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Boqueirão

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:03:53

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Eu e Marluce éramos irredutíveis. Considerava que estava cumprindo meu memória, cultura e identidade papel de vereador.Fiquei esperando numa poltrona em frente ao Gabinete do Prefeito. Já se encerrava o expediente, quando Ernesto saiu do gabinete e veio à minha direção. Eu ainda sentado na poltrona. De início fiquei sem ação. Ele ru- bro, enraivecido, se dirigiu até minha poltrona e me disse em tom muito alto, que eu estava tentando lhe desmoralizar, que eu, como primo dele, não podia atuar daquele jeito. Eu me levantei e disse: prefeito, queremos lhes entregar esse oficio. Não consegui terminar a frase. Ele arrancou com todas as forças o documento de minhas mãos, amassou e jogou no chão. Eu disse algo como: é assim que o senhor trata as demandas do povo. Ele foi se retirando e eu gritei da porta, por trás dele, para as pessoas que estavam lá fora. Ele rasgou o abaixo-assinado que pede para ele encaminhar o projeto dos banheiros de vocês. Ernesto se virou e começou a me puxar pela camisa para fora da Prefeitura, dizendo: saia daqui, saia daqui. Com um movimento brusco retirei sua mão da mi- nha camisa. Já estávamos no terraço da Prefeitura, quando ia chegando o deputado Carlos Dunga e mais algumas pessoas da sua confiança. Marluce se dirigia aos populares e eu insistia para que ele nos ouvisse. Daí o inesperado ou por muitos já esperado. Ernesto se vira e desfere um soco contra mim. Um murro que acerta minha testa. E se mostra disposto a brigar fisicamente comigo. As pessoas presentes o seguram. Eu, praticamente sem ação, em nenhum momento procurei revidar a agressão física, também estava segurado por Marluce e outras pessoas. Mas não perdi a oportunidade de chama-lo de Coronel. E que seu tempo estaria acabando. Me dirigia ao povo e dizia: ele é contra vocês. Ele não quer saber do povo. O clima na cidade ficou pesado. Eu fui para Campina Grande e denunciei nas emissoras de rádio.O PMDB me ofereceu o seu advogado que entrou com um processo contra “Seu Ernesto”.Certamente há registro no cartório de Boqueirão desse episódio. Importante que historiadores quando quiserem recompor a narrativa aqui apresentada busquem outras versões, testemunhos e os documentos com minha queixa crime apresentada à época. O clima,como já disse era de beligerância.O entrevero ocorrido com o prefeito e um certo clima de temor por minha segurança não me detinham. Continuava nas comunidades organizando, exibindo filmes, criando associações de moradores e ecoando angustias, sempre ocupando as emissoras de rádio de Campina Grande. Buscando fatos para denunciar. Ganhei fama de comunista. Para mim não era problema e não tão distante do que eu queria e de certa forma me orgulhava. Mas a compreensão em geral, de comunista na época, como hoje, não era boa para significativa parte da população. As pessoas mais simples associavam a ideia de comunista a uma pessoa perigosa ou em alguns casos, alguém fisicamente exótica. Existiu no Brasil uma 149

época em que se dizia que os comunistas comiam criancinhas, atacavam as famílias, destruíam os lares. Eram o diabo com rabo e tudo. Em nosso trabalho nas comunidades, certa vez o senhor não queria abrir a porta da casa porque eu era comunista. Depois que entrei na casa fiquei com a impressão que a sua senhora procurava em mim rabo e chifres, pela forma que ela me olhava, por trás de uma parede. Numa estrutura societária conservadora como a nossa dos interiores do Nordeste, alguém com meu perfil político-ideológico, àquela época, certamente não agradaria a algumas pessoas seja por desconhecimento seja por considerarem minha atuação agressiva, por vezes boçal, presunçosa. De fato, a juventude carrega em si, certos vícios de boçalidade. Na esquerda havia e há, muito desse ar de supe- rioridade. Quem me via a distância também alimentava essa ideia. O ocorrido com Ernesto na Prefeitura soou para alguns dos seus aliados como uma provocação, um desrespeito ao líder máximo do município. Embora o agredido tenha sido eu, muita gente considerava ter sido um desrespeito o fato de eu ir a prefeitura com um grupo de pessoas pressionar o Prefeito. E aquela atitude e as interpretações dadas a ela atiçou muito sentimentos contra mim. Falavam até de perigo de vida. Nunca dei atenção a essas ideias, até que vivi uma situação inusitada e perigosa. Nós tínhamos a Assessoria Parlamentar do Vereador Jonas Duarte. Era muita pompa para pouca coisa. Na realidade, vereador de município pequeno, no meu caso não tinha assessoria nenhuma. Do meu salário pagávamos o aluguel de uma casa e às vezes, muito raro, dávamos uma contribuição a alguém para abrir a Assessoria, visto que lá montamos uma mini biblioteca com alguns romances, livros de história, filosofia e economia. A Assessoria também organizava palestras de Economia Política, sobre a conjuntura nacional, local e até internacional. Exibíamos filmes políticos e até rea- lizávamos atividades de educação. A ideia era formar uma juventude crítica, ativa no município. Formamos um grupo de jovens pensantes críticos em Boqueirão que merece respeito. Muitas das nossas atividades eram desenvolvidas por membros da Assessoria, sem necessariamente minha participação. Miro Lopes, as irmãs Ângela e Marinês Freitas, Santana, Gilberto José, Edinho Duarte, Silvana Santiago e vários outros jovens sempre estavam por ali lendo, estudando, participando das atividades, etc. Foram esses jovens que realizaram cursos de alfabetização de adultos, inclusive na Bela Vista e uma gama de cursos e estudos sobre as temáticas que citei acima. Dificilmente íamos a alguma atividade só. Mas até criarmos esse grupo de jovens termos uma casa para descansar em Boqueirão, participei individualmente, sozinho, de muitas atividades que deixaria preocupações. 150

Apenas alguns dias após a refrega com o Prefeito, após jantar em Boqueirão memória, cultura e identidade me dirigia à comunidade do “Taboado de Cima”, para uma reunião e creio a exibição de um filme, sozinho. Na subida de uma ladeira, eis que encontro a estrada fecha- da, por pedras e garranchos. Pedras grandes. De forma que não dava para a moto passar. Temi por minha vida. Parei muito próximo da barreira de pedras, árvores e garranchos. Por pouco não me acidentei. Um calafrio tomou conta do meu corpo. Voltei com a moto e sequer entrei em Boqueirão, fui direto para Campina Grande. No outro dia procurei o advogado do PMDB, que me orientou a dar um tempo das minhas atividades noturnas no município. Que sobre o episódio da estrada eu não podia acusar ninguém. Mas que parecia um recado para mim. “Seu Ernesto” certamente tinha muita gente fiel, disposta a reparar as coisas que um “moleque metido” se metesse a tentar desmoralizá-lo. Para um jovem de esquerda, idealista, o susto não se transforma em medo. Continuava a “agitar” a política local. RECONHECENDO A HONESTIDADE DE ERNESTO DO RÊGO Tentando cumprir minha função de vereador, “fucei” o que podia as contas da Prefeitura de Boqueirão. Tinha uma sede enorme de pegar um mal feito de Ernesto. Os relatórios financeiros da Prefeitura eu lia e relia e ainda com minha “possante” ia procurar se a obra realmente havia sido realizada. E ainda buscava cálculos para saber da veracidade do Relatório. Nessa busca fui parar no TCE. Conversei com o Presidente do Tribunal de Contas e sua equipe de auditores. Ao final, digamos, para minha frustração, descobrimos que o Coronel era honesto. Honesto era pouco, era elogiável sua honestidade e seus cuidados e zelo com as contas municipais. Fiz questão de me pronunciar na Câmara. Disse em bom som que Ernesto era honesto. Que minhas enormes divergências políticas com ele não me levariam a descer ao ponto de querer detratá-lo como alguém desonesto sem sê-lo. Na ocasião estava como líder da oposição. O vereador João Gonçalves, líder da situação pediu para que fosse registrado em Ata meu discurso reconhecendo a honesti- dade de “Seu Ernesto”.Alguns colegas da oposição não gostaram.Considerei que aquela era minha obrigação. O Presidente do TCE na ocasião, Dr. Celso Mariz Maia chegou a me dizer que, houvesse na Paraíba dez prefeitos com o zelo com as contas públicas e a honestidade de aplicação das verbas o trabalho do TCE seria bastante reduzido. Não me importava o que os meus correligionários consideravam o que seria o certo. Agi de acordo com minha consciência. Certamente em algum livro de Ata da Câmara de Vereadores de Boqueirão consta essas declarações e o meu reconhe- cimento. Não esqueci, contudo, de registrar o método autoritário e centralista do 151

comportamento do chefe do Executivo Municipal. Não fiz aquelas declarações por favor ou para acenar qualquer aproximação com o velho líder. OS VENTOS COMEÇAM A SOPRAR NOUTRA DIREÇÃO NA POLÍTICA DE BOQUEIRÃO Na realidade havia um certo distanciamento político meu dos demais cole- gas da oposição. Isso ficou claro nas eleições de 1986. Eleições para Governador, Senador, deputados Federal e Estadual. O mandato de prefeitos e vereadores foi prorrogado por mais dois anos. O fim da ditadura reabriu a condição de eleições nas capitais, realizadas em 1985. Para sincronizar as eleições municipais em todo o país, prorrogaram o mandato das cidades do interior para 1988, quando reali- zar-se-iam eleições municipais “solteiras”. Assim ganhamos dois anos de mandato. Em 1986 o PMDB elegeu o Governador da Paraíba, Tarcísio Burity. Eu, embora continuasse filiado ao PMDB não votei em Burity. Votei no PT. De go- vernador a deputado estadual e coordenei junto com lideranças reconhecidas em nível estadual a campanha do coordenador do Centro de Defesa dos Direitos Hu- manos da Arquidiocese da Paraíba: Vanderley Caixe. Deputado Estadual, votamos em Antônio Barbosa. O candidato a Governador pelo PT foi colega professor da UEPB: Carlos Alberto. O PMDB surfava no Plano Cruzado que deu um absoluto apoio ao Governo Sarney e ao PMDB que lhe apoiava. Eu havia me posicionado contrário ao Plano Cruzado, denunciava seu caráter eleitoreiro e que não atacava as causas da inflação. Que se tratava de uma enganação. Que na realidade seria a estratégia de o PMDB assegurar ampla maioria no Congresso Constituinte que se instalaria, no sentido de assegurar uma transição segura aos interesses do grande capital em terras brasileiras. Do ponto de vista da análise técnica do Plano Cruzado minhas posições esta- vam corretíssimas. Do ponto de vista político, porém, fiquei extremamente isolado. A população apoiou o Plano Cruzado e acreditou que daquele jeito se livrariam da inflação. Os meus colegas vereadores do PMDB ficaram todos contra mim e a favor do Plano Cruzado, do Governo Sarney e toda aquela “onda”. Isolado, contando apenas com a juventude que frequentava nossa Assessoria tentávamos mostrar o engano, a farsa do Plano Cruzado. Em vão. Fazíamos pan- fletagens, tentávamos organizar rodas de conversas sobre o Plano Cruzado, mas não conseguíamos. As pessoas estavam realmente entusiasmadas com as enormes mudanças ocorridas no Brasil. As emissoras de rádio de Campina Grande fecharam os microfones para mim. Me consideraram um adversário da Pátria. Como alguém poderia se posicionar contra um Plano tão bom, que estava mudando o Brasil? Tempos difíceis. 152

Certa vez, em uma panfletagem na feira de Boqueirão, onde colocávamos memória, cultura e identidade os dados de economistas, uma análise política denunciando a farsa fui entregar o panfleto ao correligionário, o abnegado peemedebista, amigo meu da campanha de 1982, Zequinha Brito. Quando Zequinha leu o enunciado do panfleto o amassou e jogou em mim e disse: “você é uma vergonha. Um rapaz inteligente, corajoso, na hora que o Brasil vai melhorar, você fica contra. Você é um traidor da pátria”. Saiu indignado. João Paulo, vereador com forte presença na cidade, articulado com o Depu- tado João Fernandes do PMDB monta esquema de apoio a Aluísio Campos pelo PMDB para deputado federal. Manoelzinho Andrade e Vital Costa apoiaram novamente Orlando Almeida. Todos apoiaram Tarcísio Burity. Eu votei no PT sem nenhuma chance de eleger Governador. O resultado das eleições em 1986 em Boqueirão,mostrou a força de João Paulo e João Fernandes ancorados no PMDB em alta; e a rejeição a quem se posicionara contra o Plano Cruzado. Aliás, não só em Boqueirão. No Brasil todo. O PMDB só não elegeu para governador no Brasil, no estado de Sergipe, onde um aliado do PFL foi eleito. O massacre eleitoral do PMDB e a eleição de Burity Governador, porém, alteraram a correlação de forças na Paraíba com reflexos em Boqueirão. Com o fim das eleições em 1986, José Sarney põe fim também ao Plano Cruzado, a inflação volta com toda força, Sarney se desmoraliza, a população o repudia e volto a contar com certo prestígio nas minhas colocações. Volto a ser ouvido por algumas pessoas como um vereador com algo a dizer. Vanderley Caixe não fora eleito, mas por incrível que pareça teve mais votos em Campina Grande, onde mantínhamos uma boa base de organização política com a Juventude Avan- çando, do que em João Pessoa, sua base de apoio natural e onde ele fora candidato a Prefeito um ano antes pelo PT. Considere-se que o eleitorado de João Pessoa já era bem superior ao de Campina Grande. Se na cidade onde eu era vereador saí enfraquecido por conta do resultado eleitoral, ganhei certo reconhecimento estadual como alguém de esquerda. Destaco que coordenamos a campanha de Vanderley com apoios importantíssimos, embora discretos, de D. José Maria Pires e D. Marcelo Carvalheira, arcebispo e bispo de |Guarabira na Paraíba, líderes da Igreja Católica progressista. Em Boqueirão, através do deputado João Fernandes, filho da terra, os verea- dores do PMDB João Paulo, Manoel Andrade e Vital Costa passam a ter certos atendimentos, espaços. Inclusive conseguindo alguns apoios direto do Governador Burity e do seu Secretário de Agricultura: Marcos Baracuhy. Eu continuo sem nenhuma ligação estadual, muito menos municipal ou de qualquer natureza. Me resta o trabalho de organização popular. Criamos 72 (setenta e duas) associações de moradores no município. Fosse nas comunidades rurais dos 153

