Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore Boqueirão

Boqueirão

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:03:53

Description: Plural Editorial
www.pluraleditorial.com

Search

Read the Text Version

aliança, convênio, pacto, contrato. O termo diz respeito ao ato que marca o judeu memória, cultura e identidade na terra e a sua aliança com Javé ou Jeová. Portanto, ao que parece, é judia a origem mais remota do clã familiar dos briythiysh (de “briyth” = aliança e “’iysh” = povo), o chamado “povo da aliança” do qual Abraão foi o fundador, conforme atesta o décimo quinto capítulo do Gênesis. Os Brito da Ramada descendem de Josefa de Brito, a cristã-nova que desposou de Gaspar Pereira de Oliveira, também marrano e filho de Antônio de Oliveira Ledo. A união dos Pereira (Oliveira Ledo) com os Brito originou o tronco matriz sefaradita da região da Ramada. Já quanto à matriz asquenazita, esta veio do so- brenome Barboza, família ruiva e de olhos azuis, de matriz germânica, que chegou à região de Ramada por volta de fins do século XVIII. Ao que parece, os Barboza era uma família grande e já em princípios do século XIX seus nomes figuram em documentos eclesiásticos, mas possivelmente Barboza nem fosse o sobrenome original da família, pois os imigrantes costumavam mudar a grafia de seus sobrenomes para demonstrar assimilação ou para evitar des- criminação social no Brasil. O novo sobrenome geralmente era escolhido com base no significado original do estrangeiro e é bem provável que o nome original desta família fosse Rothbart, convertido para Barboza, pois o sobrenome Rothbart quer dizer “barba ruiva”, em alemão, e foi convertido em Barboza, que vem de “barba roja” (espanhol), ou “barba rossa” (italiano). É bem provável que esses estrangeiros fossem ruivos, pois ainda se impõe na genética dos descendentes a característica do rutilismo. O gene para cabelos avermelhados é recessivo, mas ruivos podem nascer depois de gerações de morenos na família e na Ramada isso acontece sempre que troncos dos antigos Barboza se unem novamente em casamentos. Assim como o sobrenome Oliveira Ledo,o epíteto Barboza também não mais figura na região, os registros indicam que os antigos, mesmo os de sexo masculino, preferiram cunhar nos filhos o sobrenome das conjugues, talvez para ocultar suas origens asquenazitas, de modo que na região essas famílias de ascendência Bar- boza, sobretudo os Ramos, os Emiliano e os Brito, apresentam genética propensa ao rutilismo. 99

UM CARIRY TÊXTIL-ARTESÃO Na Ramada predomina uma hereditariedade social baseada na fiação e na confecção de cobertores, tapetes e, sobretudo, redes de dormir, e, conforme observa- mos, é nesse território onde se concentra a maior pureza cultural judaico-indígena dos primeiros tempos. A cultura têxtil ali instalada é inteiramente híbrida porque não ultrapassa seus limites mais próximos. Trata-se, essa região, portanto, de um microcariry que se desenvolveu regido pela cadência dos teares. No Nordeste a arte de fiar pode ser tomada como indício semita, visto que os primeiros criptojudeus que se registra em terras brasileiras eram fiadores de algodão, dado que, em 1593, no depoimento sobre o judaísmo que presenciou na casa da famosa judaizante Branca Dias, Anna Lins diz ao inquisidor que “costuma a ditta Branca Dias fiar sempre algodão pella semana...” (Apud MELLO, 1984 p. 54-57). A presença de artesãos judeus no setor têxtil em Portugal é remotíssima[13] e essa atividade da tecelagem judaica da Península Ibérica também foi trazida para o Brasil. Desde muito tempo, os hebreus produziam peças muitas vezes enfeitadas com bordados, fios entrelaçados de várias cores que embelezava e valorizava os tecidos, conforme atesta o Livro de Juízes (5:30), mas não faziam redes de dormir na península, estas só vieram depois de descoberto o continente americano. Chegando ao Cariry,os cristãos-novos,assim como todos os demais que vieram para a colônia portuguesa do além-mar, assimilaram a rede de dormir dos nativos, que se tornou muito útil para dormir,enterrar os mortos ou como meio de transporte. Desse modo,combinando elementos segundo seus códigos culturais de tecelagem,os colonos marranos passaram a confeccionar suas redes em algodão,uma inventividade vocacional, artesanal, familiar e doméstica, com cores, padronagens e enfeites de ele- mentos estéticos, como franjas[14] ou varandas pendentes. Por assim dizer, a rede de dormir passou não mais a ser apenas de uso do índio, mas também do colonizador e, subsequentemente, do homem sertanejo, modelada a partir do seu modo de vida. A mais antiga representação de povos semitas que se tem notícia é um mural pintado por volta do ano 1900 a.C., no antigo distrito de Gazelas, no vale do Nilo, na antessala do túmulo do príncipe Chnem-hotep, que viveu no reinado do faraó Sesóstris II (Apud KELLER, 1960 p. 74-75). O painel representa os semitas em perfis bem marcados, mais claros de pele do que os egípcios, os homens com barbas em ponta e as mulheres com cabelos longos e escuros,onde dois funcionários egípcios 13   A Bíblia faz inúmeras referências a arte tecelã dos hebraicos, antigos pesos de teares foram encontrados em vários locais em Israel. 14   A s franjas são muito valorizadas pelos israelitas e até a Torá exige que todo homem judeu use franjas (tsitsit) nos cantos de peças de vestuário que tenham quatro pontas (Números, 15: 37-41). 100

apresentam um grupo de estrangeiros ao príncipe e cujos hieróglifos esclarecem memória, cultura e identidade se tratarem de semitas (habitantes da areia, como eram conhecidos) e seu chefe chamava-se Abisai,[15] que tinha chegado ao Egito com 36 homens, mulheres e crianças de sua parentela, conduzindo animais domésticos, e trazia presentes para o príncipe. Esta imagem é impressionante pela retratação realista e expressiva das figuras,mas o que mais nos chamou a atenção foram os trajes,artisticamente listrados, em cores variegadas, e cujas estamparias em muito lembram as redes ramadenses. Imagem 3 Genuinamente artesanal, para a confecção das redes na primitiva Ramada, se preparava o próprio fio, plantava-se e colhia-se o algodão, descaroçava manual- mente, sem uso de descaroçadora, e, num conjunto de fios de mesmo comprimento, reunidos paralelamente entre barrotes de madeira, se fazia manualmente a trama. As peças produzidas, desde a urdidura do fio e tessitura do pano, eram simples e, invariavelmente, obedeciam e uma variedade fixa de cores e uma padronização en- xadrezada, padrão têxtil em que os judeus estavam familiarizados, visto que o Êxodo cita que a veste usada pelo sumo sacerdote devia ser tecida em padrão enxadrezado. A partir do século XIX passou-se ao uso do tear, não ainda os conhecidos batelões, mas uma espécie primitiva que chamavam de “tear de três panos”, um 15  A  bisai é um nome genuinamente semita, inclusive esse nome pode ser encontrado na Bíblia: “Davi disse... a Abisai, filho de Sarvia” (I Reis 26-6). Provavelmente não é o mesmo Abisai, pois esta referência é de por volta de 1.000 a.C., no tempo em que Israel era um grande reino (KELLER, 1960 p.75). 101

aparelho rústico e pequeno de madeira que fabricava o pano de apenas 60 cm de largura e extensão e para atingir o tamanho padrão de uma rede tinham que ser tecidos três panos para juntar os três em costura manual e somente a partir de meados do século XX apareceram os teares horizontais de pente que ficaram conhecidos como batelões. Com a rede de algodão, adquiriu-se na região um status de regra em sua con- fecção e essa atividade econômica secundária formou uma sociedade têxtil-comercial típica e específica,oferecendo ao ramadense um subterfúgio econômico nos períodos anuais baixos para a agropecuária,pois as unidades artesanais geravam produções que precisavam sair em busca de mercado e desse modo surgiram os chamados redeiros, um tipo específico de mascate que comercializava unicamente redes e cobertores de porta em porta. A estratégia deste mercado era curiosa, pois não se utilizavam de animais de carga para as vendas diretas, preferiam conduzir as mercadorias nas próprias costas, e não buscavam mercados para vender em grosso. Geralmente saiam das unidades artesanais para um arrancho preestabelecido, e deste pousio iam levando gradativamente os produtos a pé para comercializar de porta em porta. A atividade ocorria de tempos em tempos e cada investida exilava o mercador por mais de um mês fora de casa. O principal mercado consumidor das redes oriundas desse centro produtor era a cidade de Campina Grande, cuja feira atraia gente de todo o compartimento da Borborema, mas os redeiros também se demoravam em pequenas povoações, como Boa Vista, Queimadas, Galante, Fagundes, Pocinhos, Lagoa Seca e outras de imediações, com pontos fixos de estadia e clientela. Os antigos teares de batelão, engrenagens largas de madeira movidas a pe- dais e de grandes dimensões, exigiam para o seu funcionamento muita força física e resistência, assim os homens se encarregavam do trato com o tear, cabendo às mulheres a preparação do fio e a produção dos elementos acessórios, como franjas e varandas, enquanto o trabalho de encher espulas e outras atividades mais simples ficava na esfera do trabalho infantil, de maneira que todos do seio familiar parti- cipavam. Todavia, esse mercado artesão era um complemento de renda que não devia comprometer as atividades de agricultura e pecuária, e nessa conformidade as mulheres também ajudavam nas atividades mascate-redeiras, de porta em porta, com dez ou doze redes às costas. A produção artesanal de redes e cobertores da Ramada se estendeu para os aglomerados circunjacentes até a cidade de Boqueirão, envolvendo uma parcela majoritária da população e já foi conhecida como uma das mais ativas na produção e comercialização destes produtos na Paraíba.Todavia,vem declinando vertiginosamente desde a década de 1980, período em que se verifica o fortalecimento quantitativo 102

e qualitativo da indústria têxtil operária e mecanizada da cidade de São Bento,[16] memória, cultura e identidade no Sertão do Estado, através incentivos fiscais, investimentos privados e públicos de modernização para pequenas e médias empresas, créditos bancários, criação de Associações e Cooperativas e, subsequentemente, ações do SEBRAE e do Governo da Paraíba (CARNEIRO,2011),que garantiu a esse mercado produtos concorrentes mais sofisticados e a um preço mais baixo.[17] Infelizmente, a cultura têxtil-artesã ramadense se desintegrou, junto com muitos outros elementos culturais judaicos, e hoje não se ouve mais o bater de um tear naqueles velhos horizontes marranos. REFERÊNCIAS BRITO, Vanderley de; BRITO, Shirley Farias de. Entre a cruz e a espada: um estudo sobre os aspectos socioculturais do marrano caririzeiro na primeira metade do século XIX. Revista Tarairiú. Ano VII, Vol. 01, no 11 – Fev. Revista Eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB - Campina Grande, 2016. BRITO,Vanderley de; STEINMÜLLER, Ida. Mitos e verdades sobre Branca Dias. Revisa Genius, nº 36. João Pessoa: 2019. CARNEIRO,Rosalvo Nobre.As semelhanças,diferenças e interações dos circuitos de fluxos sócioespaciais de redes de dormir do nordeste brasileiro. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco, para obtenção do Grau de Doutor em Geografia. Recife: 2011. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e história. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1989. KELLER,Werner.E a Bíblia tinha razão.5ª Edição.São Paulo: Edições Melhoramentos,1960. MELLO, José Antônio Gonçalves de. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595. Recife, FUNDARPE/ Coleção Pernambucana -2ª. Fase, 14. 1984. NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia: A inquisição no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. PINTO NETO, Manoel. Menino do Cariri: o Nordeste dos anos quarenta. Rio de Janeiro: Edição do autor/ Gráfica Themis Ltda, 1981. 16   N ossos estudos indicam que os anusim do Cariry Proscrito tinham estreitas relações familiares com os povos do Seridó norteriograndense, especialmente de Caicó, e muito possivelmente a bem sucedida cultura redeira de São Bento se originou nos remotos ermos do Cariry Proscrito. 17   O município de São Bento controla atualmente um circuito espacial da produção re- gional, formado por mais de 15 municípios entre a Paraíba e Rio Grande do Norte, cuja divisão territorial do trabalho é regida por sua indústria têxtil. A fabricação de redes de dormir em São Bento é vendida localmente ou produzida para exportação e consumo externo, destinadas a turistas ou hotéis de luxo (CARNEIRO, 2011). 103

STEINMULLER, Ida. Entre dois hemisférios: setembro e suas histórias. In: BORBA, M. A. B. Campina Grande nos meados do século XX. João Pessoa: Ideia. 2015. TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a História territorial da Parahyba. Edição Fac-similar. Mossoró: Coleção Mossoroense, vol. CCXLV. 1982. 104

6 memória, cultura e identidade BOQUEIRÃO: UMA IDENTIDADE CONSTRUÍDA AO REDOR DAS ÁGUAS (1890-1960) JOAO PAULO FRANÇA INTRODUÇÃO Em pleno polígono das secas, marcado historicamente pela crise hídrica, o município de Boqueirão desfruta de invejável construção identitária: a “cidade das águas”. Percebe-se nestas terras, situadas às margens do Rio Paraíba, traços de uma memória coletiva que evocam a abundância do precioso líquido, fazendo com que aspectos culturais, sociais e econômicos girem em torno desta construção histórica, uma espécie de “oásis caririzeiro”[1]. O Distrito de Boqueirão fez parte do grande município de Cabaceiras.Através do Decreto-lei estadual nº 520, de 31 de dezembro de 1943, esta toponímia foi alterada, passando a ser denominado de Distrito do Carnoió, ainda pertencente ao território cabaceirense, de onde se emanciparia politicamente com esta nomencla- tura, pela lei estadual nº 2.078, de 30 de abril de 1959. (IBGE, 2020) O município foi instalado em 30 de novembro de 1959,constituído pelos distritos: Carnoió, Alcantil, Bodocongó (atual Barra de Santana), Caturité e Riacho de Santo Antônio. Enfim, através da lei estadual nº 2.311, de 27 de junho de 1961, o topônimo “Boqueirão” voltou a ser oficializado, substituindo o nome “Carnoió”. (IBGE, 2020). Este artigo tem por objetivo central compreender como historicamente foi construída uma identidade territorial para a localidade do Boqueirão, ressaltando a importância das águas. Especificamente, procuramos apresentar recortes de jornais que nos mostram como bem antes da construção da famosa barragem na década de 1950, os olhos de viajantes, letrados e políticos já destacavam na imprensa as poten- cialidades do grande “Boqueirão de Cabaceiras”,como uma alternativa para captação e armazenamento de águas que serviriam para distintas regiões paraibanas.Também, destacamos características da construção da barragem e discutimos como esta obra alterou aspectos do cotidiano da região, tudo isto registrado nos jornais de época. 1   “A formação de identidades baseia-se em elementos discursivos fornecidos pela história, geografia, biologia, memória coletiva, por instituições, relações de poder, interesses, rela- tos e mitos, entre outros aspectos que compõem a cultura de um determinado grupo de pessoas”. (BRAND; LIMA e MARINHO, 2007, p.371). Este é o norte que utilizamos ao longo deste artigo para compreender o conceito de identidade a nível de história local. 105

