais são reafirmados e incentivados pelos meios midiáticos, que exercem um controle social informal sobre as pessoas e acabam, com seu discurso, delimitando a própria atuação do direito penal em seu âmbito de abrangência. É perceptível, como já elucidado nos itens acima, que as etiquetas são atribuídas a indivíduos específicos, em razão de motivos distintos, seja raciais, culturais, sociais ou econômicos. Estas, nos veículos de comunicação, se fazem presente principal‐ mente nos títulos chamativos das notícias jornalísticas, em que são utilizados mecanismos que permitem perceber uma rotulação quanto aqueles que pertencem às classes econômicas baixas e com traços sociais específicos, os quais são considerados desvi‐ antes pelo modelo “padrão” de sociedade, corroborando com a realização de um pré-julgamento antes mesmo da investigação sobre os fatos. Entretanto, se o fato jornalístico narrado refere-se à pessoas de classe média ou classe média alta que, consequentemente, não fazem parte dos concebidos como “desviantes” socialmente, o tratamento narrativo é totalmente distinto, utiliza-se um tom eufêmico, demonstrando a ideia de que deve ser dada uma menor relevância ao fato, em razão da figura específica de seus autores, permitindo uma maior aceitação social. Neste diapasão, vale citar como exemplo duas notícias jorna‐ lísticas reportadas pelo mesmo canal de comunicação, o G1, em um lapso temporal de 3 meses, decorrentes do mesmo ano (2018), no qual utiliza-se de vocativos distintos para casos semelhantes. A primeira manchete é “Casal de traficantes é preso pela PF com 1 kg de cocaína em Boa Vista”; enquanto a segunda é “Casal de estudantes é preso suspeito de tráfico de drogas em João Pessoa, diz PF”. É questionável o fato de tratar aqueles como traficantes e estes como suspeitos de tráfico. Além disso, foi feita exposição de

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 225 imagem da prisão do casal da primeira manchete, justamente para consolidar a figura daqueles que representam um perigo para sociedade. Enquanto na segunda manchete, a imagem dos indivíduos foi preservada, talvez porque não se encaixam no “eles”. O que se percebe é que, em seus editoriais, o foco do jornal não foi o de representar apenas a notícia, mas dar enfoque ao autor daquele fato, difundindo de forma ressaltante a imagem dos denominados ‘inimigos”, alimentando o aumento da repro‐ vação social e contribuindo para rotulação dos acusados, medi‐ ante o uso de expressões e imagens elucidativas, que permitem a conexão com o estereótipo delinquente. Outros exemplos expressivos, são referentes à três casos de homicídio, veiculados por meios de comunicação distintos, também, em um curto período de tempo e no mesmo ano. O primeiro, publicado no G1, traz na manchete que “Empresário foragido é suspeito de matar jovem e o irmão dele que testemu‐ nhou o crime no AP”. No segundo fato, também veiculado pelo G1, tem como título: Estudante de medicina que matou namo‐ rada espancada será indiciado por feminicídio, diz delegado”. Por fim, tratando-se de um mesmo crime, a notícia veiculada pela Band tem como manchete: “Preso bandido que matou em pizza‐ ria”. Sem dúvidas, se o sujeito que tivesse praticado o fato típico exposto na segunda manchete, possuísse características ao menos similares aos das primeiras (cor, classe econômica, escolaridade etc.), não seria taxativamente enquadrado como bandido, embora a gravidade e reprovação do crime fosse visivelmente maior do que o de fato cometido. Neste interim, também é válido elucidar duas notícias veicu‐ ladas pelo mesmo veículo de comunicação, em anos distintos. A primeira, publicada no final de 2017, pelo Diário de Pernambuco, expôs a seguinte manchete: “Aluno teria se apropriado de R$ 50 mil da turma e cancela sonho de formatura”. Em contrapartida,

226 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS no começo de 2018, foi publicado fato jornalístico, com a manchete: “Ladrões assaltam supermercado nos Aflitos”. O que se percebe é que os veículos de comunicação moldam seu discurso informativo de maneira a aproximar-se de seu público e causar maior impacto com o uso de uma linguagem notadamente utili‐ zada para tal. Por isso, a segunda manchete taxa nitidamente como ladrões os sujeitos a que se pretende abominar. Enquanto na primeira, o estudante praticou conduta similar, mas, o tom utilizado busca amenizar a postura do indivíduo. Torna-se evidente, no cotidiano dos noticiários, a busca pela criminalização através da divulgação de crimes e atos infracio‐ nais. Por isso, o modo como a mídia faz referência aos sujeitos ativo do delito, utilizando termos pejorativos e contribuindo para disseminação de estigmas, enseja uma percepção criminal distor‐ cida por parte da sociedade, que passa a exigir um controle maior no que se refere aqueles designados como perigosos, o que acaba por culminar em influência no âmbito institucional do direito penal. Assim, é imprescindível entender o papel da mídia na reafir‐ mação do conceito de indivíduo desviante do modelo de socie‐ dade construído pela minoria da população, no clamor por mais criminalização e na reprodução para a seletividade do sistema penal. Tendo por base a difusão de opiniões institucionalizadas, que podem influenciar a opinião pública, contribuindo para fomentar a criação de etiquetas sociais, e a compreensão, avali‐ ação e reflexão crítica dos poderes estatais no âmbito da perse‐ cução penal. 5 A RECEPÇÃO DA ESTIGMATIZAÇÃO CRIMINAL NO ÂMBITO DO SISTEMA DE PERSECUÇÃO PENAL Diante dos paradigmas alavancados pelas teorias acima descritas (item 3), evidencia-se que a rotulação cataloga sujeitos conside‐