distritos de Alcantil, Riacho de Santo Antônio, Barra de Santana ou Caturité, ou nas áreas urbanas destes mesmos distritos. Algumas associações conseguimos registrar com CNPJ, erguemos sedes e deixamos diretorias ativas, funcionando. Outras desapareciam poucos meses após criação, sem nenhum tipo de registro. Chegamos a realizar um Encontro Municipal de todas as associações de moradores no município de Boqueirão, na comunidade Campo de Emas, com o apoio decisivo do Centro de Defesa dos Direitos Humanos – João Pedro Teixeira. Na realidade minha atuação como vereador se confundia com minha atuação como militante do CDDH-JPT. Atuávamos juntos. O CDDH-JPT mantinha equipes de educação e saúde para realização de palestras e trabalhos sociais em comunidades rurais e ou urbanas. E Boqueirão era foco de nossa atuação. Justamente por conta do nosso mandato. Se o nosso trabalho não era suficiente para resultados sociais imediatos, inegavelmente influenciaria no próximo pleito municipal como veremos. SECA, SAQUES E BOQUEIRÃO NO FANTÁSTICO DA REDE GLOBO. O INÍCIO DAS MUDANÇAS. O ano de 1987 tem novo governo na Paraíba e os velhos problemas de sempre. Desemprego, desigualdade social, renda baixíssima. Educação caótica, assistência à saúde praticamente inexistente. Enfim. Se evidencia que o Brasil e o nosso estado não mudara em nada. A inflação bate recordes atrás de recordes. O desemprego acompanha. Para agravar a situação é mais um ano de estiagem. Já estamos em julho e nada de chuvas. Perdera-se as lavouras, não acumulou água para os animais. As fazendas começam a demitir e a sinalizar que não precisam mais de trabalhadores, o desemprego e a fome avançam. As notícias de saques no sertão do estado chegam pelas ondas das rádios de Campina Grande. Em Boqueirão a EMATER solicita uma reunião com a Câmara de Vereadores para discutir uma nova Frente de Emergência, mas de fato não resolve nada. Nada. A população rural continua desassistida. Nesta quarta feira de julho, quando saio da reunião da Câmara há uma multidão esperando as definições. As pessoas me pergun- tavam sobre a Emergência. Quando sai a Emergência? Não soube responder e fui até xingado por pessoas. Coisa do tipo: “esses políticos não resolvem nada”. Dito a um vereador naquela situação, essas palavras carregam muito de verdade. Aliás, essa foi uma sensação que carreguei o mandato todo. Não resolvíamos nada. Ou muito pouco. Nessa época eu cursava História na UFPB e tinha pressa de concluir o curso. Fui para Campina Grande o mais rápido possível. Além das aulas a tarde, nas quar- tas-feiras eu tinha uma participação no Programa de Rádio, na rádio Borborema 154

entre as 17 e 18 horas. O Apresentador era o jornalista João Barros. Quando sentei memória, cultura e identidade na bancada da rádio, João Barros pediu para eu escutar as notícias que chegavam do sertão. Em resumo: fome, sede e saques. E me pergunta de chofre: E Boqueirão vai ter Frente de Emergência ou vai esperar ter saques? Ao que eu respondi: “se não tomarem providencias vai ter saques, pois os agricultores estão desesperados e a burocracia para iniciar a Frente de Emergência é enorme.” A ideia de saque se espalhou como rastilho de pólvora. No sábado quando chego a Boqueirão há uma multidão em frente ao Posto de Saúde que espalhava para frente da Casa Paroquial e descia em algumas ruas vizinhas.Me avisaram que estavam ali para saquear o Posto de Saúde, onde se encontra 75 (setenta e cinco) toneladas de alimentos. Passo para a “Assessoria” onde se encontrava o vereador João Paulo, os jovens que trabalhávamos juntos me aguardando para discutirmos o que fazer. Propus imediatamente procurarmos o Prefeito da cidade. O Posto de Saúde é municipal, o prefeito precisa se posicionar. João Paulo me comunica que não vai. Chamo então Paulo César (Paulo de João dos Corvos) que aceita ir comigo procurar o Prefeito. Havia uma tensão na cidade. Uma ameaça concreta de saque. Os comer- ciantes da feira fecharam suas portas e a cidade estava realmente um caos. Outra tensão seria um encontro com o prefeito Ernesto do Rêgo. Especialmente eu me encontrar com ele. Desde o dia que ele me deu um murro não nos encontrávamos, sequer havíamos cruzado. Para mim, a tarefa de vereador naquelas circunstâncias estava acima das disputas políticas. Se havia alimentos era necessário evitarmos o saque ao tempo que normalizaríamos a situação. Me avisaram que o Prefeito se encontrava no escritório do Deputado Carlos Dunga. Para lá nos dirigimos. Paulo César me avisou que não iria entrar. Fui só. Estavam Carlos Dunga por trás de um birô e Ernesto em um banco lateral. Havia mais outra pessoa no recinto, mas não guardei na memória quem era. Passei entre os dois e me sentei à frente de Carlos Dunga, a quem dirigi a palavra, propondo que organizássemos uma fila e distribuíssemos os alimentos que tinham no Posto de Saúde e no Posto da Merenda Escolar. Ernesto não me esperou concluir a frase. Me interrompeu dizendo: “você quem criou o problema, você que resolva”. Repliquei: “estou falando com o depu- tado Carlos Dunga”. Ernesto se levantou e se retirou dizendo: eu não tenho nada a ver com isso. Carlos Dunga me fez uma proposta. Sugeriu eu ir na manifesta- ção onde as pessoas se aglutinavam e dizer que as pessoas fossem para casa e no domingo organizava a distribuição dos alimentos no Estádio de Futebol, ele iria com a caminhonete dele, conseguiria mais algumas e as pessoas, em fila receberiam os alimentos. Fiquei muito bravo com a proposta de Carlos Dunga. O respondi, se você tem essa proposta vá lá e diga as pessoas famintas que voltem para casa 155

pacientemente e que amanhã organizem filas para receberem os alimentos. Carlos Dunga reafirmou, a proposta que tenho é essa. Neste ínterim liguei para Juarez Amaral jornalista da Rádio Caturité e da TV Paraíba. O avisei dos acontecimentos. Voltei para o meio da multidão. Alguém me sugere procurar dona Badé, chefe do Posto de Saúde. Vou para a casa de dona Badé e ela me sugere falar com “Doutora Mabel Mariz” Presidente da Fundação que respondia pela distribuição de alimentos a carentes no estado. Mabel Mariz me autoriza a distribuir os alimentos. Passo o telefone para dona Badé e ela confirma. Dona Badé me oferece a chave do Posto de Saúde para eu distribuir. Lhes digo que não seria prudente. O correto seria a polícia militar entregar. Que, de outra forma parecia que estaria fazendo política. Corro onde está a multidão falo com o delegado e os policiais que estão dando segurança ao Posto na ocasião e aviso para a multidão que dona Badé está vindo. Que vamos organizar uma fila e a Polícia e dona Badé irão fazer a distribuição. Esperamos alguns minutos e dona Badé não chegou. Percebia a multidão aumentar rapidamente. Quanto mais dona Badé demorava, mais gente chegava. A notícia de que iria ser distribuído alimentos se espalhou rapidamente. Em poucos minutos a multidão era o dobro. E a chefe do Posto de Saúde não chegou. Então fui para a casa dela novamente. Ela me informa que o deputado Carlos Dunga man- dou o carro apanhá-la no caminho para impedir que ela fosse fazer a distribuição. Fiquei indignado. A multidão agora contava com a distribuição de alimentos que eu anunciara ter conseguido. Cobravam de mim a solução. Subi no muro que circundava o Posto de Saúde e narrei tudo que estava acontecendo. Que após ter a autorização da responsável por aqueles alimentos para distribui-los, depois de ter organizado com a Polícia Militar e a Chefe do Posto de Saúde, o Prefeito Ernesto do Rêgo e o deputado Carlos Dunga tinham impedido a distribuição dos alimentos. Certamente faziam aquilo por nunca terem passado fome, dizia eu. Mas ninguém nasceu para morrer de fome. Que se eles realmente tinham fome saberiam como resolver aquela situação. Chamo o jornalista do Diário da Borborema que estava comigo desde as primeiras horas e vamos todos para a casa de dona Badé. Digo ao jornalista que ele fique próximo a mim, para não me acusarem de coisas que não fiz. O próprio jornalista (infelizmente não lembro o nome) me avisa que terei problemas. O pessoal ficou muito indignado. Eu também, retruco. Estávamos na casa de dona Badé, com uma de suas filhas grávida, quando ouvimos um barulho semelhante a um tropel de cavalos. Não deu para ouvir di- reito. Dona Badé se desespera começa a chorar, há um certo pânico e vou à rua ver o que era. O grupo que vem na frente já está nos jardins de dona Badé. Me seguram fortemente. Por um momento fico sem tocar no chão com a força que me seguram. Perguntam o tempo todo onde é que estão os alimentos; até que me 156

soltam e eu consigo falar. Digo que no Posto da Merenda Escolar também tem memória, cultura e identidade toneladas de alimentos. Vou em seguida por rápido arrodeio até o Posto, onde fora invadido. A mas- sa humana chegou violenta diante do portão da entrada do Grupo escolar onde funcionavam a biblioteca municipal, a câmara de vereadores e o Posto de Merenda Escolar. Arrombaram a porta e saquearam toda Merenda Escolar ali contida. Foi rápido. Tudo não durou 30 minutos. As pessoas passavam com fardos de carne, de açúcar, de feijão e procuravam seus caminhos, os carros para irem para os sítios. Em pouco tempo também havia pouca gente nas ruas, daqueles que saquearam os alimentos. A polícia não pôde fazer nada. A TV que dissera se deslocar para lá chegou exatamente na hora que a massa humana adentra à Escola e inicia o saque. No meio da confusão quando a jornalista estava fazendo seu trabalho, um policial a espancou, a derrubou no chão. Praticamente em nossa frente, sob nossos protestos. A violência policial também ficou registrada pelas câmeras da TV Paraíba. A jornalista, uma mulher negra, brilhante, Wanda Chase, catarinense (creio) continuou seu trabalho e entrevistou várias pessoas sobre os acontecimentos. In- clusive eu. No sábado a noite foi a principal reportagem do jornal local da TV Paraíba. Se destacou o ataque a jornalista também. No domingo, o Fantástico fez um resumo da notícia sobre o saque em Boqueirão, mas em meio aos vários saques em todo o Nordeste. Amigos meus do Sul do país me ligaram para saber se estava tudo bem. Na segunda feira apresentei minha versão dos fatos nos programas de rádio de Campina Grande. No jornal local da noite de segunda-feira o entrevistado foi o Prefeito Ernesto. E ele não me poupa. Acusa a mim, como “Vereador Comunista”e ao padre da cidade que sequer participou de nada. No início da semana sou intimado à Delegacia da Polícia Civil para prestar depoimento como testemunha da jornalista pela agressão do policial. Dias depois recebo, em Boqueirão, uma intimação do De- legado da Polícia Federal que apurava os acontecimentos e que precisava me ouvir por ter uma acusação contra mim de “incitação à desordem pública e depredação do patrimônio público”. Algo assim. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos disponibiliza seu advogado para me acompanhar no depoimento. Nesse ínterim o Governo do Estado anuncia que vai instalar frentes de emergência para absorver todas as pessoas do campo desamparadas no Estado. Quando chego na Polícia Federal para ser ouvido pelo Delegado está sobre sua mesa uma fotografia minha estampada no Diário da Borborema. Eu apontando em direção a um ponto qualquer. Quem me denunciou apresentou a fotografia como prova e afirmou que estava claro de que tinha sido eu o responsável pelo saque em Boqueirão. O delegado pede para eu explicar a foto. Explico-lhes que falo 157

gesticulando e provavelmente eu estava dizendo que o prefeito Ernesto do Rêgo e o deputado Carlos Dunga tinham impedido a chefe do Posto de Saúde trazer a chave para a distribuição pacífica a ser realizada pela Polícia Militar. O delegado educadamente pergunta: senhor Jonas quem incitou a população para invadir o posto de saúde? Eu respondi na bucha: a fome. E completei quase fazendo um discurso sociológico. Mais ou menos assim: a mesma fome que tem incitado o povo de várias cidades dos sertões paraibano, pernambucano, potiguar e cearense. Jonas Duarte só existe em Boqueirão, mas os saques estão por todos os sertões nordestino, portanto, senhor delegado, receber uma denúncia contra mim, me prender ou me condenar por algo que fiz e deixar a fome solta batendo nos estômagos de homens e mulheres que perderam toda a agricultura e o governo não toma providências não vai resolver. Os saques vão continuar. O Delegado cordialmente acena concordando comigo. Não há como me retrucar. Não continuou com o inquérito. Na minha avaliação as eleições de 1988 começaram a pender para o nosso lado naquele episódio. O Prefeito e o deputado saíram tremendamente desgastados. As pessoas mais simples, mais carentes passaram a ver a oposição como vereadores que se reocupavam com os mais humildes. Os ventos soprariam a nosso favor a partir de agora. BASTIDORES DAS ELEIÇÕES DE 1988. A VITÓRIA DA CHAPA JOÃO PAULO/MANOELZINHO ANDRADE. Com algumas divergências político-ideológicas apresentadas nos seis anos de mandato entre nós quatros vereadores: eu, João Paulo, Manoelzinho e Vital Costa, nada foi sério que impedissem continuarmos juntos. Pelo contrário tínhamos uma convivência excelente. E sempre o mais exaltado era eu. Às vezes difícil de segurar e manter a unidade. Mas para mim estava claro que em 1988 estaríamos juntos. A primeira baixa nossa, veio de Vital Arruda. O líder histórico da oposição, o adversário histórico de Ernesto solicita uma reunião na minha casa em Campina Grande e, na mesa enorme de nossa casa, diante de nós quatro vereadores e de mais alguém da minha família e dos vereadores comunica que vai de “mala e cuia” para a situação. Que recebeu o convite para tomar parte na chapa de Carlos Dunga, que deputado estadual iria se candidatar a Prefeito de Boqueirão. Que ele aceitara o convite. Provavelmente levaria o PMDB com ele. Pessoalmente fiquei abalado. Considerei a situação dificílima. Como iriamos conseguir um Partido e organizar uma campanha sem Vital Arruda. Afinal ele era quem organizava tudo, sempre. Vital apresentara certa insatisfação conosco desde as eleições de 1986. Ele esperava que apoiássemos seu candidato a Deputado 158