Para a construção desta narrativa histórica, utilizamos como fonte de pesquisa os jornais escritos digitalizados que são possíveis acessar por meio da Hemeroteca da Biblioteca Nacional até o mês de abril de 2020. Através de mecanismos virtuais de busca, acessamos jornais do período de 1890 a 1960, pesquisando a expressão exata: “Boqueirão de Cabaceiras”. Desta forma, tivemos acesso a 73 notícias ou matérias jornalísticas que utilizaram este termo. Passemos a discutir a trama que se apresenta a partir das fontes consultadas. A CONSTRUÇÃO DESTA HISTÓRIA: DA VISÃO FUTURISTA AOS APELOS E JUSTIFI- CATIVAS PARA A EDIFICAÇÃO DA BARRAGEM NO “BOQUEIRÃO DE CABACEIRAS” Entre outras definições possíveis, o dicionário Michaelis define o termo “boqueirão” como “garganta estreita em serra, onde corre um rio”. Analisando a geografia onde se instalou o povoado do “Boqueirão”, percebe-se como os primeiros colonizadores já se utilizaram das características do espaço físico para nomear o local. No Dicionário Corográfico da Paraíba, Coriolano de Medeiros assim se refere ao termo “Boqueirões”: Soluções de continuidade nas serras, em consequência da ação das águas. Dentre os boqueirões da Paraíba,destacam-se: o da serra do Boqueirão onde assenta a Vila de Carnoió, o qual, segundo o engenheiro suíço e geólogo H. Baudman, que fez observações quando a serviço das Obras Contra as Secas, podia ser transformado num considerável reservatório, fazendo-se uma barragem de 12 metros de altura; (...). (MEDEIROS, 2016, p.41). Nesta passagem vemos que, o próprio topônimo do lugar, “Boqueirão”, já mostra uma mensagem implícita de local propício para a construção de barragem que represe o rio que corta a região. O discurso científico de um “engenheiro suíço e geólogo”, de nome H. Baudman é utilizado para reforçar a visão do pesquisador em relação ao futuro da região: “transformado num considerável reservatório”, mesmo que os cálculos deste engenheiro ainda se mostrem bem modestos, afinal, seria uma “barragem de 12 metros de altura”, apenas. É importante sabermos que Coriolano Medeiros escreve a primeira versão desta obra em 1914 e a segunda edição, a qual utilizamos uma edição fac-símile é da década de 1940,com dados até 1944.Portanto, já se percebe como o olhar do pesquisador identifica uma identidade ao redor das águas do rio Paraíba. Neste sentido, devemos compreender as origens da ocupação deste espaço geográfico. A fundação foi assim descrita por Coriolano de Medeiros: 106

Boqueirão, hoje Carnoió, foi fundada em 1670, por Antônio de Oliveira, memória, cultura e identidade presumido irmão ou tio de Pascoal e Teodósio de Oliveira Ledo, que ali chegaram precedentes da Bahia. Fundado o arraial, iniciada a indústria pastoril, ali se organizaram as bandeiras e entradas. Assim toda a conquista do Cariri Velho, e de grande trecho do sertão paraibano, se deve a bandei- rantes partidos do burgo referido. Do interior, foi a primeira localidade que teve capela regular e missionário capuchinho saído de missões das margens do São Francisco, que, antes da capital da capitania, primeiro se comunicou com o nascente povoado. A tradição ainda recorda que, à missa de Natal ocorriam anualmente, moradores de Piranhas, Piancó, do sertão, distantes quarenta e cinquenta léguas. No local existem ainda vestígios de suas primitivas edificações (MEDEIROS, 2016, p. 72-73) Tendo em vista que nosso objetivo central não é discorrer sobre as questões pertinentes a localização primitiva da região, fazemos menção a possibilidade de outras versões e compreensões acerca deste momento inicial de ocupação do território. Neste sentido, o historiador Vanderley de Brito (2013) faz importantes conjecturas acerca do primitivo arraial e missão religiosa que dariam origem a tal comunidade[2]. Voltando ao período de nossa análise (1890-1960) e aos jornais disponíveis na Hemeroteca Digital, encontramos no século XIX, mais precisamente em 1891, o seguinte relato de Irineu Joffily[3], no jornal O Brasil: Breve notícia sobre a Parayba - (...) O Estado devia dar o exemplo, man- dando levantar diques nesses boqueirões que descrevi; e em outros que existem em todo o sertão da Parahyba. Essas obras servirão ao mesmo tempo de escola prática aos sertanejos, para as quais concorrerão eles também com a sua experiencia. Os principais rios do sertão da Parahyba não têm açudes, ninguém ainda ousou represar-lhes as águas, quando a 2   V er o tópico “A Missão de N. S. do Desterro do Boqueirão” IN: BRITO, 2013, pp.136- 150. 3  “ Irineu Ceciliano Pereira da Costa nasceu em 15 de dezembro de 1843, na Fazenda Lajedo, em Pocinhos, próximo a Esperança, interior da Paraíba. (...) Em março de 1864, dois anos antes de concluir o curso jurídico, Irineu mudou o sobrenome para Joffily, contração adaptada do latim josephus fillii (filho de José). (...) Após a formatura, Irineu foi nomeado promotor público de São João do Cariri em 1867 e, no ano seguinte, juiz municipal de Campina Grande. Ainda em 1868, se elegeu deputado provincial pelo Partido Liberal, no qual militaria até o final do Império. A atividade jornalística paralela à política e ao Direito levaria Irineu à criação do jornal A Gazeta do Sertão, em setem- bro de 1888, em Campina Grande, que circularia até seu empastelamento, em 1891”. (VIEIRA, 2011, p. 2-3). 107

custo consegue-se deter a dos riachos; portanto, um poderoso dique que restabelecesse a continuidade de uma serra,rompida por caudalosa torrente, seria uma obra que por si só mudaria o aspecto e o clima de uma ribeira ou de grande parte dela. Assim, o boqueirão de Cabaceiras faria represar o rio Parahyba cinco ou seis léguas, fertilizando terrenos suficientes para sustentação, por meio da agricultura, de muitos milhares de habitantes.[4] Em longo artigo, Irineu Jofilly discorre sobre as possibilidades de os homens diminuir os inconvenientes das intempéries do tempo e do espaço geográfico, por meio da construção de obras, como a de uma represa no “Boqueirão de Cabaceiras”. O mesmo clama para uma maior ousadia do Poder Público no sentido de construir um dique no rio Paraíba, algo ainda não tentado na época. Esta potencialidade é lembrada no ano de 1914: BACIA DO PARAHYBA - A bacia do rio Parahyba ocupa uma posição central no Estado do mesmo nome, e conquanto encerre área considerá- vel, os leitos conservam-se secos durante a maior parte do ano. A bacia não possue área extensa de terras cultiváveis, mas provavelmente haverá a oportunidade de irrigação considerável em seu trecho inferior e no boqueirão de Cabaceiras pode acumular-se grande quantidade de água.[5] Aqui observamos uma interessante constatação, não só no sentido de repre- samento das águas, mas também a “oportunidade de irrigação considerável” para as terras do entorno do rio Paraíba. Na década seguinte, encontramos no ano de 1926 mais um registro que aponta na direção da edificação da grande barragem. Neste sentido, não se trata apenas de conjectura intelectual de letrados, mas de ação concreta no sentido de viabilizar estudos para a construção: As obras contra as secas, levadas por diante no governo Epitácio Pessoa, se não puzeram um açude à margem de cada estrada, não descuraram, contudo, as grandes barragens. Assim, foram estudadas as de Carapéba, Guapaba,Tapuya e Natuba, no município de Umbuzeiro; Poço da Égua, Caturité, Carnayo, Riachão, Prata e Boqueirão, no de Cabaceiras.[6] 4    Jornal O Brasil. Rio de Janeiro, ano II, nº 479, 25 de novembro de 1891, p. 3. 5    Almanaque Brasil Garnier. Rio de Janeiro, ano XI, 1914, p. 134. 6    Revista Eu Sei Tudo. Rio de Janeiro, ano 10, edição 113, outubro de 1926, p. 97. 108

Durante o período do Estado Novo de Getúlio Vargas, no ano de 1941, memória, cultura e identidade o Interventor estadual, Rui Carneiro declara para a imprensa que uma grande barragem no Rio Paraíba deveria ser erguida. O título da matéria é: “Solução aos problemas da Paraíba”: (...) Temos assim de encarar outros problemas, que só poderão ser solucio- nados com o emprego da energia hidroelétrica. Mercê de entendimentos que tive com o governo federal, teremos a regularização do rio Paraíba, o que evitará para o futuro a tragédia do alagamento de grandes regiões, vítimas periódicas das cheias do grande rio. Já o dr. Luiz Vieira, diligente inspetor das Obras Contra as Secas, enviou para aquela região um en- genheiro, que faz ali levantamento aero-topográfico, a fim de construir entre os municípios de Campina Grande, Cabaceira e Umbuzeiro uma grande barragem que, com uma queda d’água de 70 metros, fornecerá energia para uma grande parte do Estado”.[7] Percebe-se desta forma que, por intermédio da imprensa, na década de 1940 os discursos políticos já se alinham no sentido de apresentar a viabilidade da construção da barragem do Boqueirão, ao mesmo tempo que se apresentam os ganhos econômicos que a obra representaria não só pra a região, mas para o estado da Paraíba. Em 1944, vemos a seguinte nota: A Sociedade Protetora das Árvores promoveu uma reunião com a presença do dr. J. Joffily Bezerra, secretário de Agricultura, durante a qual foram discutidos vários problemas atinentes a proteção das matas e traçado o programa de trabalho visando estimular o reflorestamento das áreas desmudas. A Sociedade aprovou o seguinte esquema de atividades: (...) 5º - iniciar um movimento de opinião a favor da construção da barragem do boqueirão de Cabaceiras (...).[8] No ano seguinte, em 1945, mais uma vez no Diário de Pernambuco se de- bate a questão do Boqueirão, não só como a terra das águas, mas onde deveria ser construída uma usina de geração de energia elétrica. De certo modo, retomando a fala do Interventor Rui Carneiro, Sylvio Rabello em artigo intitulado “Problemas da Paraíba” faz uma análise de conferência proferida por José Joffily Bezerra na escola de Agronomia do Nordeste: 7    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, ano 116, edição 213, 11 de setembro de 1941, p. 5. 8    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, ano 119, edição 63, 16 de março de 1944, p. 5. 109

Se é preciso mercado para a grande produção de consumo, esta por sua vez depende da indústria chamada de base.“O caminho para o baixo preço da fabricação de bens de consumo é o da fabricação de bens de produção”. Partindo daí, José Joffily Bezerra chega ao problema das nossas fábricas sem energia elétrica, devastando secularmente as reservas florestais sem ter adiantado um passo para a captação das grandes fontes hidráulicas. Inegavelmente essa grande fonte está fora da Paraíba, na cachoeira de Paulo Afonso, enquanto não for possível o aproveitamento do Boqueirão de Cabaceiras, este na Paraíba.[9] A cada passagem sobre o “Boqueirão de Cabaceiras” nas fontes escritas dis- poníveis nesta análise, percebemos que uma identidade ao redor das águas do rio Paraíba se forma. Esta não é baseada simplesmente na agricultura, na pecuária, ou mesmo na criação de uma cultura tradicional dos pequenos rincões caririzeiros. A identidade da região é atrelada às águas que seriam redentoras para problemas secu- lares do estado, seja no combate das secas, seja na possibilidade de fornecimento de águas para hidrelétrica que serviria para ampliação da capacidade enérgica da região e assim ter-se o incremento industrial que se aventava.Entre os anseios da população local e as decisões políticas, temos assim uma certa diferenciação, que se tornará mais evidente na década seguinte, quando enfim a obra da barragem será executada. A DÉCADA DE 1950: A GRANDE OBRA DO “BOQUEIRÃO” E SUAS REPERCUSSÕES A década de 1950 marca uma grande transformação na região de Boqueirão. O antigo arraial, elevado à condição de Vila e, na década anterior oficialmente designado como Distrito de Carnoió, ainda pertencia ao município de Cabaceiras. Todavia, as atenções se voltavam cada vez mais em virtude da grande barragem que estava por ser erguida. Neste sentido, disparam as menções ao termo “Boqueirão de Cabaceiras”nas fontes pesquisadas. São 56 vezes, em 16 jornais e revistas diferentes da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Basicamente, percebe-se que as referências acompanham o desenvolvimento da obra, com informações sobre início, recursos destinados, previsões de inauguração, usos da comunidade e, mais para o fim da década, os problemas e soluções relacionados a esta nova realidade na região. Obviamente, os usos políticos e as discussões acerca da “paternidade”da obra do açude e da adutora também se fazem presentes. São inúmeros os destaques para as visitas à Boqueirão por parte de autoridades dos três poderes constituídos, bem como de cobranças ou prestações de contas acerca do andamento da construção. 9    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, ano 120, edição 117, 24 de junho de 1945, p. 4-5 110

Vejamos o jornal Diário de Notícias no ano de 1953, com a matéria intitulada: memória, cultura e identidade “Iniciada a construção da barragem do Boqueirão de Cabaceiras”: Uma das obras que o governo da união vem realizando na Paraíba é a do sistema para controle do rio Paraíba, nas suas nascentes, no município de Cabaceiras, cujo início se verificou em atenção a solicitações do então governador do Estado, sr. José Américo. Visa esse sistema a regularizar o curso do rio Paraíba, proporcionar irrigação às terras secas de Cariri e da Caatinga e energia elétrica num potencial de 10 a 12.000 HP.Compor-se-á de três barragens, sendo que a primeira delas e que é base do seu sistema terá a capacidade de armazenamento para seiscentos milhões de metros cúbicos d’água. Com a conclusão dos serviços de acampamento e prepa- ração do terreno foi iniciada ontem o trabalho de terraplanagem dessa primeira barragem do Boqueirão de Cabaceiras.[10] Neste interessante relato, percebemos que o articulista considera como “ini- ciada a construção” da barragem uma etapa da obra que já sucedera os “serviços de acampamento e preparação do terreno”. Provavelmente, este é o embasamento que leva o órgão executor dos trabalhos do Açude do Boqueirão, o DNOCS – Depar- tamento Nacional de Obras Contra as Secas- a afirmar em seu site: CONSTRUÇÃO – As obras apresentaram um período de construção de aproximadamente quatro anos,sendo a barragem construída pelo DNOCS em duas etapas. Em julho de 1953, as obras referentes às fundações foram iniciadas,transcorrendo em execução por um período de seis meses,ocasião em que o inverno impediu o prosseguimento dos trabalhos. Reiniciados os trabalhos em meados de 1954, foram completadas as obras de fundação e elevado o aterro a uma altura de aproximadamente 30m, marcando o término  da primeira etapa. Os trabalhos finais que correspondem a segunda etapa consistiram da complementação do maciço e compreenderam o período de junho de 1955 a novembro de 1956. (DNOCS, 2010). Todavia, percebe-se que o movimento já era bastante intenso no Distrito de Carnoió, antes deste mês de julho de 1953. Seja com chegada de máquinas e equipamentos, seja com o deslocamento de trabalhadores para a obra. Em setembro de 1952, o Diário de Pernambuco estampa a manchete: “Novas máquinas pesadas 10    Jornal Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 1953, edição 9422, 22 de julho de 1953, p. 2. 111

para o boqueirão”, trazendo por subtítulos: “O aceleramento dos trabalhos e a so- lução definitiva de um ingente problema de Campina Grande” e “Novos materiais pesados vindos diretamente dos Estados Unidos”. Vejamos: Gigantesca máquina se dirige para o Boqueirão – Já ontem, desfilou pelas ruas da cidade, seguindo imediatamente para a concentração de máquinas pesadas do Boqueirão de Cabaceiras (que é uma das maiores do Brasil) uma parte da Excavo-Carregadora Loader – uns 30% se considerarmos essa monumental peça de trabalho inteiramente armada, e pronta para os serviços. Os outros 70% seguiram já por trem e caminhões. Para que o leitor tenha uma ideia mais ou menos exata das proporções da Excavo-Carregadora Loader, basta que se diga que ela tem a capacidade mínima de 650m³ horários, é de fabricação norte-americana, esta H.P., devendo ser montada sobre esteiras,sendo de 20 toneladas cada uma.Outras características: é rebocável por trator de esteiras, sendo de 22 toneladas o seu peso líquido,quando em operação.A ‘Excavo-Carregadora’custou nada menos de Cr$ 1.250.000 (um milhão duzentos e cinquenta mil cruzeiros) e é uma das maiores máquinas usadas pela engenharia, em toda a América do Sul.Outros Materiais – Acabam de chegar dos Estados Unidos, tendo desembarcado no porto do Recife, mais 2 Caterpilar DW-20 de 225 H.P. cada um, com volume aproximado de 18m³. Essas máquinas, que também irão juntar-se à concentração de Boqueirão de Cabaceiras estão apenas aguardando despacho, devendo seguir nestes próximos dias. O custo de cada um foi de Cr$ 988.000,00. Afora isto, acham-se em reparos ainda 7 Excavadores, 3 trataores e outro TD-24 com scrapers.[11] A julgar pela descrição detalhada dos equipamentos, com destaque para seu tamanho “monumental”, sendo a “Excavo-Carregadora Loader” “uma das maiores máquinas usadas pela engenharia, em toda a América do Sul”, percebe-se que o articulista não mede adjetivos para saudar o desembarque de tal equipamento no Porto de Cabedelo. Tendo em vista que “já ontem, desfilou pelas ruas da cidade”, ou seja, em João Pessoa, também se conjectura os usos eleitorais que o desenvol- vimento da obra já proporcionara a classe política local. Todavia, não só máquinas de última geração rumaram no sentido do “Bo- queirão de Cabaceiras”. Em fevereiro de 1953, o jornal Última Hora nos apresenta o seguinte relato: 11    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, edição 213, 14 de setembro de 1952, p. 23. 112