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 227 rados criminosos e subversivos frente à sociedade, sendo tal cata‐ logação enfatizada pelo discurso midiático que dá sua contribuição com enunciações que evidenciam constantemente apenas alguns grupos como perigosos, fazendo com que se alimente na sociedade medos e preconceitos apenas em relação a sujeitos específicos. Nesse cenário, a mídia desempenha um papel criminológico que influi diretamente na percepção criminal da sociedade e na atuação jurídico-penal por parte do estado. Em razão da atuação criminológica da mídia, tem-se a cons‐ trução de um discurso que começa por catalogar determinados grupos como mais perigosos e sem regras. Posteriormente, não basta o catálogo, é preciso apresentar medidas a serem adotadas, com tom de imediatismo. Nesse contexto, o resultado não é outro senão a crença social de que essa realidade seja verídica e, consequentemente, a eclosão da ideia de que contra “eles” todos devem estar de prontidão, nutrindo, assim, a distorção de uma realidade criminal e um crescente clamor por punição. É propriamente no âmago desse entorno que surge a seletivi‐ dade por parte do sistema penal, visto que, criado o discurso e enfatizada a necessidade de punir, os clamores sociais são diri‐ gidos aos órgãos estatais, mormente na esfera legislativa, os quais, muitas vezes, sem fazer um estudo político criminal, acabam, em nome da “segurança”, cedendo aos clamores de uma criminologia midiática e de seus intérpretes. Nesse sentido dispõe-se:

228 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS O poder punitivo não seleciona sem sentido, e sim conforme o que as reclamações da criminologia midiática determinam. O empresário moral de nossos dias não é, por certo, nenhum Savonarola; são a política midiática, os comunicadores, os formadores de opinião, os intérpretes das notícias que acabam de comentar a disputa entre moças de biquíni para passar a reclamar a reforma do código penal. Evidentemente, por detrás deles se encontram os interesses conjunturais das empresas midiáticas [...] (ZAFFARONI, 2013, p. 342). Cabe ressaltar que, nesse viés, conforme bem acentuado por Martini (2007), a própria gênese da norma penal já aponta em um direcionamento para destinatários específicos, uma vez que a quantidade das penas cominadas nos tipos incriminadores expressa o comprometimento dos legisladores para com os inte‐ resses dos grupos políticos e socioeconômicos que representam e visam salvaguardar. Assim, observa-se:

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 229 A nossa legislação ordinária e especial é rica em demonstra‐ ções de seletividade na norma penal. À guisa de exemplo, tem-se a disparidade entre as penas previstas para os crimes contra o patrimônio público e o privado. O crime de roubo é punido muito mais severamente do que o de sonegação fiscal, levando à conclusão de que, para o conjunto da socie‐ dade brasileira, subtrair uma carteira mediante grave ameaça é mais gravoso do que sonegar milhões de impostos, ainda que o roubo da carteira apresente para vítima somente prejuízos materiais, quanto a sonegação pode ceifar inúmeras vidas, por subtrair recursos que seriam aplicados em políticas públicas. O diferencial da mensuração da pena é definido pelo dualismo da figura do agente transgressor da norma: pobre rouba; rico sonega. O interesse público tute‐ lado não é o da coletividade, mas o das classes que financiam as campanhas eleitorais dos parlamentares [...] e que legi‐ timam seus interesses minoritários através dos meios de comunicação (Martini, 2007, p. 45- 46). Por essa via, dar-se-á expressividade aos conteúdos veiculados pela mídia, que se confirmam em formas de leis, corroborando com a convicção de que aquela além de modular a percepção de crime e de criminoso de seus intérpretes, ainda é surpreendente‐ mente influente na adoção de políticas públicas e criminais. Ademais, reforça o intento social de que o “inimigo” seja tolhido e, concomitantemente, sua posição puritana mantenha-se a salvo, intacta. Urge, com esse panorama, o desenvolvimento da ideia de pena como a única e efetiva solução para criminalidade, sendo, como eloquentemente dispõe Nilo Batista (2002), qualquer discurso que a legitime bem aceito e incorporado nos editoriais e