Estadual, Orlando Almeida. Nós queríamos liberdade para apoiar quem melhor memória, cultura e identidade nos parecesse. Eu, não tinha nenhum compromisso com o PMDB, nem com a farsa que montaram para vencer as eleições de 1986. João Paulo se articulou com João Fernandes e Aluísio Campos, esvaziando muito a liderança de Vital. Carlos Dunga sabia de sua força. E, percebendo nosso crescimento, foi buscar um dos nossos principais nomes. João Paulo reagiu com firmeza.Respeitando a decisão de Vital Arruda,não de- sanimou.Ao contrário.Disse que venceríamos com ou sem Vital Arruda ao nosso lado. Uma nova reunião, agora convocada por Manoel Andrade, em sua fazenda no Barracão, em que fui com meu pai e meus irmãos, contava com a presença de Oscar Ferreira, médico, queridíssimo no município de Boqueirão, casado com Joana Áurea, nossa prima. De Boqueirão estiveram presentes João Paulo e Isaías Monteiro. A pauta era as eleições de 1988, afunilando, quem seria o candidato da oposição. Percebi que a reunião estava arquitetada para indicarmos Oscar. Dr. Oscar. Bem quisto, falante e uniria todos. Pedi a palavra e me posicionei contra. Reconhecia todas as qualidades mé- dicas e pessoais de Oscar, mas todas minhas observações apontavam para que, se quiséssemos vencer as eleições teríamos que marchar com João Paulo. Minha fala surpreendeu o próprio João Paulo e Isaías. Mas meus cálculos estavam corretos. A população de Boqueirão queria alguém simples, próximo deles, presente no dia a dia. Alguém que esteve com eles nos últimos seis anos que enfrentou Ernesto. Se criou um clima meio tenso, mas minha fala teve força. No final eu disse: minha chapa é João Paulo e Manoelzinho. Tem votos. São candidatos que as pes- soas já estão esperando, que estão no dia a dia dos problemas de Boqueirão. Vamos montar a chapa e viabilizar. Soou como algo impossível vencer uma eleição com dois vereadores contra o Deputado Estadual com a máquina da Prefeitura. Realmente não era uma tarefa fácil. Mas, creio, acertamos no coração do eleitor. Era isso que eles queriam. Precisávamos arranjar dinheiro, recursos e organizar uma campanha que falasse ao coração da população. Eu tinha consciência que meu nome tinha alguma rejeição. Votar em um comunista, com tudo que diziam de mim, não seria fácil. Por outro lado, eu pensava em seguir outros rumos. Mirava a carreira acadêmica e ficar preso a política de Boqueirão não seria o mais correto. Indicamos, inclusive Miro Lopes para ser a candidatura nossa para me suceder. Resisti pessoalmente a vários apelos para que eu fosse candidato a reeleição ou mesmo indicasse alguém da família. Coisa que jamais aceitaria. Nunca indicaria alguém para me suceder pelo critério familiar, por mais afinidade ideológica que eu tinha com meus irmãos e irmãs. Por outro lado, Miro tinha uma disposição de trabalho uma capacidade de mobilização e uma gana 159

por aquelas atividades que eu já não conseguia manter. Miro tinha minha total confiança. Política e pessoal. A eleição para prefeito se apresentava em um nível de dificuldades muito maior. Carlos Dunga era um candidato fortíssimo, com muitos serviços prestados ao município, deputado estadual, coma Prefeitura o apoiando. Realmente parecia uma peleja de David contra Golias. Mas pela primeira vez nas eleições do ainda jovem município de Boqueirão tínhamos uma candidatura com base social, popular organizada. Com um exército de jovens,homens e mulheres mobilizados para pedir votos.De domingo a domingo, com comitês de apoio em todos os distritos e comunidades em que conseguimos organizar e eram muitas. Não era uma campanha de caciques, coronéis, de disputa entre nomes estranhos a vida cotidiana da população. No início tivemos enormes dificuldades. Definimos os candidatos e cada um tomou seu rumo, deixando João Paulo se sentindo só, sem campanha. A eleição era em novembro. Já havíamos resolvido a questão partidária. João Paulo encontrou uma sigla de aluguel (PTR), pois o PMDB fora bloqueado pela briga na justiça para o seu comando. Não ficou nem com a oposição nem com Vital Arruda, vice de Carlos Dunga, que disputou pelo PL. No entanto, a campanha faltava decolar. Criar um corpo organizado, com direção e capacidade de mobilidade, de capilaridade em todo o município. Chego de Campina Grande, em um sábado no início de setembro, cedinho, na casa da Assessoria e João Paulo está me esperando, com aspecto grave, tenso. Semblante fechado. Solicita uma reunião com pouca gente onde participa além de mim, Ângela, companheira de total confiança e Miro. A postos, João Paulo solta uma bomba. Anuncia: caso continuasse assim, fria, sem atividades programadas, sem engrenar a campanha renunciaria. Mesmo que eu ficasse com a impressão de ser um blefe, para mim era compreensivo o desânimo que tomara conta. De fato, não havia campanha. Havia mobilização de recursos financeiros, capacidade de aglutinar pessoal, mas não havia direção.Não havia entusiasmo.O exército de que falávamos estava apático.Na dúvida, consideramos melhor levar a sério a ideia de renúncia.Agimos rápido.Imediatamente marquei uma reunião para aquela noite com todos que pudessem comparecer e toda a atarde trabalhamos organizando, indicando pessoas nas diversas comunidades que pudessem ser agentes de difusão de nossa campanha. Definimos que faríamos dois tipos de atividades até o dia da eleição. Um permanente, de formiguinha, de visitar as comunidades com pessoas da própria comunidade somados aos jovens da campanha, do “comitê central”. Providenciaríamos o deslocamento dessas equipes para lá na semana e em um determinado dia faríamos atividades de rua, comícios. 160

A ideia era com essa estratégia visitar todas as comunidades do município. memória, cultura e identidade Se possível todas as casas. E apresentar o Prefeito para todas as famílias.Tínhamos uma base sólida em Boqueirão. Especialmente na Bela Vista. Ali tínhamos criado lideranças, pessoas entusiasmadas pela candidatura de João Paulo. Pessoalmente trabalhei para convencer as lideranças da Bela Vista em receber João Paulo em uma reunião da Associação. Havia resistências, vencidas com muito diálogo e procurando mostrar que a política é a mais nobre das atividades, que deveriam pensar em ter representantes no poder. Assim consegui levar João Paulo que facilmente conquistou a simpatia dos líderes da comunidade e de grande parte da população. Certamente, em nenhum outro lugar de Boqueirão, João Paulo teve tão forte apoio como na Bela Vista. A campanha tomou novo rumo e cresceu bastante. Uma campanha original com pessoas do povo. Até as músicas de campanha identificavam o candidato com os mais simples, com os desejos de profundas mudanças. Entoamos a frase: “não tem mais cabresto não” que parecia ter sido cunhada para a situação política de Boqueirão. Não foi uma campanha pobre como faziam crer. O transporte de pessoas, o atendimento de pessoas com problemas de saúde em Campina Grande realmente elevava os custos da campanha, mas o que a tornou vitoriosa foi o trabalho de “formiguinha”, o corpo a corpo sobre uma base popular construída nos seis anos anteriores. As mudanças que ocorreram no país, com o fim da Ditadura Civil-Militar (1985), a campanha das Diretas-Já, o sentimento contra qualquer forma de au- toritarismo eram ventos que sopravam a nosso favor. E soubemos aproveitar. A população de Boqueirão entrara no clima de mudanças, de superar formas auto- ritárias de governo. Ernesto Heráclio do Rêgo depois de comandar o novo munícipio de Boquei- rão em sucessivas eleições por vinte e três anos, após um mandato em Cabaceiras onde fora eleito em 1955 também como candidato único sentiu o golpe. Entre 1955, em Cabaceiras e 1982 em Boqueirão ele ganhara todas. Em três sendo ele o candidato, sequer houve disputa. Foram sete pleitos para prefeito. 1955: Cabaceiras – candidato único; 1959: Carnoió/Boqueirão – João Bezerra Cabral ( João Hermí- nio) indicação sua; 1963: candidato único; 1968: Veneziano Araújo, indicação sua; 1972: novamente Ernesto do Rêgo – novamente candidatura única; 1976: indica Carlos Dunga, o Professor Carlos e novamente sai vitorioso. 1982: ele próprio como candidato participa, de fato, de sua primeira eleição tendo adversários. Sai vitorioso. Visto em retrospectiva,e com mais maturidade,é fácil compreender as dificul- dades políticas e pessoais de “Seu Ernesto” de enfrentar uma oposição. E da forma 161

como eu fiz, associando-o sempre ao autoritarismo, ao coronelismo típico do Nor- deste.Pressionando-o.Algo inaceitável para um político de sua época,com seu perfil. Os seis anos de mandato em Boqueirão me ensinaram muita coisa.A convivência com as pessoas mais simples, mais humildes desse país, cravaram definitivamente em mim, o desejo de transformar esse país em uma pátria de verdade, inclusiva, justa, democrática, onde todos tenham direitos. Fortaleceram em mim as convicções políticas de lutar por transformações radicais. Econômicas, sociais e políticas. Escrevo esse breve memorial como forma de agradecimento a essa cidade, a população mais simples dessa cidade por tudo que me ensinaram. Sobretudo, a convicção de que viver é lutar. Lutar por suas conquistas pessoais, mas, mais importante por transformações sociais. O que vivi e vivenciei em Boqueirão se transformaram em matéria prima de minhas pesquisas historiográficas e base de minhas opções profissionais. Também escrevo esse texto para me desculpar a quem, de alguma forma e por algum motivo magoei. Não se faz política sem adversários, sem o embate de ideias, sem o contraditório. Nem sempre se faz isso com leveza e urbanidade. Muitas vezes fui arrogante e pretencioso, pelo qual peço desculpas. Nunca fui desonesto com ninguém. Me orgulho de em meio as dificuldades de diálogo, de violências e até ameaças saber reconhecer as virtudes dos adversários. Isso pra mim é fundamental. Vencemos a eleição de prefeito de 1988 com apenas 44 (quarenta e quatro) votos de diferença, motivo, inclusive para se refazer uma recontagem. Miro, nosso candidato foi o mais votado da oposição, evidenciando que a população aprovara o nosso trabalho. Considero que a eleição de João Paulo e Manoelzinho tenha sido muito minha. Muito fruto do que fizemos nos seis anos de mandato, de como trabalhamos no desgaste da imagem de “seu Ernesto”, do quanto mobilizamos as comunidades, como envolvemos pessoas que não pensavam em política antes. E como conseguimos unir todas as diferentes forças de oposição. Em certa medida, cumpria uma tarefa que me dei. Derrotar a estrutura que comandava aquele lugar desde 1955. Não foi pouca coisa. 162

TABELA 2 RESULTADO DAS ELEIÇÃO DE 1988 – BOQUEIRÃO/PB CARGO: Prefeito Nº CANDIDATO Partido/ Votação 7% Válidos Situação Coligação 26 João Paulo PTR 6.789 49,7% Eleito Vice Prefeito: Manoelzinho PL 6.745 49,37% Não Eleito 22 Carlos Dunga Vice: Vital Arruda 12 José Albos Rodrigues PDT 127 0,93% Não Eleito Vice: Deoclecio Bizerra da Silva Votos nulos 199 11,71% Votos brancos 2.055 Total apurado 15.915 Eleitorado 18.026 Abstenção 2.111 Fonte: TRE-PB Manter a unidade contra um inimigo comum é fácil. Depois, como situação memória, cultura e identidade é muito mais difícil. Minhas divergências com João Paulo emergiram rapidamente. Várias pessoas se afastam dele, Miro rompeu politicamente e se criaram várias situações de dificuldades. Mas isso são temas para outros capítulos, outros livros, outros momentos. REFERÊNCIAS LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o re- gime representativo no Brasil. 7ª Edição. São Paulo, Companhia das Letras. 2012 Link: https://www.tre-pb.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/resultados-de-eleicoes LIRA NETO. João Batista. A POLÍTICA DE MODERNIZAÇÃO DA PRODUÇÃO ALGODOEIRA NA PARAÍBA: PROGRESSO, TRABALHO E DEPENDÊNCIA (1935-1960). Dissertação (Mestrado em História). João Pessoa, PB: UFPB, 2019. 163

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros. Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo, Hucitec/Edusp. 2002 RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. Edição digital. São Paulo, Global. 2014 164

9 memória, cultura e identidade A CONTRIBUIÇÃO DA FLIBO PARA A IDENTIDADE ARTÍSTICO-CULTURAL DE BOQUEIRÃO MAXWELL FERNANDES DANTAS INTRODUÇÃO No Brasil, existem eventos literários realizados de norte a sul. A literatu- ra, no âmbito destes eventos, pode contribuir para a constituição da identidade artístico-cultural de indivíduos e/ou grupos sociais. Baseada neste contexto, esta pesquisa tem como objeto de investigação a FLIBO (Festa Literária de Boquei- rão), evento cuja primeira edição se realizou em 2010 através da Abes (Associação Boqueirãoense de escritores), em conjunto com vários parceiros do poder público e da iniciativa privada. Até este ano de 2021, já ocorreram 11 edições do festival, que oferece atividades como: lançamento de livros, venda de livros, palestras, mesas redondas, oficinas, minicursos, apresentações de escolas, apresentações teatrais e musicais, e saraus. Dessa forma, o evento tem atraído escritores de várias partes do país, movimentando bastante a cena artístico-cultural da cidade de Boqueirão, no cariri paraibano (com a população de 17.870 habitantes, de acordo com o site do IBGE) e gerando repercussões nos níveis estadual e nacional (Como se pode verificar nos três endereços de internet que são os três últimos itens das referências). Em função da consolidação do evento, que se confirma por sua perenidade, assim como pela percepção de que a investigação sobre os impactos deste festival literário na população boqueirãoense ainda se mostra bastante incipiente, surgiram os seguintes questionamentos: como se deu a construção da identidade da FLIBO e em que medida ela vem contribuindo para a constituição da identidade artísti- co-cultural boqueirãoense? Para encontrar respostas a estas indagações, a presente pesquisa se apoiou em algumas hipóteses: a) um evento como este, que se perpetua com o passar dos anos, concorre fortemente para compor a memória histórica da cidade onde se localiza; b) a construção de sua identidade provavelmente se deu através de um processo, e não de contornos fixos e acabados; além disso, c) as interações sociais propiciadas por ele têm o potencial de inseri-lo (assim como a própria literatura) na constituição da identidade artístico-cultural do município. Por conseguinte, os objetivos desta pesquisa são investigar o processo de construção da identidade da FLIBO e o impacto do evento na identidade artístico-cultural da cidade de Boqueirão, através da análise de três elementos: expectativas e prog- nósticos da idealizadora, as transformações pelas quais o evento possa ter passado, 165

e as realizações que ocorreram por influência dele. Além disso, buscar conhecer a abrangência e as implicações dos impactos deste evento ajuda a compreender analiticamente sua importância. É preciso ressaltar que este trabalho representa a primeira etapa de uma investigação mais ampla sobre a relação entre o festival literário e a constituição da identidade artístico-cultural da referida cidade. No que se refere ao subsídio teórico, esta pesquisa se apoia em pensamentos sociológicos como o de Brandão (2014), que ressalta que “somos seres criadores de diferentes culturas e de tantos modos de vida culturais”, de Hall (2006), que alerta para o fato de que “[...] à medida em que os sistemas de significação e re- presentação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis [...]”, de Giddens (2002), em cuja visão “o eu alterado tem que ser explorado e construído como parte de um processo reflexivo [...]”, para destacar as implicações associadas à construção das identidades na modernidade tardia. Para a coleta de dados, foi utilizado um questionário com a idealizadora da FLIBO,Mirtes Waleska Sulpino,e um questionamento feito a um professor da cidade que empreendeu uma atividade leitora/literária motivada pela influência do evento. Com relação aos resultados, descobrimos que o desenvolvimento da iden- tidade é um processo complexo, subjacente a fatores que, ora contribuem para a sua fixação, ora a desestabilizam. Mas apesar disso, a identidade deste evento, que colocou o livro, a leitura e a literatura em evidência, proporcionou à cidade de Bo- queirão transformações culturais e sociais de grande relevância, através do esforço coletivo convicto de alguns escritores locais. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para embasar a pesquisa exposta neste artigo, buscamos teorias que tratassem da necessidade de produzir cultura (tanto em linhas gerais quanto artística), da rea- lização de eventos ligados à leitura e literatura, e principalmente que tratassem do processo de construção da identidade e suas implicações. No centro destas questões está a FLIBO, Festa Literária de Boqueirão, a qual será tratada em suas relações com a sua própria identidade artístico-cultural e com a do município onde se realiza. Pensemos,então,inicialmente sobre a cultura.Segundo Brandão (2012,p.70), 166