Logo que os flagelados começaram a chegar, de toda parte, enchendo as memória, cultura e identidade ruas da cidade e pondo a sua população em sobressalto, o Prefeito Inácio Feitosa comunicou-se com o Governador José Américo, narrando-lhe a situação calamitosa em que se encontra o Município de Monteiro. Entre outras providências, o Governador da Paraíba mandou a esta cidade di- versos funcionários do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas e do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, a fim de serem providenciados alguns serviços de emergência, em benefício da população faminta.Enquanto redigimos estas linhas,várias turmas de trabalhadores são encaminhadas a Boqueirão de Cabaceiras, onde está sendo construído um grande açude público.Outra parte de flagelados está sendo distribuída aqui perto,por intermédio do Departamento Estadual de Estradas e Rodagem[12]. Esta é uma descrição importante, cujo significado podemos compreender com a nota seguinte do periódico O Jornal, também de fevereiro de 1953: Alistamento de Flagelados – João Pessoa (...) continuam chegando flagelados à zona de Boqueirão das Cabaceiras, os quais são imediatamente alistados nos trabalhos da estrada Queimadas-Boqueirão e nas obras da hidro-elétrica local. Quando a reportagem da “Agência Meridional” esteve em Boqueirão, quase mil homens estavam alistados e acampados nas vizinhanças com suas famílias. Agora, este número deve ter sido superado em muito. Os trabalhadores, naqueles serviços, percebem a diária de 15 cruzeiros, sendo as mulheres e as crianças aproveitadas em serviços leves, bem como na quebra de cascalho. [13] Com a chegada de máquinas e equipamentos para a obra, com certeza a notícia se espalhava pela região, que somado a um ano de seca no Nordeste, fazia com que fosse grande o número de flagelados que ocorriam para o canteiro de obras da barragem, na busca por algum auxílio em troca de serviços braçais que pudesse realizar. Tendo em vista as condições de trabalho e fiscalização da época, percebe-se que até a mão de obra de crianças foi utilizada nos serviços. Assim, grande contingente de pessoas passa a fazer de Boqueirão sua nova morada, muitos ficando, inclusive, após o término da edificação do açude. Entre idas e vindas, períodos de maior agitação no canteiro de obras, inter- calado por momentos de marasmo no andamento dos serviços, enfim, no início de 12    Jornal Última Hora. Rio de Janeiro, edição 518, 19 de fevereiro de 1953, p. 4. 13    Periódico O Jornal. Rio de Janeiro, edição 10061, 25 de fevereiro de 1953, pp. 1 e 6, 113

1957 o Diário de Notícias nos diz que em 17 de janeiro o presidente da república, Juscelino Kubitschek, estivera em Campina Grande, para “inaugurar vários em- preendimentos destinados a criar novas condições para o progresso não só desta região do interior paraibano, mas de todo o nordeste”: Abastecimento d’água de Campina Grande – Logo depois da recepção, o sr. Kubitschek seguiu de automóvel para o local da nova barragem do Boqueirão, a cinquenta quilômetros de Campina Grande, destinada a reservar 563 milhões de metros cúbicos d’água para o abastecimento da cidade. Na crista da barragem, antes de descerrar a placa comemorativa da inauguração, o sr. Juscelino Kubitschek foi saudado pelo deputado Drault Ernani e pelo diretor do Distrito do D.N.O.C.S. engenheiro Anastácio Maia. A altura principal da barragem é de 54 metros e sua extensão, de 347 metros. Finda a cerimônia de inauguração, o presidente da República regressou de automóvel ao aeroporto, de onde viajou para o Rio, fazendo escala em Belo Horizonte. (A.N.)[14] Uma obra tão decantada, cuja classe política procurava se identificar como contribuidora de seu andamento e conclusão, certamente não passaria despercebida no sentido das disputas pela memória coletiva. No mesmo período que o presidente Juscelino Kubitschek viera inaugurar a obra, o jornal Tribuna da Imprensa destacava carta do engenheiro Ribeiro Gonçalves, questionando esta realização do governante: Boqueirão de Cabaceiras - Prossegue o ex-diretor das Obras Contra as Secas: “Ignoro se o açude “Boqueirão de Cabaceiras”, naquele Estado, fez parte das inaugurações. A construção, propriamente, da barragem foi começada no segundo semestre de 1953. Em fins de 1954 já estava tão adiantada que José Lins do Rego, em uma de suas apreciadas crônicas de “O Globo”exultava por ver domado o Paraíba”. É assim que o sr. Juscelino Kubitschek vai inaugurando suas “realizações”. [15] Independente da “paternidade” da obra, percebe-se que as autoridades po- líticas passam a criar uma identidade junto à população no sentido de fazer valer uma memória coletiva que ressalte a importância de tal empreendimento para a comunidade. De região da seca, dos flagelados, Boqueirão passa a ser a terra da 14    Jornal Diário de Notícias. Rio de Janeiro, edição 10490, 18 de janeiro de 1957, p. 3. 15    Jornal Tribuna da Imprensa. Rio de janeiro, edição 2141, 16 de janeiro de 1957, p. 3 114

disputa em torno de quem teria contribuído em maior ou menor potencial com o memória, cultura e identidade desenvolvimento local, por meio da construção do afamado açude. NOVAS QUESTÕES COTIDIANAS E DEMANDAS REGIONAIS PÓS-CONSTRUÇÃO DO AÇUDE DE BOQUEIRÃO. Antes mesmo da conclusão efetiva da barragem, as disputas políticas e novas promessas redentoras a partir daquelas águas represadas passam a fazer parte do cotidiano local. Neste sentido, a presença de políticos e seus discursos inflamados junto à população é uma nova realidade presenciada pelos moradores. Vejamos esta cena apresentada pelo periódico O jornal, em 1954. Aqui, encontramos o polêmico Assis Chateaubriand se deslocar pessoalmente à Boqueirão para discursar em suas ruas. Eis um trecho da nota “A Mensagem Azul”: Boqueirão de Cabaceiras, 27 de setembro – Cavalgando um jumento, o sr. Assis Chateaubriand dele apeiou-se numa rua do centro deste distri- to, e assim arengou ao povo que o ouviu, montado em suas alimárias de pequeno porte. Paraibanos: não capitulo diante dos meus nem dos vossos mortais inimigos. (...) José Américo vos deu a barragem do Boqueirão, que está começada ali em cima. É uma das obras ciclópicas de maior envergadura do Nordeste. Dentro de cinco anos aqui veremos erguer-se uma central elétrica de 20 mil cavalos. Ela será uma das criadoras da prosperidade desta região. Campina Grande vai ter energia das águas captadas do Paraíba. Uma pecuária, de meio milhão de cabeças pode ser criada com as forragens da terra e dos climas semi-áridos, nos vales dos Cariris e Espinharas. Boqueirão, paraibanos, promete encher estes sertões do ruído da sua queda d’água, das máquinas de sua central elétrica e do seu “packing house” que deverá exportar o nosso gado, já não mais em pé, e sim em vagões frigoríficos da Estrada de Ferro, para Recife, Fortaleza e João Pessoa. Boqueirão é o pagamento da dívida de honra que a nossa geração tinha com os paraibanos do vale. (...).[16] Percebe-se que as mensagens redentoras são inúmeras: além da barragem, única obra efetiva que já estava encaminhada e que realmente sairia do papel, vemos as promessas de uma “hidrelétrica”, de uma pecuária com a criação de “meio milhão de cabeças” e até “vagões frigoríficos da Estrada de Ferro, para Recife, Fortaleza e 16    Periódico O Jornal. Rio de Janeiro, edição 10457, 09 de outubro de 1954, p. 4 115

João Pessoa”, ou seja, até o projeto de uma linha de trem que ligaria aquela região às distantes cidades foi mencionado à população. Apesar desta empolgação e palavras ditas no calor de um “comício relâmpago” sobre lombo de jumento em uma rua do centro do distrito, proferidas por parte Assis Chateaubriand, o que encontramos a seguir nas fontes indicam que outras questões passaram a fazer parte do cotidiano da população: o drama das famílias que perderiam suas terras, inundadas pelas águas e os reiterados pedidos por inde- nização. Em discurso no Senado Federal em 1956, Argemiro de Figueiredo lê um telegrama do prefeito cabaceirense da época: Exmº Sr. Ministro Viação - Com o devido respeito em nome do povo deste município servimo-nos do presente documento para denunciar e protestar contra o calamitoso tratamento que o poder público da União impõe a milhares de brasileiros residentes na bacia hidráulica do açude de Boqueirão de Cabaceiras cuja obra preciosa e necessária tem a sua inauguração programada para setembro vindouro. Acreditamos Governo ignora que instalada “porta d’água” grande parte território municipal ficará submersa inclusive secular cidade de Cabaceiras, forçando retirada imediata milhares caririzeiros que habitam zonas ribeirinhas Paraíba e Taperoá.Estes nossos conterrâneos terão todos os seus bens prejudicados e ficarão em estado da mais dolorosa penúria se antes da inauguração não se positivar o respeito ao princípio constitucional de uma justa indenização. A situação é calamitosa, uma cidade e uma grande parte do município ameaçadas de submersão e a população em pânico. (...)” – Respeitosas saudações – Ernesto Heráclito do Rego – Prefeito – Pelas Classes Pro- dutoras – Manuel Cavalcanti de Farias – José Aurélio Arruda. [17] Esta passa a ser a tônica das cobranças, não só de autoridades e políticos, mas também de moradores locais que fazem tal denúncia nos jornais e revistas da época. Com o título “Cabaceiras: Fome; Rio: Televisão” vejamos a seguinte nota na Revista Aquis no ano de 1958: De Cabaceiras,Paraíba,escreve-nos o leitor Paulo Gomes Pereira,relatando as injustiças que vem praticando contra os nordestinos o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. Numerosos pais de família tiveram suas terras tomadas e delas foram expulsos, sem que nenhuma indeni- zação, pequena que fosse, tivesse sido paga aos prejudicados. O esbulho 17    Periódico Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, edição 86, 14 de abril de 1956, p. 9 116

começou com a construção da barragem do Boqueirão de Cabaceiras, no memória, cultura e identidade Rio Paraíba.Inúmeras terras foram desapropriadas,ficando seus ocupantes, já reconhecidamente pobres, na mais extrema das misérias. A injustiça é revoltante porque praticada contra gente indefesa, e mais revoltante ainda quando se sabe que o governo dá aos imigrantes terras e facilidades com que o nordestino nunca pôde sonhar. E enquanto isso, aqui no Rio, a televisão e o rádio continuam enchendo nossos olhos e ouvidos com programas que nos garantem que o Brasil tornou-se o melhor país do mundo. Autênticas “palavras cínicas”.[18] Pela imprensa não encontramos apenas reclames acerca das indenizações que não foram pagas aos moradores. As notícias passam a abordar também problemá- ticas em relação às cheias do açude e a própria segurança da barragem. O jornal Última Hora, em 1960 dá a seguinte nota: “Chegam notícias de que os açudes de Boqueirão em Cabaceiras, e Icó, próximo à cidade deste nome, estão transbordan- do desde ontem pela manhã, ameaçando as duas localidades”.[19] Aqui, percebe-se que nos primeiros anos de cheias, a segurança da barragem ainda é uma incógnita. A respeito das grandes chuvas deste mês de março de 1960, encontramos dias depois a mesma preocupação no jornal Diário de Pernambuco: João Pessoa - Cerca de meio-dia, ontem, a bordo do avião pertencente ao Governo do Estado, e na companhia do deputado Vital do Rêgo e do engenheiro Serafim Martinez, a reportagem “Associada” estava so- brevoando a barragem do “Boqueirão de Cabaceiras”. Em consequência da inundação desde a madrugada, de que foi vítima a cidade de Cruz do Espírito Santo, espalharam-se notícias alarmantes, aqui, sobre a segurança do grande açude há poucos anos construído em pleno Cariri. (...) dirigi- mo-nos, acompanhando mais ou menos de perto o curso do Paraíba, para observações do volume d’água com que vinha descendo, ao “Boqueirão de Cabaceiras”. O engenheiro Serafim Martinez (...) disse, inicialmente, que as águas procediam das cabeceiras dos rios Una e Gurinhém. Ambos despejam no Paraíba e este, ao atingir as terras baixas da Várzea, espalha-se por toda parte. São águas oriundas de Umbuzeiro, depois, portanto, do “Boqueirão de Cabaceiras”. [20] 18    Revista Aquis. Rio de Janeiro, edição 45, segunda quinzena de março de 1958, p. 17. 19    Jornal Última Hora. Rio de Janeiro, edição 2988, 28 de março de 1960, p. 2. 20    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, edição 64, 20 de março de 1960, p. 9. 117

Apesar de “espalharam-se notícias alarmantes, aqui ( João Pessoa), sobre a segurança do grande açude há poucos anos construído em pleno Cariri”, percebe-se que a obra resistiu bem àquela invernada. Porém, outros problemas e tragédias seriam descritos na imprensa. Vejamos: Campina Grande de luto – Lares campinenses estão cobertos de luto, com a emocionante tragédia ocorrida anteontem, na barragem do “Bo- queirão de Cabaceiras”, onde além do “canoeiro” João Amorim, quatro pessoas pertencentes à Sociedade local perderam a vida, em circunstâncias dramáticas, nas águas do imenso açude. Passeio Fatídico – em viagem de turismo, domingo pela manhã, seguiram daquela cidade vários rapazes e senhoritas. Um grupo dos visitantes, composto de oito pessoas, resolveu empreender um passeio de canoa. No meio do açude, a embarcação virou perecendo cinco pessoas afogadas. Os desaparecidos – em consequência do desastre, faleceram as senhoritas Iolanda Rodrigues, funcionária da loja de calçados “O imperador”, estabelecimento do comercio naquela praça; Míriam Alves Machado, Maria Lúcia Pereira, o jovem Alcides Melo Filho e o canoeiro João Amorim, que dirigia a embarcação. Os corpos das vítimas, em que pese os esforços de homens da Marinha, ainda se encontram desaparecidos. [21] Com o represamento das águas,o lago do açude passou a ser também um ponto de encontro da juventude e local de atração turística para os passeios de pessoas de toda a região,em especial de Campina Grande.Nesta passagem do Diário de Pernam- buco encontramos uma triste história de naufrágio na barragem recém-construída. A década de 1950 chegara ao fim e estas novas sociabilidades já faziam parte do cotidiano do “Boqueirão”, que crescera e já não seria mais de “Cabaceiras” e seguiria trilha urbana própria com a emancipação política em 1959. Interessante as identidades visíveis após esta separação, onde Boqueirão se tornará a “cidade das águas”, em oposição à antiga sede cabaceirense que já era conhecida como “o município mais seco da Paraíba”, nas palavras de Coriolano, e com o passar dos anos foi sendo elevado a condição de mais “seco do Brasil”. Percebe-se, assim, como novas identidades se formaram ao redor desta nova construção que passa a fazer parte da paisagem e da história local. O açude foi nomeado oficialmente de “Epitácio Pessoa”, todavia, os habitantes no cotidiano se identificaram com a nomenclatura mais usual e simples de “Açude de Boqueirão”, 21    Jornal Diário de Pernambuco. Recife, edição 186, 19 de agosto de 1960, p. 6. 118

