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Boqueirão

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:03:53

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o Medievo, estes aproximaram-se dos reformadores, especialmente dos calvinistas, historiografia e história local pois estes defendiam a valorização moral do trabalho e a prática da usura como aspectos da bem-aventurança de Deus. Outra época negativa para à Igreja Católica foi o século XVIII, especialmente a partir de 1789,quando,com à Revolução Francesa,a estabilidade política do Estado Monárquico Absolutista, apoiado por uma Igreja que o sustentava ideologicamente, foi guilhotinado. A partir da Revolução, a Igreja Católica sofre um grande golpe, inicialmente, na França, e posteriormente, em todo o ocidente, a laicização. O século XX foi um período de mudanças para o catolicismo, principalmente a partir da década de 1960, com o Concílio do Vaticano II. Quando se iniciou esta década, a Igreja percebeu a diminuição de seus fiéis, reconhecia a modernidade (termo encontrado nos documentos canônicos referindo-se ao século XX) como um mal que abalava suas tradições religiosas, além dela está associada a mudanças nos costumes; como, também, os questionamentos à importância da Igreja Católica para a sociedade contemporânea. As mudanças que partiram do concílio, rapidamente, ganharam espaço nas igrejas, e às práticas litúrgicas e sociais do clero católico, foram alteradas em todo o mundo, e não foi diferente em Boqueirão. Na década de 1970, as mudanças advindas do Vaticano II podiam ser nota- das no posicionamento dos religiosos de Boqueirão. O padre Paulo Guiral, pároco em Boqueirão entre os anos de 1972 e 1977, demostrava preocupação não apenas para arrebanhar às almas dos fieis para a salvação, mas também com a vida social do seu rebanho: Muita gente continua o êxodo para o sul. O Cariri é uma região sem condições econômicas. A água do açude sem políticas agrícolas não muda nada. O povo continua na mesma; muita pobreza, muita fome, muitas crianças morrem pequeninas, as famílias mais pobres são supercarregadas de filhos, os jovens não encontram empregos. Só as “grandes”conseguem uma vida mais ou menos explorando os pobres. (Padre Paulo, 1975). A percepção da falta de políticas públicas que fizesse com que as pessoas mais carentes de Boqueirão pudessem ter uma vida “mais ou menos”é criticada pelo pároco, que ainda percebe qual a solução do povo para a crise na qual estavam inseridos, o êxodo para o sudeste do país, na busca de uma qualidade de vida que não encon- travam na sua cidade natal. A exploração dos pobres por parte dos ricos também é notada por Padre Paulo, mas, em relação à vida religiosa, ele dedica não mais que umas poucas palavras nos seus escritos no livro de Tombo da Paróquia de Boqueirão. 49

Percebemos, assim, como o Vaticano II inicia mudanças nas preocupações dos padres, agora, tendo a sociedade e seus problemas ‘carnais’ no centro de suas atenções sacerdotais. A aproximação da Igreja com os problemas sociais, como tanto almejava os conciliares, é a ideia responsável por essas novas formas de práticas e pensamentos religiosos, percebidos em Boqueirão desde à década de 1970. Os padres boqueirãoenses não ficaram apenas na pregação de novas ideias, como podemos perceber a partir dos escritos do Padre José Janette, sucessor de Padre Paulo. Este padre, também seguidor dos ideais da Igreja pós-conciliar, per- cebendo as condições econômicas precárias da sociedade boqueirãoenses, ajudou na criação de olarias para a produção de tijolos que foram distribuídos aos pobres, para que fossem construídas suas moradias. Outro aspecto que podemos identificar, provocado pelo Concílio Vaticano II, é a divisão do católico apolítico e o do militante. Os grupos de católicos tradicionais, comumente, estão associados aos fieis sem participação em movimentos políticos. Para eles, a função da Igreja é, estritamente, espiritual. Já os católicos militantes são aqueles que,seguindo as ideias difundidas pelo concílio,procuram maneiras de levar a religiosidade associada à auxílios sociais,especialmente para as pessoas mais carentes. A partir dessas práticas de associação religiosa e apoio social, surgiu, na década de 1970, um movimento que, em suas raízes, está associada ao Concílio Vaticano II, à Teologia da Libertação. Essa vertente de clérigos católicos procura auxiliar as pessoas mais carentes e evangeliza-las, conscientizando-os a partir da sua situação de miséria econômica, para lutarem por melhores condições de vida. O Papa Paulo VI, o pontífice que ocupava o trono de São Pedro quando do fim do concílio estudado, cunhou um termo interessante para a prática social dos católicos,os “atos de piedade”.No compêndio dos documentos do Concílio Vaticano II, o Papa afirma que esse tipo de gesto, orientado pela Santa Sé, é recomendado. E, por atos de piedade, a partir do concílio, não é entendido apenas às práticas de “dá esmolas” ou caridade, mas ajudar as pessoas a terem uma vida social mais satisfatória, economicamente, e, consequentemente, tornarem-se cidadãos dignos. Percebemos como o grupo do Dominus Vobiscum, mesmo sendo católicos tradicionais, grupo passível de ser considerado apolítico, através das publicações, podem ser enquadrados como um grupo político, pois, através da panfletagem jor- nalística, difundiram seus ideais e buscaram convencer fiéis católicos a juntarem-se a eles nesse posicionamento. Assim, evidenciamos a ligação que ocorreu entre a religiosidade católica pós-conciliar com às práticas da Igreja em Boqueirão, como um aspecto relevante da nossa história cultural/religiosa, que, particularmente, pode ser evidenciado no jornal Dominus Vobiscum,espaço possível graças as mudanças conciliares e pensado para com- bater diversas dessas mudanças,além das atividades sociais dos padres dessa paróquia. 50

O DOMINUS VOBISCUM E A DEFESA DA FÉ CATÓLICA TRADICIONAL historiografia e história local Publicação “mensal e particular, gratuita”, além de confessional, o Dominus Vobiscum foi um jornal exclusivo de defesa dos ideais católicos. No entanto, é importante salientar, que não é de qualquer ideal católico, mas dos tradicionais, especialmente, dos anteriores ao Concílio do Vaticano II. O grupo de pessoas que o escreviam e editava, se identificam com as práticas do catolicismo voltado, princi- palmente, para o âmbito espiritual dos fiéis, a salvação da alma, e não, apenas, com a melhoria dos homens e mulheres no campo terreno ou a sua “salvação social”. Com esse propósito, o jornal é divulgado em três cidades, Boqueirão (cidade natal do periódico), Caturité e Barra de Santana. Foram nove edições, produzidas ao longo de três anos (2008 a 2010). Sua distribuição acontecia de “mão em mão”, nas casas dos moradores, como folhetins percorrendo às ruas em defesa de seus ideais.Também eram enviadas cópias a todo os padres das dioceses da Paraíba que constasse seu e-mail nos sites destas. O Dominus Vobiscum é semelhante a um folhetim, pois além de ser um jornal de difusão da fé católica tradicional, dentre outros temas, é produzido com o intuito de fazer as pessoas reverem seus ideais em relação ao catolicismo. Porém, o jornal apresenta certa contradição. Analisando os documentos conciliares, percebemos a “convocação” aos católicos para participarem das ações da Igreja, justificando que a instituição precisava da ajuda dos seus fieis para existir. Mesmo sendo contrário as mudanças instauradas pelo Vaticano II, o jornal surge no contexto da liberdade religiosa permitida por seus sacerdotes, posterior ao concílio, introduzindo os leigos na, sempre presente, ação missionária cristã. O Dominus Vobiscum tratava de temas ligados a liturgia católica. Várias de suas reportagens tinham como ponto central às doutrinas da Igreja. Eram mon- tadas entrevistas a partir de livros de grandes personagens do catolicismo, como Frei Damião de Bozzano e do Papa Pio X, além de textos e charges retirados da interne, ou produzida por seus editores, sobre temas que acreditavam ser relevantes para o conhecimento dos leitores. Um fato que chama a atenção nas publicações do periódico é a não assinatura dos autores dos textos escritos pelos membros do jornal. As publicações copiadas da internet são devidamente identificadas. Nas entrevistas montadas constam a bibliografia do livro onde foi retirada as respostas às questões produzidas, porém, nos textos próprios, não há o registro de quem o produziu. E, qual seria a razão dessa “não assinatura”? Possivelmente, uma antiga prática católica que não costumava assinar suas obras, para que essas pudessem ser associadas à inspiração Divina. Mesmo tendo apenas três anos de circulação, o Dominus Vobiscum, provocou debates na comunidade católica boqueirãoenses.Haviam aqueles que compreenderam 51

as ideias publicadas e, mesmo sendo um pequeno número, passaram a praticar uma fé católica tradicional. Porém, a maior parte, seguindo os costumes pós-conciliares, mantiveram sua religiosidade, percebendo naqueles jornais, ideias conservadoras, quando não retrogradas, que se contrapunham aos progressismos introduzidos na Igreja após o Vaticano II, e, dos quais, já estavam mais que habituados, como a celebração das Missas em língua vernácula. É necessário lembramos que no documento conciliar do Vaticano II, Decreto Inter Mirifica, sobre os meios de comunicação social, é ponto de partida doutrinal com normas claras, nos quais os conciliares viabilizam uma fórmula de consenti- mento para o desenvolvimento de uma imprensa católica, inclusive, com a criação de informativos como o Dominus Vobiscum. É nesse contexto de abertura e debates de doutrinas que podemos enqua- dra o jornal que nos serve como fonte de estudo, para a compreensão de, como o Vaticano II, influenciou na religiosidade de um grupo de católicos em Boqueirão, mesmo estando temporalmente e geograficamente bem distantes do citado concílio. Todas essas mudanças foram feitas para a facilitação da compreensão dos fiéis aos rituais litúrgicos. Para que a Igreja pudesse manter os seus seguidores, que estavam se debandando para outros credos em grande número. No entanto, grupos de católicos tradicionais, como o que produzia o Dominus Vobiscum, acreditava que a igreja passou a perder sua unidade com a implantação da “Nova Missa”. Segundo eles, a Igreja Católica perdeu sua identificação com os fiéis, suas raízes, com a mudança na língua para a celebração do culto. Conforme uma reportagem da primeira edição, “alguns membros da Igreja defendem um retorno ao antigo rito da Missa e a unidade exercida pela celebração em latim. Papas como Bento XVI,e os anteriores ao Vaticano II,Pio X e Paulo VI,defendem a manutenção da língua romana como oficial da Igreja, pois é uma forma de compreender o culto em todas as partes do mundo por qualquer católico e impede que haja tradições inadequadas à liturgia, fazendo com que ela perca seu significado”. Uma das formas como o grupo que escreve o Dominus Vobiscum teve acesso ao debate dessas ideias contrárias ao concílio,foi,através da Comunidade Pio X.Inclusive, acompanhavam às Missas em rito pré-conciliar que eram celebradas na Capela do Colégio Astra, na cidade de Campina Grande, por um clérigo, o Frei Matias, que conservava às práticas litúrgicas que foram alteradas pelo Concílio do Vaticano II. Portanto, a partir das novas formulações litúrgicas, ofícios e relações socias, inauguradas na Igreja Católica no último concílio “universal”,surgiu toda uma forma- tação que originou o catolicismo como o conhecemos hoje.Porém,desde o seu início, essa “nova era” encontrou pessoas e grupos que resistiram a ela. Como é comum, nos mais diversos campos da nossa sociedade, grupos “políticos” surgiram, defendendo 52

seus ideais,conservadores ou progressistas,com seus discursos e práticas que encami- historiografia e história local nhavam os leigos, ou mesmo clérigos, para o âmbito que acreditavam ser o “correto”. E isso não foi diferente em Boqueirão. Uma via religiosa foi aberta que ligou nossa pequena cidade caririzeira ao centro do mundo religioso católico, Roma. Este caminho possuía “mão dupla”, pois, ao mesmo tempo em que recepcionava as ideias do Vaticano II, desde seus párocos na década de 1970, as questionava, proporcionando o surgimento de um grupo que, através de um jornal, deu voz às crenças que estavam silenciadas pelo domínio das “boas novas”. Assim é construída à história, surgindo de lugares diferentes, com forças que se opõem, e resgatando ideias que muitos acreditavam não existirem mais. No entanto, como tudo que é sólido se desmancha no ar, tudo aquilo que acreditamos pode ser materializado, a partir de sua fé. REFERÊNCIAS BIELER, André. A força oculta dos protestantes. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. BRANDÃO,Carlos Rodrigues.Crença e identidade, campo religioso e mudança cultural. In: SANCHIS, Pierre (Org.). Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. São Paulo: Loyola, 1992. BRITO, Vanderley de. Missões na capitania da Paraíba. Campina Grande: Cópias e Papeis, 2013. CARDOSO, Ciro Flamarion & BRINGNOLI, Héctor Pérez. Os métodos da História. Rio de Janeiro: Graal, 1983. COUTROT, Aline. Religião e política. In: REMÒND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. FOLLMAN, José Ivo. O cotidiano religioso católico numa paróquia suburbana da re- gião metropolitana de Porto Alegre, RS. In: SANCHIS, Pierre. Catolicismo: cotidiano e movimentos. São Paulo: Loyola, 1992. ROMANA, Igreja Católica Apostólica. Concílio ecumênico Vaticano II. Constituições, decretos, declarações, documentos e discursos pontifícios. São Paulo: Paulinas, 1967. LUCA,Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. REMÒNND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2003. RIRTVELD, Padre João Jorge. Atos da freguesia de Cabaceiras: catolicismo do leste do cariri. Campina Grande: Gráfica Cópias e Papeis, 2020. SOUSA,Valdirene Pereira & BRITO, Roberta Lopes de Oliveira & ANDRADE, Jefesson Franciarlly Farias de. Boqueirão: a cidade das águas. In: SOUZA (Org.) História dos municípios paraibanos: volume III. Campina Grande: EDUFCG, 2013. 53