Aprendemos a expressar quem somos e como somos através de criações memória, cultura e identidade simbólicas que tornaram os sons guturais de nossos antepassados em palavras sonoras e cheias de sentido simbólico. E das palavras geramos preces, pensamentos, preceitos, poemas e teoremas. E com eles e outros pensamentos, criamos as ciências, as teorias, os mitos, as crenças e as religiões, as artes e outras formas culturais de atribuir sentido a nossas vidas e destinos e aos mundos em que as vivemos e os cumprimos. De acordo com este estudioso, expressar quem somos e como somos é uma atitude humana que vai se aperfeiçoando com o tempo. Dessa forma, a necessidade e a capacidade de atribuir sentido a nossas vidas faz com que a cultura seja, conti- nuamente através da história da humanidade, criada e recriada, em um ciclo infinito. Ainda com base no mesmo autor, “Não há grupo humano estável que além de ter a sua vida social, e sua sociedade, não tenha também a sua memória, a sua história e a sua cultura” (p. 74). A arte, por sua vez, ocupa um lugar marcante na composição da cultura de uma pessoa, cidade, estado ou país, porque ela trabalha com recursos variados e atrativos: a beleza, a criatividade, o olhar crítico, a ludicidade, a liberdade de expressão, apenas para citar algumas características. Como consequência, esses recursos têm o potencial de enriquecer a capacidade de compreender o mundo, as pessoas e suas relações. A literatura, materializando suas criações verbais no livro, é um exemplo disso. Ela pode produzir seus efeitos de forma individual, quando um leitor escolhe um livro para ler por iniciativa própria, mas isso também pode ocorrer a partir de iniciativas coletivas com objetivos sociais. Exemplos de projetos voltados para leitura literária podem ser encontrados no livro Vivências de Leitura, organizado por Jason Prado e Júlio Diniz (2007), do qual destacamos algumas declarações e argumentos significativos para a ilustração das motivações que fazem surgir eventos como a Festa literária de Boqueirão. Um dos capítulos, escrito por Magda Soares, inicia-se da seguinte forma: “Os que somos dominados pela paixão da leitura e nos esforçamos para incutir essa paixão em outros – crianças, jovens, adultos – andamos sempre à procura de meios de ‘contaminação’: como transmitir o gosto e o prazer da leitura?” (p. 127). Aqui percebemos que a autora não apenas compreende a relevância da leitura, mas a associa com o prazer, e a metáfora da “contaminação” nos sugere a ideia de querer estimular outas pessoas a se identificarem com este prazer. Em outro capitulo do mesmo livro, Júlio Diniz argumenta sobre a capacidade crítica e a produção de sentidos como fatores ligados diretamente à leitura, e defende que “a leitura pressupõe uma ação política, um projeto coletivo, um desejo social de poder se reconhecer naquilo que inventa e perpetua [...]”. Ao mesmo tempo em que reconhece o papel fundamental de alguns aspectos da leitura na construção 167

da cultura e na transformação da sociedade, ele ressalta a importância de haver engajamento, assunção de responsabilidade e organização coletiva nas ações que envolvem a promoção do ato leitor, pois o esforço conjunto e comprometido geram mais chances de sucesso. Além disso, o destaque dado ao desejo social de poder se reconhecer naquilo que inventa e perpetua nos faz perceber a menção ao ato de identificar-se, de colocar em evidência a identidade no contexto dos esforços por uma sociedade leitora. Notamos, pois, que a promoção da leitura, sobretudo a literária, através da realização de feiras, festivais e projetos, tem relações próximas com a questão da identidade, no sentido em que eventos que enfocam o ato leitor e a literatura buscam acrescentá-los, consolidá-los ou aperfeiçoá-los na identidade do público envolvido. Inserir ou consolidar a leitura literária na identidade de um determinado público, transformando-a em hábito, é constatar que o processo foi bem sucedido. Lancemos, então, uma luz teórica sobre a questão da identidade, de forma que possamos refletir sobre o papel da FLIBO dentro da sociedade e da cultura da cidade de Boqueirão. Segundo Berger e Luckmann (1985,p.228),“A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade, subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais”. Sendo assim, um festival literário em uma cidade de interior não poderia deixar incólume a identidade artístico-cultural de tal população. A partir do argumento de que “a identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (p. 230), chama-nos atenção o fato de que o festival, em maior ou menor grau, provavelmente deixa marcas individuais nos boqueirãoenses que, de alguma forma, se aproximam ou se relacionam com o evento. Ao mesmo tempo, a participação do público que acessa o evento poderá fazer o mesmo com ele. Por exemplo, uma plateia lotada ou mirrada nas mesas redondas, uma procura maior ou menor pelos minicursos oferecidos, uma procura em massa ou bastante tímida pela compra de livros poderá influenciar no delineamento do evento em edições posteriores. Mas para compreender melhor as implicações dessa relação dialética é necessário esmiuçar mais a questão da identidade, mesmo sabendo que a extensão deste artigo só permitirá o levantamento de algumas provocações introdutórias (que, no entanto, são indispensáveis para nosso intento). Atualmente, as questões sobre identidade, de acordo com a teoria cultural contemporânea, envolvem a fragmentação e o descentramento. Junto com o de- senvolvimento das transformações sociais que caracterizam a modernidade, sobre- tudo a modernidade tardia (Giddens, 2002), ou a pós-modernidade (Hall, 2006), as identidades foram perdendo a condição de estruturas fixas, suas estabilidades, principalmente por causa do fenômeno chamado globalização. Consequentemente, 168

“as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios memória, cultura e identidade estáveis nas tradições e nas estruturas (Hall, p.25). De acordo com o sociólogo Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 84): O processo de produção da identidade oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a iden- tidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la. É um processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos e linguísticos nos quais se sustenta a produção da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da identidade é para a fixação. Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade está sempre escapando. A fixação é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. Assim, a construção da identidade, ou identidades, pressupõe a construção / assimilação e consolidação de características que servirão para dizer o que a pessoa ou grupo é. Mas, não se deve negligenciar a percepção de que esse processo é com- plexo, estando subjacente também a fatores que concorrem para desestabilizá-lo. Um dos recursos fundamentais para a construção da identidade é a linguagem, que por sua vez é um mecanismo que pode ser influenciado por aspectos sociais, cultu- rais, arbitrários, do momento histórico, podendo então passar por transformações. Outro fator que afeta fortemente as identidades é o fenômeno da globali- zação. De acordo com Giddens (2002, p. 27), A reorganização de tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade da modernidade supõem propriedades universalizantes que explicam a natureza fulgurante e expansionista da vida social moderna em seus encontros com práticas tradicionalmente estabelecidas. Ou seja, as instituições do mundo globalizado atual tendem a se instalar onde quer que cheguem, levando o que as culturas têm de local a se adaptarem, a se entrelaçarem, a dialogarem, num movimento dialético geralmente assimétrico, podendo levar a vários desdobramentos, sejam positivos ou negativos. Em parti- cular, a reflexividade, citada por Giddens, é uma característica bastante relevante para nossa pesquisa, pois “se refere à suscetibilidade da maioria dos aspectos da atividade social, e das relações materiais com a natureza, à revisão intensa à luz de novo conhecimento ou informação” (p. 25/26). A reflexividade consiste, portanto, em que o questionamento e a análise constantes governem a forma de entender e conceber o mundo, mais do que as tradições conservadoras que perduravam por longos períodos de tempo. O que se confunde com o próprio movimento da 169

ciência, em que um conhecimento que é aceito hoje pode passar por uma revisão e assim ser aperfeiçoado, de forma que possamos compreendê-lo cada vez melhor, percebendo que o conhecimento anterior não estaria completamente errado, mas apenas insuficiente. Com a globalização, surgiram os estados nacionais, e com eles, as culturas nacionais. No mundo moderno,as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafó- rica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial. (Hall, 2006, p. 47) Contudo, esse conceito de cultura nacional servirá aos propósitos deste tra- balho apenas depois que passar por uma adaptação: o âmbito municipal aqui será o equivalente do âmbito nacional na teoria de Stuart Hall. O discurso da Iden- tidade Nacional visa criar condições favoráveis para a governabilidade no Estado Nacional, para abranger e unificar as identidades, para que a população nutra o sentimento de unidade e ajude o governo a construir o país, motivada pela ideia de que faz parte de uma “mesma família”, e é para ela que estão unificando esforços. Na cultura nacional, o governo federal é o principal agente. Um agente político, cujo objetivo está exposto acima. Por outro lado, no caso da cultura municipal e da FLIBO, há uma diferença de objetivos e de agente. A FLIBO é conduzida por uma associação de artistas e visa a intervenção cultural, no sentido de contribuir para o desenvolvimento e a consolidação da arte literária dentro da cultura de Boqueirão. Nesse contexto,“As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um dis- curso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [...]”(Ibdem, p. 50). Na perspectiva da cultura municipal,buscaremos identificar mais adiante os elementos de representação e de constituição do discurso que dão sustentação à construção da identidade artísti- co-cultural boqueirãoense,no que se refere especificamente à contribuição da FLIBO. Embora um artigo como este, por questão de espaço, não permita um apro- fundamento maior das questões teóricas como um livro, por exemplo, é importante lembrar que a teoria sobre a identidade contempla também as relações entre a construção da identidade e as relações de poder. Silva (2000, p. 91) lembra-nos que “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade”. 170

METODOLOGIA memória, cultura e identidade Este é um estudo de caso de natureza qualitativa, que tem a FLIBO (Festa Literária de Boqueirão) como objeto de estudo,a qual será investigada na perspectiva do processo de construção de sua própria identidade, assim como na perspectiva da contribuição para a constituição da identidade artístico-cultural da cidade de Boqueirão. Após uma revisão bibliográfica sobre cultura, realização de projetos voltados para a leitura e literatura, e identidade, coletamos os dados através de: *Uma entrevista cujas perguntas foram respondidas pela idealizadora e pre- sidente da ABES (Associação Boqueirãoense de Escritores), entidade que realiza o evento, a senhora Mirtes Waleska Sulpino. As respostas foram viabilizadas através de áudios no aplicativo WhatsApp; *Um questionamento feito a um professor de uma escola estadual da ci- dade de Boqueirão, o senhor Kleber Gomes de Brito, que desenvolveu um clube de leitura influenciado pelos efeitos da FLIBO na cidade, também viabilizado através do aplicativo WhatsApp e cuja resposta estará no corpo do artigo, no fim da análise dos dados. ANÁLISE DAS PERGUNTAS Na primeira parte da análise, buscamos compreender o processo de desenvol- vimento da identidade do festival, através do prognóstico da idealizadora, expresso nas respostas da PERGUNTA 1 (Como surgiu a ideia de realizar a FLIBO?) e da PERGUNTA 2 (O que você pretendia com a realização da FLIBO? [Você pode pensar em linhas gerais e, também, especificamente no que se refere à arte / cultura.]), e buscamos compreender as eventuais transformações que ocorreram ao longo das várias edições, com base no conteúdo da resposta da PERGUNTA 3 (No que se refere à construção da identidade artístico-cultural de Boqueirão, que contribuições você acredita ter alcançado até agora [com 10 edições da FLI- BO realizadas] ?). É importante frisar que as respostas destas 3 perguntas foram devolvidas em uma quantidade de áudios que supera a quantidade de perguntas, sem uma menção clara a cada uma delas. Em seguida, tratamos do questionamento feito ao professor que desenvolveu o projeto do clube de leitura em uma escola, como exemplo de identificação com a FLIBO, gerando assim desdobramentos provenientes de seus efeitos. Para iniciarmos a análise, é interessante lembrar de algo fundamental: ob- viamente Boqueirão já tinha manifestações artístico-culturais e identidade cultural. Contudo, faltavam-lhe instituições, físicas e/ou culturais que a conectassem com as experiências nacionais e internacionais da literatura e dos festivais literários, e 171

a FLIBO veio, entre outras coisas, exercer essa função. A ideia surgiu a partir da criação da ABES, que tinha o intuito de reunir escritoras e escritores boqueirãoenses para compartilharem seus textos e movimentarem a literatura em Boqueirão. As consequências dessa articulação de forças seriam: dar visibilidade às suas produções literárias, obter maior potencial de propagação dos textos, criar uma atmosfera de sinergia ao redor da promoção da leitura e da literatura e tornar-se referência na área. É bastante plausível inferir que articulações desse tipo são oriundas da consideração de que o ato (e o hábito) leitor e a literatura, assim como projetos que a promovam, tem grande valor e geram benefícios, como o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da capacidade de compreensão e interpretação de texto e do mundo. Então, na esteira dos aperfeiçoamentos e das transformações que a promoção da cultura gera, a presidente da associação, Mirtes Waleska, movida pelas reper- cussões que as primeiras atividades causaram em outras cidades, decidiu criar o projeto de um evento literário, que não tivesse apenas contornos acadêmicos, mas que pudesse também aproximar e estimular a literatura junto à comunidade (áudio 1), o que levou a uma ação coletiva com dimensões administrativas e de política pública, promovida não pelo poder público, mas por uma associação da sociedade civil sem fins lucrativos, colocando assim o livro em evidência. Estava estabelecido o primeiro traço identitário do evento: ter no coração de sua concepção não uma secretaria de cultura, não uma empresa privada, mas escritores e escritoras – artistas. Porém, a identidade do evento ainda estava em desenvolvimento, em uma relação dialética com a sociedade na qual tentava se inserir, uma vez que não possuía autonomia financeira e ainda não tinha um público que pudesse dar sustentação ao evento.Consequentemente,havia a necessidade da busca por parceiros financiadores e de estratégias que pudessem atrair o público.Na perspectiva da reflexividade (Giddens, 2002) e da relação dialética (Berger & Luckmann, 1985; Hall,2006; Silva, 2000), essas necessidades influenciaram na definição dos contornos da identidade do evento. A primeira edição,por ter o caráter de novidade,conseguiu atrair um financia- mento satisfatório para as proporções ainda tímidas do evento, que veio da prefeitura municipal, e um público diverso que comparecia motivado pela identificação, mas também pelo fascínio e pela curiosidade (áudio 2 e 3). Mas em decorrência do papel financiador,a prefeitura da cidade demandou participação na organização,mesclando o delineamento artístico-cultural com o político. Um exemplo disso aconteceu na presença de Ronaldo Cunha Lima como homenageado da 1ª edição. A presença de Ronaldo (sendo poeta, mas também político) atraiu vários representantes da política da região, gerando uma situação constrangedora para a identidade do evento: a composição da mesa de abertura, que também teria a função de enunciar a homenagem, foi palco de certa tensão, pois o elemento político da organização do evento suscitou a atração (involuntária) de vários políticos para a formação da 172

mesa, o que obliteraria o caráter literário do evento e do momento específico. Neste memória, cultura e identidade caso, as articulações internas resolveram a questão a favor do literário. A mudança de gestão municipal, no ano da 3ª edição da FLIBO, também acarretou mudanças que obrigaram o evento a engendrar novos contornos. Estes exemplos supracitados revelam fatores dialéticos, ligados às relações de poder, no que se refere ao aspecto identitário do evento. Motivações políticas nem sempre coincidem com motivações artísticas e culturais nas escolhas que vão delinear as características do festival, ou a forma que elas serão estabelecidas. Outro fator que constitui a identidade do evento é a parceria com as univer- sidades públicas (UEPB e UFCG). A participação de professores universitários, assim como de graduandos, em palestras e minicursos, conferiu uma dimensão acadêmica ao evento, atraindo assim professores e estudantes do município de Boqueirão e de outras cidades. Mas a presença do público local no evento, depois de várias edições realizadas ainda era bastante tímida. A presença do público, sobretudo em palestras, mesas redondas, assim como em lançamentos e venda de livros seria imprescindível para a consolidação dos objetivos principais do evento: dar visibilidade e importância à literatura, movimentando-a na cidade. Com menores investimentos do poder público municipal e estadual na 4ª edição (áudio 10), a FLIBO não pode causar muitos impactos, e assim, o público local, que já não era tão extenso, continuou escasso. A partir desse momento, houve uma intersecção da identidade do evento com a identidade artístico-cultural da população de forma deliberada, pois a or- ganização do festival buscou estratégias que pudessem envolver mais a população, e elas implicavam principalmente em uma integração mais abrangente e efetiva com as escolas locais [alunos e professores] (áudio 6, 7, 10, 11), em vez de serem apenas convidados a participar de maneira livre. Os professores foram convidados a trabalhar projetos baseados em livros relacionados ao tema do evento, culminando em apresentações culturais na FLIBO, em uma parte chamada Minha Escola na FLIBO (áudio 11). Consequentemente, esta aproximação foi gradualmente cati- vando o público, gerando o sentimento de participação e pertencimento, ou seja, de identificação. Outrossim, a continuidade ininterrupta do evento tornava sua presença na mídia constante (áudio 8),sobretudo no mês de realização,consolidando não só a FLIBO na memória do estado da paraíba, como também fixando-a na identidade artístico-cultural de Boqueirão. O estabelecimento de quase todas as atividades da FLIBO na praça da ABES (apenas as oficinas e minicursos eram realizados nas escolas) impulsionou a elaboração de símbolos, de elementos de representação e elementos discursivos que ajudaram a fortalecer a identificação dos participantes com o evento, sobretudo os participantes locais. Podemos citar os homenageados e a marcha pela literatura 173