de certo modo atualizando a identidade erguida historicamente ao redor destas memória, cultura e identidade águas represadas do rio Paraíba. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo procuramos compreender como a geografia da localidade de- nominada de “Boqueirão” foi utilizada ao longo da história para se construir uma identidade local voltada para as águas. Percebe-se que desde os primeiros relatos do século XIX até pouco mais da metade do século XX, os discursos apresentados nos jornais se voltaram para a criação de um grande reservatório nesta região da serra do Carnoió, para o armaze- namento de águas e enfrentamento dos longos períodos de estiagens. Desta forma, o “Boqueirão de Cabaceiras” ganhava importância em tais discursos, acabando por fundamentar as investidas políticas para que se erguesse em tal espaço um dos maiores açudes públicos paraibanos. Paralelamente à edificação física, construiu-se também toda uma cultura simbólica do Boqueirão como o lugar do trabalho para os desvalidos, da redenção regional, do suprimento das águas para Campina Grande, enfim, se criara junto ao reservatório, “a cidade das águas”. REFERÊNCIAS BRAND, Antônio; LIMA, Vanuza Ribeiro de; MARINHO, Marcelo. História, iden- tidade e desenvolvimento local: questões e conceitos. Uberlândia: Revista História & Perspectivas, (36-37): 363-388, jan.dez.2007. BRASIL. Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital Brasileira. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Acesso em 03 abr. 2020. BRASIL. DNOCS. Açude Boqueirão de Cabaceiras. Disponível em: https://www.dnocs. gov.br/~dnocs/barragens/boqueirao/boqueirao.htm. Acesso 07 abr. 2020. BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Boqueirão. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/boqueirao/historico. Acesso em 04 abr. 2020. BRITO, Vanderley de. Missões na Capitania da Paraíba. Campina Grande: Cópias & Papéis, 2013. MEDEIROS, João Rodrigues Coriolano de. Dicionário Corográfico da Paraíba, 4ª Edição – Fac-similar da edição de 1950. João Pessoa: IFPB, 2016. MICHAELIS. Dicionário. Boqueirão. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/mo- derno-portugues/busca/portugues-brasileiro/Boqueir%C3%A3o/. Acesso em 04 abr. 2020. VIEIRA. Fernando Gil Portela. A história se escreve com documentos: a busca de Irineu Joffily pela verdade sobre Branca Dias na Paraíba. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: julho de 2011. 119

7 BOQUEIRÃO NA RELAÇÃO DE FREI MARTINHO DE NANTES PADRE JOÃO JORGE RIETVELD Recém chegado no Cariri, em 1986, conheci padre Leo Denis, padre belga que naquele tempo era vigário das paróquias de Boqueirão e Cabaceiras. Numa das nossas conversas, ele me indicou dois livros. O primeiro era de Ruth Trindade de Almeida sobre arqueologia no Cariri e o segundo era um livro do missionário frei Martinho de Nantes, em francês, com um exemplar na biblioteca da Universidade de Leuven e outro na casa de seu pai. Achei, alguns anos depois, uma tradução na livraria “Livro Sete” no Recife com o título Relação de uma missão no Rio São Francisco. Achado de ouro! Em 2018 padre Léo me mandou o exemplar do seu pai! Me fez descobrir que a tradução do francês para o português deixou muito a desejar. A relação dedica algumas páginas à missão nas terras do atual município de Boqueirão e registra a chegada da Igreja Católica no Cariri paraibano. A RELAÇÃO Na realidade, a Relação de frei Martinho são duas relações. A primeira foi escrita em 1687 em Lisboa para a Propaganda Fide, uma instituição romana que era responsável pelas missões, a pedido do núncio Francisco Picolomini. Frei Martinho tinha uns quarenta e seis anos. Em 1706 escreveu a segunda relação a pedido do seu superior frei Anastácio de Nantes e incentivado pelo bispo de Cornualha, Francis- co de Coetlogon, quando tinha uns sessenta e seis anos e estava mais distante da maior aventura na sua vida. As duas relações juntas foram editadas, em 1706, com o título “Relation succinte et sincere de la mission du Pere Martin de Nantes, prédica- teur Capucin, missionaire apostolique dans le Brezil parmy les Indiens appellés Cariris, com le permission de Monsieur le Grand Vicaire, Jaques Furic, prêtre, vicaire general du Chapitre Sede Episcopali vacante”, um livrinho de 183 páginas. A tradução feita por Barbosa Lima Sobrinho tem o título: Relação de uma missão no Rio São Francisco. Frei Martinho começa sua “pequena obra” com uma oração, oferecendo-a a Jesus, o redentor do mundo. Faz referência aos “pobres selvagens” e fala com muita humildade do “pouco que fiz”. No prefácio, explica que o leitor não vai encontrar nesta relação “ações fulgurantes, as aventuras e as maravilhas que haveis lido nas relações das missões do Japão, do Peru, do Sião, da China, da Conchinchina, do Tonquim e de alguns outros reinos nas Índias, onde tantos notáveis missionários revelaram seu zelo”. Constata que não trabalhou “senão na conversão dos pobres 120

selvagens, que não têm nem reis, nem leis, nem governo, nem artes, nem ciências, memória, cultura e identidade nem escrita, e que vivam antes como animais do que homens”. A primeira relação com 37 páginas é bem mais resumida do que a segunda, de 122 páginas. É dividida em três partes: o trabalho em geral, religião dos Cariris e o trabalho missionário. A segunda relação é voltada totalmente para a questão da defesa dos Índios Cariris contra a cobiça dos pecuaristas, principalmente Fran- cisco Dias d’Ávila. A relação do “jovem” Martinho é voltada para a evangelização católica, a segunda relação, do “velho” Martinho, focaliza na defesa dos Cariris, a questão humanitária. TRECHOS QUE FALAM DA MISSÃO Vou usar o texto em português,porém corrigi alguns erros da tradução de Sobri- nho destacando-os em itálico.Na primeira relação há dois trechos que falam da missão. “Cheguei ao Brasil a 3 août e pouco tempo depois segui para uma aldeia a setenta lieues de Pernambuco, localizada numa nação de Índios deno- minados Cariris, com os quais morava um digno missionário capuchinho, o padre Teodoro de Lucé ... A aldeia ou burgo de Índios fora descoberta no ano de 1670 por um português chamado Antônio de Oliveira, que procurando pastagens próprias para o seu gado, encontrou na ribeira da Paraíba, uma tropa desses Índios, que pescavam a cinquenta lieues da aldeia da Paraíba. Esse capitão, havendo obtido dos Índios liberdade e segurança, para a colocação de rebanhos, depois de lhes haver oferecido alguns pequenos presentes, veio incontinente a Pernambuco, à procura de algum missionário, que quisesse estabelecer-se entre esses Índios, para melhor proteção do gado que lhe pertencia. Encontrou em nossa confraria o padre Teodoro,capuchinho que havia chegado recentemente,procurando oportunidade para se tornar missionário. Com a permissão do superior de Pernambuco, partiu acompanhado desse capitão, que o fez escoltar por uma dúzia de Índios, chamados caboclos, seus vizinhos e amigos, pertencentes a aldeias de que tínhamos a administração, a dez e doze lieus de Pernambuco e que conheciam os Cariris já mencionados” (pp.1-2). “Fiquei somente oito meses nessa aldeia com o padre Teodoro; mas tendo sabido desses mesmos Índios, um dos quais falava alguma coisa de português, que havia no rio São Francisco uma grande quantidade de aldeias da mesma nação, resolvi transferir-me para lá. Voltei por isso a Pernambuco, onde, depois de uma pequena estada, embarquei, com as 121

benções do superior, para ir ao rio de São Francisco, acompanhado de um jovem índio de cerca de quinze anos, que havia desejado seguir-me, em parte induzido pela curiosidade de ver os Cariris dessa outra região”(p.32). Na segunda relação há um trecho grande que fala sobre um assassinato, no Recife, do filho do cacique da missão de Boqueirão perto do seu batismo, da revolta dos Cariris e da tentativa de frei Teodoro de resolver a questão. Além disso há quatro frases e um trecho curto com referências à missão. “Essa missão, como disse, fica distante de Pernambuco cerca de setenta lieues ou mais ...Nossos Índios mataram caça que eles comeram e nós marchávamos desde a manhã até a noite, sob os ardores do sol, a oito graus e meio de linha, do lado do Sul, e durante o tempo mais quente do ano, nesse país (p. 31)... Enfim, depois de treze ou catorze dias de viagem, chegamos à aldeia. É assim que os portugueses denominam as habitações ou os burgos dos Índios (p. 32). Nessa aldeia tínhamos abundância de feijão e de milho; mas não tínhamos nem carne, nem peixe, senão alguma caça de tempos em tempos; o mais desagradável era que a água não era boa (não havia vinho senão para a missa). Fiquei somente oito meses nesta aldeia; porque tendo sabido que havia muitas aldeias de Cariris no rio São Francisco, resolvi para lá seguir” (p.33). “Nossos missionários se viram obrigados a se opor à invasão violenta das terras dos Índios pelos Portugueses,uma vez que os rebanhos devoravam as plantações dos Índios e os obrigavam a separarem-se em diversos lugares para poderem viver, o que acabava impedindo a presença das missões. Foi assim que procedeu, primeiramente, certo português chamado Antônio de Oliveira, que havia convidado, como já disse, o padre Teodoro de Lucé, para criar sua missão entre os Cariris do rio da Paraíba. Dirigiu-se ao governo e à Câmara da cidade, representando que havia muita razão para suspeitar de todos nós, pela nossa condição de franceses. Como argumen- to, acusou-nos de ensinar aos Índios o manejo de armas, que havíamos dado a alguns deles. Felizmente, tivemos aviso dessa representação, por intermédio de um amigo, que nos mostrou trechos da carta escrita pelo referido Antônio de Oliveira ao governado e à Câmara, trechos que nos fizeram compreender o restante. E conquanto fosse de todo falso que houvéssemos dado armas aos Índios e ensinado a servirem-se delas, e conquanto, ao contrário, padre Teodoro já houvesse apresentado a sua queixa ao governador, já havia de algum tempo, de que os portugueses é 122

que os haviam dado, a calúnia acabou prevalecendo e foi levada à Corte. memória, cultura e identidade Isso me obrigou a tomar a liberdade de escrever uma carta à rainha de Portugal, francesa de nação” (p. 40). “Padre Teodoro de Lucé, que aconselhado por mim, deixou a sua aldeia na Paraíba, em que eram escassos os resultados” (p. 50). Vamos fazer uma exegese destes textos, olhando alguns elementos. ANTÔNIO DE OLIVEIRA LEDO Antônio de Oliveira Ledo, um cristão novo, “descobriu” os Índios Cariris e sua aldeia. Depois da expulsão dos Holandeses em 1654, da queda da economia açucareira no litoral e do fim da tolerância religiosa,o interesse pelo o interior cresceu. Chegaram os primeiros pecuaristas no Cariri oriental e começaram a povoar “terras devolutas”nas “cabeceiras de uma data de André Vidal de Negreiros”, segundo uma carta de sesmaria de 1665 guardada em Salvador. Antônio Oliveira Ledo, Custódio de Oliveira Ledo, Constantino de Oliveira ledo, Luís de Albernaz, Francisco de Oliveira Ledo, Bárbara de Oliveira, Maria Barbosa Barradas e alferes Sebastião Barbosa de Almeida registraram “Trinta léguas de terras... que começarão a correr pelo rio da Parahyba acima onde acabar a data do governador Vidal de Negreiros, digo André Vidal de Negreiros e doze de largo com declaração que correrão para o Sul duas léguas e para o norte dez léguas” (DENIS, 1985). Eles alegaram vários motivos para ocupar estas terras. Em primeiro lugar, constataram a existência de “terras devolutas que nunca foram dadas nem cultivadas de pessoa alguma”. Eram criadores de “quantidade de gados, assim vacum, como cavalar e mais criações”, a pecuária extensiva e animais como gado,cavalos,asnos,bodes,ovelhas,galinhas eram uma nova e desconhecida forma de explorar as terras. Além disso, os requerentes se achavam merecedores de terras porque tinham “servido a sua majestade, que Deus guarde, de vinte anos a esta parte com grande dispêndio de sua fazenda”. Também constataram que eles “as têm descoberto e povoado com gados de dois anos”, suge- rindo uma presença desde 1663, que devia ser legalizada. Por fim, existia somente “gentio indoméstico” que na visão da época não tinha muito valor. Os Portugueses acharam que as novas terras do interior pertenciam ao seu rei, ignorando totalmente a presença dos Índios, os verdadeiros donos. Com sua invasão, começaram os con- flitos com este “gentio”, qualificado de forma pejorativa. Antônio convidou então, um missionário para iniciar uma missão, porém logo iria se arrepender. 123

LOCALIZAÇÃO DA MISSÃO DE FREI TEODORO Onde ficou localizada a missão de frei Teodoro? Vários historiadores se de- bruçaram sobre a questão. O documento da sesmaria fala do alto rio Paraíba onde as terras de André Vidal de Negreiros terminam, hoje Pedro Velho. Assim temos uma indicação geral. O mais influente historiador é Ireneu Joffily, dizendo: “Há ainda poucos anos, vimos em Boqueirão as ruínas de um edifício que o povo chamava convento,onde antigamente moraram religiosos,segundo a tradição.Portanto,talvez a missão ou aldeia mais antiga dos Carirys seja a do Boqueirão, que comunicando-se somente com Pernambuco, vivia isolada da Parahyba” ( JOFFILY, 1938, p.40). No artigo Caturité sobre uma viagem em 1867 de Cabaceiras para Barra de Santana: a “legendária povoação de Boqueirão, onde ainda viam-se ruínas de um antiquíssimo edifício,que uns dizem ter sido um convento,e outros que fora o castelo ou residência do famoso capitão-mor Teodósio de Oliveira Ledo” ( JOFFILY, 1938, p. 423). Não acredito que a missão de frei Teodoro tenha deixado tais prédios, porque não foi um grande sucesso. A missão de frei Martinho em Aracapá não deixou vestígios porque a casa e a igreja perto de uma aldeia indígena eram feitas de material perecível, como frei Martinho diz. As missões começaram com construções de taipa e somente a longo prazo conseguiram edificar prédios de uma durabilidade maior. Não existindo prédios ou ruínas, temos que recorrer às relações de frei Mar- tinho. Ele descreve a viagem e anota que passou por terras onde “não havia uma folha sobre as árvores” e “tudo me parecia como a imagem da morte”. Ele estava entrando no semiárido.Também diz: “esse país é muito montanhoso e as montanhas muito altas”, o que faz pensar nas serras de Bodopitá, Caturité e Carnoió. Andou seguindo “a oito graus e meio da linha do lado do Sul”. Boqueirão está situado em sete graus e 28 minutos. O tempo que ele gastou foi de “treze ou quatorze dias”, indicando uma região longe do litoral. Porém a chave de uma solução fica no seu texto em francês. Frei Martinho anotou na sua primeira relação uma distância de 70 lieues de Recife e de 50 lieus da capital paraibana. Lieu foi traduzido por Sobrinho como a palavra légua. Uma légua em português mede 6.6 km. Um lieu media na França entre os anos de 1674 e 1793 3.8 km. Em vez de indicar um lugar a 330 km de João Pessoa e 462 km de Recife, a missão seria localizada num lugar a 190 km de João Pessoa e 266 km de Recife. A distância exata entre Boqueirão e João Pessoa é 185 km e entre Boqueirão e Recife 249 km. Neste caso, os cálculos de frei Martinho têm uma precisão que dámedo! A missão está localizada nas terras de Boqueirão. Na relação de Clemente de Amorim e Souza de 1757, aparece o nome Boqueirão. Clemente faz uma distinção entre Boqueirão e Curinaiô: “Do Cocuri- té ao sítio Boqueirão légua e meia. Do Boqueirão ao sítio do Moita uma légua. 124