3 DOS CURRAIS DE GADO À CONSTRUÇÃO DO AÇUDE EPITÁCIO PESSOA: narrativas históricas sobre a formação do Município de Boqueirão-PB. VALDIRENE PEREIRA DE SOUSA O conhecimento acerca do passado é tributário do nosso presente, das refle- xões que nos guiam no momento atual, das questões que nos inquietam a partir das injunções do mundo em que vivemos. Nesse sentido, enveredar pela compreensão da história sobre Boqueirão ressoa como um convite para mergulharmos na nossa própria história, nas memórias afetivas que nos cercam e nas narrativas que nos constituem enquanto sujeitos vinculados a um determinado espaço territorial, que traz a possibilidade de evocar em nós um forte sentimento de pertencimento e de identificação que se unem através dos vários signos e símbolos presentes na historicidade e nas sensibilidades gestadas no cotidiano. A publicação de um livro sobre Boqueirão é uma grande oportunidade de conhecimento e divulgação das várias histórias que compõem as identidades bo- queirãoenses; histórias e experiências que se encontram presentes nas memórias e nas sensibilidades dos personagens e dos espaços que compõem a cena cultural, geográfica, econômica, política, religiosa e social desse município que recebeu a alcunha de cidade das águas por sediar um dos maiores açudes do Estado. Mas antes de se tornar a cidade das águas, como se deu a formação desse território que viria a ser denominado de Boqueirão? Quais os personagens que tiveram voz no processo de sua formação e quais foram silenciados? E por que o território geo- gráfico de Boqueirão foi escolhido para sediar um dos maiores açudes do Estado? Essas são algumas das questões que serão refletidas ao longo desse artigo, no intuito de trazer ao leitor a possibilidade de ampliar os conhecimentos acerca do surgimento e da evolução do território de Boqueirão desde suas origens coloniais até o momento em que se tornou um polo hídrico de referência no Estado e se emancipou, tornando-se cidade. Questões que irão ajudar a estabelecer relações de proximidade e de distanciamento com o nosso passado e a perceber os desvãos e as camadas presentes nas várias dimensões da nossa história local para respon- der às inquietações do nosso presente, para minimizar nossos anseios e desejos de conhecimento sobre a história da cidade em que nascemos, crescemos e/ ou estabelecemos algum vínculo pessoal ou profissional. Ciente da importância dos vários sentidos que se fazem presentes nas diversas histórias, memórias e experiências que cada um de nós possuímos na relação que estabelecemos com esse pedaço de terra que ganhou o nome de Boqueirão, faço um 54

convite para mergulharmos mais profundamente na história de sua formação e dos historiografia e história local antecedentes históricos que possibilitaram a ocupação de um território demarcado inicialmente para a criação de gado, mas que se transformaria em um espaço proje- tado para se tornar uma grande potência hídrica com vistas a solucionar o problema da seca e do desabastecimento de água na cidade de Campina Grande. Um lugar de múltiplos sentidos e múltiplas possibilidades de intervenções, que precisam ser cada vez mais visibilizados e incentivados para que as novas gerações tenham condições de ampliar seus conhecimentos e de se apoderar de sua própria história. OS SERTANISTAS E A OCUPAÇÃO DO BOQUEIRÃO DA SERRA DE CARNOIÓ A partir da segunda metade do século XVII, mais precisamente durante os anos que se estenderam por volta de 1670 a 1730, um grupo de sertanistas baianos começou a desbravar o interior paraibano com o intuito de conquistar novas terras para o desenvolvimento da atividade pecuária, haja vista que toda a região litorânea já havia sido conquistada, povoada e suas terras foram majoritariamente utilizadas para a produção da cana de açúcar. Assim como em todo o litoral nordestino, o litoral paraibano fora colonizado e ocupado tendo como principal atividade econômica a produção de açúcar voltada para exportação, dessa forma, a pecuária desenvolvida na região era uma atividade secundária, cultivada para dar suporte à dinâmica interna dos próprios engenhos. Com o aumento da demanda da produção do açúcar proporcionado pelo aumento dos preços no mercado europeu, houve uma ampliação do cultivo da cana-de-açúcar, e, cada vez mais as terras que eram usadas para a criação de gado foram perdendo espaço para o plantio da cana-de-açúcar, desse modo a prática da pecuária precisou ser afastada e desenvolvida longe dos engenhos, a solução encontrada foi a ocupação do interior nordestino. O rio São Francisco foi um dos principais pontos irradiadores da pecuária nordestina, através de seus afluentes os sertanistas foram adentrando os sertões do Ceará, Piauí, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. A interiori- zação do sertão e do agreste paraibano foi um empreendimento iniciado pela família Oliveira Lêdo, com destaque para o patriarca Antônio de Oliveira Ledo, primeiro sertanista a pisar o semi-árido paraibano; saindo da Bahia ele teria atravessado o rio São Francisco e entrado na Paraíba através do rio Sucuru,prosseguindo pelo rio Paraíba até chegar a região do Boqueirão onde teria fundado uma aldeia de igual nome.[1] 1   E sses foram,portanto,os primeiros passos para o povoamento da região do Cariri Velho,de acordo com SEIXAS,Wilson Nóbrega. A Conquista do sertão paraibano. In: A Paraíba nos 500 anos do Brasil.ANAIS DO CICLO DE DEBATES DO IHGP.ABRIL – 2000,João Pessoa – Paraíba. 55

No tocante à chegada e ao acampamento dos Oliveira Ledo nos narra JOFFILY[2]: Com o auxílio do governo, formavam-se duas fortes bandeiras e partiram à conquista do sertão. [...] o capitão-mor Theodósio de Oliveira Ledo, comandante de uma delas, chegando à missão do Pilar, teria seguido sua viagem acompanhando o rio Paraíba até o boqueirão da serra do Carnoyó, onde fez demorado acampamento, fundamento da atual povoação de igual nome; se ela já não estivesse fundada [...]. Um dos principais fatores que induziram esses colonizadores a se instalar no território de Boqueirão deveu-se ao aspecto geográfico dessa área, visto que ali se encontrava uma das vertentes do Rio Paraíba, e isso possibilitava aos bandeirantes a implantação da atividade pecuária. Segundo Melo[3] “Seguindo o Rio Paraíba a bandeira da família Oliveira Ledo, deparou-se com a Serra de Carnoió com o boqueirão, local ideal para a criação do gado bovino.” Sobre a chegada dos Oliveira Ledo à região do Boqueirão, nos detalha Brito: Os Oliveira Ledo traziam junto a si um grupo de índios mateiros da nação Cariri-Dzubucuá, provenientes das aldeias do São Francisco, como era praxe entre os sertanistas da Bahia, e estes, ao verem o imponente boqueirão abrindo passagem para o desconhecido, disseram admirados em sua língua: - có nio idió!, que quer dizer: abertura de fazer-se entrar. [...] Com a chegada do missionário Teodoro de Lucé, por volta de 1670, o curral se transformou em missão de catequese destes nativos e o topônimo Coniodió, na medida em que a língua nativa no lugar foi se misturando aos sotaques bilíngües dos colonos portugueses, foi perdendo o sentido textual, adulterando gradativamente para “cornayó”, “carnaiô” e por fim se toponimizou “carnoió”, perecendo, assim, a primitiva significação de acidente geográfico que trazia na língua cariri.[4] 2   J OFFILY, Irineo. Notas sobre a Paraíba. Rio de Janeiro, tipografia do Jornal do Comér- cio de Rodrigues & C, 1892, p.32-33. 3   M ELO, José Octávio de arruda. História da Paraíba: lutas e resistência. João Pessoa: União Editora, 1994. 4   B RITO, Vandelerley de. Boqueirão de Carnoió: a Toponímica como Cultura Imaterial de Campina Grande. Ano II – Vol. 1 - Número 03 – Set/Out de 2011 TARAIRIÚ – Revista eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB, p. 55. 56

Há registros do recebimento de uma carta de sesmaria doada a Antônio historiografia e história local de Oliveira Ledo e outros sertanistas, concedida pelo governador geral do Brasil, Conde d’Obidos, a 20 de março de 1665, uma faixa de terra com trinta léguas de terras de comprimento por dez de largura, que de acordo com Horácio de Almeida teria Antônio de Oliveira Ledo fundado “a situação de Boqueirão de Cabaceiras, à margem esquerda do Paraíba. Foi o mais antigo curraleiro do Sertão paraibano. Ali lançou semente do gado que trouxera das ribeiras do São Francisco, onde era morador.”[5] O registro dessa Sesmaria que fora concedida aos Oliveiras Ledo confirma a pecuária como a principal atividade responsável pela ocupação de Boqueirão, pois as terras só eram doadas a quem possuísse uma quantidade significativa de gado e recursos que pudesse povoá-las[6], conforme podemos perceber na transcrição do documento abaixo: Saibam quantos este público instrumento de carta de Sesmaria virem que no ano do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e seiscentos e sessenta e cinco anos, nos vinte seis dias do mês de março, do dito ano nesta cidade do Salvador Bahia de todos os Santos, e pousadas de mim Escrivão das Sesmarias apresentou e deu uma petição, digo apareceu o Alferes Sebastião Barbosa de Almeida, e me apresentou e deu uma petição d’Antonio de Oliveira Ledo, e Constantino d’Oliveira, Bárbara d’Oliveira, Maria Barbosa Barradas, e o Alferes Sebastião Barbosa de Almeida, com despacho nella ao Snr. Dom Vasco Mascarenhas Conde d’Obidos, Gentil homem da Câmara d’El Rei nosso Senhor e de seu Conselho d’Estado, Vice-Rei e Capitão general de mar e terra de todo o Estado do Brasil, da qual e do dito despacho o teor é o seguinte: Senhor, Antônio de Oliveira Ledo, Custódio de Oliveira Ledo, Cons- tantino d’Oliveira Ledo, Luís d’Albernaz, Francisco d’Oliveira Ledo, Bárbara d’Oliveira,Maria Barbosa Barradas,e o Alferes Sebastião Barbosa d’Almeida. Todos moradores deste Estado, que na Capitania da Paraíba nas Cabaceiras de uma data que concedeu o Conde de Attougia ao Go- vernador André Vidal de Negreiros, há terras devolutas que nunca foram dadas nem cultivadas de pessoa alguma; e por quanto eles suplicantes são moradores, e têm quantidade de gados, assim vaccum, como cavalar, 5   ALMEIDA. Horácio de. História da Paraíba. V. 2 – João Pessoa, Editora Universitá- ria/ UFPB, 1977. 6   F IGUERÊDO FILHO, Laudemiro Lopes de. Modos e modas de vida do vaqueiro no Cariri paraibano- Município de Boqueirão. Monografia (Especialização em História) Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande-Pb, 2002. 57

e mais criações para puderem povoar com toda largueza. Toda terra que for útil, e não ten naquela Capitania terras onde se possam acomodar; e ora os Suplicantes as têm descoberto, os povoados com gados de dois anos e esta parte sem contradição alguma, e outrossim tem servido a sua Majestade, que Deus guarde, de vinte anos a esta parte, com grande dispêndio de sua fazenda, e resulta conveniência ao bem comum e às rendas de Sua Majestade, povoar-se o Sertão com toda a largueza, que só é estimada de gentio indomestico. Pedem a Vossa Excelência lhes faça mercê a eles suplicantes em nome d’el Rei Nosso Senhor dar de Sesmaria trinta léguas de terras a todos os referidos nesta petição que começarão a ocorrer pelo rio da Paraíba acima onde acabar a data do governador Vidal de Negreiros, digo; André Vidal de Negreiros e doze de largo com declaração que ocorrerão para o sul duas léguas, e para o norte dez léguas. E havendo nas Cabaceiras do dito André Vidal, outras datas que lhe perturbem a povoação, digo que lhe perturbem o efeito desta povoação poderão ele suplicantes povoar onde as acharem devolutas a mesma quantidade que pedem a confrontam nesta petição o rio Paraíba. E outro sim,podem a Vossa Excelência lhes faça mercê conceder que possam, sendo necessário,para ficarem mais bem acomodados fazer do comprimento largura, e da largura comprimento, como melhor lhe acomodar para todas as partes que quiserem deitar para suas demarcações e receberão mercê. Segundo se continha na dita petição que sendo apresentada ao dito Sr. Vice-Rei, e vista por ele nela por seus despachos o seguinte: “Informe o Provedor-mor da Fazenda Real, Bahia 2 de fevereiro de 1665. Rubrica do Senhor Vice-Rei. E dado o dito despacho e indo com ele a dita petição ao sargento-mor Antônio Pereira que de presente serve de Provedor-mor da fazenda Real deste Estado, deu o parecer e informação. Senhor, sendo Vossa Excelência servido, estarem as terras devolutas com os suplicantes dizem, e terem juízo do terceiro, na conformidade que dispõe o foral. Bahia 16 de março de 1665 – Antônio Pereira” – E não diz mais a resposta e informação do dito Provedor-mor que está por ele vista e dita petição por último despacho mandou o seguinte: Faço mercê aos suplicantes de Sesmarias em nome d’El Rei meu Senhor, toda a terra confrontada e pedida em sua petição, não prejudicando a terceiro, e passe-se-lhe provisão na forma do Estylo. Bahia 20 de março de 1665. Rubrica do Senhor Vice-Rei.[7] 7   D ocumentos históricos – Biblioteca Nacional. Vol. XXII – p.62). 58

A instalação dos currais de gado às margens do rio Paraíba provocou a expro- historiografia e história local priação dos índios que viviam na região. Após a fundação da Aldeia de Carnoió[8], que se tornou o primeiro núcleo constituído por casas de brancos naquela região, espaço até então habitado por índios Sucurus[9], o fundador da aldeia, Antônio de Oliveira Ledo começou a construir currais para a prática da criação de gado bovino, ação que se desenvolveu sob inúmeros embates violentos implementados com os índios nativos da região. Os colonizadores, na sua tentativa de estabelecer um domínio dos campos agrícolas e de criação de gado, tentaram, de todas as formas, eliminar as nações tapuias, que se localizavam em todos os sertões do Nordeste. Através da catequização e das chamadas ‘guerras justas’, a escravidão e o massacre demostraram que o europeu não estava preocupado em procurar conviver pacificamente com os processos culturais dos povos que viviam no interior. Estabelecer os núcleos de povoamento, na maioria das vezes, significava deslocar as populações indígenas localizadas nas proximidades dos rios e isto era estabelecer conflitos com estes tapuias.[10] 8   P opularmente pronunciada como vila de Cornoió 9   D e acordo com Wanderley de Brito “A região do Cariri da Paraíba, ao contrário do que muitos vêm repetindo, não era habitada por tribos cariri quando chegaram os primeiros colonizadores do interior. Na verdade, era quase que totalmente desabitada. Somente a região do alto Pajeú e alto Paraíba era ocupada por algumas aldeias de índios Sucuru, que não eram de etnia Cariri, mas sim Tarairiu. [...] Os Cariri só vieram ocupar as terras do Cariri por meio de assentamentos, pois já desde 1660 estavam instalados em missões ao longo do baixo São Francisco pelo padre João Barros e, por serem “índios mansos”, eram recrutados para acompanhar os sertanistas nas expedições de transporte de boia- das e descobrimentos de terras novas.” BRITO, Vandelerley de. Boqueirão de Carnoió: a Toponímica como Cultura Imaterial de Campina Grande. Ano II – Vol. 1 - Número 03 – Set/Out de 2011 TARAIRIÚ – Revista eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB 10  K  RAISCH, Adriana Machado Pimentel de Oliveira. Os índios Tapuias do cariri paraibano no período colonial: ocupação e dispersão. In: Anais do II Encontro Inter- nacional de História Colonial. Mneme- Revista de Humanidades. Caicó (RN), v. 9. N. 24, Set/out. 2008. Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais 59