230 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS crônicas, de forma que se ressalta a equação: se houve delito – tem que haver pena. Em razão disso, o jornalismo deixa de ser meramente informativo e passa a atuar politicamente, como defende: Cumpre reconhecer que quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a inves‐ tigação de um crime ou sobre um processo em curso e assume diretamente a função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do caso - de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução processual -, passou a atuar politicamente (BATISTA, 2002, p.6). Na opinião do autor supracitado, essa atuação política desem‐ boca na exposição da notícia dos delitos juntamente ao clamor pela responsabilização penal de seu autor, de modo que se evidenciam argumentos que impõem a necessidade urgente de pena, independente de devido processo legal, plenitude de defesa, presunção de inocência e outras garantias do Estado Democrá‐ tico de Direito. Assegura Batista (2002, p.23) que tal atuação “é um processo e um julgamento público que não devem satisfações à Constituição ou às leis, porém produzem efeitos reais: o mais importante não reside na prisão, e sim no próprio julgamento que fará”. Pautando-se nessa clamante necessidade de pena sobrelevada pela mídia, vem à tona questão crucial posta por Zaffaroni (2013), na qual se elucida que esse julgamento público corrobora com a incorporação de uma visão cada vez mais retributiva por parte da sociedade, tendo em vista que esta torna-se crescentemente mais convicta de que, identificado o “eles”, tudo que lhes for feito é pouco, generosidade, bom tratamento e gastos inúteis para o

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 231 estado, ou seja, implicitamente alimenta-se um discurso que reclama a morte, revestindo-se de um vocabulário bélico e prote‐ tivo que exalta a aniquilação “deles”. Como ressalta Zaffaroni (2013), determina-se que as garantias penais e processuais são para “nós”, não para “eles” que não respeitam os direitos de ninguém e, portanto, não possuem direi‐ tos, porque matam e são diferentes. Com isso, transmite-se a certeza de que a única solução é um modelo punitivo e violento que permita uma efetiva “limpeza” da sociedade. Assim, percebe- se que a mídia cria e forma opiniões acerca da inflexibilidade das penas como forma de solucionar a criminalidade, expandindo suas convicções para o público de modo persuasivo e manipula‐ dor. No entanto, em um sistema penal que é regulado pelo prin‐ cípio da dignidade humana e presunção de inocência, não é plausível a mitigação dos direitos e garantias processuais pela mídia, de forma que estigmatize um indivíduo e atinja, indiscri‐ minadamente, suas garantias mais básicas. Não obstante, inserindo-se nos meandros da política-criminal e, posteriormente, ensejando uma autêntica cobrança por puni‐ ções mais rigorosas e assíduas, a mídia influencia, massivamente, na seletividade no âmbito da persecução penal, no sentido de que reforça uma direcionada atuação por parte das instâncias formais de controle e aplicação da lei, que se ressaltam, conforme dispõe Martini (2007), através de uma espécie de triagem daqueles considerados “merecedores” da coação legal. Assim, acentua:

232 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS No vasto cenário da criminalidade, as forças policiais abor‐ darão mais facilmente as pessoas que apresentam o estereó‐ tipo de potenciais criminosos forjado pelo senso comum; [...] A imprensa noticiará com mais assiduidade os delitos patro‐ cinados por integrantes das classes perigosas, sobretudo se a vítima ocupar posição social significativa; [...] O ministério público inevitavelmente oferecerá denúncia nos casos de grande repercussão; O Judiciário, mediante a constatação dos requisitos formais, satisfará o clamor popular pela reali‐ zação de justiça, proferindo a reclamada condenação (Mar‐ tini, 2007, p.46). Nestes termos, constrói-se e desenvolve-se um sistema penal que já conhece seus destinatários e sabe, efetivamente, quem deve ficar retido da sociedade por mais tempo, tendo em conta o risco que representa, o qual é disseminado pela mídia e convictamente transmitido pela sociedade que, de fato, requer atuações cada vez mais severas para mantê-los distanciados. Assim, os meios de comunicação criam em torno dos fatos criminosos verdadeiros espetáculos, aumentando ainda mais a reprovação social, rotulando os acusados e os estigmatizando perante a sociedade. Atuando desta forma, contribui para promover a violência simbólica que, segundo Bourdieu (1992), é aquela “que se exerce com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e, também, com a frequência dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou sofrê-la”. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, torna-se perceptível o papel criminológico desempenhado pelos meios midiáticos, tendo em vista a notória

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 233 disseminação de um discurso que tem por escopo a diferenciação entre os considerados “bons” e os “maus”, de modo que utilizam de mecanismos que fomentam a deterioração da imagem dos sujeitos aos quais pretendem catalogar, em detrimento das eluci‐ dações eufêmicas referentes aos que não possuem as caracterís‐ ticas do “eles”. Em razão disso, evidencia-se que esses meios não se limitam ao repasse de informações, uma vez que se colocam a frente de uma narrativa de julgamento e condenação que expressa efetiva parcialidade, capaz de aprofundar o receio e a ignorância do público. Nessa perspectiva, vislumbra-se a percepção de que a mídia contribui diretamente para construção da mencionada “crimina‐ lização primária”, através da divulgação de notícias imparciais e persuasivas que influenciam diretamente na formação da opinião pública, sentenciando os sujeitos considerados perversos através de um discurso perceptivelmente direcionado para isso. Assim, a estigmatização é certa e parece irreversível, fazendo com que o preconceito seja disseminado em grandes proporções na sociedade. Contudo, sendo perceptível a influência da mídia na visuali‐ zação criminal da sociedade, torna-se evidente, conforme eluci‐ dado, o que enunciara Zaffaroni (2013) acerca da atuação desse meio, considerando seu direcionamento específico em torno dos fatos criminais envolvendo os indivíduos a que se pretende atri‐ buir, cada vez mais, um caráter negativo. A partir disso, enfatiza- se um discurso punitivo e retributivo, que tem por base sujeitos particulares, os quais devem ser tolhidos do âmbito social. Ademais, tendo em pauta o quadro teórico esmiuçado pelas teorias do interacionismo simbólico e do etiquetamento social, é inequívoco o fato de a construção dos estereótipos criminais representar um processo que, inicialmente, delimita os padrões de comportamentos considerados desviantes, os quais são enfati‐ zados pela mídia, e, posteriormente, culmina na organização de