Do sítio do Moita ao sítio Curinaiô légua e meia” (MEDEIROS, 1990, 40-43). memória, cultura e identidade Curinaiô é uma palavra indígena e por isso mais antiga do que Boqueirão. Os dois nomes se referem a uma característica geográfica. O nome Boqueirão indica uma abertura cavada pelo rio entre duas serras e Curinaiô é uma referência a uma serra. Recentemente, arqueólogos da Universidade Federal de Alagoas estão descobrindo muitos sítios arqueológicos no Marinho, distrito de Boqueirão. Acho bem provável que os Índios que Antônio Oliveira Ledo viu pescando no rio Paraíba moravam numa aldeia nas terras de Marinho e Carnoió, sítio vizinho onde existem muitos tanques com água, fator importante para estabelecimento humano. Notável ainda que Clemente fala de missões em Fagundes e Campina Grande, mas não em Bo- queirão; o que faz supor que ela não existia mais. OS CAPUCHINHOS FRANCESES Frei Teodoro era padre e missionário capuchinho. Os capuchinhos são uma reforma dentro do movimento franciscano feita em 1528 e que defendia uma in- terpretação mais severa da regra de São Francisco. Em 1629 foi criada a província dos capuchinhos de Bretanha, região no noroeste da França. Ela é caracterizada “pelo fervor religioso e zelo apostólico. Na época da criação tinha 18 conventos e 351 frades”(REGNI, 1988, p.48). Infelizmente, muito do seu patrimônio bretã foi destruído durante a revolução francesa nos anos de 1789-1799. A província tinha missões no Líbano e estava iniciando missões na África. Quatro missionários foram presos na ilha de São Tomé pelo holandês almirante Cornélio Jol, cognominado “Perna-de-Pau”, e levados para Recife. Chegaram no dia 14 de janeiro de 1642 e foram bem recebidos por Maurício de Nassau, governador do Brasil holandês que defendia a liberdade de religião. Os freis construíram, em 1650, um centro missionário em Olinda, sendo “um hospício consistindo de uma capela com pequena sacristia e cinco celas e um pequeno refeitório”. Na Guerra da Restauração se colocaram ao lado dos católicos portugueses contra os protestantes holandeses e seu convento foi destruído. Os missionários bretões ficaram no Brasil e construíram em 1656 um novo hospício no Recife. Era “uma igreja de modestas proporções, com coro e capelas laterais”, dedicada a Nossa Senhora da Penha, e uma morada para os frades “com oito celas, sala de estar, refeitório, parlatório, dispensa e outros locais de serviço”. A partir de 1687, porém, a entrada de novos missionários franceses foi proibida por motivos políticos. Os últimos capuchinhos bretões deixaram o Brasil em 1702. Num período de cinquenta anos, uns quarenta missionários da França trabalharam no Brasil. Os freis usavam como sobrenome o nome da cidade natal, chamado antropônimo geográfico. Assim a história guarda nomes meio franceses 125

meio bretões: Nantes, Combourg, Quimper, Ancenis, Mayenne, Quintin, Sérent, Saint-Malo, Le Croisic, Rennes, Josselin, Montfort, La Roche-Bernard, Lucé, Messac,Tiffauges, Domfront, Audierne, Redon, Auray, La Sable-d’Olonne, Cha- teaugontier, Le Mans, Le Faoüet, Bécherel, Ploërmel, Fresney e Laval. A história destes capuchinhos no Brasil nos foi contada por frei Pietro Vittorino Regni no livro “Os capuchinhos franceses”, primeiro volume da obra Os capuchinhos na Bahia. FREI TEODORO DE LUCÉ Frei Teodoro (1638-1686) nasceu em Lucé no Norte da França, suposta- mente em 1638. Fez seus estudos no convento de Mayenne, entrou na ordem dos capuchinhos em 1656 e deve ter sido ordenado em 1663. Foi escolhido para a missão no Brasil e chegou no início de 1670. Durante oito anos, assumiu a missão de Boqueirão com os Índios Cariris. Continuou seu trabalho durante sete anos numa ilha no rio São Francisco entre os Índios Aramurus numa aldeia dedicada a São Pedro e localizada em Porto da Folha-SE, sendo sucessor de frei Anastácio de Audierne, que “sempre disponível à necessidade alheia ia e vinha, dia e noite, a todos os lugares a que fosse chamado” (REGNI, 1988, p.148). Frei Martinho comenta: “o padre Teodoro tomou o seu lugar; mas, conquanto fosse santo e religioso muito zeloso, não tinha nem a força, nem os talentos do reverendo padre Anastácio”. Em 1685 era superior do hospício de Recife. Adoeceu e no ano seguinte à viagem de volta para Europa morreu perto das ilhas Açores. Foi ele que aceitou o convite de Antônio de Oliveira Ledo para iniciar uma missão em junho de 1670. Desconhecemos os detalhes do seu trabalho missionário no meio dos Índios Cariris, mas uma das primeiras coisas deve ter sido a indicação de uma padroeira. Frei Teodoro escolheu Nossa Senhora do Desterro, devoção de muitos que viviam como ele longe de sua terra natal, no caso dele a cidade de Lucé na França. A aldeia já existia e ele deve ter construído uma casa e uma capela, como frei Martinho fez em Urucapá “Em um mês, dia por dia, tive uma igreja e uma casa razoavelmente bem construídas. Todos trabalharam nelas com ardor, até as crianças; eu me arvorei em arquiteto e não andei mal, na primeira vez em que exerci tal ofício. A construção era de madeira e barro, coberta por uma espécie de palha, mas tudo muito agradável”. 126

É evidente que tal construção não teve durabilidade.[1] Se fala desta capela memória, cultura e identidade numa sesmaria de 1732 e em outras nas terras de N.S. do Desterro, as terras da família Oliveira Ledo. Frei Teodoro é o verdadeiro fundador da missão, que alguns chamam de “missão de Curinaiô de Nossa Senhora do Desterro”. Ele é, então, o fundador do catolicismo do Cariri inteiro e da antiga paróquia de Cabaceiras e Boqueirão em especial. A capela era a primeira católica do Cariri e da futura paró- quia de Cabaceiras. É possível que depois da saída dos missionários, os moradores da região tenham construído outra capela no nascente povoado, situado em 1887 num dos “dois serrotes a prumo”. segundo Manoel Benício, lugar impossível de traçar hoje depois da construção do açude e grande movimento de terra. Joffily falou no final do século XIX que “Boqueirão tem uma boa capella, mas é pequena e decadente” ( JOFFILY, 1977, p. 212). FREI MARTINHO DE NANTES Frei Martinho (RIETVELD, 2018,48-67; REGNI,1988, 149-167) nasceu na França supostamente no ano de 1641, na cidade de Nantes. Ele e mais oito jovens fizeram estudos, noviciado e profissão com frei Ange de Memers, em Ren- nes. “Entrou na ordem em 1659” com uns vinte anos. Seu grande sonho era ser missionário, porém “não fui aceito, assim como três outros, dos seis que havíamos solicitado a mesma coisa, no fim dos nossos estudos”. Mas veio uma “ordem como vinda do céu”. Um dos nomeados adoeceu e “o reverendo padre provincial me de- signou para a substituição”. Era dia 15 de fevereiro de 1671. Frei Martinho estava com trinta anos. Ele viajou do convento de Rennes para São Malo, continuou a viagem nos dias 01 até 09 de março de navio para um hospício dos capuchinhos em Lisboa e dia 30 de maio seguiu para baía de Todos os Santos onde chegou dia 03 de agosto, numa viagem de dois meses. Dia 15 de agosto embarcou para o hospício dos capuchinhos no Recife. Frei Teodoro chegou dois meses depois ao Recife (no texto em francês) para resolver a questão do assassinato do filho do cacique de sua missão, que ocorrera seis meses antes, por um escravo, fato que causou grande revolta entre os Índios e ameaçou seu trabalho. Enquanto Teodoro ficou no Recife, frei Martinho acom- panhou alguns Índios de volta para a missão; era mais ou menos 15 de outubro de 1671. A viagem durou quinze dias e lhe custou muito; a seca, moscas, cobras e 1   Frei Martinho visitou esta ilha duas vezes. Quando eu visitei esta missão em 1983 dormi na sacristia da antiga igreja feita de pedra e cal nos anos 1850-1853 pelos freis italianos, frei Doroteu de Loreto e frei Davi de Perugia. Na ilha não moravam mais índios Aramurus, mas Xokos. 127

formigas. Ele diz: “o Brasil é o país das formigas”. Percebe-se aqui o desespero de um novato vindo da França. Até anota que existiam na região registros rupestres, que estão sendo interpretados como aprovação de Deus para os seus trabalhos. Ele ficou uns quatro meses.[2] Porém, não gostou da missão e decidiu partir para o rio São Francisco, onde “havia muitas aldeias dos Cariris”. Aí fundou duas missões: Ouracapa e Ilha dos Cavalos. Passou onze anos nestas ribeiras, de 1672 até 1683. Ele dedicou-se à fundação de uma igreja, a estudar a língua, ao trabalho pastoral e à defesa dos Cariris contra a ganância de Francisco Dias d’Ávila, representante da Casa da Torre, e cada vez mais, se envolveu nesta luta. Duas vezes procurou o governador na cidade da Bahia. Frei Martinho percebeu que era difícil defender os Índios morando no interior. O lugar ideal era a sede do governo, Salvador na Bahia. Assim, frei Martinho se estabeleceu na capital da colônia. Em 1683, ele começou a construção do convento da Piedade, muito parecida com a do convento da Penha em Recife, e marcada por uma cúpula. No fim de agosto de 1686, sofrendo de “contínuas doenças, que me tornavam incapaz de continuar a trabalhar”, sendo “um reumatismo geral, que em pouco tempo teria impedido todos os movimentos de meu corpo”, embarcou para Europa a fim de tomar “banhos térmicos de Portugal, recomendados por todos os médicos que consultei”. No ano seguinte, Portugal proibiu a entrada de franceses no Brasil. No dia 19 de dezembro, viajou para a França onde chegou dia 21 de janeiro de 1688,“depois de terrível tempestade que durou doze dias completos e que chegamos a acreditar que não a venceríamos”. Foi nomeado guardião no convento dos capuchinhos de Quimper. Nos anos de 1712-1714, encontrou-se novamente em Lisboa como superior do hospício. Depois de sua morte, ficou conhecido como o “apóstolo dos Índios Cariris”.[3] Ele é o autor da Relação. OS ÍNDIOS CARIRIS A palavra índios é um termo genérico que se refere a muitos povos totalmente diferentes, da mesma forma como o nome europeu indica países-povos distintos. No Brasil tinham uma característica em comum: todos eram caçadores-coletores. Não existiam culturas como dos Astecas, Mayas e Incas. mas cada grupo tinha sua cultura e fala. Na Paraíba Borges menciona no litoral os Tabajaras e Potiguaras. No interior vivem os Cariris com as tribos Chocos, Paratiós, Carnoiós, Bodopitás, 2   N o seu relatório, ele fala duas vezes em oito meses, mas me parece que ele conta o tem- po de sua chegada ao Brasil, no início de agosto, até sua chegada ao rio São Francisco, em abril. De fato, ele saiu para a missão na quaresma de Natal e voltou na quaresma de Páscoa, um tempo de, no máximo, quatro meses. 3   O s jesuítas deram este mesmo título a padre João de Barros (1639-1691). 128

Fagundes, Bultrins, Icos e Coremas; e os Tarairius com as tribos Janduis, Ariús, memória, cultura e identidade Pegas, Panatis, Sucurus, Paiacus, Canindés e Jenipapos. Ele afirma a observação do governador holandês Herckmans (HERCKMANS, 1982, p. 67). Frei Martinho trabalhou com os Índios Cariris, que viviam nas terras de Boqueirão e no rio São Francisco. Cariri seria uma palavra tupi que significa si- lencioso ou taciturno. Frei Martinho anotou que eles “não costumam interromper os que lhes falam”. Ele não deu uma descrição do rio São Francisco ou dos Índios porque o “padre Francisco de Lucé, capuchinho, testemunha ocular, já fez essa exata descrição”[4]. Segundo Regni (1988) ele valorizava a cultura indígena. Porém fazia uma crítica à religião deles, constatando que os Cariris não têm fé, nem lei, nem rei. Frei Martinho resume a religião de modo altamente negativo. “Era tão ridículo e vergonhoso o culto quanto as coisas que adoravam. Tinham um deus para as culturas que a terra produzia; outro para a caça; outro para os rios e as pescarias”. Ele vê politeísmo que deve ter existido junto com animismo. Os Cariris organizavam muitas festas “constituídas de danças, pintura do corpo, festins quase sempre impudicos, praticando o adultério, a que não davam nenhuma importân- cia”. Homens especializados, os pajés, entravam em contato com o mundo divino através de ritos e celebrações e o uso de drogas, principalmente o fumo, chamado também “erva santa” ou “batzé”. Frei Martinho encontrou a explicação num mito, que ele anotou cuidadosamente. Sabemos hoje que os pajés eram conhecedores da natureza humana tanto nos seus aspectos físicos como espirituais, com um grande conhecimento de ervas do mato. Estes feiticeiros eram temidos e tinham muita influência, segundo Nantes. Claro que eles não eram bem vistos pelos capuchinhos, sendo desqualificados como “impostores, que adivinhavam o que eles pensavam”. Não havia uma religião organizada, característica de sociedades de agriculto- res com cidades, escrita e governo central, mas o jesuíta historiador Serafim Leite vê nas cartas dos seus confrades que trabalhavam no meio de um outro grupo de Cariris na Bahia um “estado religioso”, “sem ter ainda a sistematização moderna”. O inaciano reconhece elementos essenciais como culto externo, ritos invariáveis, orações e periodicidade das celebrações festivas (LEITE, 1938, tomo V, p. 312-313). 4   Frei Francisco de Lucé, que é ligado à missão dos Boldrim, situada em Lagoa de Roça, segundo Brito. Esta missão depois foi transferida em 1673 para São Miguel de Taipu ou Pilar perto de João Pessoa, missão fundada por frei Francisco de Lucé em 1673 e uma década depois reorganizada por frei Anastácio de Audierne. Trabalhou, segundo Regni, numa aldeia a 50 quilômetros de Aracapa nos anos de 1685 até 1688. No perímetro de uma aldeia “podia haver 18 a 20 malocas, alinhadas em fila dupla; assim a aldeia podia ter de três a quatro mil pessoas”. 129