A resistência dos índios Tapuias à ação dos colonizadores foi intensa e desenca- deou violentos massacres,[11] os quais, na maioria das vezes, eram desiguais e desfavo- reciam os índios,levando-os,por conseguinte,a serem em grande parte exterminados. Depois das batalhas, os prisioneiros mais fortes eram exterminados a ferro frio,as mulheres e as crianças eram escravizadas e enviadas para as fazendas para indenizar os proprietários de terra dos custos da ‘guerra justa[12]’. A catequização também foi um empreendimento bastante utilizado,articulado a essa política colonizadora voltada para o afastamento e extermínio da população nativa, com vistas ao estabelecimento da pecuária na região. Para atuar na cate- quese dos indígenas e, portanto, garantir a criação dos rebanhos bovinos, Antônio de Oliveira Ledo convocou a atuação evangelizadora de religiosos. Os primeiros missionários a realizarem o trabalho de evangelização e controle dos índios Cariris na região foram o capuchinho Teodoro de Luci e o Padre Francês Martin de Nan- tes, conforme podemos perceber no depoimento do próprio Pe Martin de Nantes: (...) Cheguei no Brasil no dia 3 de agosto (de 1671). Pouco tempo depois eu fui para uma aldeia a setenta léguas de Pernambuco. Entre uma nação de índios, chamados Cariris, com os quais morava um digno missionário Capuchinho, o Pe. Theodoro de Lucê, que morreu na altura das Ilhas, voltando do Brasil por motivos de saúde. Este religioso era muito estimado no Pernambuco onde ele tinha sido su- perior depois de vários anos de missão. Ele morreu no ano de 1686. Esta aldeia de índios foi descoberta no ano de 1670 por um portu- guês chamado Antônio D’oliveira, que procurando pastagem para o seu gado, encontrou, na beira do rio Paraíba, uma tropa destes ín- dios que pescavam a 50 léguas mais ou menos da cidade de Paraíba. Este capitão, tendo recebido deles a liberdade e a segurança para colocar gado lá, em troca de alguns pequenos presentes, veio logo a Pernambuco, ver se encontrava algum missionário que queria se es- tabelecer com estes índios, o que garantiria a segurança de seu gado. Ele encontrou entre nós o Pe. Theodoro, Capuchinho, recém-chegado, desejoso de sair em missão entre os índios. Este saiu então, com a ordem 11   E sses embates ocorridos nos vários espaços do sertão nordestino ficaram conhecidos historicamente como a Guerra dos Bárbaros ou Confederação dos Cariri. MELO, José Octávio de arruda. História da Paraíba: lutas e resistência. João Pessoa: União Editora, 1994. 12   KRAISCH, Adriana Machado Pimentel de Oliveira. Ibidem. 60

do superior, acompanhado do dito capitão, que o fez escoltar por uma historiografia e história local dúzia de índios, chamados caboclos, vizinhos e amigos que eram da aldeia administrada por nós, a dez e doze léguas de Pernambuco e que conheciam os ditos cariris.[13] Apesar de ser comum essa “parceria”entre os sertanistas e os religiosos dentro da proposta colonial com vistas à pacificação dos indígenas, as relações não se davam livre de desentendimentos e conflitos. Um relato do Padre Leo Denis, ao narrar um episódio de embate entre Antônio de Oliveira Ledo e os missionários franceses, nos insere nesse contexto em que os missionários se colocavam sempre ao lado dos indígenas quando existiam conflitos de interesses entre esses e os sertanistas: Aconteceu que Antônio de Oliveira Ledo a prestar queixa na cidade (Recife) dizendo que era preciso desconfiar dos missionários, pois eles eram franceses e não servia aos interesses da Coroa Portuguesa.Ele acusou os missionários de terem ensinado os índios a usarem armas. Somente uma carta do Pe. Martin à Rainha de Portugal livrou os missionários de serem expulsos. [14] Mediante esses relatos, podemos aferir que em um primeiro momento, a presença e a atuação dos religiosos exerceu uma grande importância na condução desse projeto colonizador de interiorização liderado pelos sertanistas, porém com o aparecimento de conflitos de interesses houve um afastamento desses religiosos e uma consequente consolidação dos criadores de gado na região, que expropriaram os verdadeiros donos da terra, os nativos, que mesmo lutando bravamente foram em grande parte exterminados ou submetidos às atividades criatórias e de subsistência. A história nos mostra que durante todo o período da colonização, a Vila de Carnoió, se desenvolveu tendo como base econômica a criação de gado e, nesse sentido, esteve subordinada a Cabaceiras devido à inexistência naquela vila de 13  D  estaquemos duas informações importantes para contextualizarmos a fala do Pe Martin de Nantes: Primeiro, ele utiliza o nome Pernambuco para indicar a cidade de Recife. Segundo, ao convertermos légua por km, temos como correspondente a cada légua francesa um total de 4 km. Dessa forma, a aldeia mencionada distaria 280 Km de Recife e 200 Km de João Pessoa, exatamente a distância da cidade de Boqueirão das referidas capitais. NANTES, Martin de. Relation succinte et sincere de la mission du Pe. Martin de Nantes parmy les Indiens appellés Cariris. A Quimper, ches Jean Périer. Traduzido para o português por Barbosa Lima Sobrinho. 1707. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Anantes-1707-relation/Nan- tes_1707_Relation_succinte_et_sincere.pdf 14    DENIS, Léo. Cabaceiras 1835 – 1985. Cabaceiras, 1985. 61

atividades econômicas expressivas, pois conforme citado, sua base econômica era pautada apenas pela atividade criatória, associada ao cultivo de alguns gêneros alimentícios produzidos em pequenas e esparsas propriedades. Somente a partir da construção do açude Epitácio Pessoa é que vamos ter uma grande modificação na dinâmica espacial, econômica e social na região, responsável, dentre outros ganhos, pelo alavancar da antiga vila de Carnóio à condição de cidade com notoriedade em nível local e microrregional. A CONSTRUÇÃO DO AÇUDE EPITÁCIO PESSOA E O NASCIMENTO DA “CIDADE DAS ÁGUAS” O projeto de construção do açude Epitácio Pessoa[15] começou a ser pensado e elaborado durante os anos 1940-1950, como principal proposta para solucionar o problema do desabastecimento de água de Campina Grande, a maior e mais de- senvolvida cidade do interior nordestino naquela época, que, enfrentava um colapso hídrico, uma vez que o volume de água do açude de Vaca Brava não atendia mais a demanda populacional da cidade. O início do projeto remonta aos anos de 1948, com o levantamento topográfico da bacia hidráulica do açude de Boqueirão, sob a responsabilidade do DNOCS[16]. Na elaboração do projeto, havia a menção da construção de um túnel com duas saídas, uma para transportar água para Campina Grande e outra para o rio Paraíba, para ser perenizado com vistas a atender várias localidades que utilizavam as águas do rio para o abastecimento de água, como Barra de Santana, Itabaiana e Cruz do Espírito Santo.[17] Os articuladores políticos e os engenheiros civis responsáveis pela obra es- colheram Boqueirão como espaço privilegiado para a construção da barragem por ser uma região caracterizada por uma abertura esculpida pela força da água, uma abertura cavada pelo rio entre duas serras, um “local feito pela natureza”, ideal para 15   O nome oficial do açude é uma homenagem ao único presidente do país nascido na Paraíba, Epitácio Pessoa. No seu governo, o programa de construção de barragens foi intensificado, através do seu Ministério de Viação e Obras Públicas, cujo ministro era José Pires do Rio. 16   D epartamento Nacional de Obras Contra a Seca, responsável pelo desenvolvimento de atividades de aproveitamento hídrico, com ênfase espacial na construção de açudes para abastecimento, piscicultura e irrigação. 17   REGO, Carlinda Ernesto. A importância do açude Epitácio pessoa e suas impli- cações sociais e ambientais para a cidade de Boqueirão. (Especialização em análise ambiental no ensino de geografia). Campina Grande – PB: UEPB, 2001. 62

a operacionalização do projeto[18]. Uma constatação que fora feita ainda no final historiografia e história local do século XIX, quando Jofilly já anunciava a região do boqueirão como espaço privilegiado para a construção de um imenso açude.[19] A construção da obra do açude começou em 1951 com término previsto em cerca de dois anos, conforme podemos observar na fala do governador José Américo que na época se dirigiu aos paraibanos para reafirmar o compromisso com esse projeto, por meio de uma nota publicada no Jornal A União, órgão oficial do governo do Estado: O boqueirão de cabaceiras era uma velha aspiração, como solução funda- mental dos problemas de abastecimento de água e energia de Campina Grande e como aproveitamento agrícola da zona do cariri e regularização do leito do Rio, evitando as danosas inundações do vale do Paraíba. Como ministro da viação, encarei esse empreendimento que ficou depois, olvi- dado. Agora podemos asseverar que, no prazo de dois anos, se concluirá essa grande barragem, como forma também, de uma industrialização dependente apenas desse novo recurso.[20] Não obstante, as ideias apresentadas por José Américo não se concretizaram. O então governador fora convocado por Getúlio Vargas a assumir novamente o Ministério de Viação e Obras Públicas, tendo aceitado ele se licenciou do cargo estadual quando completara o seu segundo ano de governo, mesmo período em que as obras do açude deveriam ser finalizadas, no entanto, não foram, fator que gerou muitas críticas por parte de vários setores da sociedade campinense e paraibana, conforme podemos observar em uma matéria publicada em um jornal campinense no ano de 1953: 18   S OUZA, Fabiano Badú de. Modernidade à conta gotas: por uma história do abasteci- mento de água em Campina Grande-PB (1950-1958). Dissertação (Mestrado em His- tória). PPGH, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande- PB, 2013. 19   JOFFILY, Irinêo. Notas sobre a Parahyba. Brasília: Thesaurus, 1977. 20   A União, João Pessoa, 31 de janeiro de 1952. p.6 63

Sem água e Sem Luz Sem água e sem luz, eis o trágico fim que aguarda a mais bela, a mais rica, a maior cidade do interior nordestino se mãos hábeis e sadias de um futuro administrador, em tempo, não salvá-la do despenhadeiro a que foi jogada pela cúria e inércia dos que atualmente governam o nosso Estado e município. O velho e batido problema da água – que a esta hora deveria estar solucionado – continua no mundo das promessas, nesse reino cujo rei absoluto é o atual ministro governador José Américo. Prometer e prometer foi e é o seu fraco. Quando da campanha de 50 (sic.) os seus belos discursos, as suas mirabolantes promessas da instauração de uma nova Canaã na Paraíba, deixaram o povo crente que um novo Messias de óculos havia descido do além para salvar o nosso Estado. Felizmente, para ventura de todos, esse falso profeta depois de desgovernar a peque- nina Paraíba por dois anos, depois de estourar o Tesouro do Estado com o louco emprego de verbas em loucas obras públicas, arranjou um meio prático de se descartar do “abacaxi” e foi para o Rio com o fim de ajudar a Vargas nessa triste faina de desgraçar o Brasil.[21] A proposta lançada para a resolução do problema do desabastecimento hídrico ainda estava longe de ser finalizada. Um clima de incerteza e inquietação se propagava nos meios jornalísticos. O afastamento do governador José Américo provocou inúmeras críticas por parte dos grupos oposicionistas, que passaram a ser divulgadas nos periódicos jornalísticos da época como expressão do temor e da incerteza pela execução e conclusão da obra.[22] Em virtude de descontinuidades administrativas e financeiras, a obra foi realizada por meio de duas etapas, conforme nos relata Badú: A primeira, entre 1951 a 1954, remeteu aos processos de fundação e elevação do aterro a uma altura de cerca de 32m. Já a segunda etapa que corresponde aos trabalhos finais da obra, esses consistiram no fortale- cimento e na complementação do “maciço”, e que compreenderam os períodos entre meados de 1955 ao fim de 1956, momento de conclusão dos trabalhos[23]. 21   Jornal de Campina, Campina Grande 1 de janeiro de 1953. p. 3 22   U m desses medos era a possibilidade de que o munícipio de Cabaceiras e das comu- nidades ribeirinhas fossem parar debaixo d’água, que fossem engolidas pela força das águas. SOUZA, Fabiano Badú de. Ibidem. 23   SOUZA, Fabiano Badú de. Idem, p. 121 64