(que existiam desde a 1ª edição); a decoração da praça com livros pendurados nas árvores por cordões; um livro em proporções gigantes (aproximadamente 1,50 metros de altura) no qual as pessoas podiam escrever (áudio 9); a recorrência de elementos discursivos como “[...] a FLIBO tem essa função social, né, e também a função literária de formação de leitores e também de escritores [...]”. Segundo Silva (2000, p. 91), “representar significa, neste caso, dizer: ‘essa é a identidade’, ‘a identidade é isso’”. As conexões sociais de grande parte da população boquei- rãoense, ano após ano, com estes elementos discursivos e simbólicos favoreceram o estabelecimento da literatura e do ato leitor na identidade artístico-cultural de Boqueirão. Esta que já foi muitas vezes referida como a Cidade das Águas, em fun- ção do açude que propiciou sua transformação de distrito em cidade, hoje em dia é bastante citada como a Cidade das Rimas e Letras, na própria FLIBO e na mídia. Boqueirão, enquanto cidade das águas, faz referência ao turismo (O balneário túnel e restaurantes às margens do açude) e à agricultura, itens bastante significativos de sua economia. Mas Boqueirão, enquanto cidade das rimas e letras, remete à arte e à cultura, evidenciando, consequentemente, alguns dos benefícios da leitura e da literatura que são desejados pelas sociedades em nível global, como a eficiência em compreensão leitora e produção escrita, por exemplo, além de contribuir também para o desenvolvimento econômico (áudio 12). Não se trata, portanto, de uma competição, mas de agregação de valores e desenvolvimento social conjunto. O pluralismo inerente ao evento pode ter, também, contribuído de forma significativa para a sua inserção na identidade artístico cultural da cidade. A variedade de autores, de temas, de livros, etc. de um evento literário anual abre espaço para que os representantes das mais diferentes identidades encontrem um “lugar” familiar, ou dito de outra forma, para que se vejam representados ali, tor- nando-se um ambiente favorável à subjetividade, à multiculturalidade, à empatia, e ao enriquecimento cultural e artístico com as trocas de experiências, inclusive se considerarmos que a população boqueirãoense entra em contato com pessoas (artistas ou não) oriundos de várias partes de todo o Brasil. Neste ponto da análise, após tratar do processo de construção da identida- de da FLIBO e o impacto do evento na identidade artístico-cultural da cidade de Boqueirão, abordaremos alguns exemplos de realizações que ocorreram como efeitos da assunção gradual desta identidade propiciada pela FLIBO. O primeiro deles é a relação direta criada pela participação de professores e alunos das escolas públicas e privadas de Boqueirão com a FLIBO. Estas interações fortaleceram os laços identitários, fazendo-os retornar ao evento em outros momentos como público (tanto estudantes como pais e professores). Mas há um exemplo indireto, em que a própria atmosfera literária criada pela FLIBO gerou uma realização decorrente. Trata-se de um Clube de Leitura, criado por um professor de língua 174

portuguesa de uma escola estadual da cidade, o professor Kleber Gomes de Brito. memória, cultura e identidade Através de mensagens de whatsapp, foi feito a ele o seguinte questionamento: “Você já realizou alguma atividade na área de leitura / literatura influenciado pela FLIBO?”. Ao que segue a resposta: “Em 2014 e 2015, desenvolvemos um projeto de um clube de leitura na Escola Conselheiro José Braz do Rêgo com estudantes do ensino médio. A ideia do projeto surgiu a partir da demanda dos estudantes que, influenciados principalmente pela FLIBO, buscaram orientação deste pro- fessor para a criação do clube. Não obstante, o fato de eu participar das atividades da FLIBO, tanto como espectador quanto como colaborador, influenciou ainda mais na organização e desenvolvimento das atividades do projeto, já que toda a atmosfera criada na cidade com relação a este evento literário nos impulsiona a investir na formação de leitores e, por que não dizer, na formação de uma cidade leitora (máxima que a Abes defende)”. Este é um desdobramento espontâneo, não necessariamente solicitado ou sugerido diretamente pelos organizadores do evento, mas uma consequência, um fruto do trabalho artístico-cultural perene, e um efeito da assunção da identidade que a FLIBO propiciou para a cidade, já na perspectiva de promoção da cultura leitora e literária. CONSIDERAÇÕES FINAIS A investigação que realizamos nesta pesquisa nos revelou aspectos signifi- cativos da construção de uma identidade (seja a da FLIBO, seja a da cidade), cujo processo é evidentemente complexo, pois de um lado subjaz às intenções primeiras, e de outro está sujeito à agência de fatores externos, em um movimento dialético de dimensões e limites instáveis. A identidade da FLIBO hoje, se comparada aos prognósticos da idealizadora lá em 2010, mostra-se maior e mais rica do que ela mesma imaginava (como se verifica na transcrição dos áudios). Com relação aos impactos causados pelo evento, é possível notar que o livro, a leitura e a literatura, ao ganharem status de festival, proporcionaram à cidade de Boqueirão transforma- ções culturais e sociais de grande relevância, através do esforço coletivo convicto de alguns escritores (sem esquecer-nos dos colaboradores não-escritores), associados aos vários apoiadores, desde o poder público municipal e estadual, até a iniciativa privada da própria cidade. Os conteúdos dos livros saíram das escolas, bibliotecas e residências, e foram para o clube recreativo, a câmara de vereadores, a casa de shows e, principalmente, para a praça pública, propiciando discussões, reflexões, deleites, entretenimentos, intercâmbios... enfim, agregando mais valor à arte e à cultura de Boqueirão, do estado da Paraíba e do Brasil. 175

REFERÊNCIAS BERGER, Peter L.; LUCKMANN,Thomas. A sociedade como realidade subjetiva: In A construção social da realidade. BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. Petrópolis: Vozes, 1985. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educação: In Coletânea de textos didáticos – módulo 1. Identidade e pluralidade cultural. Campina Grande: Editora da UEPB, 2012. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. HALL,Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade.11ª ed.Rio de Janeiro: DP&A,2006. PRADO, Jason; DINIZ, Júlio (Organizadores). Vivências de leitura. Rio de Janeiro: Leia Brasil, 2007. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença: in Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Tomaz Tadeu da Silva (Org.), Stuart Hall, Cathryn Woodward. Petrópolis: Vozes, 2000. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE) Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pb/boqueirao/panorama.Acesso em 01 de março de 2021. SIQUEIRA, Lau. Entre o Lajedo e a Palavra. Disponível em: http://flibopb.blogspot. com/2018/07/entre-o-lajedo-e-palavra-lau-siqueira.html. Acesso em 01 de março de 2021. GUEDES, Linaldo. Flibo: uma década levando literatura ao cariri. Disponível em: https:// auniao.pb.gov.br/servicos/arquivo-digital/correio-das-artes/2019 (Edição de agosto de 2019). Acesso em 01 de março de 2021. Flibo mobiliza Boqueirão. Disponível em: https://www.jornaldaparaiba.com.br/cultura/ flibo-mobiliza-boqueirao.html?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-desk- top&utm_campaign=share-bar. Acesso em 01 de março de 2021. 176

10 memória, cultura e identidade UM BANQUETE DE MEMÓRIA NA MOITA: PRÁTICAS ALIMENTARES DE USO DOS CACTOS E DAS BROMÉLIAS NA COMUNIDADE MOITA DE BOQUEIRÃO - PB (1998-2004) AUTOR: JOSÉ CARLOS SILVA A ENTRADA No Nordeste brasileiro (...) as pessoas sobrevivem com uma dieta muito rala, que é garantida por doações, captura de um ou outro animal silvestre e o aproveitamento de algumas plantas mais resistentes, como os cactos (REVISTA VEJA, 1998, p. 10). O APERITIVO Esse artigo[1] tem por objetivo analisar as memórias dos entrevistados da comunidade Moita de Boqueirão-PB, sobre o uso dos cactos[2] e das bromélias[3] na alimentação humana. O recorte temporal (1998-2004) que nos debruçamos, fez com que tais práticas já comuns na localidade, desde a sua fundação, ocorrida no final do século XIX, fossem anunciadas socialmente com maior intensidade. Em 1998/9 as águas do açude de Boqueirão baixaram drasticamente. A agricultura irrigada foi interrompida e a comunidade começou a explorar outras potencialidades. As práticas alimentares de uso dos cactos e das bromélias foi uma delas, resultando na construção de uma agroindústria de derivados de cactos em 2004. Mediante a esse contexto, problematizamos como os cactos e as bromélias fizeram parte da dieta dos moitenses. O intuito é de com os saberes/sabores cons- tituídos sobre os cactos e as bromélias, desnaturalizar as identidades dos sujeitos e desses espaços, associados à cultura da seca, da fome e da miséria. 1   Esse artigo é parte da pesquisa de dissertação de mestrado sobre as ressignificações das práticas de uso dos cactos e das bromélias na comunidade Moita de Boqueirão-PB. 2    Cactos: xique-xique, facheiro, coroa-de-frade e mandacaru. https://portal.insa.gov.br/ images/acervo-livros/Cactos, aces.em 05/02/2021. 3   Bromélias: macambira e o caroá. Disponível https://www.youtube.com/ watch?v=ZOpY1VOLCRo, acessado em 05/02/2021. 177

Essa discussão da fome e da miséria associada aos cactos e as bromélias ma- terializou-se nos discursos de alguns sujeitos e consequentemente na memória dos seus leitores,que os tem por uma única verdade.Josué de Castro (1959),por exemplo, chama os alimentos derivados dos cactos e das bromélias de alimentos bárbaros, comidas brabas ou iguarias bárbaras, frutos estranhos, com aparências exóticas, os últimos recursos a serem consumidos pelos sertanejos. Esse mesmo autor, na obra Geografia da Fome, descreve “o cardápio extravagante do sertão faminto faz parte as seguintes iguarias bárbaras: farinha de macambira, de xique-xique, de parreira brava, de macaúba e de mucunã; [...] e de macambira mansa” (CASTRO, 1984, p. 219). Moura (1970), publica na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Pa- raibano um artigo sobre alimentação. Em relação ao uso dos cactos e das bromélias ele escreve que “são os ‘alimentos bárbaros’do Sertão do Nordeste, na denominação de Josué de Castro, – Farinha de macambira; Mucunã; [...] Farinha de Xique-xique [...]. São alimentos consumidos nos períodos mais críticos das secas no Nordeste” (MOURA, 1970, p. 60). Moura não só reproduz o discurso de Josué de Castro, mas o amplia e o faz chegar a outro público, que o vê e o tem como lugar de legitimação de um discurso único: o da fome e da miséria. A Revista Veja (1983, p. 61), traz uma matéria intitulada “A Tortura da Seca” e destaca uma família que “resolveu comer a palma, um cacto repleto de espinhos que serve normalmente para alimentar o gado”. Sobre a mesma temática, Cascudo (1983, p. 842) acrescenta, “o sertanejo tenta enfrentar a carência alimentar com as comidas brabas, os recursos desesperados durante as longas estiagens aniquilado- ras. Bromélias e cactáceas, [...] são as primeiras reservas mobilizadas, fornecendo [..] perturbadoras da laboriosa digestão”. Em 1998, a Revista Veja, traz mais uma reportagem falando do fantasma da fome trazido pela seca no Nordeste, especifi- camente no semiárido e das caras feias e inchações provocadas nos estômagos dos sujeitos que usam o cacto (palma) para matar a fome. No entanto, alguns sujeitos não compartilham com essas memórias da su- balimentação em relação ao uso dos cactos e das bromélias e nem de um solo seco, rachado, árido e estéril, no qual essas plantas brotaram. Os depoentes da comunidade Moita, por serem construídos com essas práticas, tiveram uma experiência diferente da do cardápio da seca e por isso, sentem prazer em degustar esses alimentos cul- tivados e preparados nas terras vivas, férteis e dinâmicas do semiárido paraibano. A terra que apoiamos a panela do banquete, é denominada de comunidade Moita, desde o início do XIX, e, está localizada no município de Boqueirão, no Cariri Paraibano, há 181 km da capital paraibana. De acordo com os moitenses, a comunidade tem esse nome devido a pequenas moitas de pereiros que cresciam aos arredores dos roçados. “Era uma plantinha [...], ela ficava desse tamanho 178