A LÍNGUA DZUBUKUÁ No período da chegada dos europeus e africanos, existiam no Brasil muitas línguas.As pessoas eram obrigadas a se expressarem em português,francês,holandês, línguas africanas e línguas indígenas. Frei Martinho escreve que teve que aprender português e foi criticado por não falar bem. Segundo Regni, a Propaganda Fide era muito severa na questão de uma “adequada preparação linguística”. Missionários ti- nham seis meses para aprenderem a língua local e “os superiores das missões deviam submetê-los a exame da matéria”. Este período podia ser prolongado por mais seis meses. “Os negligentes deviam ser mandados de volta a suas províncias como inade- quados ao ministério apostólico”. Sic! Os jesuítas enfrentaram logo o desafio e padre Anchieta escreveu,em 1595,uma gramática da língua tupi para os novos missionários. Os capuchinhos, nas suas missões entre os Índios Cariris, foram obrigados a aprenderem sua língua. Frei Martinho teve que aprender sua língua in loco. Na sua saída de Boqueirão levou consigo um jovem. Jovens e crianças são de grande ajuda para se aprender uma língua. Ele sabia como a língua é importante e escreveu “para trabalhar na conversão dos Índios, havia necessidade, com a graça de Deus, de quatro coisas. A primeira era aprender a sua língua, sem o que seríamos bárbaros diante de bárbaros”. Além disso “uma grande caridade ... um grande desinteresse pessoal ... um grande amor à castidade”. Em relação à língua anotou: “Aprendi com muito esforço a sua língua por falta de intérpretes”. “Todos os nossos missionários entre os Cariris se empenharam em aprender a sua língua, sem o uso da qual era impossível transformá-los em verdadeiros cristãos, pois que é natural do bárbaro a barbaria. Seriam macacos para imitar o que vissem fazer ou papagaios para repetir o que lhe ensinassem, mesmo sem o compreender”. Frei Martinho, como todos os missionários, se tornou um linguista. Passou os seus conhecimentos durante cinco meses para seu sucessor em Aracapá, frei Bernardo de Nantes, antes de ir para Salvador. “Deixei-lhe o dicionário, que havia preparado, da língua dos Cariris, a arte, ou rudimento, um exame de consciência e direção da confissão e algumas vidas de santos, tudo traduzido na língua dos Cariris, com o português do outro lado”. Frei Bernardo aprendeu logo porque “tinha muita inteligência e excelente memória”. Assim chegou a editar, de volta à Europa, um manuscrito bilíngue (francês-dzubukuá) em 1702 e um catecismo bilíngue (português- -dzubukuá) em 1709. Os capuchinhos trabalhavam no meio de Cariris que falavam dzubukuá. Hoje os pesquisadores distinguem quatro “dialetos”: dzubukuá, kipea, sabuya e kamurú. Estes trabalhos dos capuchinhos apareceram depois da gramática da língua cariri-kipea do jesuíta padre Lodovico Vincenzo Mamiani dela Rovere (1652-1730), padre Mamiani, de 1699. Jesuítas trabalhavam com Índios da língua kipea. Frei Bernardo justifica seus livros na introdução, dizendo que cariri-dzubukuá 130

e cariri-kipeá são línguas parecidas, mas diferentes como o espanhol e o português. memória, cultura e identidade Estes estudos linguísticos ajudam a decifrar palavras da língua cariri[5]. Frei Martinho tentou ensinar aos Índios o português e todos aprenderam “a rezar em português”,apesar de que as pessoas idosas “se desculpassem,mostrando-me que não tinham mais dentes para pronunciar as palavras”. Não fala sobre o ensino de escrever, mas percebia que os Índios ficavam admirados por esta arte e “ficavam persuadidos de que a escrita conservava a memória inviolável das coisas passadas e que sem a escrita tudo acabava no esquecimento e se tomava o erro pela verdade”. DEFESA DOS ÍNDIOS Segundo frei Martinho, os Cariris acolheram os criadores nas suas terras. Porém, o que estes não previram é que estes tinham seu gado como caça. Por isso Antônio Oliveira chamou os missionários, como mostra o texto. O interesse era salvar o seu gado e não a “salvação dos Índios”. A relação entre os missionários piorou. No conflito, frei Martinho escreveu uma carta à rainha, por intermédio do superior dos capuchinhos em Lisboa, padre Gabriel de Serrent, que “impediu nossa expulsão do Brasil”. Se frei Martinho pensou que a situação no rio São Francisco seria diferente, ele se enganou. O grande pecuarista lá era Francisco Dias d’Ávila, representante da Casa da Torre, dona de grandes glebas de terras no rio São Francisco. Ele fez de tudo para acabar com a interferência dos missionários em defesa dos Índios. Este é o tema da segunda relação. Esta agressão levou frei Martinho a sua mais famosa pregação, feita na presença do latifundiário. Este homem pequeno, de es- tatura baixa, tinha soltado sessenta cavalos de seu amigo João Álvares Fontes nas roças dos Índios, condenando os nativos a morrerem de fome. A pregação é digna de comparação com qualquer pregação por padre Antônio dos Montesinos, Dom Bartolomeu das Casas, Dom Helder Câmara ou Dom Oscar Romero. O tom começou cínico: “Como, Senhor, não tendes por lei senão o que vos incomoda ou acomoda?... Senhor, tendes um corpo tão pequeno e precisais de tão pouca fazen- da para vos vestir, e tão pouca coisa para vos alimentar, e não vos contentais com cinquenta mil libras de rendimento?”. Mas depois ele entra na questão e vai falar sobre direitos e justiça. Ele defendeu a tese de que os Índios são os verdadeiros donos das terras e se coloca ao lado deles. “Eu os defenderei e não suportarei essa 5   U bu (= fruto), bodo-pitá (= águas onde moram índios), bodo-congo (= águas onde mo- ram escravos), coro (= pedra), carnoió (= pedras claras), dzubukuá (=águas claras), cornoió (=pedras claras), cocurité (=pedra grande) e badzé (=fumo). Palavras da língua tupi-guara- ni são: Borborema (= terra sem gente), e Cariri (= calado). As palavras congo e guiné são usadas pelos Índios, mas têm sua origem nas línguas africanas; são neologismos. 131

afronta, que vai prejudicar a minha missão”. “Preferis torná-lo rico à custa desses Índios recentemente convertidos, em vez de deixá-los viver no seu próprio país”. O missionário se sente obrigado a procurar o governador, representante do rei, que morava na capital da Bahia. Este se mostra receptivo às queixas de frei Martinho. O conflito entre missionários e Índios continuou e, no fim, os índios perderam. CONCLUSÃO Frei Martinho de Nantes foi, em 1671, enviado para a missão de frei Teodoro de Lucé, situada na região do atual município de Boqueirão, para evangelizar os Índios. Ele ficou somente quatro meses. Foi nesta missão que ele se deixou cativar pelos Cariris e tomou a decisão de missionar em duas aldeias destes Índios no rio São Francisco. Viu neste primeiro contato os problemas que ia enfrentar: língua, ambição dos portugueses, defesa dos Índios, cultura indígena e evangelização. Mas, graças a ele, temos uma primeira referência mais exata às terras de Boqueirão. REFERÊNCIAS BORGES, José Elias Barbosa. Indígenas da Paraíba (1). Classificação preliminar. In: Edu- cação e cultura. Ano 3, no 12, 1984. 30-43. BRITO,Vanderley de.Missões na capitania da Paraíba.Campina Grande: Cópias & Papeis,2013. DENIS, L. Cabaceiras. 1835-1985. Estêncil, 1985. HERCKMANS,Elias.Descrição geral da capitania da Paraíba-1639. João Pessoa: A União,1982. JOFFILY, Ireneo. Livro 1. Notas sobre a Parahyba. Livro 2. Seleção das crônicas de Ireneo Joffily. Brasília: Thesaurus, 1977. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugalia; Rio de Janeiro: Instituto nacional do livro. 10 volumes. 1938. LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos Jesuítas no Brasil (1549-1760). Lisboa: Brotéria, 1953. MEDEIROS,Tarcízio Dinoá.Freguesia do Cariri de Fora. São Paulo: Camargo Soares, 1990. NANTES, padre Martinho de. Relação de uma missão no Rio São Francisco. Brasiliana. São Paulo: Ed. Nacional. 1979. v. 368. NANTES, père Martin de: Relation succinte et sincere de la mission du Pere Martin de Nantes, prédicateur Capucin, missionaire apostolique dans le Brezil parmy les Indiens appellés Cariris, com le permission de Monsieur le Grand Vicaire, Jaques Furic, prêtre, vicaire general du Chapitre Sede Episcopali vacante”. Rome, 1888. REGNI, Pietro Vittorino. Os Capuchinos na Bahia. Uma contribuição para a história da Igreja no Brasil. 3 volumes. Caxias do Sul: Paulinas, 1988. RIETVELD, João Jorge. O antigo termo de Cabaceiras. Artigos históricos. Campina Grande: Cópias & Papéis, 2017. 132

8 memória, cultura e identidade MEMÓRIAS DE UM MANDATO POPULAR NO ENCONTRO DO PARAÍBA COM O TAPEROÁ JONAS DUARTE APRESENTAÇÃO Esse rápido artigo procura recuperar algumas das minhas memórias pessoais do mandato de vereador que cumpri no município de Boqueirão-PB entre os anos de 1983 e 1988. Período fértil na minha formação pessoal e de forte intensidade na “Cidade das Águas”. Não há aqui, de nossa parte, nenhum compromisso em comprovar documentalmente minha narrativa. No entanto, buscarei ser rígido em relacionar minhas interpretações dos fatos descritos, minha perspectiva com o máximo de evidências objetivas. Inicialmente procuro contextualizar no processo histórico brasileiro e regional o município de Boqueirão. Alguns elementos gerais de sua formação histórica e de como esse município chegou no último quarto do século XX. Rapidamente abordo a economia local. O impacto do algodão, da construção do Epitácio Pessoa, o “boom”do tomate, as crises dos anos 1980 dentro do contexto geral do país e seus reflexos na política local. Viajo rapidamente por Boqueirão de uma juventude inquieta, em busca de novos ares, de novos valores. Procuro indicar meu ponto de vista. Sem a rigidez de uma pesquisa docu- mental histórica profunda. Contextualizo as eleições de 1982. Procuro interpretá-la, sob os prismas ideo- lógicos que me conduziram à época e, lógico, a partir de um rememorar de aconteci- mentos há quarenta anos atrás. Sendo assim, não pretendo ser a palavra final sobre as histórias aqui contadas. O contrário. Prefiro ser o ar provocante do contraditório. Para mim, no entanto, é sentido o dever de narrar esses acontecimentos para grafar na memória desse povo valente, sua capacidade de luta, de enfrentamentos aos enormes desafios que encontramos na vida e nesse lugar. RÁPIDA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DE BOQUEIRÃO Em Boqueirão, no encontro dos rios Paraíba com o Taperoá se estruturou uma das primeiras fazendas de gado do interior paraibano. Chegaram ali os Oli- veira Lêdo com suas armas e ganas de conquistadores. Mataram e ou escravizaram nativos que ocupavam aquelas margens de rio há séculos, talvez milênios. A lógica 133

do conquistador era brutal, dominadora, exploradora. Os nativos, povos tapuias da nação Cariris, mais do que resistir em lutas desiguais, fugiram ou se renderam a pólvora e aos “dentes de cachorro” do colonizador. Assim foram ocupadas as terras de nosso interior. Léguas de terras em doações de sesmarias para beneficiar o “Amigo do Rei”. Geralmente um afortunado, ligado a Coroa Portuguesa ou um degradado fugido de Portugal. A Lei de Terras de 1850 legalizou a ignomínia das sesmarias, da terras para quem tem dinheiro, da exclusão antecipada de quem viesse a ser livre da escravização de africanos ou de indígenas nativos. A ferro e fogo os conquistadores submeteram os povos dos sertões. O gado trouxe o português às terras ermas de baixa pluviometria nordestina, deixando para trás os espaços necessários para os engenhos de moer cana e gente nas partes úmidas da costa atlântica. Nos rastros do boi vieram vaqueiros, povos ibéricos miscigenados por mouros e da tradição mediterrânea. Estruturaram fazendas de gado, comércios de peles, formaram pequenos aglomerados e forjaram o Sertanejo. (Ribeiro, 1996). Não há nada idílico na história da conquista dos sertões e no processo de formação dos povos sertanejos. A conquista das terras secas do interior nordestino foi demorada, violenta, sangrenta e os interesses europeus contrastavam diametral- mente com o seu uso pelos nativos. Resulta desse embate a Guerra dos Bárbaros. Uma série de conflitos entre povos invasores, conquistadores de novas terras e os povos nativos, adaptados e vivente por aqui há milhares de anos. (Puntoni, 2002). É nesse contexto de massacres de povos nativos, latifúndios e de estruturas coronelísticas oligárquicas, que forma-se uma sociedade brutalmente estratificada, desigual, dominada por uma cultura de mando e obediência. Ao gado, tangido pelo homem dos canaviais ou trazido para os sertões secos do “Norte” de outras regiões do país por bandeirantes une-se a cultura do algodão. O algodão, matéria prima da indústria têxtil que crescia aceleradamente na Europa, especialmente na Inglaterra, impulsionada pela Revolução Industrial. As máquinas inglesas comiam avidamente algodão desde meados do século XIX, impulsionan- do uma economia agrária à base dessa pluma vegetal na Índia submetida ou nas ex-colônias americanas. A Guerra Civil que eclodiu nos EUA entre o Norte industrializado e o Sul escravocrata, dominado por latifundiários, entre 1861 e 1865, tem repercussão direta nos sertões do Nordeste. O eixo exportador do algodão engolido pela indústria têxtil Inglesa se amplia para as terras secas do Brasil. O algodão nativo, arbóreo, de excelente qualidade produzido naturalmente nos sertões nordestinos entra de vez na produção em larga escala e no abastecimento internacional. Os sertões passam a ser polo de atração econômica e populacional. As áreas de brejo e de produção de cana de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe, empurram suas populações das costas litorâneas para 134

as áreas até então, relativamente, pouco habitadas do interior brasileiro. Entendam. memória, cultura e identidade O Fluxo migratório ocorrido com a atração econômica do algodão é muito maior do que com o gado nos séculos XVII e XVIII. Na esteira desse fluxo migratório vieram as estradas de ferro, instaladas por ingleses ávidos pelas maravilhosas fibras longas produzidas ao sol sobrante do Semiárido brasileiro. O Algodão Arbóreo, com suas diversas denominações: Seridó, Mocó, Preto, Sertão, etc., reunia em seus campos inicialmente os escravizados trazidos da África, mas avançou utilizando mão-de-obra de seus descendentes, da miscigenação produ- zida entre povos nativos, descendentes de africanos e portugueses. Atraiu também senhores de engenho ou pequenos fazendeiros das áreas úmidas do Nordeste, vindo em busca de longas extensões de terras, que mesmo sob clima semiárido, produzia à época grandes riquezas. Especialmente o algodão. Assim se formaram a maioria das paróquias, comarcas, vilas e posteriormente cidades do interior do Nordeste. Os trens ingleses intensificaram esses processos. A Paróquia de Cabaceiras, entre os rios Paraíba e Taperoá é uma das mais antigas nesse processo. Ali, o algodão produzido nas fazendas ao longo dos rios era transportado para Campina Grande em lombos de burros, de onde, geralmente beneficiado, separado a pluma do caroço, a partir de 1907, passou a ser carregado para o Porto do Recife em vagões da Great Western (The Great Western of Brazil Railway Company Limited). Podemos dizer que os mesmos ingleses que dominaram os mares séculos a fio, dominaram também o algodão dos sertões nordestinos. A maior parte da riqueza gerada pelo “Ouro Branco”à época, ficou em mãos de companhias inglesas, açambarcado por empresas monopolistas e suas representantes locais. O município de Cabaceiras se destacava também por sua condição climática. Se todo o Semiárido nordestino se caracterizava por ter médias pluviométricas bem inferior as de outras regiões brasileiras, as condições climáticas do Cariri Paraibano acentuavam essa condição. Mesmo assim, Cabaceiras foi centro econômico de uma importante região produtoras de Algodão, Caroá e Sisal, fibras que em cada período determinado teve grande importância na economia regional (Lira Neto, 2019) O atrativo econômico superou as condições climáticas na atração de fazen- deiros de outras regiões para explorar o algodão, gado e outras riquezas geradas por ali. A proximidade de Capina Grande, importante centro-empório, em que se encontravam as diversas regiões de todo o Nordeste, permitiu aquele tornar-se polo atrativo para as populações de outras regiões e mesmo de outros estados. Dessa forma, se consolida no município a mesma estrutura social que predominou em todo extenso interior do Nordeste. Longas extensões de terras, 135

dominadas por grandes fazendeiros conservando laços famílicos, formando as tradicionais oligarquias rurais nordestinas. Donos de terras e de votos, configu- rando o poder econômico e político desses fazendeiros, a política nessas terras era negócio de família. Como ocorre nessas formações sociais.A estrutura agrária alimenta o domínio oligárquico e o poder oligárquico reforça a estrutura agrária, de onde deriva todo poder econômico. Essas estruturas de poder político e econômico locais também alimentam e são reforçadas pelo poder central. (Leal, 1948). Se o poder oligárquico rural foi hegemônico no Brasil até os anos de 1930, no Nordeste brasileiro essa estrutura de mando econômico e político se estendeu ou se estende ao século XXI. Cabaceiras é um município emblemático nesse processo histórico. Os anos de 1950 foram anos de muitas estiagens em todo o Nordeste. Como sempre, nesses períodos, a fome endêmica se tornava pandemia e tragédia social. Sem estudos aprofundados as políticas públicas dos diversos governos para enfrentar essa situação, abordava a partir do conceito de Soluções Hidráulicas. Ou seja, se olvidava todas as características históricas, econômicas, sociais e mesmo ambientais dos sertões nordestinos e aplicava como remédio: solução hidráulica. Foi assim que nos anos 1940 se transformou o IFOCS – Instituto Federal de Obras contra as Secas no DNOCS - Departamento nacional de Obras contra as Secas. Ainda no início dos anos de 1950, sob o Governo Getúlio se criou o BNB – Banco do Nordeste Brasileiro, especialmente, diria, para atender as oligarquias rurais dos sertões nordestinos. É nesse contexto que se iniciam as obras da barragem no encontro dos rios Taperoá e Paraíba. Nasce assim, o que viria a ser o açude Epitácio Pessoa e o que viria ser o município de Carnoió, homenageando a tribo e serra da nação Cariri e depois o município de Boqueirão. Cerca de dois anos após a inauguração do Epitácio Pessoa, em abril de 1959, vem a emancipação desse município. As águas do açude permitiram o florescimento econômico e social da cidade e do município como um todo, já que ele se estendia da divisa com Campina Grande e Queimadas no Agreste Paraibano até a divisa com o Agreste Pernambucano, na vizinhança do município altiplano de Taquaritinga do Norte. É fato que o imenso Boqueirão, nascido em 1959, conservava as estruturas social e política da antiga Cabaceiras, e de resto de todo Nordeste brasileiro. O domínio econômico e político oligárquico continuou nas mãos de algumas poucas famílias, assentadas sobre latifúndios de fazendas a “perder de vistas”. 136