A inauguração do manancial somente ocorreu durante o governo de Jusce- historiografia e história local lino Kubitschek, em 16 de janeiro de 1957 por meio de um evento grandioso que durou três dias, tendo contado com a presença de muitas autoridades políticas do Brasil, dentre as quais, o Ministro de Viação e Obras Públicas, Comandante Lúcio Meira, o diretor do DNOCS, Engenheiro José Cândido Parente Pessoa e o então presidente da República Juscelino Kubitschek. Um documento comemorativo, escrito por José Lins do Rego e distribuído no ato da inauguração do manancial, nos oferece uma pequena oportunidade de sentir os anseios que estavam sendo evocados à época a partir daquele momento em que o medo e a incerteza cediam lugar para a esperança e a gratidão de se ter um projeto tão grandioso concluído: M. V. O. P. 2°. DISTRITO – PB. D.N.O.C.S. AÇUDE PÚBLICO “BOQUEIRÃO” DE CABACEIRAS INAUGURAÇÃO – 16 DE JANEIRO DE 1957 Presidente da República – Dr. JUSCELINO KUBITSCHEK Ministro da Viação e Obras Públicas – COMANDANTE LUCIO MEIRA DiretorGeraldoD.N.O.C.S.–ENG°.JOSÉCANDIDOPARENTEPESSÔA Os engenheiros das Obras contra as Sêcas (sic.) acabam de realizar um feito sensacional: transformaram um bicho de sete cabeças em manso carneiro criado para montaria de menino. O rio Paraiba, o terrível, o que nunca res- peitou o homem ribeirinho,o que devorava lavouras e afogava rebanhos,não faz mais medo a ninguém. É, hoje em dia, um rio como os outros, a correr tranquilamente em leito menor, sem aquelas arrogâncias de mata-mouros. O Paraíba fez misérias pelas várzeas, arrasando partidos de cana, inva- dindo casas como cangaceiro que tivesse vindo de terras sertanejas para implantar o terror. Lembro-me de suas façanhas como de fato decisivos de minha infância. Era o rio que em certos momentos passava a ser uma calamidade pública.Terras comidas,engenhos arrastados como brinquedos, pontes arrancadas de suas fundações de pedra e cal. Enfim, a avalanche que passava para as destruições totais. Não havia meio termo para o Paraiba. Era absoluto, indomável, sem respeito pelos grandes e pequenos. Quando os búzios soavam nas noites de cheia, o melhor era correr para os altos e dá logo tudo por perdido. O Paraiba vinha solto de canga e corda, e o grande caudal amarelo tomava todos os baixios, enfiava-se pelos riachos, subia as barreiras e depois começava a gemer, tal como gibóias (sic.) de barriga cheia. Pois, bem, este monstro acaba de ser domado pela engenharia brasileira. Os técnicos das Obras contra as Sêcas (sic.) amarra argolas nas ventas do urso feroz e ele agora dansa ao compasso das máquinas que taparam o boqueirão de Cabaceiras. 65

... Do automóvel olho para a cobra que corre coleante pelas minhas varzeas rodas. O bicho papão não passava de um magnifico criado com as bondades de um servo que fora caçado no mato ... As). José Lins do Rêgo[24] Embora o projeto da construção do açude Epitácio tenha sido pensado como uma proposta voltada a solucionar o problema do desabastecimento de água em Campina Grande, é inegável que possibilitou novas significações para a região do Boqueirão. Significações econômicas, políticas, culturais, sociais, enfim, significações múltiplas que emergiram a partir do projeto de construção do reservatório, e, que evocaram novas modificações na antiga vila. Desde o início da construção do açude Epitácio Pessoa,a cidade de Boqueirão passou a ser um ponto de convergência de milhares de operários e técnicos que vinham das mais variadas partes do país, o que quebrou com a rotina da pacata Vila de Carnoió. Uma grande quantidade dos operários e técnicos que trabalharam na construção da barragem permaneceram no território após o fim da obra, provocando um consequente crescimento populacional e econômico daquela região; a vila foi crescendo e se dinamizando cada vez mais. A tranqüilidade da Vila foi quebrada, os moradores passaram a conviver com novos costumes, linguagens e horários, fatos que provocaram mudan- ças no seu dia-a-dia. Aumentava a população da vila, conseqüentemente formavam-se novas ruas, desenvolvia-se o comércio e novas profissões passaram a surgir, de acordo com as necessidades dos operários da obra, dando à Vila um aspecto urbano.[25] Diante das novas demandas, a população começou a reivindicar junto aos órgãos competentes a emancipação política, fato ocorrido em 30 de abril de 1959, pela Lei estadual nº. 2.078 de 30.04.59, tendo a instalação da sede do município se realizando em 30 de novembro do mesmo ano. Após a emancipação, Boqueirão chegou a ser o segundo maior munícipio da Paraíba em extensão territorial, Posto 24  A  cervo pessoal da Engenheira Raimunda Aurino Chagas. Disponível em: http:// www.facebook.com/photo.php?fbid=464338746929562&set=a.316975301665908.9 1594.100000603229851&type=3&theater Acesso em: 20 de fevereiro de 2021. 25   O LIVEIRA, Fabiano Custódio de. A decadência da agricultura irrigada em Boquei- rão: O caso da tomaticultura. (monografia de graduação em geografia), Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande. 2004, p. 51. 66

que perdeu posteriormente, com a emancipação de quatro dos seus distritos (Ca- historiografia e história local turité, Barra de Santana, Riacho de Santo Antônio e Alcantil), no ano de 1996.[26] Inegavelmente, a construção do açude Epitácio Pessoa representou um divisor de águas para a cidade de Boqueirão, que consequentemente passou a se urbanizar e se dinamizar em vários aspectos devido ao aumento das novas demandas populacionais surgidas após a finalização da obra. Em termos estruturais, novas ruas e novas profissões começaram a surgir, o comércio local foi cada vez mais sendo ampliado, novas manifestações culturais, políticas, econômicas e religiosas também emergiram e foram moldando um novo rosto para essa cidade que hoje é conhecida como cidade das águas, uma cidade que se desenvolveu timidamente a partir de um curral de gado e se transformou em um polo hídrico, turístico e econômico em potencial. Mas, apesar de todo desenvolvimento proporcionado a partir da construção do açude, cabe destacar que houve também alguns prejuízos que ecoaram do ponto de vista socioeconômico e ambiental, como é o caso da desapropriação da popu- lação que vivia ou possuía terras nos arredores do manancial e, portanto, teve que sair rapidamente devido à inundação das suas propriedades com o represamento das águas do açude.[27] Tavares,[28] em sua dissertação de mestrado apresenta essa questão e informa que grande parte dos proprietários não recebeu indenização por parte do Governo Federal. Ainda de acordo com o autor citado, a administração da barragem e do entorno de suas áreas ficaram a cargo do DNOCS, que procu- raram dividir e distribuir lotes para agricultores de baixa renda a fim de estimular a produção hortifrutigranjeira, fator responsável pela valorização e produção de diversas culturas agrícolas na região. As águas represadas pela barragem do açude Epitácio Pessoa, proporcio- naram, apesar de alguns prejuízos, conforme destacado acima, a operacionalização de uma nova dinâmica econômica para o munícipio que teve ressonância em todo o semiárido nordestino: a cultura irrigada. O incentivo a irrigação proporcionou o aumento da produção agrícola e da variedade das culturas plantadas na região. Dentre as principais culturas podemos destacar o milho, o feijão, o repolho, o tomate, a banana, a alface e o pimentão, fator que proporcionou além da dinamização da economia local, uma migração de várias pessoas que viviam em outros municípios 26   T AVARES, Noaldo José Aires. Feira Livre de Boqueirão: dinâmica regional, mercado e consumo no Cariri paraibano. Dissertação (Mestrado em Geografia), Centro de Fi- losofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife- PE, 2017. 27   A desapropriação de uma área total de 93 milhões de metros quadrados (aproximada- mente 9.300 há) foi prevista pelo decreto Nº 35.549 publicado pelo então presidente Getúlio Vargas em 1954. 28   TAVARES, Noaldo José Aires. Ibidem. 67

vizinhos e foram atraídos para trabalhar no ramo agrícola em expansão às margens do açude Epitácio Pessoa. Dessa forma, podemos afirmar que a cidade de Boqueirão viveu momentos muito prósperos com a expansão da economia agrícola após a construção do ma- nancial, mas devido às crises hídricas provocadas pela escassez de chuvas na região e pela ausência de um projeto alternativo de abastecimento, a irrigação foi uma das atividades que teve de ser interrompida por alguns períodos de tempo provocando uma consequente retração da economia local. Dentro desse cenário, podemos des- tacar que o açude sofreu uma de suas piores crises hídricas recentemente, quando a partir do ano de 2012 o manancial começou a ter uma redução vertiginosa do seu volume, tendo atingido seu menor volume histórico, cerca de 3% de sua capacidade total em 2017, o pior registrado desde o fim da década de 1950, e que só começou a ser revertida ainda em 2017 com a chegada das águas do Rio São Francisco a partir da implantação do Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. O açude Epitácio Pessoa, projetado para solucionar o problema do desabas- tecimento de água da cidade de Campina Grande e mais 18 cidades adjacentes, tornara-se um forte símbolo de revitalização hídrica para o cariri paraibano, um marco na história da cidade de Boqueirão, um capítulo marcado pela oscilação entre a esperança de abundância hídrica, de desenvolvimento econômico e de escassez de água e de novas crises de abastecimentos pela escassez de chuvas. Um capítulo que não tem sua história encerrada, mas que continua aberto a interpretações e intervenções temporais, geográficas, culturais, afetivas. Intervenções múltiplas, construídas no fazer-se cotidiano de quem tem em sua história as marcas impressas do entrecruzamento com esse território tão peculiar que é Boqueirão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Traçar quaisquer reflexões sobre a cidade de Boqueirão hoje tem se tornado possível porque temos a nossa disposição possibilidades de pesquisa que favorecem o investimento nesse tipo de produção, que permitem visibilizar as histórias e me- mórias locais que muitas vezes são esquecidas e silenciadas. Nos últimos anos os debates sobre história local trouxeram à tona inúmeras possibilidades investigativas para as pesquisas no campo da História, uma delas foi pensar o local como uma ponte para refletir sobre os diversos aspectos da vida social; reduzir a escala de observação com a intenção de produzir efeitos de conhecimento que visam dizer algo sobre os lugares nas suas particularidades, além de questionar a ideia de que somente os grandes centros culturais e econômicos seriam capazes de produzir os acontecimentos da história, sem abrir mão, portanto, das intersecções com o global. 68

A história local provocou uma ampla guinada nos últimos anos em relação aos historiografia e história local estudos sobre os lugares e sujeitos sociais que antes eram postos à margem, cidades pacatas, distantes dos centros urbanos, sujeitos que não entraram na história como “heróis” nacionais, mas se destacaram por serem comuns: o pipoqueiro da esquina, o agricultor, a dona de casa, o operário da construção civil etc. Sujeitos e cenários não encontrados nos manuais ou livros didáticos, mas presentes nas vozes e gestos de quem viveu as histórias no dia a dia. Fomos inspirados, portanto, pelos debates praticados dentro do campo investigativo da história local a pensar algumas articulações narrativas que dão visibilidade a um determinado lugar de formação desse município que hoje é chamado de Boqueirão. Um lugar situado geograficamente na Mesorregião do Planalto da Borborema e na Microrregião do Cariri Oriental paraibano, a cerca de 170 km distante da capital do Estado, possuindo uma população estimada em torno de pouco mais de 17 mil habitantes conforme o último censo do IBGE do ano de 2015. Um lugar com enorme potencial de pesquisa, mas colocado à margem durante tanto tempo enquanto objeto de estudo, quando o foco da escrita histórica era outro, mais voltado para as narrativas comprometidas com a fundação de uma única grande história. Ao longo desse capítulo, tivemos a intenção de apresentar e refletir sobre algumas narrativas e documentos oficiais sobre a formação histórica desse terri- tório que viria a se tornar a cidade de Boqueirão. Um território que foi explorado colonialmente por sertanistas baianos para a implantação da atividade pecuária, projeto levado à frente através de um empreendimento implantado de forma violenta, sem levar em conta a população nativa que vivia na região. Uma história similar à que ocorrera em todo o interior do nordeste brasileiro, durante o período de ocupação colonial. Além das narrativas sobre os antecedentes históricos de Boqueirão, enfa- tizamos também um outro acontecimento que marcou e marca profundamente a história dessa cidade, a construção do manancial Epitácio Pessoa e os desdobra- mentos sociais e econômicos que esse projeto proporcionou à cidade de Boqueirão e aos seus moradores. Dois marcos importantes, dois momentos históricos distintos que elegemos para contar uma história, para refletirmos sobre alguns lugares de fala, de memórias e de silenciamentos que precisam ser repensados e questionados por todos aqueles que se sentem motivados e interessados a mergulhar mais profundamente na história da nossa aclamada cidade das águas. 69

REFERÊNCIAS ALMEIDA. Horácio de. História da Paraíba. V. 2 – João Pessoa, Editora Universitária/ UFPB, 1977. A UNIÃO, João Pessoa, 31 de janeiro de 1952. p.6 BRITO, Vandelerley de. Boqueirão de Carnoió: a Toponímica como Cultura Imaterial de Campina Grande. Ano II – Vol. 1 - Número 03 – Set/Out de 2011 TARAIRIÚ – Revista eletrônica do Laboratório de Arqueologia e Paleontologia da UEPB, p. 55. DENIS, Léo. Cabaceiras 1835 – 1985. Cabaceiras, 1985. DOCUMENTOS HISTÓRICOS – Biblioteca Nacional. Vol. XXII – p.62) FIGUERÊDO FILHO, Laudemiro Lopes de. Modos e modas de vida do vaqueiro no Cariri paraibano- Município de Boqueirão. Monografia (Especialização em História) Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande-Pb, 2002. JOFFILY, Irineo. Notas sobre a Paraíba. Rio de Janeiro, tipografia do Jornal do Comércio de Rodrigues & C, 1892, p.32-33. Jornal de Campina, Campina Grande 1 de janeiro de 1953. p. 3 KRAISCH, Adriana Machado Pimentel de Oliveira. Os índios Tapuias do cariri parai- bano no período colonial: ocupação e dispersão. In: Anais do II Encontro Internacional de História Colonial. Mneme- Revista de Humanidades. Caicó (RN), v. 9. N. 24, Set/out. 2008. Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais MELO, José Octávio de arruda. História da Paraíba: lutas e resistência. João Pessoa: União Editora, 1994. NANTES, Martin de. Relation succinte et sincere de la mission du Pe. Martin de Nantes parmy les Indiens appellés Cariris. A Quimper, ches Jean Périer.Traduzido para o portu- guês por Barbosa Lima Sobrinho. 1707. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/ local--files/biblio%3Anantes-1707-relation/Nantes_1707_Relation_succinte_et_sincere.pdf OLIVEIRA, Fabiano Custódio de. A decadência da agricultura irrigada em Boqueirão: O caso da tomaticultura. (monografia de graduação em geografia), Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande. 2004, p. 51. REGO, Carlinda Ernesto. A importância do açude Epitácio pessoa e suas implicações sociais e ambientais para a cidade de Boqueirão. (Especialização em análise ambiental no ensino de geografia). Campina Grande – PB: UEPB, 2001. SEIXAS, Wilson Nóbrega. A Conquista do sertão paraibano. In: A Paraíba nos 500 anos do Brasil. ANAIS DO CICLO DE DEBATES DO IHGP. ABRIL – 2000, João Pessoa – Paraíba. SOUZA, Fabiano Badú de. Modernidade à conta gotas: por uma história do abastecimen- to de água em Campina Grande-PB (1950-1958). Dissertação (Mestrado em História). PPGH, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande- PB, 2013. TAVARES, Noaldo José Aires. Feira Livre de Boqueirão: dinâmica regional, mercado e consumo no Cariri paraibano. Dissertação (Mestrado em Geografia), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife- PE, 2017. 70

4 historiografia e história local LUTAS E MOBILIZAÇÕES: DIAGNÓSTICO HISTÓRICO E SOCIAL, DO SINDICALISMO RURAL NO MUNICÍPIO DE BOQUEIRÃO - PB ANDRÉ V. ANDRADE BRITO INTRODUÇÃO O Sindicalismo surge pela necessidade de organização dos trabalhadores das indústrias, com o advento do crescimento do capitalismo, muitos donos de fábricas, e proprietários de terras, não aceitavam as mudanças, que os trabalhadores exigiam, visto isso, cresce a necessidade de formalizar os direitos dos trabalhadores, aos quais são explorados em precárias condições de trabalho, mas antes da consolidação houve conflitos, perseguições e resistências, comum ao sistema capitalista da época. O objetivo deste artigo é fazer um resgate histórico da trajetória do Sindi- calismo, no âmbito mundial, nacional, no regional e por fim no local, a qual será nosso campo de estudo. O movimento Sindical dos trabalhadores rurais, vem construindo sua história de lutas e conquistas superadas, diante deste contexto contemporâneo, faz-se necessário pensar todo o processo de lutas, para alcançar um desenvolvimento rural, em um ambiente amplo de ideias e perspectivas, como também refletir a abrangência que o Sindicalismo pode atingir nos aspectos eco- nômicos, sociais e político. O aprofundamento do Estudo desenvolvido no Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Município de Boqueirão-PB,só veio a comprovar o que os autores afirmam, toda a trajetória percorrida de lutas e conquistas que o sindicalismo fez, desde o âmbito mundial, foram períodos de difíceis negociação com o Estado-Nação. Após o surgimento dos Sindicatos na Inglaterra, deu-se início a criação em outros países, como o Brasil, que teve como percussores das lutas sociais as Ligas Camponesas, aos quais vieram a espelhar outras organizações tanto das indústrias como do campo. A metodologia utilizada para desenvolver o estudo foi de caráter explo- ratório em referências bibliográficas que discutem esta problemática, com apro- fundamento em pesquisa de campo, a escolha deste objeto de estudo se deu pelo fato da organização sindical, ter uma ampla trajetória tanto em anos de fundação, quanto em trabalhos desenvolvidos durante sua jornada. Atualmente o STR do Município de Boqueirão -PB, conta com uma estrutura organizada, podendo servir de exemplo para outras organizações de fins sociais, conquistas alcançadas através de gestão e coletividade. 71

O presente trabalho está dividido em três partes, na primeira parte trata- remos dos sindicatos e sua origem, no âmbito mundial e nacional, enfatizando os movimentos de criação dos sindicatos no Brasil, a segunda parte, um enfoque sobre a espacialidade geográfica da área pesquisada, na terceira parte uma análise sobre o sindicato do município da cidade Boqueirão –PB, enfim os resultados de tal analise introduzem o tempo e o espaço no campo da discussão agraria, e a questão das lutas e mobilizações históricas e sociais do sindicato rural do município de Boqueirão-PB. OS SINDICATOS E SUA ORIGEM HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DOS SINDICATOS NO ÂMBITO MUNDIAL E NO BRASIL Muito antes das lutas da classe trabalhadora, a sociedade já era dividida entre os que ordenavam e os que eram explorados, isso ocorreu desde o período escra- vista, no feudalismo, e ate hoje ainda existe esse processo exploratório de trabalho. De acordo com o dicionário Michaelis Sindicato significa “Associação civil, que defende, juridicamente e administrativamente os direitos e interesses coletivos, ou individuais, de determinada categoria econômica e profissional”. Surge em meio ao modo de produção capitalista. Foi após a derrubada do feudalismo na Europa que o sindicalismo iniciou, em meados do século XVII, a sociedade então divide-se em duas classes, a burguesia, a qual destinava-se aos donos de terras, comerciantes, donos de maquinas e meios de produção, e o proletariado a qual refere-se aos explorados, os que vendem a força de trabalho aos capitalistas. E neste processo de desenvolvimento do trabalho ao meio produtivo o artesanal se submete ao processo manufatureiro, este que por sua vez alavanca em meados do século XVIII com a introdução das máquinas. De acordo com Borges (2006, p. 10) O desenvolvimento do capitalismo deixará evidente a contradição desse sistema. Para extrair a mais-valia, fonte dos lucros, a burguesia inglesa imporá jornada de trabalho que atingiam até16 horas diárias. Os salários Como objetivo de atrair mão- de-obra livre, ela promoverá os famosos “cercamentos”no campo,nos séculos XVII e XVIII,expulsando os servos das glebas rurais para torna-los “homens livres”, aptos ao trabalho assalariado. Como o autor relata o processo trabalhista do capitalismo, o plano estratégico que a burguesia, implantara ao incorpora a troca do salário pela força do trabalho, com isso muitos trabalhadores ficam sem ocupação, levando assim a baratear a 72

mão-de-obra por ter muita oferta. Ainda conforme Borges (2006, p.12), com o historiografia e história local novo modo de produção por maquinas os artesões não seriam mais necessários, podendo assim introduzir mulheres e crianças na jornada de trabalho, nas péssimas condições e salários mal avaliados. Os Sindicatos ainda custeavam a aparece, antes os operários iriam sofrer resistências, gerar conflitos, trabalhar em piores condições sendo explorados, comum ao sistema capitalista, sem nenhum direito trabalhista, e através desse percurso os trabalhadores iam aprendendo que o importante é a união da classe. Os primeiros sindicatos surgem na Inglaterra, onde o capitalismo regia o sistema econômico. “É nesse processo da luta de classe operária sentira a necessidade de se organizar. É dele que surgirão os sindicatos que na Inglaterra tem o nome de Trade-unions que significa União de oficio”, (BORGES, 2006, p.13). Destacando o Ludismo como uma das primeiras formas de resistência dos trabalhadores, outro avanço de luta foi o cartismo, na qual consistia em uma carta ao parlamento inglês com diversas reivindicações (FREITAS, [2012]). Ainda conforme Freitas, só em 1824 que o parlamento Inglês criou a lei que permitia o direito a livre associação. Mas apesar da criação dos sindicatos os trabalhadores ainda tinham que enfrentar a clandestinidade pois o reconhecimento legal ainda era proibido pelo patronato e pelas leis parlamentares. Outro grande acontecimento de acordo com Borges (2006, p.13), foi a Comuna de Paris, que durou três meses, era um movimento por operários que tomaram a cidade de Haia, com a finalidade do poder político concedesse a ideia que o poder político também seria conquistas dos trabalhadores, onde gerou revolta e anarquistas optaram pelo confronto direto. No Brasil o sindicalismo veio despontar por meados dos anos 30, na era Vargas, com a ascensão e influência do capitalismo nos países desenvolvidos, que já lutavam por direitos dos trabalhadores e melhores condições de trabalho. Com a criação do Ministério do Trabalho, Industria e Comércio sob o Decreto (nº. 19433, de 26/11/1930) e da promulgação da chamada ‘Lei de Sindicalização’ sob Decre- to-Lei (nº. 1770 de 19/03/1931), teve início o funcionamento da estrutura sindical oficial brasileira (COLETTI 1998, p. 35). Nesse momento os sindicatos passam a serem legalizados conforme o Estado, mas com subordinações nas lutas de classe. O sindicalismo rural não se adaptava as leis criadas so a partir de 1944 o Estado,passa a regulamentar a sindicalização rural por meio do Decreto-Lei nº 7.038 de 10/11/1944. De acordo com COLETTI (1998, p. 40), o número de sindicatos de trabalhadores agrícolas, nem eram chamados de rurais, era inexpressivo, somente após os anos 1960 que o sindicalismo chegaria ao campo como entidades oficiais. 73

A LUTA PELA TERRA E AS LIGAS CAMPONESAS Existiram alguns movimentos que lutaram pelos direitos dos trabalhadores rurais irei ressaltar as Ligas Camponesas, que teve seu iniciou em 1954, no Engenho Galileia em Vitoria de Santo Antão no Pernambuco, a uma distância de 60 km da capital Recife, em uma região de transição entre Mata e agreste. Conforme Bastos (1984, p. 06), os proprietários deixam de explorar a cana-de-açúcar, e passam a arrendar suas terras, afim de manter o capital em movimento. Era planejado de forma que os proprietários saíssem lucrando em dobro, de acordo com Bastos (1984, p. 07), 500 hectares são arrendados por 140 famílias com aproximadamente 1.000,00 pessoas,os arrendatários e os proprietários utilizam a força de trabalho familiar e combinam a produção de subsistência com a mercantil,na qual produziam legumes, frutas mandioca e algodão. A situação econômica das famílias não era nada propicia pois além de repor os meios produtivos tinham que retirar do rendimento global o pagamento da terra, onde era feito em dinheiro no caso foro. Um forte intermediador dos camponeses em desagravos com proprietários era Jose dos Prazeres um ex-membro do partido Comunista, observando que situações de dividas absurdas entre foreiros e patrões era inúmeras então lhes propõem a formação de uma sociedade, com o objetivo de adquirir um engenho onde todos pudessem trabalhar sem ter que pagar nada. Ainda em 1954, de acordo com Bastos (1984, p. 08), um pequeno grupo de foreiros reuniram-se sob a orientação de José dos Prazeres, para fundar a Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco (SAPP), onde tinham por seus objetivos fundar uma escola, assistência funerária, assistência e aquisição de implementos agrícolas. Mobilização esta que causou preocupação nos grandes proprietários de terra da região, expandindo desavenças e conflitos entre os donos das terras e os camponeses, que resistiam em participar da Sociedade. Após muitas tentativas de defender seus interesses os foreiros, encontram Francisco Julião ad- vogado em Recife e também Deputado Estadual, pelo Partido Socialista, já havia defendido outras causas isoladas de camponeses, mas pode ver uma oportunidade de desenvolvimento pessoal, por se referi a um grupo organizado. De acordo com Coletti (1998, p. 43), Francisco Julião obtêm uma vitória importantíssima, a desa- propriação das terras do Engenho Galileia por meio de um projeto de Lei aprovado pela Assembleia Legislativa de Pernambuco. A partir desse episódio os “Galileus” reconhecidos nacionalmente passam a se chamar “Ligas Camponesas” a qual foram multiplicadas em vários lugares, em comparações as antigas organizações de Ligas fundadas pelo Partido Comunista, a qual não obtiveram sucesso. Passados alguns anos a organização foi sofrendo decadência e perdendo a sua identidade, quando através da Assembleia Legislativa 74

de Pernambuco sofre a desapropriação do engenho, este não pertencia mais aos historiografia e história local camponeses. Bastos (1984, p. 13). O mesmo pertencia a agora a Companhia de Revenda e Colonização (CRC), a qual tinha o papel de organizar a distribuição de terras e a exploração agrícola. Existia alguns critérios para participar da colônia, o camponês recebia lotes em arrendamento por um prazo de 3 anos, para cultivar e realizar benfeitorias, o Estado através desse órgão mantém o controle sobre a atuação política dessa faixa de trabalhadores no campo. Conforme COLETTI (1998, p. 43), as Ligas respondiam por uma di- versificada categoria de trabalhadores como os foreiros, meeiros, arrendatários e pequenos proprietários de terras. A idealização de liberdade dos camponeses os levou a questionar a sua independência mobilizando trabalhadores em um só objetivo, mas como todo processo de transformação o sucesso foi almejado, e por constatação os desentendimentos demonstram a inexperiência no planejamento organizacional que ali se tinha. MOBILIZAÇÕES E O SURGIMENTO DO SINDICALISMO RURAL Após lutas por terras e alguns movimentos já existentes, o sindicalismo rural surge para englobar, todos os outros movimentos e organizarem-se juntos a luta pelos direitos dos trabalhadores rurais. Sauer, (1999, p. 14), O grande momento que marcou para o sindicalismo foi em 1961, com a realização do 1º Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte, a qual foi criado a União de Lavradores e Trabalha- dores Agrícolas do Brasil (ULTAB), que tinha como objetivo firmar-se perante o Estado como uma Instituição representativa dos trabalhadores, desvinculando-se de projetos iguais as Ligas Camponesas, que defendiam diretamente uma reforma agrária radical. Essas divergências levaram a um rompimento político e os movimentos se dividiram em três orientações: A luta pela sindicalização sob controle do PCB; a atuação isolada das Ligas; e o envolvimento da Igreja dirigindo o seu trabalho á organização sindical. Ainda conforme Sauer (1999, p. 15), outro fato é que o Congresso tinha como pauta um documento que enfatizava a urgência pela transformação da es- trutura fundiária do país. A ULTAB e as Ligas iniciam um processo de atritos e divergências de ideias. Também existiam outros movimentos em distintos lugares 75

e regiões do Brasil que defendia causas de reformas trabalhistas do campo. No Go- verno de Goulart, por meados de 1962, foram priorizadas algumas reivindicações dos trabalhadores, e tendo como principal importância a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural. Em março de 1963, foi feita a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, importante documento que defendia e garantia os direitos e deveres dos trabalha- dores rurais. Sob a Lei nº 4.214, promulgada em 02 de março de 1963 e publicada no Diário Oficial, no dia 18 do mesmo mês. O estatuto significou a extensão da legislação social ao trabalhador rural, fornecendo as bases para a organização sin- dical do campo brasileiro. Para o Estatuto o trabalhador rural era definido como “Toda pessoa física que presta serviços a empregador rural... mediante salário pago em dinheiro ou in natura, ou parte em dinheiro e parte in natura” (Grifo do autor). Com o Estatuto, também torna-se obrigatória a carteira de trabalho a todo trabalhador rural a partir de 14 anos, ambos os sexos, essas ações foram muito significativas para o meio rural e principalmente aos trabalhadores rurais, pois agora poderiam ser reconhecidos por seus direitos legais, ter uma Instituição que lhe represente perante as leis e lutas por melhores condições de trabalho. Quanto à orientação sindical, a lei seguindo exatamente a orientação da CLT- afirmava ser “licita a associação em sindicatos para estudo, defesa e condução dos interesses econômicos e profissionais de empregados”.Eram expressamente proibidas a “propaganda de doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses do país”, e “candidaturas a cargos eletivos dos sindicatos por pessoas estranhas” a eles. A legalização do sindicato rural só seria possível mediante a carta de reconhecimento do Ministério do Trabalho. (LAMARÃO; MEDEIROS, 2001. p. 12). Neste período o Brasil já vivia uma crescente mobilização política e sindical, e a partir do Estatuto, surge a necessidade de criar e integrar uma Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), e a Confederação Nacio- nal da Agricultura (CNA), ainda em 1963, mais só reconhecida pelo governo em janeiro de 1964 a partir dos Decretos nº 53.516 e nº 53.517. Com o Estatuto do Trabalhador Rural “A estrutura vertical vigente no sindicalismo urbano foi mantida: na base, os sindicatos, de âmbito municipal, em seguida as federações de âmbito estadual; e finalmente a confederação de âmbito nacional”. Assim fica organizado as hierarquias sindicais, permanecendo até os dias atuais. Segundo a Contag, Confederação inicia a sua atuação em momento político importante, quando se discutiam as reformas de base, inclusive a reforma agraria. 76

O presidente Joao Goulart era deposto, com a apoio dos latifundiários e do regi- historiografia e história local me militar, implantado no país, na qual reprimiu muitos movimentos populares, a CONTAG, também sofreu intervenções, nesse período. Já em 1968 à 1969, pe- ríodo do Ato Institucional nº 5 (AI-5), a Confederação intensificou o processo de organização sindical e politização da categoria trabalhadora rural, em que resultou no crescimento de sindicatos e pessoas sindicalizadas no pais. Ainda conforme a CONTAG, atualmente, conta com as 27 Federações de Trabalhadores na Agricultura (FETAGs) e mais de 4.000 Sindicatos de Trabalha- dores e Trabalhadoras Rurais (STTRs) filiados, compõe o Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR), que luta pelos direitos de mais de 15,7 milhões (PNAD/IBGE, 2009) de homens e mulheres do campo e da flo- resta, que são agricultores(as) familiares, acampados(as) e assentados(as) da reforma agrária, assalariados(as) rurais, meeiros, comodatários, extrativistas, quilombolas, pescadores artesanais e ribeirinhos. Outro surgimento reciproco que podemos enunciar foi a (CUT), Central Única dos Trabalhadores, que conforme o Banco de Dados da (CUT) a mesma foi fundada em 28 de agosto de 1983, na cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo, durante o 1º Congresso Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT), naquele momento, participavam mais de cinco mil homens e mulheres, vindos de todas as regiões do país. A CUT tem por princípios organizar, representar sindi- calmente e dirigir a luta os trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo, do setor público e privado, e está presente em todos os ramos de atividades no Brasil. Todos interligados e organizados para uma representação social, onde cada um tem o seu papel e função dentro da sociedade, como podemos visualizar no gráfico, a maior parte está constituída pelos Sindicatos na qual estão por todas as Cidades do Brasil na maioria dos casos, as Federações menos expressivas por ter apenas uma em cada Estado, e Confederação, sobre instancia superior em poder estar em quantidade menor por ser de âmbito nacional. CARACTERIZAÇÃO GEOGRÁFICA DA ÁREA DE ESTUDO ASPECTOS GEOGRÁFICOS Conforme o IBGE (2010), O Município de Boqueirão encontra-se nas coor- denadas geográficas, com Latitude 08º 25’35”S e Longitude 36º 08’06”W, em uma altitude de 355m. Está localizado a 146 km distancia da Capital João Pessoa; seus limites ao Norte Caturité, a sul Riacho de Santo Antônio, a leste Barra de Santana e a oeste Cabaceiras. Possui uma área territorial de 374.523km² (IBGE, 2010), 77

pertencente a Mesorregião Paraibana da Borborema e a Microrregião do Cariri Oriental. A figura 1 apresenta o Mapa do Nordeste Brasileiro, o Estado da Paraíba com destaque ao Município de Boqueirão. Figura 01: Mapa do Município de Boqueirão – PB, 2017 Fonte: BRITO, André Vinicius Andrade (2017) A área em estudo fica localizado no Município na parte urbana da Cidade de Boqueirão, Atualmente a sua sede fica na Rua Epitácio Pessoa, no Bairro do centro, mas sua primeira sede localizava-se na Rua Ivanilda Rodrigues também no Centro da Cidade. ASPECTOS HISTÓRICOS De acordo com (IBGE,2010) o Município de Boqueirão teve sua origem em meados do século XVII, pelo fazendeiro Antônio Oliveira Ledo, filho do capitão-mor Teodósio Oliveira Lêdo, bandeirante, emigrante da Bahia, também capitão; ele foi fazendeiro onde havia muito gado no sertão de Piranhas e no Ca- riri. A família Oliveira Ledo teve um importante papel para a fundação da Cidade Boqueirão. Surge então a Vila de Boqueirão, a princípio pequena, mais ao passar do tempo aumentará com a instalação de moradores. 78

De acordo com o Banco de Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e historiografia e história local Estatística (IBGE), o atual Município de Boqueirão, antes se denominava Carnoió sendo um distrito que pertencia a Cabaceiras permanecendo até 1955. Só vindo a torna-se emancipado em 30/04/1959 sob a Lei Estadual 2.078. Denominando-se Carnoió. Em 1960 sob uma divisão territorial, o Município era constituído de 5 Distritos: Carnoió, Alcantil, Bodogongó, Caturité e Riacho de Santo Antônio. Após algum tempo pela Lei Estadual nº 2311 de 27/06/1961, o Município Car- noió passa a chama-se Boqueirão. Já em 06/07/1988 pela Lei Estadual, foi criado o Distrito do Marinho e anexado ao Município de Boqueirão, passando assim a ser constituído por 6 Distritos: Boqueirão, Alcantil, Bodogongó, Caturité , Riacho de Santo Antônio e Marinho. No ano de 1994 o Município de Boqueirão teve seu território apresentado um representativo número de desmembramento emancipativo de distritos. Segundo dados o (IBGE,2010), os distritos de Riacho de Sto. António (Lei Estadual Nº 5.885); Caturité (Lei Estadual nº 5.890); Bodogongó (Lei Estadual 5.925 que passou a ser chamado Barra de Santana). E por fim o distrito de Alcantil (Lei Estadual nº 5.926). Todos esses e- distritos de Boqueirão passaram a se constituírem em Mu- nicípios. Aumentando o número de municípios que formam o território Paraibano. ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS Conforme o atlas de desenvolvimento humano (2010), e o IBGE (2010) o município de Boqueirão possui uma população de 16.888 (Dezesseis mil oitocentos e oitenta e oito) habitantes , sendo destes 8.323 (oito mil trezentos e vinte e três) homens e 8.565 (oito mil quinhentos e sessenta e cinco) mulheres. A população urbana é maior que a rural, cerca de 12.006 residem na zona urbana, e 4.882 resi- dem na zona rural, a densidade demográfica do Município é de 45,40 (hab./km), o índice de Desenvolvimento (IDH), de Boqueirão é 0,607, considerado na faixa de desenvolvimento humano médio (IDH entre 0,600 e 0,699), sendo assim um desenvolvimento de projeção em abrangência media qualificando o Município como prospero para a qualidade de vida. Entre 2000 e 2010, a população de Boqueirão cresceu a uma taxa média anual de 0,63%, comparando entre 1991 e 2000, a população do município cresceu a uma taxa média anual de 0,79%. Na UF, esta taxa foi de 0,82%, enquanto no Brasil foi de 1,63%, no mesmo período. A dimensão que mais contribui para o IDH do município é a Longevidade, com índice de 0,763, seguida de Renda, com índice de 0,592, e de Educação, com índice de 0,496. Ainda conforme o Atlas de Desenvolvimento Humano (2010), a taxa de urbanização do município passou de 79

68,00% para 70,21%. Boqueirão ocupa a 3984ª posição entre os 5.565 municípios brasileiros segundo o IDH. A economia do município baseia-se na agricultura e pecuária, no comercio de bens e serviços, outro ponto forte para a economia é o artesanato, destacando-se o tapete e a rede, a renda média per capita é de 319,11 R$, segundo dados do IBGE (2010) e do Atlas de Desenvolvimento Humano. A proporção de pessoas pobres, ou seja, com renda domiciliar per capita inferior a R$ 140,00 (a preços de agosto de 2010), passou de 70,02%, em 1991, para 56,04%, em 2000, e para 30,31%, em 2010. A evolução da desigualdade de renda nesses dois períodos pode ser descrita através do Índice de Gini[1], que passou de 0,52, em 1991, para 0,48, em 2000, e para 0,46, em 2010. Esta abordagem o Município só confirma o que os estudos, apresentam, que houve um certo progresso no âmbito social, mas que ainda tem muito que melhorar sob ponto de vista assistencial. O SINDICATO DO MUNICÍPIO DE BOQUEIRÃO- PB (STR) SURGIMENTO E SEU CONTEXTO HISTÓRICO O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Boqueirão-PB (STR), foi fundado no dia 02/03/1963 sob a Lei nº 4.214, mas só vindo ser reconhecido pelo MTPS em 12 de outubro de 1965, a princípio iniciou com apenas 17 sócios, todos do sexo masculino, e tinha a frente o líder sindical, o senhor João Alves de Assis, que logo veio a se tornar o primeiro presidente do Sindicato, também contava com o Pároco da Cidade, Pe. Antônio Palmeira e também contou com o apoio da Federação dos trabalhadores rurais da Paraíba a (FETAG-PB). E esse período não foi dos melhores pois o país enfrentava um momento político de transição com o domínio do militarismo. Conforme Gregório (2007, p. 104), Com o advento do Golpe Militar em 1964, para surpresa daqueles que suponham tal episódio como o fim da estrutura sindical populista, esta estrutura mais uma vez moldou-se aos interesses do governo, permitindo que os militares botassem freios na movimentação sindical que então aflorava no cenário político Nacional. Diante de tal período político nacional, o Líder Joao Alves não se abatia com tais medidas radicais impostas pelo governo e continuava sua luta por melhores 1   Gini é um instrumento usado para medir o grau de concentração de renda. 80

condições aos trabalhadores rurais daquele Município, as reuniões eram realizadas historiografia e história local em uma das salas de aula do grupo escolar Euflaudizia Rodrigues que situava-se no centro da Cidade, dando continuidade aos trabalhos sociais do Sindicato, e a cada dia que se passara mais trabalhadores se conquistava para ingressar na luta sindical. Em meio a conquistas também houve perseguições neste cenário de ditadura militar, por parte de grandes proprietários de terras e políticos, que se depararam com uma organização social que crescia e atraia a classe mais esquecida, os traba- lhadores rurais. Segundo Duarte & Garcia (2009, p. 07) apud Junior (1998, p. 04). (...) a Sindicalização dos trabalhadores rurais (pequenos produtores, pequenos proprietários, posseiros e assalariados), surgiu no bojo de um amplo processo de mobilização pela regulamentação dos contratos de arrendamento e parceria, por direitos trabalhistas e, por reforma agrária “bandeira” essa, que atravessou as últimas décadas e tornou-se o baluarte e principal frente de combate dos camponeses do Brasil. Após alguns anos o STR adquiriu com recursos próprios uma casa pequena apenas com dois cômodos, que servira de sede para realização dos trabalhos sociais, a mesma situava-se na Rua Ivanilda Rodrigues Chagas nº 66 e ficava no centro da Cidade de Boqueirão-PB. Na sede do STR funcionava uma Escola de alfabetização, que beneficiava todos os sócios e seus familiares, já a partir de 1972, o STR também adquiriu um transporte próprio para conduzir os trabalhadores ate a Cidade de Campina Grande–PB, para poder dar continuidade aos processos de benefícios, outra importante conquista do STR foi a aquisição de um gabinete odontológico através de um convenio firmado com o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS),onde dava total assistência necessária aos sócios e por fim outro programa em parceria com o STR foi o de Bolsas de estudos para aqueles filhos de trabalhadores. 81

Figura 02. Imagem Da Primeira Sede Do STR Do Município De Boqueirão-PB, 2017 Fonte: Arquivos do STR Município de Boqueirão - PB, 1982 Já em meados dos anos de 1980 foram criadas 3 Delegacias Sindicais Distri- tais, na qual o Município de Boqueirão-PB, tinha uma vasta extensão territorial e estas delegacias se localizavam nos Distritos de Alcantil, Barra de Santana e Riacho de Santo Antônio, onde tinha os Sub lideres que representavam o STR e levavam as informações básicas evitando dos trabalhadores deslocarem-se de uma grande distância. (DUARTE & GARCIA, 2009, p. 09) “Em outras palavras, a campanha Trabalhista tinha como objetivo preparar o terreno e criar condições organizadas para as Campanhas salariais e os dissídios coletivos, como vinha acontecendo em Pernambuco desde 1997”. Assim como os primeiros movimentos em prol dos direitos dos trabalhadores também ocorreu o mesmo com o STR do Município de Boqueirão, com as mesmas ideologias de liberdade de expressão e melhores condições de trabalhos e direitos assegurados. Exemplo disso alguns movimentos e mobilizações trabalhistas no Estado da Paraíba, no período dos anos de 1982 a 1990, tinham como objetivo in- formar aos trabalhadores seus direitos e estimular ações trabalhistas na justiça jamais existentes nas questões agrarias paraibana. (DUARTE & GARCIA, 2009, p. 09). 82

Figura 03. Imagem do Desfile Cívico da Independência do Brasil No Ano de 1982 historiografia e história local Fonte: Arquivos do STR Município de Boqueirão-PB,1982 Trabalhadores participando do desfile cívico no Município de Boqueirão, uma forma de apresenta a população a sua organização e representação trabalhis- ta, e também uma obrigação burocrática nacional pois ainda estavam no período militarista, onde o Estado tinha sua soberania sobre as organizações e entidades. Outro grande marco no período dos anos 80 foi a criação da CUT, fun- dada em São Bernardo-SP. Já na Paraíba, a CUT surge quando os trabalhadores estão respondendo, de forma democrática, classista a toda violência e exploração desenfreada dos patrões, ao uso do aparelho do Estado, ainda (DUARTE & GAR- CIA, 2009). E foi em 1984 que foi criada a CUT-PB, com a participação de 129 delegados representando diversas entidades urbanas e rurais. Para representar os trabalhadores rurais tiveram 42 delegados (DUARTE & GARCIA, 2009, p. 10) apud (OLIVEIRA, 1986, p. 101). Assim como em outros movimentos sindicais, outras organizações, o STR do Município de Boqueirão também transpassou por períodos de enfraquecimento seja por influências políticas, ou por crises econômicas impedindo muitas as vezes o avanço da luta dos agricultores, mas com trabalho e parcerias este processo tran- sitório de enfraquecimento foi superado, ocasionando em diversas entidades que dependem da força dos trabalhadores. 83

O STR DO MUNICÍPIO DE BOQUEIRÃO A PARTIR DOS ANOS 90 E AS INFLUÊNCIAS POLÍTICAS NOSINDICALISMO Já por volta do período dos anos de 1994 o Município de Boqueirão sofre uma divisão territorial dos seus respectivos Distritos, tornando-se emancipados a novos Municípios, Boqueirão ficando apenas com o Distrito do Marinho, com isso o STR também sofre uma queda pois já neste período o número de sócios era consideravelmente muito expressivo com o quantitativo de 15.052 sócios. Com a divisão territorial o impacto não foi de imediato mais de forma gradativa pois com a emancipação dos novos Municípios também foram sendo criados as entidades que ali representariam os trabalhadores. Com isso o desafio do STR de Boqueirão era buscar por novos trabalhado- res, moldando-se ao novo modelo sindical e a seu novo território. Conforme Silva ((2009, p. 03) “O espaço reúne a materialidade e a vida que os anima”, território é então uma construção social erigida a partir de manifestações e domínios no espaço. Diante das perspectivas do novo, a missão agora era ir em busca de novos trabalhadores levando informações até onde o povo estava. Em meio a manifestações,movimentos sociais e lutas por direitos assegurados o STR seguia em frente, em todo esse decorrer o sindicato já havia passado por quatro gestão de dirigentes, com uma análise favorável e proveitosa de cada um. Ainda nos anos de 1997, houve uma reforma no prédio do sindicato para melhor atender aos trabalhadores. Mas foi em 2006 que o STR conseguiu com recursos próprios e muito esforço adquirir um novo terreno para construção da sede, com um espaço amplo e com uma estrutura apropriada para desenvolver e melhorar ainda mais os trabalhos oferecidos. 84

Figura 04. Imagem da atual Sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais historiografia e história local do Município De Boqueirão –PB, 2017 Fonte: Arquivos do STR Município de Boqueirão-PB, 2010 Outro importante meio adquirido do STR foi um espaço na radio comuni- tária local da Cidade de Boqueirão, para desenvolver um programa com foco em informações aos trabalhadores e toda população no geral, Além de outros serviços assistenciais oferecidos aos trabalhadores. Atualmente são 7.754 sócios, o atual presidente do Sindicato é o senhor Geraldo Barbosa que já está há três gestões a frente do movimento sindical. E foi através deste trabalho desenvolvido no Sindicato e das influencias adquiridas que o senhor Geraldo chegou a ser Vice-Prefeito por duas gestões (2005-2012). Conforme (DUARTE & GARCIA 2009, p. 05), o crescimento da organização e inserção política dos trabalhadores causou o temor da classe domi- nante do desenvolvimento socialista no país. Isso não foi um fato isolado pois antes dele outro sindicalista também ingressou na carreira política, também por meio das influencias que o sindicalismo traz no âmbito local. Pelo fato do Sindicalismo surgir de lutas, mobilizações em prol dos direitos dos trabalhadores, esta marca se propaga até os dias de hoje, assim como foi com as Ligas e o partido do PCB, todos lutavam por seus objetivos. E cada vez mais numa política para o conjunto do país, o “país integrado do capital e do trabalho” 85

ANTUNES (1996, p. 136). O conhecimento adquirido, e o engajamento no meio sindical torna-se uma importante aliada da política pública, visto por um lado comunista e social. CONCLUSÃO No decorrer das leituras bibliográficas lidas e analisadas para realização deste artigo, pude observar tanto no âmbito mundial como no nacional que o surgimento do sindicalismo, modificou toda uma hierarquia de poderes no aspecto social e econômico, assim como também, a relação de trabalho entre empregados e patrões. Diante das organizações estruturadas sob uma visão comunista, atrelados a interesses pessoais e de Estado, muitos não persistiram na luta sindical e afundaram nas armadilhas impostas aos mais fracos. Assim como foi no período da Ditadura Militar onde poucos resistiram contra o governo, a única forma de continuar as lutas e movimentos sindicais era aliar-se ao militarismo sem manifesta revoltas nem protesta sobre direitos. Sob reflexos do Brasil,o STR do Município de Boqueirão,buscou sempre está atualizado junto há sua Federação, para poder levar informação, discutir e analisar uma melhor decisão a ser tomada, em prol dos direitos sociais dos trabalhadores. Desta maneira o desenvolvimento da instituição sindical se fortalece e estrutura seus ideais dentro das concepções sociais de união e lutas. Portanto chego a conclusão que a história sindical tem suas complexidades, os movimentos de resistência e conflitos, ainda refletem na sociedade, como a influência trazida pelo partido Comunista e pela Liga Camponesa, que serviram para formação ideológica dos movimentos sindicais. Com isso a luta sindical ainda não chegou ao fim apenas molda-se no tempo e espaço. 86

REFERÊNCIAS historiografia e história local ANTUNES, Ricardo. Mundo do Trabalho e Sindicatos na Era da Reestruturação Produ- tiva: Impasses e Desafios do Novo Sindicalismo Brasileiro. In: Adeus ao Trabalho?: Ensaio Sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Cortez, 1995. ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Perfil do Município de Boqueirão-PB. Disponível em: http://atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/boqueirao_pb, acessado em 29 de junho de 2017. BASTOS, Elide Rugai. As Ligas Camponesas. Petrópolis: Editora Vozes,1984. BOQUEIRÃO-PB, IBGE. Cidades@, 2010. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/ xtras/perfil.php?lang=&codmun=250250&search=paraiba|boqueira o Acesso em 02 de junho de 2017. BORGES, Altamiro. I Modulo do Curso Centralizado de Formação Politica. Brasília: ENFOC, 2006. COLETTI, C. A Estrutura Sindical no Campo: A Propósito da Organização dos Assa- lariados Rurais de Ribeirão Preto. Campinas: Editora da UNICAMP,1998. Criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura,Contag.Disponível em: http://www.contag.org.br/index.php?modulo=portal&acao=interna&codpag=227&nw=1 Acesso em 30 de abril de 2017. DUARTE. E.L e GARCIA. M.F. As Mulheres Trabalhadoras Rurais: Uma Interlocução Entre Gênero e Movimento Sindical na Paraíba. XIX Encontro Nacional de Geografia Agrária, São Paulo, 2009. GREGÓRIO. Mariany. Sindicalismo de Estado e a Ditadura Militar no Brasil (1964- 1985). Editora: UFSC. Santa Catarina-PR, 2007. História do Sindicalismo,Wordpress. Disponível em: <https://diogenesdefreitas.wordpress. com/historia-do-sindicalismo-2/> Acesso em 29 de abril de 2017. LAMARÃO. Sérgio. MEDEIROS.S.L. Estatuto do Trabalhador Rural. Disponível em: <https:://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionários/verbete-tematico/estatuto-do-trabalhador- rural/> Acesso em 09 de junho de 2017. MICHAELIS, Dicionário. Sindicato. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/ moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/sindicato/, acessado em 30 de agosto de 2017. PIRIN, L. TSUKAMOTO, R.Y. Sindicalismo Rural – Um Novo Momento: O Caso do STR de Francisco Beltrão-PR. I Simpósio Lutas Sociais na América Latina: “Uma Outra América é Possível? O Significado das Lutas Populares Hoje”. Paraná: UEL, 2005. SAUER, Sérgio. Reforma Agraria e o Sindicalismo Rural: A Luta pela Terra no “Entor- no”de Brasília. Brasília: Contag, 1999. SILVA, Graziano. O Novo Rural Brasileiro. Pulicado na Revista: Nova Economia. Belo Horizonte, 1997. 87



PARTE 2 MEMÓRIA, CULTURA E IDENTIDADE



5 memória, cultura e identidade O UNIVERSO REDEIRO CRIPTOJUDEU DO SÍTIO DA RAMADA VANDERLEY DE BRITO IDA STEINMÜLLER A área territorial que hoje compreende as atuais cidades de Caturité,Boqueirão e Barra de Santana foi, no passado, um centro predominantemente têxtil-artesão, cujo núcleo primordial era o sítio denominado de Ramada, que fica espremido no intercurso espacial entre estas cidades, e onde a memória cultural da população, mesmo que de forma silenciada, ainda guarda fortes indícios sincréticos sefaraditas e asquenazitas.[1] Imaginamos que nesse lugar, em tempos recuados, foi, no interior da Paraíba, o centro difusor de produção e comercialização da rede de dormir. Esta área, segundo apontam nossos indícios, é um enclave cultural que teve como seus mais remotos colonizadores prováveis cristãos-novos lusitanos e ger- mânicos, de ancestralidade israelita, desterrados da Europa por força das pressões antissemitas de censura às suas práticas religiosas, que vieram se refugiar nestes ermos sertões dispostos a começar uma nova vida, distante da sombra dos confiscos, delações e fogueiras. Distante 5 km da cidade de Boqueirão, o sítio da Ramada é um ambiente populacional agrário recortado pelo riacho homônimo, tributário do Rio Paraíba, e se acha compreendido num vale embutido em meio ao serrote da Maniçoba, o alto do Salgado, a Serra do Macaco e a Serra de Caturité. No século XIX a região estava inserida no território da antiga Freguesia de Cabaceiras, mas, atualmente, parte do sítio pertence ao município de Boqueirão e parte ao município de Caturité, pois o marco divisório entre estes municípios é uma linha perpendicular entre o pico da Serra de Caturité e a ponte da PB 148, onde passa o Riacho da Ramada.[2] 1   O s sefaraditas são os judeus cujas origens remontam à Península Ibérica e os asquena- zitas são os judeus oriundos da Europa Central e Oriental. 2   O atual Riacho da Ramada, conforme consta numa sesmaria de 1749, era chamado de Riacho do Caminho Novo (Apud. TAVARES, 1982 p. 209). Decerto ainda não existia o sítio da Ramada nesses tempos, ali eram matos, todavia o lugar Caminho Novo, que ainda hoje permanece com este topônimo, já figurava como um referencial de percurso. 91

Imagem 1 - Localização do sítio Ramada A região, em meados do século XVII ficava inclusa na grande Data dos Oliveira e os primeiros a explorá-la, sem ocupá-la, foram membros desta família.[3] Dificilmente poder-se-ia dizer com enfática quem foram estes primeiros ocupantes do sítio, mas em princípios do século XIX moravam na região as famílias de Ber- nadino José Barbosa, de Francisco José Barbosa, Januário José Barbosa, de Justino Vidal de Negreiros e de José Cosme Pereira de Brito, este último era neto de Estevão Luiz Pereira de Brito, bisneto do capitão-mor Gaspar Pereira de Oliveira e sua esposa Josefa de Brito e, portanto, trineto de Antônio de Oliveira Ledo, fundador da povoação de Boqueirão. O topônimo “Ramada”, segundo depoimentos orais, derivaria do suposto fato de que durante um remoto período de seca boiadeiros vinham do Seridó tangendo gado em busca de pastos e quando passaram na região uma chuvinha havia passado ali antes e formado uma ramada verde e eles decidiram erguer casas e se fixar ali. Obviamente, a história oral busca justificar o topônimo na sua forma mais simplória, mas a versão não coaduna com os fatos, pois, historicamente, a região sempre pertenceu ao clã dos Oliveira Ledo. Com o tempo, em fins do século XVIII, outras famílias foram chegando à região e, por meio de casamentos com 3   D e acordo com o estudo que empreendemos no livro de registros de terras da Freguesia de Cabaceiras entre 1855 á 1862, concluímos que o extremo leste da velha Data dos Oliveira seria uma linha imaginária longitudinal mais ou menos no limite do pico da Serra de Caturité e, portanto, o sítio da Ramada estaria incluso nesta Data. 92

descendentes e agregados de Gaspar Pereira de Oliveira, começaram a ocupar com memória, cultura e identidade gados e moradas o sítio Ramada. Uma curiosidade sobre o nome deste lugar é que quando foi criada a Fre- guesia de Cabaceiras, em 1835, e se iniciaram os serviços paroquiais na região, os padres anotavam o lugar em seus registros de batismos, óbitos e casamentos como “Ilha do Taboado”, sem dúvidas uma referência de significado topográfico, porque abaixo desse sítio existe uma localidade denominada de Taboado[4] e como o sítio da Ramada se localizava ilhado entre o Riacho da Ramada e o Riacho do Feijão, possivelmente a designação binominal veio dessa formação de terrenos erguidos entre vales de riachos. Todavia, por algum motivo obscuro, nas primeiras décadas da Freguesia, coexistiam para o lugar os dois topônimos: Ilha do Taboado e Ra- mada, e nossa suposição é de que o nome original do lugar Ramada era Hamaka e os padres e capelões evitavam registrar o nome nos livros de assentos por inspirar léxico hebraico e, talvez, receando as visitas dos bispos que sempre fiscalizavam os livros, mudaram a toponímica para Ilha do Taboado que correspondia ao contexto do lugar. Entretanto, o topônimo reelaborado pela conveniência não resistiu ao tradicionalismo toponímico e em poucos anos desapareceu de modo tão abrupto que atualmente não resta quaisquer lembranças na população local deste nome para o lugar. Não fosse a documentação de época para comprovar, ninguém hoje da região acreditaria que o sítio Ramada já se chamou também de Ilha do Taboado. De fato, o termo hamac (‫ )םיסמה‬vem da remota raiz dos idiomas semíticos, anterior até aos livros protocanônicos do Antigo Testamento, e queria dizer algo como ranger, produzir ruídos que se sucedem, estalar, crepitar. O vocábulo foi in- troduzido na Península Ibérica pelos judeus, cuja presença na região antecede os mouros, visigodos e romanos, e foi na península tomado como referência a uma espécie de padiola para transportar doentes ou feridos. O termo tornou-se tão usual que até o navegador Cristóvão Colombo, na narrativa de sua primeira viagem à América, utiliza essa palavra como um simulacro às redes de dormir dos indígenas: “Muitos índios em canoas vieram hoje ao navio com o propósito de barganhar seu 4   O termo taboado não figura na língua portuguesa, é possível que provenha do termo ta- bor, que é hebraico e quer dizer altura, constando muitas vezes no Velho Testamento ( Jeremias 46.18; Salmos 89.12; Josué 19.22; Juízes 4.6; 14). Esse nome foi dado a uma alta montanha da Galileia (Monte Tabor) e possivelmente tenha sido assim que os pri- meiros sefaraditas chamaram a Serra de Caturité, por ser muito alta, e o termo taboado fosse um aportuguesamento do termo para referenciar os terrenos circundantes a Serra de Caturité. 93

algodão e hamacas ou redes, nos quais dormem” (grifo nosso).[5] Naturalmente, as hamacas do Velho Mundo eram camas suspensas em paus e o termo foi bem apropriado como referencial para conceituar as redes dos nativos sul-americanos, já que a rede de dormir era então desconhecida na Europa. De todo modo, em tempos pré-cristãos, no Oriente Médio os hebreus já dispunham de uma espécie de rede de dormir, conforme atesta o Velho Testamen- to: “A terra cambaleia como o ébrio, e balanceia como a rede de dormir; e a sua transgressão se torna pesada sobre ela, e ela cai, e nunca mais se levantará” (Isaías 24:20). Em algumas traduções o termo é interpretado como “uma cabana ao ven- to”. Naqueles tempos, os hebreus faziam a guisa de acampamento uma espécie de cama suspensa em galhos de árvores para passar a noite, entrelaçando os galhos ou estendendo cordas de uma árvore a outra e colocando uma esteira sobre as cordas, de modo que essas choças balançavam pra lá e para cá ao vento, e ainda hoje os viajantes no Oriente Médio recorrem a esta técnica de esteira suspensa para um descanso provisório que garante conforto e segurança contra animais selvagens. É possível, portanto, que o antiquíssimo termo hamac se referisse ao ranger das cordas balançando ao sabor do vento e, na Península Ibérica, onde os judeus não mais dormiam ao relento, tomou a adaptação fonológica ladina de hamaca, passando a se referir às padiolas, ou macas,[6] por essas serem igualmente um leito de emergência suspenso em paus. O surgimento do nome Ramada nos livros de ofícios da Freguesia de Ca- baceiras é de 26 de maio de 1844, no registro de batismo de Josefa, filha de José Cosme Pereira de Brito e Maria Francisca,[7] cujo assento eclesiástico foi assinado pelo padre José Fidélis Rosa, e, tratando-se o sítio Ramada de um provável reduto de judeus conversos e, possivelmente, o núcleo da indústria têxtil-artesão do Cariry, não seria total despropósito supor que o topônimo “Ramada” poder-se-ia ser uma 5   D evido a este documento, alguns historiadores aventaram que o termo indígena para a rede de dormir seria “hamaca”. Todavia essa palavra não se encaixa no léxico das línguas e idiomas indígenas e podemos assegurar que a informação não procede, até porque foi utilizada 1492, época em que os europeus ainda desconheciam os idiomas ameríndios.  6   O termo “maca”, sinônimo de padiola, deriva de hamaca. 7   E ssa Josefa ( Josefa Maria da Conceição) casou aos 20 anos em oratório privado a 25 de janeiro de 1864 na casa de seu pai, na Ramada, com José Bernardo da Silva e o casal se estabeleceu na Ramada. 94

derivação fonética do termo “hamaca” que, por sua vez, fazia referência à indústria memória, cultura e identidade redeira local.[8] Imagem 2 - Primeiro registro histórico do sítio Ramada Inserido numa tênue, porém muito nítida linha de indícios, é provável que o sítio da Ramada nasceu sob o signo da tecelagem de “hamacas”, e, embora não tenhamos evidências claras, essa cultura têxtil foi instalada naqueles indômitos terrenos caririzeiros por uma comunidade asquenazim relativamente tardia se comparada à cultura sefaradim, e, conforme veremos nos capítulos que se seguem, esse seria o principal diferencial desse microcariry têxtil-artesão em relação à res- tante totalidade do Cariry. INDÍCIOS JUDEUS NO FALAR E NO VIVER DO POVO DA RAMADA Na comunidade da Ramada, nos foi possível focalizar fragmentos sefaradim-asquenazim perdidos no conjunto dos elementos do cotidiano físico, simbólico e imaginário; como alimentação,vestuário,habitação,práticas de cura,ritos da morte, relações de parentesco, divisão do trabalho, crenças, locuções, oralidades, provérbios e práticas culturais de caça e lazeres, impregnados de significados eluci- dativos sobre a perenidade de uma vida judaica sincrética herdada dos antepassados. As principais famílias que formam a unidade desse reduto espacial são os Cosme de Brito, os Pereira, os Vidal de Negreiros, os Barbosa, Gomes de Farias, Maciel, os Andrade e os Ramos, resultantes da mistura entre os colonos, ibéricos e germânicos, e os nativos de etnia cariri, predominando na região fenótipos e compo- sição física típicos de caboclos, com grande frequência de morenos atarracados em convivência familiar antagônica com gente muito alva, de porte alto, olhos claros, 8   N o livro “Menino do Cariri”, uma narrativa das lembranças dos anos quarenta na região de Boqueirão, o autor relata que, já naqueles tempos, os sítios Ramada, Barrocas, Cami- nho Novo e Taboado tinham como atividade principal a fabricação de redes, que eram exportadas até para o Rio de Janeiro. Trabalhavam de seis às seis, e quem por ali passava, de longe começava a escutar o blá-blá-blá dos teares (PINTO NETO, 1981 p.31). 95

louros e ruivos. Nessa região específica, nota-se uma miscigenação étnica e de modos culturais entrementes ao judeu sefaradita, o judeu asquenazita e ao caboclo, que gerou uma comunidade única. Alguma coisa de hebraico original que não podemos encontrar em outro lugar vibra nesse trecho de terra castanho-avermelhada, e é nosso objetivo, enquanto memorialistas, reavivar esse passado, pois já dizia Walter Benjamim: “Nada do que aconteceu deve ser perdido para a História”.[9] Com hábitos centenários de casarem-se entre si,a unidade familiar ramadense se desenvolveu com convenções e linguagem própria. Regidos pela ambivalência das tiradas espirituosas típica dos indígenas e o comedimento do judeu,nessa região a fala do povo é ibero-arcaica e costuma-se enladinar palavras numa pronúncia peculiar, um tanto asquenazita, com contrastes na duração das vogais, bem como economias vocálicas, originando palavras sem precedentes como “pia”, para dizer “espia”,“olha”. Uma série de termos e expressões é exclusiva do lugar. Ao longo de nossos estudos foi-nos divertido recolher inúmeras narrativas de histórias locais, onde a oralidade,curiosamente,vem enriquecida com teatralização de falas inteiras,sobretudo entonações de vozes dos antepassados que nos foram reproduzidas com fidelidade caricata. Até onde nos foi possível perceber no corolário dessas narrativas, vocábulos originais e unânimes são exclusivos da Ramada.Termos como, por exemplo, quando uma pessoa é tonta se diz que fulano é “um panga”, demostram o arcadismo ainda perene no lugar, pois esta palavra é um substantivo já há muito em desuso e sua origem, por incrível que pareça, vem do iídiche,[10] derivando do termo patzer, que era como se chamava um mal jogador de xadrez, mas o termo passou a designar genericamente as pessoas ingênuas, bobas. A propósito, o peixe-gato é também chamado de peixe-panga, pois se diz que basta jogar o anzol que o ele fisga a isca. Outra expressão exclusiva do povo ramadense é chamar de “vaso” aqueles que se mostram preguiçosos, inúteis. O termo, conforme percebemos, não se trata de vasos como objetos, mas de pessoas que são vasos, e não está ligado à metáfora proverbial de “vaso ruim não quebra”, pois não se reporta ao juízo de pessoa má e sua resistência aos castigos, na verdade o sentido figurado da palavra no lugar está relacionado aos filhos inúteis de uma casa,como referência,talvez,a passagem bíblica: Ora, numa grande casa não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de barro, uns para honra, outros, porém, para desonra (Timóteo 2.20-21). Vasos de cerâmica eram comuns em várias terras bíblicas da antiguidade e na Ramada muitas vezes o termo vem depreciativamente composto como “vaso véi”, aludindo metaforicamente um provérbio de sabedoria judaica que diz “não olhes a jarra, mas 9    Apud GINZBURG, 2006 p.26. 10   L íngua germânica das comunidades judaicas da Europa central e oriental, baseada no alto-alemão, com acréscimo de elementos hebraicos e eslavos. 96

o que ela contém. Há jarras novas que contêm vinho velho e delicioso, e há jarras memória, cultura e identidade velhas que nem sequer contém vinho novo”. Seria exaustivo aqui enumerar todas as expressões que recolhemos em pes- quisa, pois foram muitas, mas além dessas terminologias de fundo judaico, um dos mais interessantes fatores de identidade de resistência observados nesse enclave semítico da Ramada é a total ausência de capelas, ou mesmo um mísero cruzeiro nos horizontes. A gestação da comunidade remonta fins do século XVIII e nesses ermos o marco de ocupação de um território começava com uma capela ou um cruzeiro sobre base de cantaria. Todavia o sítio da Ramada não ergueu nenhum destes dois, os serviços religiosos eram feitos a quase uma légua de distância (na capela do Boqueirão ou na capela de Barra de Sant’Ana), e nenhum dos proprie- tários de terras e gados com cabedal se ocupou de erguer uma edícula católica no sítio, parece que resistiam à ideia de ter um padre circulando na região ou sentiam aversão inconsciente ao catolicismo. A razão é desconhecida, mas, efetivamente, durante os séculos XVIII, XIX e XX nunca se cogitou essa combinação do sagrado com o profano para esse “gueto judaico”.[11] A ausência de um santuário ou símbolo cristão de lograda para o sítio Ramada é um problema que nunca se levantou à discussão durante quase trezentos anos, e isso é no mínimo estranho porque, mesmo na ignorância do povo comum, sabia-se que uma capela daria ar de santidade ao burgo, as pessoas se enterrariam em solo santo ali mesmo, evitando levar as padiolas com os defuntos a pé por mais de uma légua para enterrar seus entes no velho cemitério da povoação de Boqueirão, e, além disso, o sítio usufruiria o status de receber periodicamente ofícios e um santo padre. Porém, a Ramada abriu mão dessas prerrogativas. Nem sequer um cruzeiro de madeira foi erguido num dos muitos altos que circundam o lugar para imprimir cristandade local, de modo que o símbolo da cruz foi, por séculos, inteiramente alheado naquela porção caririzeira. Negligência ou proposital? A impressão a que nos remete essa singularidade é de que a antiga comu- nidade ramadense, apesar de convencionalmente católica (como se devia ser), vivia um conflito subliminar de repulsa com o sistema de crenças cristãs, como se alguma força psicoenergética repelisse das cercanias a simbologia do catolicismo. A rigor, dá para ser cristão sem cruz, um não é sinônimo de outro, e talvez esse fosse o pretexto subjetivo que desobrigava esses rudes tecelões agropecuaristas de edificar representativos cristãos em sua gleba. Mas não era só isso, já dizia um antigo provérbio de sabedoria judaica que não é o lugar que honra o homem, mas 11   S omente no século XXI (2008) começou a ser erguida uma igrejinha no sítio da Ra- mada, a edificação foi iniciativa de Maria das Neves Ramos, conhecida como Lili, uma ex-professora vinda do município de Umbuzeiro. 97

o homem que honra o lugar, e na Ramada era como se patriarcas de tempos idos murmurassem normas ao subconsciente daquela gente. Como se a cruz escandali- zasse por emblematizar a tortura, sendo um dos símbolos do poderia de Roma na Palestina, e também, ainda pior, a reprodução viva do estandarte do Santo Ofício. Um costume muito comum na Ramada também é distinguir as pessoas com a indicação do seu progenitor, que pode indicar criptojudaísmo, pois era um costume antigo dos judeus designar o filho em referência ao pai. Alguns exemplos são José Bar-Jacob que significa José filho de Jacob, a mesma regra se aplicava para Bartimeu, Bartolomeu e Barrabás que indicam, respectivamente, filho de Timeu, filho de Tolomeu e filho de Abas.[12] Na Ramada a regra ainda é constante, quando você se apresenta a alguém vem logo a questão: “és filho de quem?”. Podemos tomar como exemplo o patriarca da região, José Cosme Pereira de Brito, que recebeu o posnome Cosme em referência a seu pai, Cosme José Barbosa. O posnome Cosme se perpetuou na família de modo que até hoje, duzentos anos depois, ainda há descendentes recebendo este posnome a guisa de sobrenome. Outros casos não se apresentam em registros cartoriais, mas, informalmente, muitas pessoas são indi- cadas pelo seu referencial paterno, como “José de Graciano”, “Antônio Emiliano”, Manoel Justino”, Ciço de Antôi Chico”, “Biu de Faustino”, “João Paulino”, “Apo- lônio Bernardino”, “Heleno Higino”, Biu Heleno, e outros. E uma regra do lugar. OS DOIS PRINCIPAIS TRONCOS FAMILIARES DA RAMADA Judeus de raízes germânicas e ibéricas miscigenados entre si e entre caboclos perfazem o cariz genético do povo ramadense,que atualmente constitui basicamente uma só família. O gene indígena é predominantemente Cariri, povos ágrafos cuja genealogia é praticamente irrecuperável. Todavia, os ramos sefaraditas e asquena- zitas não são tão insondáveis assim. Os ibero-judaicos da Ramada basicamente são provenientes dos Pereira e dos Brito, e desses dois ramos familiares, por meio de casamentos, derivam os Gomes, os Farias, os Maciel, os Ramos, os Andrade e os Vidal de Negreiros da região, sobrenomes que decerto são de origem marrana e cristã-velha colonial. Dos troncos matrizes,os Pereira (sobrenome tipicamente converso) descendem diretamente dos Oliveira Ledo, que muitos indícios indicam que eram marranos. Já os Brito, por sua vez, são sefaraditas, visto que, segundo nos foi possível apurar, o nome tem sua raiz no hebraico, se originando da palavra brit (briyth), quer dizer 12   E ste costume de referenciar no nome alusão ao pai se espalhou pela Europa, os ingleses acrescem a partícula son: Johnson, Nelson, Stevenson, Richardson. Do mesmo modo os irlandeses e escoceses usam o mac, os germânicos utilizam o von e os poloneses o ski. 98


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