(cerca de um metro) o nome da planta é pereiro. Era tudo rasteirinho, por isso, memória, cultura e identidade botaram o nome Moita é um nome bonito, o nome Moita” ( JUCÁ, 2008). A terra dessa comunidade é formada por uma “multiplicidade de territórios” (HAESBAERT, 2007) regados “de sonhos, desejos, projetos de vida, cura, amores” (OLIVEIRA, 2011, p. 764), como o senhor Aroeira (2020) nos relatou: “aqui eu acho bonito tudo. Eu acho bonito a calma, acho bonito que por onde eu ando, por onde piso eu lembro que aqui foi minhas origens. Origem do meu pai, origem da minha mãe, da minha família”. Das terras moitenses, o senhor Aroeira (2020) arrancou com o podão da sensibilidade e expõe por meio das folhas da memória a ideia sobre moradia de não ser apenas entre paredes e que acha bonito tudo que compõem essa morada. “Aqui eu acho bonito tudo”. Rizomaticamente as radículas dele se estendem por toda área da comunidade Moita, trazendo para as suas folhas todos os nutrientes presente no solo. “Eu gosto daqui por isso, porque eu me sinto em casa, o que teja em casa, ou que teja no mato, na roça, tô em casa”. [...]. A minha casa é o espaço todo onde eu moro” (AROEIRA, 2020). Esse lugar que o senhor Aroeira (2020) delimita como espaço de sua morada não é no sentido “genérico, abstrato ou natural-concreto. Trata-se, isto sim, de um espaço-processo, um espaço socialmente construído. [...]... para Lefebvre o espaço, em seu tríplice constituição’ (enquanto espaço concebido, percebido e vivido), é sempre socialmente produzido” (HAESBAERT, 2007, p. 21). A casa do senhor Aroeira (2020) é o ambiente onde foi concebido, percebi- do e vivido. É onde ele trabalha, se alimenta, ganhou e perdeu amigos e parentes, brinca e construiu socialmente quem ele é. Esse lugar onde mora está preenchido por raízes históricas conectadas que poucos enxergam por estarem encoberta pelo calcário dos grandes nomes da história e pela areia das estruturas e conjunturas econômicas. Por estarem encobertas por tais sedimentos que pouco gera a vida ou fala dela, por serem secos de sensibilidade, pobres de emoções e miseráveis em nutrientes e em umidade, muitos não veem que astuciosamente essas raízes que levam os nutrientes para as folhas da memória, ora rasgam esse solo arenoso, ora encontram fendas nas pedras e se entrecruzam com raízes de outros moitenses em território-rede para continuarem dando vida à Moita e à moita de si. Foi nesse território-rede de memórias que cresci ouvindo esses sujeitos dizerem em suas rotinas alimentares que comiam cactos e bromélias crus, assados e cozidos não só por fome, mas também por prazer. Por isso, a escolha do tema. Por envolver também as minhas subjetividades, faço uso de Soares Júnior (2018, p. 255) para dizer que “me coloco sob julgamento”. Compreendemos que ao ampliar os espaços de leitura dessas memórias, incluiremos narrativas de resistências de pessoas comuns no discurso histórico, 179

valorizando as experiências dos idosos, desnaturalizando estereótipos sobre a Região Nordeste, trazendo reflexões sobre a importância do Bioma Caatinga e mostran- do que a escola, por meio da memória, é o lugar de produção e transformação da sociedade da qual o (a) aluno (a) está inserido (a). INGREDIENTES DO BANQUETE Nesse artigo, utilizamos o ingrediente “Sensibilidade” (PESAVENTO, 2007, 2008) para captar e traduzir as evidências do sensível nas experiências visuais dos habitantes dessa localidade. A “Tática” (CERTEAU, 2019), também foi outro ingrediente, entendida como os cálculos, as possibilidades de ganhos, os aproveitamentos das ocasiões dos habitantes da Moita para ressignificar as práticas alimentares provenientes dos cactos e das bromélias desassociada da cultura da seca e da fome. O ingrediente “Identidade” (HALL, 2005), por ser uma representação móvel fez parte do banquete. As identidades alimentícias derivadas dos cactos e das bromélias estão o tempo todo se deslocando e se reinventando, assumindo novos ingredientes para continuar existindo por meio da experiência. Entendemos por “Experiência o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2019, p.18), escrita e inscrita nas memórias culinárias dos moitenses. Outros ingredientes importantes foram as fontes,dentre as quais utilizamos as memórias dos entrevistados (entrevistas semiabertas, realizadas em 2008 e em 2020) na comunidade Moita de Boqueirão-PB. Por isso, buscamos explorar tais práticas discursivas de ressignificação no campo da oralidade. Campo esse que “permite o acesso a uma pluralidade de memórias e perspectivas do passado” (ALBERTI, 2005, p. 38). Com o intuito de evitar supostamente algum constrangimento aos narradores com a exposição dessas memórias e perspectivas do passado, o nome deles/as foi substituído por nome de plantas da caatinga. A “Memória”foi também um dos ingredientes.Segundo Candau (2019),somos as nossas memórias e pela retrospecção suportamos a duração ao juntar os pedaços do que se foi, formando uma nova imagem. Essa nova imagem poderá ajudar a encarar a vida presente. Nesse sentido, fomos juntando os pedaços das memórias dos moi- tenses,por meio da oralidade e tecendo uma narrativa discursiva de resistência desses sujeitos sobre o uso dos cactos e das bromélias em seu cotidiano, em seu presente. MODO DE PREPARO Por compreender que a linguagem é um tipo de poder que os sujeitos têm para se comunicar, trocar experiências e estabelecer vínculos sociais, usamos como modo de preparo do banquete à análise do discurso para ler os documentos. Para 180

Foucault (2008, p.133), a noção de discurso é empregada como “um conjunto de memória, cultura e identidade regras anônimas, históricas sempre determinadas no tempo-espaço, que definiram em uma dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa.” Nessa perspectiva, Brandão (2004, p. 11) afirma que “a linguagem enquanto discurso é interação, é um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural”. A autora acrescenta que “a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma vez que os processos que a constituem são histórico-sociais” (BRANDÃO, 2004, p. 11). Dessa forma, as fontes analisadas nesse artigo foram vinculadas às condições histórico-sociais de produção, isto é, ao lugar-tempo, aos interesses e intenções envolvidas na ela- boração do discurso. O PRATO PRINCIPAL DEGUSTANDO AS FOLHAS DA MEMÓRIA DO BANQUETE É na folha onde a planta produz seu alimento, isto é, realizada o processo de fotossíntese após ser tocada pelos raios do sol e da raiz e do caule terem conduzido os nutrientes até ela. É na folha onde a planta respira e transpira. É nessa parte da planta que ficam o estômago, os pulmões e os poros. A memória é a nossa folha. Somos formados pelas folhas da memória. É nas folhas que permitimos que seja inscrita e escrita a história de nossas vidas. Que transpiramos e respiramos a nossa existência e que produzimos o ali- mento de que precisamos. Assim como os depoentes da Moita escreveram as suas histórias nas folhas das plantas da caatinga. Ou as plantas da caatinga se inscreveram nas folhas da vida dos depoentes da comunidade Moita e impressas nas folhas do livro das experiências. Encontramos na natureza uma multiplicidade de folhas. No Bioma Caa- tinga existem as mais variadas formas, cores e espessuras. Como são as memórias. Algumas são leves, finas e suaves, como as folhas do juazeiro, imbuzeiro e craibeira. Outras são duras e aparentemente secas, como as do mororó. Enquanto algumas se transformaram em espinhos, como os cactos (xique-xique, facheiro, coroa de frade etc.). Já as bromélias, especificamente as abordadas nesse artigo, a macambira e o caroá, por exemplo, têm folhas longas e com pequenos espinhos em suas bordas. As folhas do caroá “são utilizadas na confecção artesanal de cordas, barbantes e papel”(SALES et al, 2014, p. 3175) e a da macambira tem propriedades medicinais (SUÁREZ, 2020). 181

Além da tamanha diversidade, as tramas tecidas e escritas pelas linhas histó- ricas nessas folhas da memória são múltiplas. Linhas essas que se intercruzam e se conectam porque “não existem pontos ou posições em um rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16). Nesse sentido, há uma infinidade de múltiplas histórias escritas nas “folhas” das memórias dos praticantes do uso dos cactos e das bromé- lias e essa multiplicidade nos mostra as formas de enxergar e ler nessas plantas as diversas histórias dos entrevistados da comunidade Moita. AS FOLHAS E OS ESPINHOS DA MEMÓRIA DA MOITA[4] Era por volta das 18h30m do dia 06 de novembro de 2020. A poeira do terreiro da casa de dona Umburana (2020) já estava se levantando com o movi- mento do vento frio da noite. A escuridão já havia tomado conta de toda as folhas da comunidade Moita. A porta da sala encontrava-se fechada. As luzes desse cômodo apagadas. Ouvi vozes vindo da parte de trás da residência. Fui na direção do barulho. Não havia muro e nem cerca ao redor da casa. Ao virar a esquina deparei-me com dona Umburana (2020) sentada em uma das pedras do terreiro e o seu filho mais velho a conversar com ela. Dei boa noite e expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre as práticas alimentares e medicinais de uso dos cactos e das bromélias na comunidade Moita e estava ali para entrevistá-la a respeito do assunto. Quando dona Umburana (2020) ficou sabendo que o depoimento seria filmado ela pediu para que eu fosse primeiro entrevistar o ex-marido dela, o senhor Marmeleiro (2020), na casa da filha do ex- -casal, enquanto tomava um banho e trocava de roupa, pois havia chegado naquele instante da roça. Assim foi feito. Depois de realizada a entrevista com o senhor Marmeleiro (2020), retor- namos para a casa de dona Umburana (2020). Ela já aguardava de banho tomado e de roupa trocada. Convidou-me para entrar. Pedi licença e já fui montando o cenário em cima da mesa da cozinha dela com algumas plantas e doces de cactos (xique-xique, facheiro e coroa-de-frade) que eu carregava dentro de uma caixa para a realização da entrevista. Dona Umburana (2020) observava tudo atentamente. Feito isso, escolhi o melhor ângulo da luz. Havia pouca luminosidade. Mas, deu para fazer a gravação. No final da entrevista ela falou: 4   Em virtude de ser um momento de descrição de uma das entrevistas realizadas em 2020, peço licença ao leitor para narrar os quatros primeiros parágrafos desse tópico na 1ª pessoa do singular. 182

Eu disse vou me esquecer! É porque é assim,a mente da gente,nós estamos memória, cultura e identidade pensando numa coisa, outra, devido a idade, eu disse e eu vou me lembrar como foi (vou) que dei (dar) essa entrevista? Mas deixa que quando ele se sentou que amostrou as frutinhas eu me lembrei de tudinho, me lembrei de tudinho (risos dela) (UMBURANA, 2020). Candau (2019), afirma que estamos “condenados ao tempo”. Que segundo a segundo a vida está sendo devorada por Cronos e que essa ruína e decomposição da existência do que se passou que está preste a desaparecer nas fissuras do tempo “não está definitivamente inacessível, pois é possível fazê-lo reviver graças à lembrança” (CANDAU, 2019, p. 15-16). Segundo o autor, a memória nos dará esta ilusão de que o tempo não destruiu por completo o que vivemos e, portanto, quem somos. Nesse sentido, somos as nossas memórias e pela retrospecção, assim como dona Umburana (2020) fez, aprendemos “a suportar a duração: juntando os peda- ços do que foi numa nova imagem que poderá talvez ajudá-lo a encarar sua vida presente” (CANDAU, 2019, p. 15). São esses pedaços que compomos novas imagens de nós. Como dona Umbu- rana (2020) montou. Vamos juntando e tecendo os fragmentos e pedaços da gente com a agulha da lembrança a partir das folhas (imagens) presentes no depósito da memória. Esse processo artesanal de juntar os retalhos das folhas de si, pintados das mais variadas cores,tonalidades,formatos e espessuras nos permite costurar as nossas identidades e fabricar assim a nossa história. “A memória, em suma, é um depósito de imagens. de imagens de espaços que, para nós, foram, alguma vez e durante algum tempo, lugares. Lugares nos quais algo de nós ali ficou e que, portanto, nos pertencem; que são, portanto, nossa história”(FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 63). Nesse processo, ao mesmo tempo em que a memória nos modela, ela é tam- bém por nós modelada. Segundo Candau (2019, p. 16),“isso resume [...] a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem [...], se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa” (CANDAU, 2019, p. 16). “Quando ele se sentou que amostrou as frutinhas eu me lembrei de tudinho, me lembrei de tudinho (risos dela)” (UMBURANA, 2020). As “frutinhas” que dona Umburana (2020) se refere são os cactos que foram expostos na mesa da cozinha dela. Essa senhora suspira por meio do sorriso no final da entrevista, um alívio de ter lembrado de algo para nos dizer, como se estivesse preocupada com o que falar e sobre o que falar, já que a princípio achava que não iria lembrar de nada. “Eu disse vou me esquecer! É porque é assim, a mente da gente, nós tamo pensando numa coisa, outra, devido a idade, eu disse e eu vou me lembrar como foi (vou) que dei (dar) essa entrevista?”. 183

No entanto, bastou aparecer um dispositivo, no caso as plantas e os doces de cactos, para dona Umburana (2020) esboçar um sincero sorriso e notar que o tempo, a idade, os problemas econômicos e familiares não destruiu por completo quem ela é, como diz Candau (2019). Ela ainda reforça,“às vezes a gente passa muita dificuldade, também né, que é muito trabalho, negócio assim, né, dentro da família, às vezes, nós dizemos assim eu não vou me lembrar não. Mas, quando ele botou as frutinhas na mesa, eu disse me lembrei de tudo (risos dela)”(UMBURANA, 2020). Lembrar dói, machuca, deixa a gente triste! Mas, também lembrar pode nos trazer alegria, felicidades, superação e instantes de épocas que achamos que se foi, mas que estão dentro de nós. No caso de dona Umburana (2020), ela lembrou das práticas alimentares, em especial, o uso dos cactos. Sendo assim, essa senhora juntando os pedaços das folhas da memória nos presenteou com as descrições sobre a preparação e venda do doce de facheiro, que ajudou a constituir sua identidade. “Nós ia para o cercado tirava aquele facheiro, aí trazia [...]. Quando chegava em casa nós abria assim com um facão (faz gesto com a mão), aí rapava ele, aí lavava ele, escaldava e botava no fogo com açúcar, aí fazia aquele caldeirãozão! Era uma beleza!” (UMBURANA, 2020). Nesse contexto, a memória e a identidade estão imbricadas na constituição do sentido da nossa existência. Sem memória não há identidade e sem a identi- dade não há como ter memória. Dessa forma, “restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir sua identidade” (CANDAU, 2019, p. 16). Assim sendo, restituir as memórias de dona Umburana (2020) e, portanto, as identidades dos entrevistados da comunidade Moita é também dizer, nesse processo de restituição, o aparecimento das “FOLHAS” das práticas do uso dos cactos e das bromélias na alimentação existente nas experiências desses sujeitos. Uma identidade que só foi possível constitui-la e retê-la por meio da memória. É a memória que está nos dizendo que essa senhora, em um período de sua vida ia ao cercado, cortava o facheiro com um facão, abria-o ao meio, rapava, escaldava e colocava no fogão com açúcar em um caldeirão! Segundo ela, “era uma beleza!” A palavra beleza é só empregada no sentido bom da vida e é a memória que está trazendo esse momento singular da existência de dona Umburana (2020). Era uma beleza porque o doce e a cocada de facheiro trouxeram alegria, fartura, doçura, sustentabilidade para a sua vida. A prática de uso dos cactos tocou e (trans) passou essa senhora no “sentido/experiência” (LARROSA, 2020) mais doce da existência humana. É pela memória que a senhora Barriguda (2008), nos descreve como ela e sua família faziam o pão da macambira ou o beiju: “retira as folhas da macambira leve ao pilão. Depois lave a massa da macambira numas três águas, esprema num pano, ficando apenas o pó. Em seguida, acrescente o sal e leve ao fogo num caco 184

espalhando sempre a massa”. Dona Barriguda (2008), também nos falou das receitas, memória, cultura e identidade em que a sua família misturava a farinha da macambira, com a farinha de milho e da batata de imbuzeiro. Por meio da narrativa dessa senhora não se notou nenhum vestígio de flagelos ao usarem a macambira, como Castro (1984, p. 221) discorreu: “da macambira — (Encholirion spectabile) utilizam os flagelados o bulbo, o qual cozinhado durante algumas horas é depois exposto ao sol para secar”. Para Candau (2019), a memória é a identidade em ação. Contudo, a memória pode ameaçar,perturbar e arruinar o sentimento de identidade (exemplo: lembranças de traumas e tragédias). “De fato, o jogo da memória que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimentos” (CANDAU, 2019, p. 18). Por falar em esquecimento, as lembranças também podem se tornar dores espinhosas, como as folhas de alguns cactos e bromélias que se tornaram ou ad- quiriram espinhos. A nossa existência não é só composta por situações agradáveis e felizes. Mas, também por momentos de sofrimento, e, por isso, algumas lem- branças espinhosas se deslocam para o campo do silêncio ou do “esquecimento”. (Re) Lembrar de momentos difíceis e traumáticos fura e machuca o nosso corpo, “como por exemplo, a anamnese de abusos sexuais na infância ou a memória do Holocausto” (CANDAU, 2019, p. 18). Algo semelhante ocorreu com a senhora Mulungu (2020) que não queria dar a entrevista para não lembrar dos momentos de dificuldades financeiras que passou ao lado do esposo Umbuzeiro (2020). “Nós sofreu demais. Por isso, eu não queria entrevistar” (MULUNGU, 2020). Não que o uso dos cactos fosse algo ruim ou os seus espinhos sejam vistos no campo da negatividade. Os espinhos dos cactos e das bromélias é uma forma de proteção da escassez hídrica, repelem o sol, como um para-raios para não perder água e evita da planta ser devorada por algum predador. Às vezes, não queremos lembrar propositalmente ou o nosso cérebro, de forma inconsciente descarta algu- mas folhas da memória por estarem secas ou justamente porque se transformaram em espinhos e podem provocar dores. Contudo, devemos salientar que “existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios, ‘não-ditos’. As fron- teiras desses silêncios e “não-ditos” com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento” (POLLAK, 1989, p. 06). Em alguns casos, essas folhas que se deslocaram e se transformaram em espinhos, que estão nas zonas de sombra, no silêncio e no “não-dito”, é uma forma de proteção não da escassez, mas da abundância de sofrimentos que um dia esteve submergido e agora, o intuito dos espinhos é expelir para longe as emoções que depredam e arruínam a vida. Mas, para vir à tona as lembranças sobre as práticas de uso dos cactos e das bromélias, outras recordações espinhosas saíram da zona do silêncio e do não-dito 185