BOQUEIRÃO EM TURBULÊNCIA POLÍTICA. memória, cultura e identidade UM MANDATO PARA ELEVAR A TEMPERATURA É importante informar leitoras e leitores que tudo aqui apresentado está guardado apenas em minhas memórias. Faz parte das minhas interpretações dos fatos. Não pretendo apresentar a verdade, nem a última palavra. Pouca coisa está documentada, muitas poderão ter o testemunho de quem viveu aquela época ou com pessoas que viveram junto comigo esses fatos. Não é objeto de meus estudos atuais a História política de Boqueirão. Não tenho como conferir documentalmente para confirmar a veracidade dos fatos como deve ser um trabalho historiográfico, científico. Portanto, estamos aberto as críticas e as narrativas sob outras perspectivas. Compreendam apenas como um depoimento. E para os futuros historiadores uma fonte importante a ser confirmada através de pes- quisas documentais que reconstrua o mais próximo possível da realidade. Aos catorzes anos de idade ingressei no ensino médio, na Escola Técnica Redentorista – a ETER em Campina Grande. O Brasil vivia uma efervescência política grande. Os ventos favoráveis a Di- tadura, cessavam. Com a chamada Crise do petróleo desencadeada a partir de 1979, os movimentos contra a ditadura se avolumaram. Na UFPB, campus de Campina Grande, caminho do Redentorista se forma um Comitê por Anistia. As manifestações políticas contra a Ditadura realizadas pelos movimentos docente e estudantil na UFPB ecoavam em toda cidade de Campina Grande e especialmente na juventude cansada da repressão militar e ansiosa por tempos de liberdade. Passei a participar de todas as atividades do Movimento por Anistia. Das palestras com Hélio Bicudo denunciando as torturas da Ditadura as manifestações de apoio a luta do povo nicaraguense contra a ditadura de Anastácio Somoza. Aliás, a tomada do poder pela Frente Sandinista foi comemorada por nós como se fora o fim da Ditadura no Brasil. Acreditávamos, corretamente, estar perto o fim daquele inferno autoritário no Brasil. Rapidamente o movimento político chega ao Redentorista. Ali criamos o Grêmio Estudantil e iniciamos os debates contra a Ditadura Civil-Militar e todas as formas de repressão, inclusive da direção do próprio Colégio. Em 1980, a partir de uma visão autoritária, distorcida e tosca, o diretor do Colégio redentorista resolve demitir 17 (dezessete) professores, acusando-os de doutrinação política. Dizendo que os mesmos estavam insuflando os estudantes a atos de rebeldia. Nós que já tínhamos colocado a música de Geraldo Vandré: Caminhando, no som do “recreio”do Colégio engrossamos uma greve contra a demissão dos pro- fessores. A essa altura eu já cursava o terceiro ano do ensino médio e não aliviamos. 137

Só permitimos os estudantes dos outros anos ingressarem na Escola depois que em uma reunião com todo o corpo docente do Colégio resolve extinguir o ato autoritário e recontratar os demitidos. Eu não era liderança naquele Movimento estudantil de “secundaristas”. Apenas participante discreto. Em 1982 cursava Licenciatura em Física na antiga FURNE – Fundação Universidade Regional do Nordeste. Hoje UEPB. Ali, me enturmei com o Movi- mento Estudantil e tomei parte na direção do Diretório Acadêmico “17 de Maio”, em homenagem aos jovens presos por protestarem contra a Ditadura em Campina Grande, nessa data. Naquele período já participava ativamente da Juventude do PMDB e de todas as manifestações contra a Ditadura Militar em Campina Grande. Na época, não eram poucas. Boqueirão, era para mim, nesse período o espaço do descanso, das festas e dos discursos inflamados contra a Ditadura Brasileira, para aquele jovem encarnada na figura de Ernesto do Rêgo. O raciocínio era simples, direto e conclusivo. Ernesto comandava Boqueirão desde sempre. De sua emancipação até aqueles dias, ninguém houvera vencido o velho líder. Latifundiário, de um ramo de uma das oligarquias mais tradicionais do Nordeste Brasileiro, membro da ARENA/PDS desde sua origem. Na minha leitura de jovem idealista era a personalização da Ditadura Militar. A Tabela que apresento a seguir, coletado a partir dos dados do TRE-PB dá a dimensão da força de Ernesto do Rêgo em Boqueirão. Desde a emancipação do município em 1959 até 1982 o líder foi absoluto. Como verão nos dados do TER-PB, o mesmo sendo candidato sequer havia oposição. Os demais eleitos foram por ele apresentado. Importante destacar que Ernesto em 1959 apresenta candidato pelo PTB e em 1963 é candidato pelo PTB, partido que compunha a chapa do governo presidido por Juscelino Kubistchek entre 1955 e 1960, e o PTB, de Jango – João Goulart, presidente em 1963. 138

TABELA 1 RESULTADO DAS ELEIÇÕES PARA PREFEITO DE BOQUEIRÃO (1959-1982) Ano Candidatos Partido Votação Percentual Condição 1959* João Bezerra Cabral PTB 1.597 74,28% Eleito Severino Bernardo Freire PSD 553 25,72% Não Eleito 1963 Ernesto Heráclio do Rêgo PSD/PTB 1.800 100% Eleito 56,32% Eleito Veneziano Araújo do Rêgo ARENA1 2.593 Vice: José Amaro Guimarães MDB2 1.589 34,51% Não Eleito MDB1 422 1968 Vital Arruda Vice: Enock Ricardo de Araujo 9,17% Não Eleito José Cosme Barbosa Vice: Arthur Ferreira de Castro 1972 Ernesto Heráclio do Rêgo ARENA 4.490 100% Eleito Vice: Carlos Dunga Carlos Dunga ARENA3 3.716 57,89% Eleito Vice: Antonio de Brito Rego Maria de Lourdes de Araujo Arruda MDB1 2.173 33,85% Não Eleito Vice: Manuel de Brito ARENA1 1976 345 Sebastião Galdino Pereira 129 56 5,73% Não Eleito Maria Cordeiro de Brito ARENA2 2,01% Não Eleito 0,87% Não eleito Josino Maciel Costa MDB3 Ernesto Heráclio do Rêgo PDS1 5.370 52,23% Eleito Vice: Zé Herminio memória, cultura e identidade José Benicio do Carmo PMDB1 2.811 27,34% Não Eleito Vice: Vital Arruda Eraldo Barbosa de Lucena PDS2 877 8,53% Não Eleito 1982 Vice: Francisco Solane Rodrigues José Cordeiro Duarte PMDB2 542 5,27% Não Eleito Francisco de Paula Maciel PMDB3 450 4,38% Não Eleito Rosimildo Florindo Barbosa PDS3 232 2,26% Não eleito Vice: Etiene Sales Marinho *Em 1959, ano da emancipação política, Boqueirão ainda era denominada Carnoió (Fonte: TRE-PB) 139

Diante da evidente supremacia política do líder Ernesto do Rêgo aos jovens idealista, rebeldes do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 não restava outra visão que não a de colocá-lo como expressão política da Ditadura. Essa foi a imagem que eu construí do velho líder, que afinal ainda era parente nosso. De certa forma ficou comum, quando reunia alguns jovens em farras, depois de encorajar-se por uns tragos fazia meus discursos. Contra a ditadura e contra Ernesto do Rêgo. Frequentávamos assiduamente o “Bar de Zé Cosme”. Eu e a longa relação de primos e primas da família Trovão ou das Emas como erámos conhecidos pela população da cidade. Zé Cosme era oposição ferrenha a Ernesto, não lembro as razões. Mas para mim, era razão para eu frequentar. Conservava um difusora na frente do bar, onde colocava as músicas para animar a rua. Também aproveitava para fazer leilão de galinhas ou de outras coisas nas festas religiosas da cidade. Certa vez, isso foi no início de 1982, na primeira vez em que empunhei um microfone, bebíamos todos lá em “Zé Cosme”. Lá pelas tantas, se iniciou o assunto política. Éramos todos jovens universitários, envolvidos pelo clima político universitário de luta contra a Ditadura. Eu, mas não só eu, era um dos mais entu- siasmados. Foi rápido a transição do tema Ditadura para a política de Boqueirão. Em determinado momento subo em um banco e falo “aos berros”contra toda sorte de autoritarismos, de ditadura e incluo o coronelismo, ali representado pelo chefe político de Boqueirão. Depois de certo silêncio e aplausos por gozação ou por apoio sincero dos primos colegas de bebedeira, Zé Cosme chega até onde eu estava e me oferece o microfone. Dizendo que eu deveria falar aquilo para a população de Boqueirão por sua difusora. Mesmo já tendo tomado muitas, amarelei. Mas os primos iniciaram um coro para eu falar. Como dizemos no popular: “dando corda”. Eu “engoli a corda”. Falei para os poucos jovens ali, mas também na difusora mais ouvida da cidade, segundo, Zé Cosme. Não lembro se havia outra na cidade, mas sua localização próxima a Igreja Matriz e a principal praça da cidade certamente lhes dava condição de destaque. A repercussão do “discurso” não foi imediata. Mas se firmou a ideia que dentre aqueles jovens alguém deveria se lançar na luta política. Poderia sair uma candidatura a vereador. Meu nome era um dos cotados, embora houvesse outros. Meu entusiasmo pela política só crescia. Lecionando matemática em um Colégio no Centro da cidade de Campina Grande, atividade subsequente às aulas noturnas era participar das reuniões do PMDB Jovem em sua sede, também no centro da cidade. 140

Marcante foi o meu aniversário de 18 (dezoito) anos. Liguei par o “chefe” memória, cultura e identidade político do PMDB de Boqueirão e fui pedir para me filiar ao Partido. Sem o título, não pude me filiar. Mas Vital Arruda providenciou tudo, me orientou em tudo. Tirei o título e me filiei no mais curto espaço de tempo possível para me habilitar a uma possível candidatura. A ideia era sair toda a família unida para derrotar Ernesto. Na eleição de 1976 estavam todos juntos (a família Trovão) e quase não houve candidatura de oposição, por problemas jurídicos, inscrevendo de última hora a esposa do líder político de oposição: Vital Arruda. Nem por isso foi uma diferença tão absurda. No distrito de Conceição (hoje a município de Caturité), onde se concentrava a força política da família havíamos vencido. Eleito Desterro vereadora mais votada de todo o grande Boqueirão. As coisas começaram a desandar quando a nossa família, tradicional no mu- nicípio se divide. Na sucessão de Carlos Dunga, prefeito eleito em 1976, Ernesto volta a se candidatar e convida para compor a chapa, um dos principais líderes da oposição em 1976: José Hermínio, que era membro da família Trovão, cunhado do meu pai, meu tio e padrinho. A ida de Zé Hermínio para o bloco de Ernesto desfalcou fortemente a oposição. Na realidade, a oposição em Boqueirão era liderada já fazia algum tempo por Vital Arruda. Não sei relatar os motivos de sua ruptura com Ernesto, pois o já conheci como líder da oposição e organizador do MDB, depois PMDB na cidade. Admirava a coragem de Vital, um homem sem recursos financeiros enfrentar o todo poderoso Ernesto do Rêgo. Mas visto com a distância que o tempo nos deu, observo que não era simples assim. Vital era um baluarte do PMDB, mas na eleição de 1982 teve a cobertura de Breno do Carmo, seu Breno. Se na minha leitura da época Ernesto do Rêgo era a expressão política do coronelismo nordestino, Breno do Carmo não poderia ser diferente. Talvez no estilo. Se Ernesto tinha um perfil autoritário mas ao mesmo tempo estava ali próximo das populações carentes sendo provedor, cumprindo certas funções do Estado que ausente, não atendia a população. Como caracteriza Victor Nunes Leal, o coronelismo não só oprime, também protege. Já Breno do Carmo era ou procu- rava demonstrar forte poderio econômico. E quando eu o conheci não tinha nada do estilo popular, meio simplório da tradição coronelística dos cariris paraibano. Vaidoso, e embora apresentasse um verniz de modernidade, na essência mantinha o mesmo conservadorismo e autoritarismo de Ernesto. Vital Arruda controlava o PMDB, “seu Breno” prometia o apoio financeiro. Foi esse o acordo para viabilizar a oposição em 1982. Mas as eleições de novembro estavam distantes, e o PMDB sofrera outra baixa. Agora era o irmão de mamãe, 141

Redoval Trovão, uma das figuras mais populares da família Trovão que Zé Her- mínio consegue levar. Naquela época,ainda estávamos sob a Ditadura e,embora estivéssemos saindo do regime bipartidário, em Boqueirão a polarização era total na disputa entre apenas as duas lideranças. Entre os poderosos do lugar. Não havia espaço para o multipar- tidarismo. Daí que a ditadura inventou a ideia das sublegendas. Cada partido então tinha direito a apresentar três candidaturas, duas em sublegendas. O eleito seria o mais votado da legenda que somadas deveria ser superior a soma da outra legenda. Sob essa camisa de força, em Boqueirão cada legenda (PDS e PMDB) de- veriam apresentar além da candidatura pra ganhar, candidaturas complementares que somassem à principal. Definido o candidato para enfrentar Ernesto. O filho de Breno do Carmo, a essa altura residindo em Jeremoabo-BA, mas com propriedades rurais no distrito de Alcantil, em Boqueirão. José Benício, médico, jovem e muito identificado com as pautas liberais, contra o autoritarismo empunhadas por parte do PMDB. Na engenharia de Vital Arruda, Zé Benício asseguraria a participação de “seu Breno” na campanha e sobretudo, do seu dinheiro. Vital só acreditava ser possível vencer as eleições com dinheiro. Nas sublegendas do PMDB se colocou Francisco Dativo, o Chico Dativo, da área urbana da cidade, ele Vital, seria o vice dos três candidatos a prefeito, por ser a liderança de oposição mais conhecida e por ser de Barra de Santana. Precisava um nome do distrito de Caturité, de preferência da família Trovão. Nesse contexto, com a ida de Zé Hermínio para compor a Chapa com Ernesto foi cotado o nome de Redoval Trovão.Tio Redoval era conhecidíssimo, querido por todos e poderia unir a família. No cálculo de Vital Arruda, o distrito de Caturité pelo menos dividiria os votos. Quando Zé Hermínio levou Redoval Trovão para as hostes de Ernesto do Rêgo, da situação, abalou ainda mais a oposição. Daí Vital Arruda e o que restou do PMDB pressionou meu pai, Hemetério, para ir para o sacrifício e compor uma sublegenda, o PMDB 3. Como vimos, a oposição foi reduzida. A transição de lideranças que dispu- taram as eleições de 1976 indo para apoiar o candidato da situação, Ernesto do Rêgo enfraquecia demasiadamente a oposição. Como aspecto positivo a oposição contava com um candidato a prefeito com muito potencial, mas que, de fato, era ausente, residia fora, condição imperdoável para a população de Boqueirão. Sob o clima de perdas de lideranças, indo para a situação, há um afunilamento para que eu fosse candidato. As outras opções entre os jovens da família Trovão ficaram bastante reduzidas com as baixas sofridas. 142