234 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS modelos de repressão direcionado aqueles. Com isso, percebe-se, justamente, a forma de atuação estatal no que se refere a perse‐ cução penal, tendo em vista que atua criminalizando e tornando cada vez mais evidente o endurecimento das medidas a serem adotadas aos sujeitos delimitados como perigosos, especialmente, em atenção ao clamor social. Nestes termos, em oitiva ao que a sociedade demanda com base em um temor estimulado pelos meios de comunicação, os órgãos estatais, mormente na esfera legislativa e judiciária, têm suas atividades vinculadas ao combate das condutas reiterada‐ mente tidas como desviantes. Assim, consolida-se um discurso de vingança, estimulado pela criminologia midiática, o qual se traduz em maior violência no sistema penal, endurecimento das leis, maior autonomia policial e a criação de uma necessidade de proteger-se “deles”. Feitas tais considerações, pode-se considerar que os objetivos pretendidos com a pesquisa foram alcançados, uma vez que foi possível fazer um paralelo entre as teorias descritas, a atuação criminológica dos veículos de comunicação e as respostas estatais que lhe são conferidas. Todavia, é oportuno considerar que não pretende-se negar os problemas criminais do país, tampouco defender os indivíduos que atuam infringindo as leis, mas sim promover uma reflexão acerca do nível persuasivo através do qual são expostos apenas sujeitos específicos, bem como no tocante a perpetuação de um discurso pautado na eliminação dos considerados perigosos e de negação dos direitos e garantias mínimas que devem ser estendidos a todos. Desta feita, é eloquentemente considerável ter como pressu‐ posto o fato de não ser necessariamente a etiqueta quem cria o delito, porém, a mesma contribui para que sejam perpetuadas arbitrariedades dentro da sistemática penal. Dito isso, sobreleva- se a necessidade de que os meios midiáticos atuem de forma responsável e imparcial, evitando a fixação de pré-julgamentos

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 235 que rotulam apenas condutas específicas, tendo em vista que, se o suspeito é ou não culpado, deve ser decidido pelas instâncias formais de atuação penal. Por fim, constata-se que o vínculo entre a mídia e a perse‐ cução penal sempre será caracterizado por conflito de valores, não existindo preceitos prefixados para ponderação desta rela‐ ção. Assim, à luz da análise dada pela Escola Crítica, em que se analisam os mecanismos sociais que fomentam a criação e apli‐ cação das definições de desvio e de criminalidade, assegura-se que os considerados como delinquentes são provenientes de um sistema que os seleciona e faz o controle deles. Portanto, a preo‐ cupação reside na forma como o Estado responde ao crime e os efeitos negativos que a rotulação de uma ação criminosa traz para o autor. REFERÊNCIAS Bayer, Diego Augusto. Teoria do etiquetamento: a criação de estereótipos e a exclusão social dos tipos. JUS BRASIL. Dispo‐ nível em: <https://diegobayer.jusbrasil.com.br/artigos/ 121943199/teoria-do-etiquetamento-a-criacao-de-esteriotipos- e-a-exclusao-social-dos-tipos/>. Acesso em: 19 set. 2018. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt.> Acesso em 15 nov. 2018. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão: A influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. G1. Casal de estudantes é preso suspeito de tráfico de

236 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS drogas em João Pessoa, diz pf. Disponível em: <https://g1.globo. com/pb/paraiba/noticia/2018/07/22/casal-de-estudantes-e- preso-suspeito-de-trafico-de-drogas-em-joao-pessoa-diz-pf. ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2018. G1. Casal de traficantes é preso pela PF com 1 Kg de cocaína em Boa Vista. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/ roraima/noticia/2018/10/04/casal-de-traficantes-e-preso-pela- pf-com-1-kg-de-cocaina-em-boa-vista.ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2018. G1. Empresário foragido é suspeito de matar jovem e o irmão dele que testemunhou o crime no AP. Disponível em: <https://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2018/11/09/ empresario-foragido-e-suspeito-de-matar-jovem-e-irmao-dele- que-testemunhou-o-crime-no-ap.ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2018. G1. Estudante de medicina que matou namorada espancada será indiciado por feminicídio, diz delegado. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/estudante- de-medicina-que-matou-namorada-espancada-sera-indiciado- por-feminicidio-diz-delegado.ghtml>. Acesso em: 18 nov. 2018. GLOBO PLAY. Preso bandido que matou em pizzaria na ceilândia. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/ 6902355/>. Acesso em: 18 nov. 2018. LINCK, Lívia do Amaral e Silva. Teoria do etiquetamento: a criminalização primária e secundária. Conteúdo Jurídico, Brasília -DF: 07 ago. 2018. Disponível em: <http://www. conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.591136&seo=1>. Acesso em: 21 out. 2018. MARTINI, Márcia. A seletividade punitiva como instru‐ mento de controle das classes perigosas. MPMG jurídico. Ano III. n. 11. 2007, p. 45-46. MINAYO, Maria Cecília de Sousa. Et al. Fala, galera: juven‐ tude, violência e cidadania. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

CRIMINOLOGIA E MÍDIA: A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓ… | 237 RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e Violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007. VERAS, Ryanna Pala. Política criminal e criminologia humanista. 2017. 192 p. Tese de doutorado – Pontifícia Univer‐ sidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. ______. A palavra dos mortos: conferências de crimino‐ logia cautelar. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA SEMIDEMOCRACIA BRASILEIRA YNARA MAYARA DE ALMEIDA LINS ALVES; JACKSON MIGUEL DE SOUZA; VINÍCIUS LÚCIO DE ANDRADE RESULTADOS PROMOVER DISCUSSÕES E AÇÕES PAUTADAS NA IGUALDADE E dignidade da pessoa humana é necessário, sobretudo, no que diz respeito aos direitos fundamentais. Na sociedade brasileira debater tal temática representa um grande avanço para a desconstrução de alguns paradigmas. No limiar do século XXI, o Brasil ocupa a décima posição dentre os países mais desiguais no mundo (PNUD; IPEA; FJP, 2017). Este fenômeno se dá pela existência de uma democracia, muita das vezes, restrita apenas ao plano jurídico. Como bem expresso no artigo 5° da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei”. Não obstante, este texto normativo não reflete a vida cotidiana da população, por conseguinte não possibilita o alcance de uma autêntica democracia. A título de exemplo, não se democratizou o acesso ao saber, à riqueza, à saúde, às condições mínimas para uma vida digna. Na prática, vive-se num grande apartheid social1. Esta segregação de indivíduos fruto da falta de democratização de elementos basi‐

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDA… | 239 lares da vida humana, acarreta numa deterioração dos princípios que regem o Estado Democrático de Direito, corrompendo-o a uma forma de Estado de polícia. Este que não respeita o ordena‐ mento jurídico vigente nem as necessidades dos mais vulneráveis. Em frente a este quadro, intenta-se como objetivo geral desse artigo analisar de forma crítica como o Estado de Polícia suprime a democracia e impede que as práticas sociais e as garantias do interesse comum possam ser democratizados sob o prisma dos direitos humanos. Para que essa análise possa ser concretizada é necessário seguir tais objetivos específicos: analisar a importância do reco‐ nhecimento dos direitos fundamentais para o indivíduo, traçar um paralelo entre a atuação policial como meio de manifestação de um estado de polícia e seus agravos as garantias fundamentais. Por fim, identificar se a sociedade está acompanhando o processo de evolução nas relações de convivência, principalmente no aspecto dos antigos paradigmas que se infere nas instituições policiais. Esta temática é de interesse comum de todos os agrupamentos sociais, desde os mais simples até os mais complexos, em virtude de estar em voga a contenção do poderio estatal. Desse modo, para contribuir com um espaço de reflexão sobre o tema, urge um estudo acerca do estado de polícia, abuso de autoridade e direitos fundamentais nos interstícios da semidemocracia brasileira. Nesse sentido, o trabalho abrange situações a qual foram cometidas algum tipo de abuso de autoridade, nas esferas polici‐ ais, usando como pretexto a segurança pública. Para melhor compreensão, a pesquisa apresentará algumas discussões acerca do objeto de estudo. Para somar a este debate destaca-se a presença de alguns interlocutores, tais como: Foucault (1987), Hall (2001), Godoy (1989), Giacomolli (2006), Sarlet (2004),

240 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS Borges (2004), Piovesan (2010), Carrara et al (2006), dentre outros/as. Faz-se mister evidenciar a importância da existência de prin‐ cípios constitucionais para formação de um Estado Democrático de Direito. O Brasil, disciplinado por tais princípios e também signatário de Tratados Internacionais, nos últimos anos houve uma considerável intensificação das ações policiais. Estas que possuem a finalidade de combater os crimes, mas apesar da suma importância na promoção da segurança, não se pode ceder espaço para atitude desmedidas, como os casos em que a polícia excede sua atuação e contribui com o ultraje da dignidade da pessoa humana. Para Giacomolli (2006) o conceito de dignidade da pessoa humana é: [...] um atributo essencial que nasce com o ser humano, insubstituível e inegociável. O ser humano é um ser digno e assim deve ser reconhecido e tratado. Em nosso sistema jurí‐ dico, é o fundamento do Estado de Direito, por excelência, ao qual se vinculam todos os direitos, princípios e garantias. Violar a dignidade da pessoa humana é destruir o ser humano, descaracterizá-lo, reduzi-lo a um ser irracional e romper o ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito. Quem ofende a dignidade do ser humano está lesionando-se a si mesmo (Kant) (GIACOMOLLI, 2006, p. 79). Dessa forma, pode-se dizer que dignidade da pessoa é – um bem jurídico protegido e embasado nos Direitos humanos funda‐ mentais. Nessa ótica, os direitos humanos fundamentais estão previstos na legislação maior do país e que também são previstos

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDAM… | 241 na Declaração Universal de Direitos humanos. Para tanto, infere- se dizer, que num Estado Democrático de Direito não há espaço para atitudes fascistas, arbitrárias e/ou autoritárias, mesmo que intentem justificar tais atos em defesa da segurança pública. Para Salert (2003), dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca que a faz merecedora de respeito, ou seja, um complexo arsenal de direitos e deveres fundamentais que se complementam e protegem a pessoa contra qualquer ato desu‐ mano de tortura ou degradante. Aponta, além disso, que os direitos fundamentais “abrange, ainda, as mais diversas posições jurídicas que os direitos fundamentais intentam proteger inge‐ rências contra os poderes públicos” (SARLET, 2004, p. 59-60). Em pesquisa feita pelo projeto “Brasil Nunca Mais” no período de (1964-1979), percebe-se nitidamente a desconside‐ ração da dignidade da pessoa humana, pelo um Estado que recorre da violência desmedida a fim da manutenção do status quo. Prova disso, através do estudo foram elencados mais de 100 (cem) tipos de modos diferentes e execráveis de tortura realizado nesse período. Estas são caracterizadas por atos como: agressão física, pressão psicológica e utilização dos mais variados instru‐ mentos, aplicados aos presos, como a “cadeira de dragão”, o “afo‐ gamento”, o “pau-de-arara”, o “choque-elétrico”, a “geladeira”, o uso de “produtos químicos” etc. O emprego da tortura foi peça primordial de manifestação da engrenagem expressiva e repressiva posta pelo regime militar que se implantou nos anos ditatoriais em 1964. Nessa perspectiva, Canotilho (1999) atesta que o Estado Democrático de Direito deve ser formado por leis que possuam valores benéficos para os indivíduos. Portanto, medidas desumanas adotadas no período militar corroem o Estado de Direito e expande a instauração de um Estado de Polícia. De acordo com Morgana Calza (2015), a repressão à luta armada cresceu e uma severa política de censura foi colocada em

242 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS execução. Outros exemplos das fortes repressões do Regime mili‐ tar, alguns acontecimentos que marcaram à época: Imprensa: Os veículos de comunicação eram obrigados a enviar os seus materiais previamente e sujeitando-se a vistoria da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal. Exilados: Alguns artistas foram exilados durante o período de ditadura, como Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. Censura didática: Os professores de colégios e universi‐ dades eram vigiados pelos oficiais dos órgãos de repressão e os livros adotados em sala de aula também eram vítimas da repressão militar. Borges (2004, p. 19) observa que, “de todas as formas de opressão, a prática de tortura é a que mais fundo procura a desin‐ tegração da liberdade, marco fundamental do ser humano”. E ainda continua dizendo: “Agregue-se, contudo, que a tortura, por representar um gravíssimo atentado à dignidade humana, passou a ter uma dimensão internacional, de forma que o interesse na sua repressão atingiu um interesse supranacional (...)”. Na definição de Marilena Chauí, a contradição absurda que se estabelece com a tortura é a seguinte:

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDA… | 243 Deseja-se que, através da dor e da degradação, um ser humano vire “coisa” e ao mesmo tempo permaneça gente para que reconheça no torturador outro ser humano, pois se tal reconhecimento não existir, não pode haver confissão, não pode haver capitulação e, sobretudo não pode haver admissão do poder do torturador. Assim, o que a tortura cria é a situação-limite e impossível na qual se destrói a humani‐ dade de alguém para que esse mesmo alguém atue como humano, isto é, estabeleça com o algoz uma relação intersub‐ jetiva, sem a qual o torturador perde a função e perde o sentido (CHAUÍ, 1987, p. 33). No espectro da desumanização o torturador reprime e cria uma identidade contraditória inerente e “todas as dimensões de ternura, de cuidado, de solidariedade que vigem dentro da interi‐ oridade humana (...). O opressor, na verdade, é um reprimido e repressor contra o melhor de si mesmo. É a condição para sua tentativa funesta de desumanizar o torturado” (BOFF, 2006, p. 12). A TITULARIZAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS: SUA APLICAÇÃO IMEDIATA NA SOCIEDADE BRASILEIRA A partir do momento que se entende que os direitos fundamen‐ tais são universais, ou seja, todo mundo pode ‘titularizar’. Nessa perspectiva, indubitavelmente, compreende-se também, que os direitos fundamentais não são absolutos, eles não são ilimitados, uma vez que caso numa sociedade todo mundo usufrua o direito fundamental, de forma absoluta e de forma ilimitada, o resultado seria um caos social. Desse modo, ele forma o subs‐

244 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS trato do regime democrático, constituindo o objetivo primeiro de todas as nacionalidades que buscam a democracia. Nesse ínterim, de acordo com Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Os direitos fundamentais são hoje o parâmetro de aferição do grau da democracia de uma sociedade. Ao mesmo tempo, a sociedade democrática é condição imprescindível para a eficácia dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais eficazes e democracia são conceitos indissociáveis, não subs‐ tituindo aqueles fora do contexto desses regimes políticos (MENDES; GONET, 2012, p.104). É nessa consonância que se distinguem os chamados direitos do homem como – pautas ético-políticas – situados numa dimensão positivados e aptos para à produção de efeitos no plano jurídico. Lembra-se que os direitos fundamentais são restringí‐ veis e relativos. Há dois princípios Constitucionais que possibi‐ litam a limitação a Direitos Fundamentais; o primeiro princípio é a utilização indevida, o segundo, é o princípio da convivência das liberdades públicas. Num Estado Democrático de Direito – tanto as igualdades, quanto as liberdades precisam existir ao mesmo tempo. Uma sem prejudicar a outra, em hipótese alguma se pode pensar que para favorecer as igualdades tem-se que aniquilar as liberdades. E nem o Estado para garantir as liberdades aniquila as igualdades. Ambas têm de conviver. No entanto, a participação democrática é obrigatória no Estado Democrático de Direito. Ademais, os direitos fundamentais estabelecidos pelo Estado Democrático de Direito resguarda as pessoas contra medidas totalitárias marcadas por um Estado de polícias. De modo que

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDA… | 245 Souza (2015) elenca algumas ações penais incompatíveis com tal regime democrático: “mandato de busca e apreensão genéricos, prisões provisó‐ rias arbitrárias, proliferação dos autos de resistência, uso dos caveirões, emprego das Forças Armadas para fins de policia‐ mento, execuções sumárias, superlotação e precarização dos presídios” ESTADO POLICIAL E OS ABUSOS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O termo Estado Policial cunhado por Foucault consiste no desejo insaciável de controlar todos os âmbitos sociais. Em suas palavras ele descreve como sendo: “Para os governantes, o Estado de Polícia trata-se de consi‐ derar e encarregar-se não somente das diferente condições, isto é, dos diferentes tipos de indivíduos com seu estatuto particular, mas, sobretudo, encarregar-se da atividade dos indivíduos até em seu mais tênue grão”. O Brasil teve seu apagou do Estado de Polícia no período do regime militar que teve início no dia 31 de março de 1964, quando explodiu a rebelião das forças Armadas contra o governo de João Goulart. Sem condições de reagir ao golpe, João Goulart deixou Brasília, em 1° de abril de 1964, Jango passou pelo Rio Grande do Sul e, em seguida, dirigiu-se para o Uruguai como exilado político. A partir desse momento termina-se o período

246 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS democrático, então começa a ditadura militar (BARROSO, 2008, p. 3-7). Para evitar os protestos da sociedade, o regime militar cassou o direito de voto e calou as oposições por meio da censura ou pela violência da repressão policial. Muitos brasileiros foram mortos e torturados pela polícia política nesse período (ibid, p.07). Nesse contexto, percebe-se o esgotamento da democracia e aumento de atitudes repressivas respaldas no sistema penal. No período final da ditadura, o país estava assolado numa das maiores crises sociais e econômicas de sua história as pressões populares pela redemocratização e direitos fundamentais aumen‐ tavam. A abertura da democracia era inevitável. No contexto Brasileiro, a Constituição Federal de 1988 retomou o período da democracia representando a superação do autoritarismo e marcando o (re) começo do percurso político-institucional brasi‐ leiro (SARMENTO, 2007, p. 123). Os direitos fundamentais são o escopo das constituições contemporâneas, deixando de figurar apenas como direitos subjetivos. Como se sabe nos últimos anos a sociedade tem convivido com um crescente número de violência, e a polícia, mais do que nunca, vem tentando coibir tais atos e, vários acon‐ tecimentos nas esferas políticas, sociais e econômicas desenca‐ deou uma série de reações bilaterais nem sempre pacíficas, surgindo, inclusive a partir dessa compreensão a ideia de relação de poder, ou seja, que sempre haverá conflito de interesses e que os direitos fundamentais estarão de algum modo restrito (SAR‐ MENTO, 2007, p.119-122). Foucault (1987) afirma que o poder está presente em todos os lugares. Por essa razão, não faz sentido centralizar o poder como mecanismo de favorecer uma única possibilidade. Corrobora também que este poder de caráter coercitivo e imposto pela soci‐ edade é preestabelecido na história através “de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recorda, se repelem, ou se imitam,

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDA… | 247 apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral”. Segundo Foucault: Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e insti‐ tuições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corpori‐ fica-se em técnicas e se mune de instrumentos de inter‐ venção material, eventualmente violentos (FOUCAULT, 1979, p. 182). Como se percebe, Foucault mostra uma não identidade entre poder e Estado. O poder não pode ser visto como um processo global e centralizado. Este poder de caráter coercitivo e imposto pela sociedade é preestabelecido como uma rede de dispositivos ou mecanismos que atravessa a sociedade da qual ninguém escapa. Na analítica do poder de Foucault muitos são os discursos deslocados e impostos por representações sociais que se funda‐ mentam nas práticas dos indivíduos em relação na interação e na convivência ao contexto social como um todo, elas sinalizam o que pode ou não pode ver ou fazer. Foucault não quer negar a importância do Estado; sua intenção é demonstrar que as rela‐ ções de poder ultrapassam o nível estatal e se estendem por toda a sociedade. E como os sistemas dos seres humanos estão condi‐ cionados a ela.

248 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE SUJEITO, O MEIO E SUAS IDENTIDADES: UM NOVELO SISTEMÁTICO A identidade se constrói de maneira transformadora e contínua ao passo que haja interação entre os indivíduos num mesmo núcleo social. Logo, não pode ser vista por um processo absoluto e definitivo, muito embora, universal. Uma vez que cada núcleo dessa interação possuem suas próprias características, sua maneira de pensar, de ser, definidas a partir da realidade social deles (HALL, 2011; SCOZ, 2011). As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da história da linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. “Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos”, ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões” quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representa‐ dos” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios (HALL, 2000, p. 108, grifo nosso). Tratar da questão do papel social dos sujeitos na sociedade é deixar de considerar toda a diversidade, mas começar a deixar de enxergar como um “problema” e passá-la a pensar como consti‐ tuinte do nosso tempo será de grande transformação. Um tempo em que a diversidade não funciona mais como base na lógica da oposição de classes sociais, das religiões, da exclusão binárias e éticas, mas, em vez disso, supõe uma lógica mais complexa.

ESTADO DE POLÍCIA E ABUSOS AOS DIREITOS FUNDA… | 249 As leis, as emendas, os decretos, as formações continuadas são de suma importância para o papel de igualdade, tolerância e diversidade no Brasil. O espírito crítico deve prevalecer na atuação do novelo sistemático. E essa prática pode fazer toda a diferença na realidade social, porque, assim vão-se construindo seres inteligentes dotados de uma nova visão. Pessoas que possam refletir sobre o acesso de todos/as à cidadania e compreender que, dentro dos limites da ética e dos direitos humanos, as diferenças devem ser respeitadas e promovidas e não utilizadas como critérios de exclusão social, poder e política (CARRARA et al, 2006, p. 15). A sociedade deve ser construída através de valores que busquem enfatizar e garantir o direito de todos. Associar as expressões de diversidade religiosa, étnica, sexual, social, cultural e racial bem como circular, produzir conteúdos não discriminatórios e descontruir a oposição das relações de poder, certamente abrirá uma possibilidade de compreensão e inclusão de diferentes e múltiplas identidades presentes na humanidade. A visão crítica e dicotômica que a sociedade faz sobre identi‐ dades múltiplas está relacionada intrinsicamente aos fatores raciais e sociais. As diferenças existem e são estritamente para segregar. Para além dessa constatação entre as relações de poder, um elemento que parecem significativo e constante na história da cultura brasileira: a “problemática” da identidade nacional. Foucault (1987) demonstra que não existe uma teoria geral do poder, pois este não possui característica universal, ou seja, não existe algo unitário e absoluto. Pelo contrário, para o mundo ser igualitário não é necessário que as pessoas sejam iguais, ou

250 | L AVA JATO E ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS pensem da mesma forma, precisa sim de pessoas com direitos iguais por serem diferentes. Discussões Sabe-se que há corrupção no meio policial, todavia a segu‐ rança pública é aspecto primordial numa sociedade democrática, ou seja, a polícia é conhecida como uma instituição que faz parte do sistema de segurança, braço armado da sociedade e do estado. Por outro lado, percebe-se também que a estrutura criminosa vem crescendo e é preciso que haja o combate, tendo em vista os índices de corrupção no país e o código de silêncio que impera nesse meio criminoso. Compreende-se que a natureza pública do processo penal brasileiro, os excessos e preciosismos de alguns devem ser devidamente corrigidos, sob pena de violação ao sentido maior da norma, pois a igualdade das partes no processo, em um estado democrático deve ser de forma igua‐ litária. Traçar um paralelo entre estado de polícia e os abusos aos direitos fundamentais dentro da organização social, a partir de nova visão simplista e vertente pautadas no respeito e na promoção dos direitos humanos é de suma importância para um estado democrático. Visto que, para garantir a prevalência da vontade do Estado em preservar o interesse comum a todas as diferenças existentes na sociedade é um dos pontos principais. Na verdade, o principal instrumento de combate à injustiça social é a proteção da dignidade da pessoa humana, pelos direitos humanos fundamentais estabelecidos pela ordem pública, não havendo esse acesso pode-se dizer que se vive numa democracia na aparência, onde a sociedade brasileira ainda é cruel, exclu‐ dente e autoritária. Para tanto, é preciso conseguir mudanças de mentalidade, de modo que os cidadãos se sintam protegidos, tenham os seus direitos garantidos e sejam tratados com a dignidade que merece pela sociedade e instituições policiais, norteado pelo ordena‐


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