e vieram também. Ao ouvir o marido falar do passado que constituiu as identida- des dele, que também eram em parte, as dela, não conteve o choro, pois as folhas da memória que outrora dona Mulungu (2020) talvez “tenha pensado” que havia caído por conta da estação da seca[5], tinha se transformado em espinhos e estavam tão vivos quanto ela. Sim, claro leitor, só a título de informação, a árvore mulungu também tem espinhos. AS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DA MEMÓRIA NAS FOLHAS DA MOITA Candau (2019, p. 21), destaca que no campo da Antropologia (e nós nos apropriamos dessa fala para também estender ao campo da História), “mais im- portante que memória enquanto faculdade humana é analisar as formas como a mesma se manifesta (variável de acordo com os indivíduos, grupos, sociedade)”. Sendo assim, para compreender essas formas de manifestação, é necessário observar os níveis de memória. Segundo Candau (2019), há três tipos de níveis, que são: protomemória ou memória de baixo nível, memória propriamente dita ou de alto nível e a metamemória. Conforme esse autor, é na modalidade da protomemória que “enquadramos aquilo que, no âmbito do indivíduo, os saberes e as experiências mais resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros de uma sociedade”(CANDAU,2019,p.21). A protomemória é entendida como o tipo de “memória procedural ou social incorporada [...], bem como as múltiplas aprendizagens adquiridas na infância e mesmo durante a vida intrauterina” são introjetadas, inscritas e escritas na “carne”, no “espírito” (CANDAU, 2019, p. 22) e na “alma” (PESAVENTO, 2007) dos su- jeitos, sem que se note, se julgue ou “pense”. Um bom exemplo, foi o caso da filha de dona Umburana (2020), que ao ouvir a mãe falar do doce de facheiro, despertou nela, o desejo de grávida de comer o referido doce. Isso foi em 2003. “Eu grávida da minha menina mais velha, eu guardo na minha memória, mãe falava tanto desse doce quando eu chegava aqui que me deu vontade de comer. Eu acabei comprando o açúcar e mandando para ela fazer esse doce pra eu matar o meu desejo, há 17 anos atrás” (CARNAÚBA, 2020) Assim como em Carnaúba (2020), esse tipo de saber foi se introjetando na carne, no espírito e na alma de muitos indivíduos da comunidade Moita por todos 5   “No período seco, as árvores da caatinga perdem suas folhas [...], entrando num esta- do de ‘hibernação’ e dessa forma atravessa o período seco utilizando apenas o que foi armazenado. [...] nas primeiras chuvas às folhas voltam a brotar, lança flores e frutos e armazenam nutrientes e água para o próximo período”. Fonte: blog da serrita dos meus encantos e desencantos: hibernação na caatinga, acessado em: 20/12/2020. 186

os sentidos do corpo desde a vida intrauterina. O senhor Mororó (2020) e a senhora memória, cultura e identidade Cumaru (2020), que gravaram a entrevista juntos (são casados), é mais um exemplo desse tipo de memória! Vamos ao discurso desses narradores Senhora Cumaru: Tinha tudo, cuscuz, farinha.“Mororó”dizia: “Cumaru” vou no cercado tirar um xique-xique pra gente comer. Nós botava uma panelada, assava peixe. Ave Maria Nelinho, até faz bem pouquinho tempo, não faz nem muito tempo que nós fomos pra ****[6] e tinha uns xique-xiques, tu te lembras “Mororó”? Senhor Mororó: - Me lembro Senhora Cumaru: - Que assasse. Senhor Mororó: - Foi, fiz uma coivara lá e assou o xique-xique, eu disse vou ver se esse xique-xique presta. Senhora Cumaru: Tudinho comemos, foi. Faz pouco tempo. Não é por fome, é pela vontade e se tiver acredita que eu comia. Senhor Mororó: A vontade! Eu me lembrei dos tempos que eu comia. Aí eu dizia vou experimentar agora se esse xique-xique serve pra comer e deu e foi bom. A protomemória é considerada a experiência muda do mundo. Segundo Candau (2019, p. 22-23), Bourdieu descreve essa experiência muda do mundo “como [...] ‘maneira durável de se portar, falar, caminhar, e, para além disso, sentir e pensar’; saber herdado ‘que não se separa jamais do corpo que o carrega’ e que por essa razão depende do que o autor chama de um ‘conhecimento pelo corpo’”. As práticas alimentares também são conhecimentos pelo corpo. As técnicas de cultivos, os modos de preparos e a forma como nos alimen- tamos estão inscritas em nossa carne, espírito e alma, não estão separados dos corpos que as carregam. Esse tipo de memória/saber/experiência muda do mundo nos influencia assim como dona Cumaru (2020) descreveu: “tinha tudo, cuscuz, farinha. ‘Mororó’ dizia, ‘Cumaru’ vou no cercado tirar um xique-xique pra gente comer. Nós botava uma panelada, assava peixe”. Essas experiências sobre o uso dos cactos e das bromélias, silenciosamente afetam, moldam e direcionam as maneiras de portar, falar, caminhar, comer, sentir e pensar o corpo do senhor Mororó e da senhora Cumaru. “Foi, fiz uma coivara lá e assou o xique-xique, eu disse vou ver se esse xique-xique presta”(MORORÓ, 2020). Esses saberes/conhecimentos desenvolvidos pelas/nas experiências mudas do mundo não estão apenas delineando cartograficamente o corpo desses narradores, 6   Para preservar o anonimato dos entrevistados, retiramos o nome do dono da propriedade. 187

mas também de outros que estão a sua volta, mesmo sem perceber, compartilhando e degustando o mesmo espaço. “Tudinho comemos, foi. Faz pouco tempo. Não é por fome, é pela vontade e se tiver acredita que eu comia” (CUMARU, 2020). Esse tipo de memória se delineia nos ali presentes por meio do ritual alimentício. Estão “herdando pelo corpo” (“sem que note, se julgue ou “pense”) os gestos e técnicas de como produzir os alimentos derivados de cactos. Dessa forma, os conhecimentos “imperceptíveis” (qual tipo de xique-xique, como cortar para não se furar, como fazer a fogueira, colocar o cacto no fogo etc.) adquiridos desde a infância manifestados por meio da protomemória no corpo dos entrevistados da comunidade Moita, visto como “uma presença do passado - ou no passado -, ‘e não a memória do passado’” (CANDAU, 2019, p. 23), nos dizem muito da forma de como falam, pensam, amam e se constituem a partir das práticas alimentares de uso dos cactos e das bromélias. “A vontade! Eu me lembrei dos tempos que eu comia. Aí eu dizia vou experimentar agora se esse xique-xique serve pra comer e deu e foi bom”(MORORÓ, 2020). Esses tempos que o senhor Mororó (2020) fala ainda circula pelo corpo dele e busca de todas as formas por meio dos sentidos experimentar o gosto de sua época presente no xique-xique assado e cozido. Essa ação realizada pelo casal é uma evidência da presença do passado (CANDAU, 2019) circulando em seus corpos por meio da protomemória no presente. Candau (2019) continua em sua obra distinguindo os tipos de memória e mais adiante ele nos apresenta a memória propriamente dita ou de alto nível. Para esse autor, a memória propriamente dita é aquela memória de recordação ou reconhecimento feita através da “evocação deliberada ou invocação involuntária de lembranças autobiográficas ou pertencentes a uma memória enciclopédica (saberes, crenças, sensações, sentimentos etc.)” (CANDAU, 2019, p. 23). Nesse artigo, esse tipo de memória foi identificado e bastante explorado, quando alguns entrevistados tiveram as suas lembranças evocadas e invocadas através de fotos antigas de eventos pedagógicos realizados em 2002 e 2003 sobre o uso dos cactos e das bromélias, na Escola Municipal Osias Francisco de Normandia. Era muito comum depois de observarem as fotos dizerem “eu lembrei aqui que a gente tirou a madeira, aí nós fomos descascar, a madeira, tu lembra disso? Quem descascou foi até eu” (CEDRO, 2020) em relação ao facheiro. Ou quando provaram os doces de facheiro, xique-xique e de coroa-de-frade. “Após pronto esse que você botou é do xique-xique, pois pronto, não tem no mundo quem tire o gosto. É o gosto do xique-xique mesmo que a minha mãe me dava assado, cozinhado que nem macaxeira. A diferença é que tem o açúcar. Mais que tá o mesmo gosto” ( JUAZEIRO, 2020). As recordações são ativadas e rememoradas pela atualidade. Nota-se que a historização e a culturalização são fatores condicionais para isso, e que nem mesmo 188

os diversos discursos que se intitularam como os verdadeiros no decorrer da história, memória, cultura e identidade conseguiram excluir essas formas de saberes, extinguindo essas memórias criadas, sentidas, amadas e apaixonadas existentes desde a infância sobre o que o senhor Juazeiro (2020) e demais narradores da Moita comeram. Giard (2019, p. 249-250) afirma que “nós comemos o que a nossa mãe nos ensinou a comer. Gostamos [...] de tal forma que é mais lógico acreditar que comemos nossas lembranças, as mais seguras, temperadas de ternuras e de ritos, que marcaram nossa primeira infância”. Sobre a ideia de que comemos as nossas lembranças, o filme Ratatouille (BIRD, 2005), conta a história de um rato chamado Remy, que sonha em se tor- nar um grande chefe culinário francês, mesmo contra o desejo de sua família e do problema de ser um rato, ele enfrenta muitos obstáculos e consegue conquistar o respeito do maior crítico culinário da França, Anton Ego, pois este crítico é trans- portado através da comida (Ratatouille), preparada pelo rato à sua infância pela memória, lembrando-se da própria mãe e das comidas feitas por ela. Isso o toca e o faz mudar completamente a sua opinião sobre o restaurante que antes criticava. Assim como o ratatouille trouxe as memórias da mãe de Anton Ego, o doce de xique-xique trouxe as memórias da mãe do senhor Juazeiro (2020), quando servia a ele xique-xique assado e cozido. Ainda a respeito da evocação das memórias que comemos, dona Quixabeira (2008) acrescentou, “tem hora que eu digo assim se eu achasse um xique-xique bom eu ia cozinhar pra comer com peixe torrado, porque eu me lembro do tempo do meu pai”. Nesse sentido, fotos, comida, palavras, plantas, “quando ele se sentou que amostrou as frutinhas eu me lembrei de tudinho, me lembrei de tudinho” (UMBURANA, 2020), são alguns dispositivos que evocavam a memória propriamente dita ou de alto nível presentes em nós desde a infância. E por último, Candau (2019) nos apresenta a metamemória. Conforme ele, a metamemória é “por um lado a representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela e, de outro, o que diz dela, dimensões que remetem ao ‘modo de afiliação de um indivíduo a seu passado’ [...]” (CANDAU, 2019, p. 23).Todos nós temos representação da nossa memória, como as enxergamos e imaginamos como elas são. Atrelada a essa representação estão às dimensões que nos liga e nos conecta ao nosso passado. O autor continua falando dessa memória dizendo que a “metamemória é, portanto, uma memória reivindicada, ostensiva” (CANDAU, 2019, p. 23). Já no final da entrevista,depois de narrar um pouco da sua trajetória alimentícia desde a infância, em particular, o uso dos cactos e das bromélias, o senhor Aroeira (2020) nos dá um bom exemplo do que seja metamemória. Assim ele nos diz: “você tem uma sabedoria hoje maior do que a minha. Só que a minha de antigamente, minha lembrança de antigamente eu passo pra você. Que é pra você ir seguindo sua origem. A sua origem vem de mim, vem de nós, né?”. 189

O senhor Aroeira (2020) tem uma representação da sua memória. Ele tem conhecimento sobre ela e entende que a memória dele não está associada apenas ao seu passado. Mas também ao passado de outras gerações. Esse tipo de memória reivindica um lugar de identidade (origem) do sujeito por compreender que sua representação da memória é de fundamental importância para a formação e cons- tituição do ser humano. “Minhas lembranças de antigamente eu passo pra você. Que é pra você ir seguindo sua origem. A sua origem vem de mim, vem de nós”. És a metamemória nas folhas da memória do senhor Aroeira (2020), constituindo as minhas folhas e as de tantas outras moitinhas. AS FOLHAS DA MEMÓRIA INDIVIDUAL DO BANQUETE DA MOITA Partindo de uma concepção pautada em Candau (2019), as três modalidades de memória (a protomemória, a memória de alto nível e a metamemória) são vá- lidas cientificamente “desde que o interesse sejam as memórias individuais. Nesse caso, essas diferentes noções são perfeitamente adequadas para dar conta de certa realidade vivida por toda pessoa consciente” (CANDAU, 2019, p. 23). Sendo assim, a análise que esse artigo se propôs a fazer foi sobre as memórias individuais dos habitantes da comunidade Moita, levando em consideração as três modalidades de memória apontadas por Candau (2019), que resulta na constituição das experiências que passaram e tocaram esses sujeitos (LARROSA, 2019). Somos passados e tocados de maneira única e individual pelo que nos acontece, pois, mesmo que dois ou mais indivíduos sejam submetidos à mesma situação, hábito ou costume, o processo de vivência que resulta na experiência será sempre solitário. Não só uma solidão triste, seca, miserável, de perda e de dor, que também é válida e de extrema importância para a formação humana. Mas, tam- bém uma solidão querida, desejada, meditada, fértil e viva que condiciona a nossa existência. “A solidão como um modo de ser do homem é um aspecto elementar de sua existência. [...]. A solidão como formação humana, retoma a sabedoria dos antigos gregos por meio da máxima ‘conhece-te a ti mesmo’”(PIEDADE; SOUZA; HARDT, 2019, p. 41). Nesse mesmo caminhar solitário de constituição da nossa formação humana, o que nos torna únicos e por isso, tão relevante a máxima grega “conhece-te a ti mesmo”, Leach nos diz que,“‘dois observadores não compartilhem jamais a mesma experiência’. ‘Nada indica que duas pessoas produzam a mesma interpretação do mesmo acontecimento’, observa Fredrik Barth” (CANDAU, 2019, p. 36). Dessa forma, cada fonte foi vista na sua singularidade de constituição discursiva de si sobre a temática abordada. Aqui no caso, as práticas alimentícias de uso dos cactos e das bromélias. O autor ora citado ainda afirma que 190

O neurobiologista Gerard M. Edelman, que lembra que a experiência memória, cultura e identidade fenomenológica ‘é uma questão que se refere à primeira pessoa’ e que, por essa razão, não pode ser compartilhada com os outros. Essa ideia é sustentada repetidamente por Russell: ‘o conteúdo total de um espírito jamais é, por mais que possamos conhecê-lo empiricamente, exatamente parecido com o conteúdo desse espírito em outro momento, ou de outro espírito não importa qual momento (CANDAU, 2019, p. 36). A experiência ocorre na “primeira pessoa” e que jamais o mesmo espírito passará por momento igual, mesmo sendo submetido às circunstâncias idênticas.“A experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência”(LARROSA, 2019, p. 32). Assim são as minhas fontes; ao experimentarem os doces de cactos durante a entrevista, o senhor Juazeiro (2020), lembrou-se do xique-xique cozido e assado servido a ele pela própria mãe. A senhora Umburana (2020), recordou da bodega em que ela e o esposo vendiam doce e cocada de facheiro e a senhora Catingueira (2020), se lembrou da Agroindústria de derivados de cactos, construída no final de 2003 e início de 2004. Mesmo as fontes sendo contemporâneas uma das outras, morando no mes- mo espaço, enxergando as mesmas plantas, bebendo da mesma água, comendo do mesmo doce e sendo usuárias da mesma prática e vivendo em território-rede, cada uma delas vivenciou de maneira diferente e sentiu do seu jeito as práticas do uso dos cactos e das bromélias. Por estarmos em constantes mudanças – bem como o ambiente -, cada momento de nossa vida é sentido, captado e apreendido de forma singular. Sendo assim, concluímos que não há como repetir de maneira igual uma experiência in- dividual. Os narradores que comeram o xique-xique assado quando criança não são mais os mesmos. Fisicamente, psicologicamente e emocionalmente eles mudaram. O tempo nos transforma. Por isso, não há como repetir as circunstâncias e os esta- dos emocionais da infância ou da época dos depoentes, assim como o cozinheiro do conto Omelete de Amoras de Benjamim (1995) que sabia que era impossível repetir o mesmo sabor dessa iguaria que o rei degustou no tempo que era criança ao fugir de uma batalha. E esse mesmo processo fica completamente inviável se abordarmos a memória como sendo coletiva. Algo que ocorre simultaneamente em todos os sujeitos pela “incomunicabilidade dos estados mentais” (CANDAU, 2019, p. 36). Mas, é possí- vel captar as sensibilidades e experiências presentes nessas memórias individuais, constituídas a partir do mesmo objeto vivenciado, aqui no caso, as práticas de uso dos cactos e das bromélias na comunidade Moita. 191

Mas, para isso foi necessário “parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, sentir mais devagar, (...), cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço” (LARROSA, 2019, p. 24) para sentir o sabor das folhas das memórias dos depoentes da Moita. Dona Quixabeira (2008), por exemplo, temperou e nos serviu gentilmente as suas folhas da memória ao nos dizer que: “nós fazia janta, almoço. Papai chegava com o xique-xique, fazia um fogo no meio do terreiro, aí dizia Maria vou pegar e vou assando aqui para os meninos e outros ele cortava como se fosse pedacinhos de macaxeiras”. Essas memórias de dona Quixabeira (2008) sobre o xique-xique se ressig- nifica (doce e cocada de facheiro) e adentra as habilidades de cozinhar do senhor Marmeleiro (2008, 2020) e da senhora Umburana (2020) que faziam essas iguarias para venderem em um pequeno comércio do casal. Segundo esse casal, mesmo o açude de Boqueirão dando levas sucessivas “sangrias” e dos grandes campos de irrigação, as pessoas da comunidade e de outras localidades vizinhas compravam a cocada e o doce de facheiro. “Vendia, vendia, Ave Maria, se tu ver meu filho, era bom demais. Era os meninos tudo atrai de comprar aquele copo de doce de facheiro, aquelas cocadas” (UMBURANA, 2020). Essas mesmas memórias sobre a alimentação de cactos e de bromélias invadem a Escola Municipal Osias Francisco de Normandia em 2002 e em 2003 por meio de projetos pedagógicos que buscavam dar visibilidades a outras potencialidades da comunidade.“Novos”pratos são (re) inventados a partir dos cactos (xique-xique, coroa de frade, mandacaru e facheiro). “Eu fiz muita comida com o facheiro! Eu fiz o mousse, fiz sopa, fiz bolo, cocada, doce, mingau, até angu do facheiro eu já fiz (ALECRIM, 2020). Esse processo de ressignificação dos alimentos provenientes dos cactos pela memória, (re) educa o olhar dos membros da comunidade escolar, distanciando-se da visão cultural da seca. Essas memórias dos depoentes da Moita, proporcionou por meio de uma associação comunitária,a construção de uma agroindústria de alimentos derivados de cactos no final de 2003 e início de 2004.“Os meninos [...], fundaram a associação e começaram fazendo doce, cocada, bolacha”(CATINGUEIRA, 2020). Esses alimentos produzidos pela agroindústria eram vendidos em hotéis, eventos culturais e principalmente nas escolas do município de Boqueirão, como bem nos narrou a depoente Catingueira (2020).“Começaram vendendo fazendo mostra [...] depois começou pra [...] escolas do município de Boqueirão. Nesse tempo eu era merendeira ainda servi um bocado de merenda para os meninos comer aqui, com as bolachas, o doce e a cocada”. És a cultura por meio da memória reinventando identidades e educando o olhar. 192

A SOBREMESA memória, cultura e identidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Bergson (2006,p.02) já dizia que a “minha mente está aí,empurrando algo desse passado para dentro desse presente”.Giard (2019,p.212) acrescenta “que o presente e o passado se entrelaçam para fazer a necessidade do momento, trazer a alegria de um instante e convir as circunstâncias”. Esse passado dentro do presente empurrado pela memória, que resulta no entrelaçamento se faz presente nas práticas de uso dos habi- tantes da Moita referente aos cactos e as bromélias por meio das táticas e das astúcias. Foi pelas táticas e astúcias sutis dos depoentes que a cozinha da comuni- dade Moita demonstrou resistências se fazendo presente atualmente. Foi graças a esses sujeitos comuns que através das ações em dimensões do micro no cotidiano passaram às vezes, despercebidas dos lugares onde atuam, modificando o cardápio alimentar a sua maneira. “Essas maneiras de fazer constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (CERTEAU, 2019, p. 40). Certeau (2019,p.50) afirma que no processo de “enquadramentos,o indivíduo se destaca deles sem poder escapar-lhes,e só lhe resta à astúcia no relacionamento com eles, dar golpes”. Foi isto que os depoentes da localidade Moita fizeram; “deram golpes”nos discursos que associam os cactos e as bromélias à cultura da seca, da fome e da miséria. O autor ora citado ainda afirma que esses saberes que observamos nas ações dos moitenses remontam a tempo muito antigo,“a imemoriais inteligências com as astúcias e simulações de plantas e de peixes.Do fundo dos oceanos até as ruas das megalópoles, as táticas apresentam continuidades e permanências” (CERTEAU, 2019. p. 46). Na convivência diária, em alguns momentos, sem perceber, nós da comu- nidade Moita fomos absorvendo para dentro de nós este tipo de conhecimento. Mesmo surgindo outros alimentos irrigados e industrializados, este tipo de saber referente aos usos dos cactos e das bromélias não deixou de existir. Mesmo no estado de inconsciência somos capazes de aprender algo. Sem notar este tipo de saber burlou a nossa vigilância consciente e escorreu sorrateiramente para dentro de nós que fazemos parte da localidade Moita. Percebemos que ainda há meios de lutar e de resistir, por um lado, com as práticas cotidianas de sujeitos comuns que teimam em “traficar” práticas culturais ao driblarem a floresta de discursos excludentes, e por outro lado, ao incluirmos memórias de resistências desses sujeitos ordinários no “discurso histórico”(FARGE, 2019, p.16), mostrando os múltiplos espaços e identidades, fazendo do mundo um lugar de possibilidades. 193

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11 MODOS DE VIDA DO VAQUEIRO NO MUNICÍPIO DE BOQUEIRÃO, PARAÍBA, 1940-1980: UM ABOIO DE SAUDADE LAUDEMIRO LOPES DE FIGUEREDO FILHO “Ê aia, Ê aia Ê ê ê ê Vaca Estrela Ô ô ô ô Boi Fubá” (Patativa do Assaré) A opção por esta temática advém do fato de sermos bisneto, neto e filho de vaqueiro, termos nascido em uma fazenda de criação de gado e termos vivenciado a infância no Cariri, em Boqueirão, o cotidiano do vaqueiro, o que marcou pro- fundamente a nossa identidade. Este cotidiano que vivenciamos e que hoje guardamos na memória prazerosas recordações tem passado por mudanças significativas, transformando o dia-a-dia do vaqueiro. Neste sentido, enquanto protagonistas da história local, consideramos necessário resgatar o cotidiano do mesmo, a partir dos seus modos de vida em Boqueirão no período de 1940 a 1980, no intuito de entendermos a constituição histórico, social e cultural de um povo que, apesar de todas as adversidades do semiárido e da caatinga, subsistiram às duras condições de vida com perseverança, dignidade, alegria, fé e esperança em dias melhores. A importância desta temática consiste no fato do personagem do vaqueiro está associado à principal atividade econômica que engendrou a ocupação do interior, a criação de gado. A distância do interior para o litoral, região de maior concentração populacional no período colonial explica o isolamento dos primeiros séculos de povoamento, o que gerou um modo de vida totalmente distinto dos agricultores da Zona da Mata. As grandes distâncias e as dificuldades de comunicação fizeram com que no interior se desenvolvesse um povo que procurava extrair do próprio meio o necessário para a sua sobrevivência. Assim utilizava-se de carne e do leite na alimentação e com o couro fabricavam móveis, confeccionava roupas para o trabalho no mato, e os arreios para os animais que constituía o meio principal de transporte. Neste espaço caracterizado de sertão e no caso específico da área em estudo, de cariri, o vaqueiro vai ser o personagem principal, protagonizando junto aos seus coadjuvantes – a família, os hábitos e costumes deste meio. 196

Quanto ao referencial teórico utilizado neste trabalho,pode ser visualizado a partir memória, cultura e identidade das novas tendências teórico-metodológica,mais precisamente a história do cotidiano. Esquecemo-nos de que somos, antes de tudo, uma sequência de gestos la- boriosamente aprendidos nas circunstâncias mais diversas.Esquecemo-nos, também, de que esta sequência de gestos que compõe o cotidiano tem, por sua vez, uma história no seio da ciência histórica”. (PRIORI, Mary Del, 1997, P.376). Neste sentido a vida no cotidiano implica um espaço de produção (atividade produtiva, acumulação e transformação) e de reprodução (lugar de conservação das práticas culturais e de ritos). Assim, os estudos do cotidiano permitem perceber como o processo histórico perpassa a vida de cada indivíduo e uma série de tarefas que impele a ação, ao fazer e fazer-se da e na história. Aplicar tal referencial na verificação do modo de vida do vaqueiro em um determinado espaço e tempo nos permite elegê-lo como sujeito da própria his- tória do Cariri Nordestino. Pretendemos entender esses modos de vida a partir de sua cotidianidade, não através de aspectos macro generalizante. Com isso não queremos dizer que tal modo de vida se explica por si só. Estudar o cotidiano de um determinado grupo requer que para adquirir seu sentido pleno seja ligado ao processo histórico mais geral, dentro do qual, o mesmo está inserido. Conforme destaca Le Goff (apud Del Priori, 1997, p. 380 )“ o cotidiano só tem valor histórico e cientifico no interior de uma análise de sistemas históricos que contribuam para explicar o seu funcionamento.” É neste sentido, que iniciamos este trabalho abordando o contexto histórico que engendrou o personagem do vaqueiro juntamente com o conjunto de valores que vai lhe dar identidade própria e a diferença em relação aos demais persona- gens envolvidos em outras atividades. Para tal tomamos como referência básica, algumas obras que abordam a ocupação do interior do Nordeste e da Paraíba, e alguns documentos históricos que fazem referências ao espaço que atualmente corresponde a Boqueirão no processo de desbravamento do interior pelos homens brancos. A partir de uma identidade construída, este grupo vai ser protagonista de sua própria história, resistindo às duras condições impostas pelo meio, gerações vão se sucedendo e estes personagens vão assumindo novos papeis de acordo com as mudanças processadas em seu ambiente e fora dele. A chegada dos condutores de gado – os vaqueiros, à localidade de Boqueirão está associada à marcha de ocupação do interior pelos criadores de gado na segunda metade do século XVII, quando oficialmente em 1665 uma sesmaria que contava 197

com trinta léguas de terras de cumprimento por dez de largura foi doada a Antônio de Oliveira Ledo e outros familiares[1]. A instalação dos currais de gado pela família Oliveira Ledo às margens do Rio Paraíba forçou o aldeamento dos verdadeiros donos das terras – os índios Cariris. Segundo Mariano Neto (2001), eis a origem do vaqueiro: Dos índios aldeados e do cruzamento de brancos com as índias surgiram os caboclos e/ou mamelucos, que se tornaram os vaqueiros responsáveis pelo pastoreio de gado. Esse tipo mestiço passa a caracterizar toda a re- gião interiorana, pela sua bravura e veste de couro.“Só vaqueiro consegue dominar o gado, o solo pedregoso e a vegetação espinhosa da região”. (MARIANO NETO, 2001, p.45). A vida isolada e solitária das fazendas, com pouca mão-de-obra e grandes áreas de pastoreios, foi um dos principais elementos para a constituição de um modo de vida rústico, onde o trabalho tomava conta dos dias. Ferrar os bezerros, curar as bicheiras dos animais ofendidos pela mosca varejeira e colocar chocalhos, matar onças e cobras, abrir bebedouros e conduzir os rebanhos pela caatinga, trabalhos que vão forjando o vaqueiro, numa mistura de nativos e colonos. Distante do litoral, esses trabalhadores foram sendo absorvidos pelo lugar e incorporando ao seu cotidiano um conjunto de elementos derivados do principal componente de sua atividade – o gado, para sobreviver em um ambiente desfavo- rável à existência humana. Neste sentido os utensílios, os objetos e instrumentos de trabalho, que necessitavam esses habitantes eram feitos de couro de gado, eles estavam, portanto, inseridos no que Capistrano de Abreu (1975, p.116) analisando o complexo cultural que dominou a região chamou de “civilização do couro”. Além de artefatos, utensílios, instrumentos de trabalho e vestimentas, produ- tos da atividade criatória, necessário ao cotidiano do vaqueiro, outros costumes se constituíram em torno da pecuária: como a monta a cavalo ou a burro, a vaquejada, os aboios, as estórias de vaqueiros, as cantorias de violas, o forró e as novenas. Extraindo do seu próprio meio quase tudo que necessitava para a sua subsis- tência, o vaqueiro chegou ao século XX, reproduzindo sua cultura que sofre poucas alterações no transcorrer de mais de dois séculos: utensílios, objetos, vestimentas, hábitos, costumes e etc. As fazendas constituíam a atividade econômica principal de seus proprietá- rios. Estavam organizadas no sentido de lhes proporcionar lucro. O fazendeiro na 1   Informação presente nos Documentos históricos – Biblioteca Nacional. Vol. XXII – p.62. 198


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