Aceito o desafio. Fazia Licenciatura em Física na hoje UEPB e tínhamos memória, cultura e identidade um comércio em Campina Grande. Lecionava em colégios particulares em Cam- pina Grande e era diretor do Diretório Acadêmico 17 de maio. Não pensava em me eleger de fato. Havia tantas divisões na minha principal “base eleitoral”. Neco Cordeiro, candidato do PDS, primo, candidato de Zé Hermínio, dividia a família que majoritariamente no distrito de Caturité foi apoiar a candidatura da situação, com todas as vantagens de apoiar e receber os benefícios de quem está com a máquina municipal. Me restava a indignação juvenil e os microfones para reverberar essa indig- nação, somada a rebeldia política característica de um jovem em um país sob uma ditadura sanguinária, carcomida em crise econômica e caos social. Me lancei na campanha de vereador com paixão e gana peculiares. Pratica- mente abandonei o curso de Física e as demais atividades em Campina Grande. Participava de todas as atividades de campanha. De comícios a almoços e encon- tros. Entre agosto e novembro visitei, por mais de uma vez, todos os recantos de Boqueirão. Uma insanidade do ponto de vista eleitoral, pois deveria me concentrar no distrito de Caturité. O voto vinculado era outro problema. Se alguém desse um voto ao vereador no PMDB todos os votos até governador também deveriam obrigatoriamente serem dados ao PMDB. Então nossa chapa era PMDB do governador ao vereador. Mariz – Governador; Pedro Gondim e Humberto Lucena Senadores, vários deputados federais e estaduais, o prefeito e vários vereadores. Fizemos uma campanha muito agressiva. Muitas vezes descambando para xingamentos e violência.Era perceptível que ao longo da campanha perdíamos votos. No geral o que nos movia era ressentimentos e certas frustrações eleitorais. O grupo político liderado por Ernesto e Carlos Dunga tirava proveito dessa carência de proposta e de nossa agressividade. De fato, os discursos mais agressivos eram os dos filhos de Breno do Carmo (o candidato a prefeito e a vereador – Breno Júnior) e, em certa medida, os meus. Nas minhas memórias guardo a apreensão e o desagrado de Vital Arruda com aquele tom de agressividade. A certa altura se criou um clima de insatisfação com a ausência física do candidato a prefeito, José Benicio, e mais ainda, dos aportes financeiros por parte de “seu Breno” que sempre eram insuficientes para as exigên- cias da campanha e de Vital Arruda. Mal- estar, de certa forma contornado por Orlando Almeida e Raimundo Asfora, candidatos a deputados estadual e federal respectivamente, na chapa do PMDB. Aos trancos e barrancos a campanha chega ao fim. O resultado não poderia ser outro. Tomamos uma surra histórica. Ernesto do Rêgo teve mais de 52% dos votos e o nosso candidato José Benício com apenas cerca de 27%. O velho cacique 143

político da Serra do Carnoió, o coronel do ramo famílico dos Heráclio do Rêgo voltava ao poder executivo com um imenso apoio popular. Na realidade confirmava seu prestígio pessoal e sua força política. A oposição elegeu apenas quatro vereadores, para as onze vagas na Câma- ra. Eu entre eles. A virulência do discurso do candidato a vereador Breno Júnior (Toureiro) o derrotou. De certa forma essa foi a única surpresa daquelas eleições. Minha candidatura havia sido fortalecida na esteira da do meu pai a Prefeito. Não ficou clara as características político-ideológicas na campanha. O tom contra a ditadura era presente, mas, no essencial, também me aproveitava eleitoralmente do prestígio familiar, oligárquico da realidade do cariris. Um traço marcante na minha candidatura foi o boicote na confecção do “santinho”, de propaganda com o slogan. O slogan que eu solicitei ao partido foi: “Contra a corrupção – abaixo a ditadura”. Vital Arruda, quando foi me entregar os milhares de “santinhos” a serem usados na campanha me disse que na gráfica da Gazeta do Sertão havia tido um erro e que na impressão não saiu o slogan. Que era lamentável, mas não tinha o que fazer. O partido só tinha condições de forne- cer aquele material de propaganda. Estranhei, mas aceitei em silêncio. Tocamos a campanha assim mesmo. Obtive praticamente 60% de minha votação no distrito de Caturité, mas terminou que obtive votos em praticamente todos os distritos, sendo o oitavo mais votado. O Slogan: “Contra a corrupção - Abaixo a ditadura”, não saiu 144

Nesse contexto, assumi o mandato no encontro dos rios Paraíba e Taperoá. memória, cultura e identidade No dia da posse como vereador saiu o resultado do vestibular que eu prestei para Engenharia Agrícola, sendo aprovado agora, para ingressar na Universidade Federal da Paraíba. Era fevereiro de 1983. Na posse já houve desentendimentos. Na eleição da Mesa Diretora a situação varreu a participação da oposição. O clima era beligerante. O prefeito eleito tratava a nós de oposição como inimigos declarados. Anunciava que não teríamos espaço em nada e teria como objetivo esmagar quaisquer sinais de vida na oposição. Além de eleger o prefeito, o PDS havia eleito o Deputado Estadual Carlos Dunga, ex-prefeito, gente da total confiança do líder político Ernesto do Rêgo, agora assumindo mais uma vez a cadeira de prefeito; e o Governador Wilson Braga, de quem o prefeito e o deputado gozavam enorme apoio. O PMDB,para além da surra que tomamos em Boqueirão,havia eleito em Campina Grande, Ronaldo Cunha Lima, do antigo PTB de Jango. Cassado pelo AI 5 em 1968, Ronaldo se tornava uma espécie de apoio aos vereadores do PMDB do compartimento da Borborema, visto que seus planos era disputar a próxima eleição de governador. Eu, vereador em Boqueirão, mantinha intensa atividade no Movimento Estudantil na UFPB, Campus de Campina Grande. Logo me tornei membro da Diretoria do Centro Acadêmico de Engenharia Agrícola. Também militava no PMDB Jovem e nos comitês juvenis contra a ditadura. No PMDB Jovem encontrei as diversas forças de esquerda da política brasi- leira de oposição à Ditadura. Ali se digladiavam MR8, PC do B, PCBR – que parte entrou no PT e o PCB, o Partidão, esse dividido entre os que detinham a sigla e os Prestistas que seguiam junto com Luiz Carlos Prestes o rompimento com o PCB. Desde muito antes de 1982 tanto o Movimento Estudantil, quanto os vários grupos de luta contra a ditadura e o próprio PMDB Jovem o debate era domi- nado por forças de esquerda. Aprendi cedo a conviver com os diferentes grupos da esquerda brasileira. Depois de eleito vereador o processo de debate e conhecer as divergências dessas correntes assim como, adentrar nas leituras marxistas, me fizeram me aproximar do grupo “prestista”, que rompera com o PCB em 1980. Através da Juventude Avançando e do Comitê doVereador José Peba,em Campina Grande passei a ser figura de destaque nesse movimento, seguindo essa linha política. EPISÓDIOS MARCANTES DA VIDA POLÍTICA DE BOQUEIRÃO ENTRE 1983 E 1988 A primeira lembrança minha como vereador é o caos completo com a estiagem que se estendia desde 1979 e atingiu seu ápice em 1983. Não choveu. A fome que já era muito se espalhou por todo lado. Pedintes aos montes nas ruas. Na zona rural o gado caindo de fome, o Brasil vivendo uma carestia, o 145

desemprego e a inoperância normal, terrível, das autoridades. Ninguém fazia nada, dizia nada. O povo pobre, trabalhador ao “Deus dará”. Quando a fome nordestina toma forma de escândalo nacional surge as “frente de emergências”, uma forma de humilhar o povo, de evidenciar suas fragilidades, oferecendo socorro em condições sub-humanas. Quem viu ou viveu uma Frente de Emergência, com o olhar crítico neces- sário enxerga ali toda crueldade possível de uma sociedade desigual como a que vivemos. Nas frentes de emergências que presenciei e denunciei como vereador as pessoas eram jogadas em cima da caçamba que recolhia o lixo e transportadas ali em cima para áreas onde iam cavar barreiros de algum proprietário aliado do prefeito ou do vereador influente daquele distrito. Farrapos humanos, famintos, em poucas condições de trabalhar, passavam algum tempo nas obras “alheias”, sem muito esforço e sob condições de muita precariedade. A esse tipo de trabalho se remunerava com apenas um valor inferior a metade do salário mínimo que, regis- tre-se, era um salário de miséria. Nossa intervenção durante a seca d e1983 se restringiu a denunciar os maus-tratos das e nas frentes de emergências nas emissoras de rádio de Campina Grande e conseguir com Ronaldo Cunha Lima, via Vital Arruda, carros pipas para algumas comunidades. Eu mesmo acompanhava o caminhão que colocava água nas poucas cisternas existentes. Ainda soltamos panfletos na época, denunciando a Indústria da Seca, o uso político daquela situação de miséria e a absoluta inoperância em termos de políticas estruturais que amenizasse as consequências do fenômeno natural das estiagens. A humilhante cesta básica distribuída com alimentos estragados, horrivelmente velhos, que não cozia. Tentávamos ecoar nossas denúncias na Câmara de Vereadores,mas era inócua. A maioria situacionista sequer dava ouvidos e “tratorava” os intuitos da oposição. Nesse período vários episódios marcantes ocorreram no meu mandato de vereador. Alguns quase cômicos, outros quase trágicos. MURRO, AMEAÇAS E RECONHECIMENTOS NA POLÍTICA DE BOQUEIRÃO. Boqueirão “inchava”. A seca que assolava todo o Cariri e interior nordestino a partir dos anos 1979/80, a crise econômica nacional desencadeada no processo que ficou conhecido como “estagflação”, pois além da estagnação econômica, a in- flação corroía a renda dos trabalhadores. Por fim a crise e o fim do ciclo do algodão na Paraíba provocou o maior êxodo rural de nossa história. Fazendas fecharam, moradores e trabalhadores deixaram as fazendas e seus recantos na zona rural e emigraram. Quem conseguiu, tomou as estradas do Centro-sul, rumo ao Rio ou 146

São Paulo, percurso tradicional dos camponeses do Semiárido Brasileiro. Quem memória, cultura e identidade não conseguiu ou não se encorajou a pegar a “estrada do sul” procurou um centro urbano no Nordeste mesmo, uma capital e por ali ficou. Outras levas de agricultores construíram seus barracos e tentaram reconstruir suas vidas nas periferias das cidades mais próximas. Boqueirão, por comportar o açude, se transformou em polo de atração para parte significativa dessa população. Formou-se assim, rapidamente, o que se denominou de “Rua do Sol” e “Favela da Bela Vista”. Na saída para Cabaceiras e por trás da “Vila do Dnocs”. A Bela Vista cresceu tanto e tão rápido que parecia guardar uma população superior ao resto da cidade. Era enorme e expressava todo o quadro de miséria da “vida severina” dos nordestinos. Para um mandato pretensamente popular era o espaço de organização e mobilização daquela população carente. Passamos a atuar quase que diariamente na Bela Vista. Estimulamos a criação da Associação de Moradores e passamos a nos reunir periodicamente levantando os principais problemas da comunidade. Ali as casas eram de “Taipa”, não havia banheiros sanitários, não havia água e sequer havia energia elétrica. Calçamento nem em sonho. Muito menos um equipamento público que abrigasse aos moradores para educação ou assistência à saúde. Soubemos que a Fundação SESP – Serviço de Saúde Pública estava com uma linha de construção de sanitários para residências carentes.Entramos imediatamente em contato com a Fundação que nos informou da necessidade de se apresentar um projeto com o número de beneficiários e os custos financeiros, e logicamente, se tratava de uma linha de crédito para projetos da prefeitura municipal. Vimos ali, a possibilidade de construir banheiros com bacias sanitária na Rua do Sol e na Bela Vista. Ainda nos informaram que existia crédito e tratássemos com a Prefeitura para a elaboração do Projeto e as tratativas burocráticas para via- bilizar as obras. Fui bastante elogiado pelos diretores da Fundação pela iniciativa. Mas também fui perguntado como era minha relação com o Prefeito, para o qual respondi que iria procura-lo. Algo tão importante não poderia ser travado por questões políticas partidárias. Minha grande companhia nesses tempos na militância política em Boqueirão era Marluce Oliveira, filha de Sebastião Marcolino, fazendeiro poderoso sediado em Riacho de Santo Antônio. Marluce fazia Medicina em Campina Grande e tomávamos parte dos movimentos políticos da esquerda paraibana na Juventude Avançando. Eu e Marluce organizamos várias reuniões com a comunidade da Bela Vista e Rua do Sol. Eu possuía uma “Possante”1982, CG 125. Com minha moto percorria todo o município de Boqueirão. Dia e noite. 147

Apresentei o requerimento na Câmara de Vereadores.Aliás apresentávamos,eu e Manoelzinho Andrade,colega vereador,que também cursava engenharia na UFPB e com quem eu convivia intensamente, muitos requerimentos de toda natureza. Dez, doze. Todos os problemas do município era ponto para apresentar requerimento. Todos nossos requerimentos eram negados, reprovados. Os vereadores nem sequer os discutiam. Apenas votavam contra. Se alguém se atrevesse a votar a favor de um vereador de oposição especialmente Jonas Duarte, era chamado pelo Prefeito Ernesto do Rêgo para dar satisfação. Aliás, certa vez o próprio vereador Inácio de Biliu confessou que “seu Ernesto os chamara lá para dar um carão por- que haviam votado em alguma proposta da oposição”. Não havia diálogo, nem nenhuma chance de se estabelecer diálogo entre situação e oposição. O clima era realmente de beligerância. Se algum vereador da situação era visto conversando em público com o colega de oposição era motivo de reprimenda. O próprio prefeito Ernesto vez por outra aparecia na porta da Câmara de Vereadores para intimidar seus correligionários. Pois bem. Depois de rejeitado o requerimento da solicitação para que a prefeitura encaminhasse Projeto a `Fundação SESP, eu e Marluce decidimos mobilizar a comunidade para junto comigo entregarmos pessoalmente o requeri- mento ao Prefeito. A ideia era irmos à Prefeitura, com a comunidade, lógico com uma Comissão de Representantes, o Prefeito nos receber e esclarecermos o quão importante aquele projeto. Encaminhamos oficio a Prefeitura solicitando audiência. Fomos gozados por essa ideia. Recebemos um recado que jamais o Prefeito me receberia, que eu arranjasse o que fazer. A comunidade estava disposta a ir conosco até a Prefeitura. Marcamos o dia e fomos. Nos informamos que o Prefeito estaria na cidade e se iria a Prefeitura. Marchamos da Bela Vista até a Prefeitura de Boqueirão, com cerca de setenta a cem pessoas, carentes, pobres mesmo, sempre desprezadas pelo poder público. Na Prefeitura,quiseram nos impedir de entrar,mas depois de algumas negocia- ções entramos eu,Marluce e mais três moradores da Bela Vista.O restante ficou fora. O público aumentava lá fora, mais por curiosidade do que por outra possível razão. O prefeito Ernesto chegou tivemos um bate-boca eu, ele e Marluce, ele entrou em seu gabinete e ficamos na sala de espera. Propus aos presentes uma conversa civilizada, com outras pessoas, para nós explicarmos do que se tratava. Era impossível. Era impossível porque oposição e situação eram inimigas. A secretária da prefeitura que nos atendeu, Neta, visivelmente nervosa com aquela situação, pedia para nos retirarmos, pois “seu Ernesto não compreendia aquilo, se tratava de um senhor de idade, de outros tempos, que eu compreendesse. Aquela situação poderia não acabar bem”. 148


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook