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Boqueirão

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:03:53

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maioria das vezes tinha moradia fixa em sua fazenda e não contava só com o trabalho memória, cultura e identidade do vaqueiro, existiam outros afazeres necessários à manutenção da propriedade. O trabalho do vaqueiro nos três primeiros séculos da criação de gado era essencial para o bom êxito da fazenda. O mesmo compreendia da parte adminis- trativa e de pastoreio que se restringia a percorrer as grandes extensões de terra que constituía as fazendas, as quais não eram delimitadas por cercas, e sim, até onde o gado alcançasse, para verificar o estado do gado, tratá-los se necessário e reuni-lo. Na segunda metade do século XX, exige-se mais do vaqueiro e as suas atividades diferenciavam-se de acordo com as “duas estações”do ano que temos: inverno e verão. No inverno, o vaqueiro passava grande parte do tempo montado a cavalo percorrendo a fazenda, verificando as pastagens, as cercas, as aguadas e o gado. Quando um animal era encontrado doente, conduzia-se ao curral para receber tratamento adequado, e quando era encontrado com “bicheira” – lesão infestada de larvas de mosca varejeira – no mesmo local era pego e curado. Muitas vezes o vaqueiro utilizando do conhecimento dos antepassados “curava no rastro”, este ritual consistia em fazer uma oração no rastro do animal quando este não era en- contrado, nem pego. Tal habilidade não era comum a todos os vaqueiros, apenas alguns privilegiados, que eram reconhecidos por toda a população local. Nas migrações sazonais, muito comum no inverno, quando acontecia de não chover em todas as partes da região que fizesse pasto suficiente para a alimentação, os vaqueiros conduziam o “gado solteiro” (garrotes e novilhos) a pastos de outros proprietários que alugavam ou cediam,quando eram amigos.Os vaqueiros visitavam o gado várias vezes neste período de estádia para informarem-se do estado do rebanho. No período do inverno, o gado não frequentava de forma permanente o curral central, próximo a casa grande do proprietário, pastava em cercados distante. À tarde os vaqueiros reuniam os bezerros em pequenas “mangas” para que dormissem separados das mães. Pela madrugada, sempre às três horas da manhã começavam a conduzir as vacas para ordenhá-las. Cuidavam também da construção de cercas e currais, e zelavam também um pouco pela casa onde residiam, ajudavam sua fa- mília no trabalho com agricultura de subsistência, a qual, se encarregava também da transformação do leite em queijo, manteiga e coalhada. No inverno, também cabiam aos vaqueiros auxiliados pelos companheiros das fazendas da redondeza, reunir o gado nos currais e “ferrar” com a marca do dono, com o ferro em brasa e apartar o gado que era vendido anualmente. Esta atividade era reconhecida por todos como a mais prazerosa. Em Boqueirão, por muito tempo, o vaqueiro foi o personagem principal, protagonizando com os seus coadjuvantes – a família, os seus modos de vida. Para reconstituirmos o vaqueiro a moda antiga, recorremos a sua memória através de 199

diálogos informais com os mesmos, onde utilizamos a metodologia e técnicas da História Oral. O tempo melhó que tinha na minha luta era quando tinha pega de gado... na época em que ele ia vender o gado seu Ernesto sempre criava na faixa de 600 à 700 bois. Chegada a época de pegar de Poço Doce a Mirador. Pra mim era o tempo melhó que tinha era pegá esse gado, vinha vaqueiros de Barra de São Miguel, vinha uma turma daqui do Marinho: Cumpade Osvádo, cumpade Oneildo, o finado Zé Mariano era na faixa de quinze a vinte vaqueiro na beira do açude preparava lá uma peixada, só almoçava depois de separá aquele gado... pra mim era a coisa melhó que tinha... era essas coisas assim. Eu não esqueço nunca. (Modesto de Oliveira Marques – Vaqueiro aposentado) Cabiam ainda aos vaqueiros, nesse período, domar potros de burros e cavalos. A doma de potros era um trabalho muito arriscado, pois os animais bravios reagiam muitas vezes a montaria obrigando-o a realizar grandes proezas. Na lida de vaqueiro eu não sentia dificuldade em nada, eu sempre sentia facilidade em tudo quanto ia fazer. O negócio mais difícil que eu achava era domá burro brabo... e eu amansava. (Severino de Tôta – Vaqueiro aposentado). Na seca, isto é, no período de estiagem, o trabalho do vaqueiro era mais árduo, iniciava pela madrugada, às três horas com a primeira ordenha das vacas leiteiras e tinha continuidade com uma série de atividades que incluía a preparação da ração e a condução nos carros de bois, a queima e a batida da macambira (importante alimento na seca), e culminava com a segunda ordenha do dia e o reabastecimento das cocheiras para o gado se alimentar durante a noite. Muitas vezes as tarefas se estendiam pela noite, pois além dessas atividades diárias, o vaqueiro ainda campeava o gado, amansava bois para puxar os carros e conduzia gado para as feiras. No inverno o trabaio era menó só fazia campeá e tirá leite. No verão a lida era pesada... tirá leite duas vezes manhã e de tarde, fazer a ração do gado e campeá... dá vista no campo sabe... olhá o animais como estão, vaca amojada trazer para o curral, amansá burro também, pegá boi brabo no mato, amansá bois para os carros carreá palma para o gado e lenha para a casa, dá água o gado, queimá macambira espaiá as coivaras e botá 200

a macambira queimada... e as vez até levá gado para a feira de Campina memória, cultura e identidade Grande e Caruaru. ( João de Zabé – Vaqueiro aposentado) Quanto ao trabalho de amansar as duplas de bois para puxar os chamados carros-de-boi,foi uma das atividades que os vaqueiros têm profunda recordação,pois ingressaram nas fazendas com auxiliares dos carreiros – condutores de carros-de-boi. O carreiro que pachorrentamente, usando avental, chapéu de couro e de vara no ombro, conduz pelos caminhos das caatingas os carros puxados por duas ou três juntas de bois é auxiliado no mister por seus filhos de mais de dez anos de idade, que aprende com o pai os mistérios de uma profissão. (Manoel Correia de Andrade, 1986) O vaqueiro, ainda guarda com recordação todas as duplas de bois que aman- sou e trabalhou: Paulista e Bandeirantes; Canário e Lavandeira; Almirante e Brasileiro; Campinense e Capoeiro; Rio Branco e Pernambuco; Canção e Craúno; Veado e Compasso.Todas essas juntas eram muito boa só não fazia falar”. (Modesto de Oliveria Marques – Vaqueiro aposentado) Em alguma de suas atividades diárias, como a pega do boi brabo, o vaqueiro contava com um auxiliar, que sem o trabalho do mesmo era impossível ter bom êxito, rastreador que se encarregava de procurar os bois brabos ou gado que se distanciava muito no mato, através de seus rastros. Sibiu Soares era o maior rastejador da região. Se um animal passasse em um lugar... com quatro cinco dias, ele dano no rasto dele ia acertar com ele, rastejava mesmo... era muito bom rastejador. (Modesto Marques de Oliveira – vaqueiro aposentado) Outro personagem que completava o quadro de coadjuvantes do mundo do vaqueiro era o tangerino. Este não residia, nem trabalhava continuadamente nas fazendas, só era chamado quando o vaqueiro tinha boiada para conduzir a feira ou em retirada no inverno. “Os tangerinos conduziam boiadas com o faziam no tempo de Antonil; residindo nas cidades ou vilas onde havia mais facilidade de encontrar trabalho, na realidade passavam a vida a varar os sertões percebendo salários”. (Manoel Correia de Andrade, 1986) 201

Todo o trabalho dos vaqueiros se restringia às atividades direta com o gado, não lhes sobravam tempo algum para desenvolver outras tarefas. No inverno todos os vaqueiros tinham pequenas roças nas próprias fazendas, onde plantavam os gêneros de primeira necessidade: feijão, milho, fava e algodão que servia de renda complementar para comprarem anualmente roupas e objetos de uso doméstico. Este trabalho era desenvolvido pela sua esposa e seus filhos menores. Todo ano eu botava um pequeno roçado. Mais quem trabaiava era a muié mais os fios, eu quase não tinha tempo, ia muito pouco roçado, ia mais para olhá o lucro. (Geraldo Marques da Cunha – vaqueiro aposentado) “Do lucro quando era bom a gente comia o ano todo. Com a venda do algodão comprava uma roupa melhó pra gente e para os filhos, e alguma coisa para casa”. (Regina Marques – esposa de vaqueiro) Atendendo a lógica capitalista, a remuneração do vaqueiro não é mais a “quarteação”, forma de pagamento largamente utilizada nos primeiros séculos da atividade criatória, onde o vaqueiro recebia um quarto dos bezerros, potros e cabritos nascido na fazenda. Este é remunerado semanalmente, e raramente este salário alcançava o nível dos vigentes. Em virtude dos pequenos salários em face às diárias prolongadas e pesadas, os fazendeiros procuravam suprir as defasagens com outras concessões que os vaqueiros os consideravam como grandes benefícios. Mas na verdade era outra forma de pagamento, no intuito de mantê-los sempre com muita dedicação ao trabalho, isto significava sempre o aumento do rebanho do proprietário. Indagados alguns vaqueiros sobre o seu relacionamento com os seus patrões, todos lhes tinham muito afeto chegando a considerar-lhes de pais. Era um pai para os vaqueiros dele. Não faltava nada para a gente. Um ano que estive uma dificuldade, a mulhé descansou eu estava um pouco apertado. Ele chegou em casa e perguntou o que estava precisando eu disse... ai ele foi ... ele me deu seis contos de réis... e disse olhe aqui para você... aqui você não vai pagar... eu estou lhe dando para tratá de sua mulhé... nunca falhou... eu precisava ele chegava, eu só não... todos lá (...) (Geraldo Marque da Cunha – Vaqueiro aposentado) Pra me era um pai agradeço hoje ter essa casa, agradeço a Deus primeiro e segundo a ele. Começou com uma bezerra que ele me deu... era tudo que tinha na minha vida. (Modesto Oliveira Marques – Vaqueiro aposentado) 202

Nunca deixou meus filhos passá fome... gente muito boa... quando caia memória, cultura e identidade doente ele pagava o tempo em que eu ficava em casa... uma vez me socorreu quando levei uma queda de burro no trabalho... buscando um mel de canudo muito longe para me dá como remédio e eu fiquei curado. ( João de Zabé – vaqueiro aposentado) Em algumas situações, em que o fazendeiro tinha uma outra atividade prin- cipal, a fazenda era administrada por um vaqueiro mais antigo, que mantinha o mesmo relacionamento dos proprietários com os vaqueiros destacados anteriormente. Ganhei primeiramente um cavalo em fazenda nova e depois uma bezerra a cada ano, durante cinco anos... esta atitude foi do administrador Pedo Féli... ele disse depois das cinco bezerra: já dei o pé para vocês. Dá para você consevá e para frente... até agora graças a Deus, e o que tenho, primeiramente Deus, segundo seu Pedo Féli que teve essa atitude e terceiro seu Ernesto que era dono... e o que seu Pedo combinava com ele estava combinado... e hoje eu tenho meu rebãezinho. (Severino de Tôta – vaqueiro aposentado) Em toda as fazendas, o proprietário permitia aos vaqueiros a criação de seu pequeno rebanho adquirido em reconhecimento a sua dedicação ao trabalho. Ele era muito bom, ajudou muita a gente, também a gente fazia por onde ele ajudar, porque a gente só trabaiava para fazer bem feito e agradar a ele, né ai ponto... ele tinha o maió prazê de vê o nosso rebaezinho crescer. (Severino de Tôta – vaqueiro aposentado) Quando a fazenda tinha muitos vaqueiros, o proprietário em vez de dar bezerras a todos, o que poderia acarretar um problema mais tarde, a existência de vários rebanhos na propriedade, o fazendeiro concedia vacas leiteiras aos vaqueiros, para que os mesmos vendessem o leite e o queijo, e com a renda complementasse a sua sobrevivência ou servisse de uma poupança para o futuro. Era também lhes permitido a criação de pequenos rebanhos de ovinos e caprinos. Ele nunca me deu uma bezerra... mais deu muito mais... eu tinha sempre leite de dez vacas para que nóis vendesse o leite e o queijo... como também nóis criava ovelhas e cabras em sua terra... graças a isso hoje nois temos a nossa casinha. (Geraldo Marques da Cunha – vaqueiro aposentado) 203

O vaqueiro era um destaque na fazenda em relação aos demais trabalhadores, por isso seu pagamento era diferenciado, e isto se explica pela sua jornada longa e contínua de trabalho, começava as três horas da manhã e encerrava às sete, oito e até nove horas da noite, todos os dias inclusive aos domingos e feriados. O vaqueiro protegia e aumentava o patrimônio da fazenda. Daí o vaqueiro ser visto pelos ou- tros trabalhadores com um protegido do patrão, o que lhe causava muito orgulho. O vaqueiro gostava de seu trabalho, devido a certa liberdade que este lhe proporcionava. O mesmo não era vigiado por um superior, tinha o domínio de habilidades consideradas fundamentais para a função como: tirar leite, amansar burros, cavalos e bois, laçar, montar e pegar boi, que poucas pessoas possuíam in- clusive os patrões, além de divertirem muito com certas atividades – apartação de gado, pega de boi, ferrar bezerros – ações que serviam como afirmação de poder, do domínio sobre essas tarefas e projeção. O vaqueiro mais habilidoso na pega de bois, sua fama se espalhava por toda região, e o mesmo passava a receber convites de muitos fazendeiros para realizar tal atividade. Em cada região se destacava o vaqueiro mais rápido, o melhor tirador de leite, o melhor aboiador, o mais ágil no laço, na monta em cavalos e burros e na pega de boi no mato fechado. Em uma sociedade, em que o ter muita terra e muito gado era sinônimo de poder, de respeito, consideração e apreço, o vaqueiro sentia-se muito lisonjeado, pois não tinha terra, alguns tinham apenas algumas cabeças de gado nas terras dos patrões, mas tinha o respeito e o apreço dos mesmos, em face de sua dedicação ao trabalho e admiração do povo em face a sua bravura, e isto era suficiente para um vaqueiro passar todo o tempo de sua vida útil em uma fazenda. Cheguei com idade de 15 anos em Fazenda Nova, só sai quando mim aposentei, com sessenta e cinco anos... e se o dono não tivesse morrido, eu ainda estava lá, por que ele nos tinha muito afeição e nos considerava como gente. (Severino de Tôta – vaqueiro aposentado). A dura condição de sobrevivência nos primeiros tempos de vaqueiros en- gendrou homem resistente à caatinga e ao solo pedregoso, capazes de enfrentarem uma pesada carga de trabalho contínua, que não tinha hora para terminar e poucos dias ao longo do ano para descansarem. A determinação do vaqueiro pelo trabalho e sua resignação perante às duras condições de vida é fruto de uma concepção de vida que perpassa gerações. Para os vaqueiros entrevistados, ao nascerem já tinham suas vidas predestinadas, portanto deveriam ser seguidas.Ser vaqueiro era uma decisão divina,cabia-lhes cumprir a sina. A certeza na predestinação da vida não era só uma crença do vaqueiro, e sim dos demais habitantes da região. Neste sentido, a habilidades do vaqueiro eram 204

consideradas pelos demais moradores do Cariri, como algo que se “trás no sangue”, memória, cultura e identidade e portanto, dignos de admiração. Amansar bois para os carros, burros e potros de cavalos ordenhar as vacas, pegar boi bravo, curar bicheiras, enfrentar o mato fechado e espinhoso, os animais peçonhentos e selvagens, não eram atividades para “qualquer um”, e sim para os homens corajosos e determinados: os vaqueiros. As qualidades destacadas acima projetavam os vaqueiros na região e os enchiam de orgulho, a ponto das atividades mais difíceis, como a pega do boi se transformar em um momento de demonstração de sua valentia e destreza e domínio sobre a caatinga e o animal, considerado pelos mesmos com lazer e festividade. O “vaqueiro a moda antiga” foi sem dúvida uma figura ativa de representa- ção da Caatinga. Em uma época remota, contava apenas com a sua coragem, foi protagonista de uma “História real” – mãos e pés dos fazendeiros, que mantiveram seus bens e acumularam patrimônio à custa de sua força de trabalho e valentia. Sua ação e seu dia-a-dia marcaram época de um povo que apesar de sua adversidade sobreviveu às dificuldades para fazer sua história e entrar na história. REFERÊNCIAS ABREU, João Capistrano de. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. 4a edição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, Brasília, INL, 1975. ALMEIDA. Horácio de. História da Paraíba. V. 2 – João Pessoa, Editora Universitária/ UFPB. ALMEIDA, Antônio Pereira de. Os Oliveiras Ledo e a Genealogia de Santa Rosa, V. 1. João Pessoa: Editora Gráfica Universal, 1978. ANDREONI, João Antônio (André, João Antonil) Cultura e Opulência do Brasil. (Texto da Edição de 1711. Introdução e Vocabulário por Alice P. Canabrava, 2 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1966 – Coleção Roteiro do Brasil). ANDRADE, Manoel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste: Contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. 5a edição. S. Paulo: Atlas, 1986. CASCUDO, Luis da Câmara. Literatura Oral no Brasil. 2a edição. Rio de Janeiro: Coleção Documentos Brasileiros. Volume no 186, 1978. FERREIRA, José Aderaldo de Medeiros.Tradições ruralistas: Marcas de gado, experiências, climas e outras histórias. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 1999. LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. Campinas: Ed. UNICAMP, 1994. HUNT, Lunn. A Nova História Cultural; Tradução Jeferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. JOFFILY, Irinêo. Notas sobre a Parahyba, Brasília, Thesauros Editora, 1977. DENIS, Léo. Cabaceiras 1835 – 1985. Cabaceiras, 1985. 205

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12 memória, cultura e identidade AS QUADRILHAS JUNINAS: SUA IMPORTÂNCIA E SUAS TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS EM BOQUEIRÃO - PB JOSÉ IOLANILSON CAVALCANTE CHAGAS INTRODUÇÃO As festas juninas têm esse nome por se realizarem no mês de junho. Nesse mês, há comemorações especiais nas datas que celebram Santo Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29). No entanto, como os festejos de São João costumam ser os maiores, é em homenagem a esse santo que o período comemora- tivo também é chamado de “festas joaninas”. As manifestações histórico-culturais relativas ao período “joanino” compõem um dos cenários brasileiros mais ricos em transformações no que se tange à ordem do comportamento social As festas juninas se originaram em um período anterior à era cristã. Antiga- mente, no hemisfério Norte, o Sol atingia seu ponto mais alto no céu ao meio-dia de 23 de junho (atualmente isso ocorre no dia 21 ou 22). Esse era o dia mais longo do ano, e a noite para o dia 24 era a mais curta, constituindo o chamado solstício de verão. Quando ele ocorria, diversos povos — como os celtas, os bretões, os egíp- cios, os persas e os sumérios — faziam rituais para invocar a fertilidade da terra e garantir uma boa colheita. Diversas tradições das festas juninas vêm desses rituais. O costume de acender fogueiras, por exemplo, era praticado para espantar os maus espíritos das plantações. Com o início da era cristã, esses rituais passaram a ser considerados pagãos, mas não acabaram. A Igreja Católica adaptou o dia do solstício ao calendário cristão. Assim surgiram as comemorações do dia de São João, que, segundo se acredita, nasceu em 24 de junho. Quando os portugueses vieram para o Brasil, a partir de 1500, trouxeram esses festejos tradicionais de Portugal. No Brasil, junho marcava o início do in- verno, mas na época os indígenas também realizavam seus próprios rituais para a renovação da terra. As tradições dos missionários jesuítas acabaram se misturando aos rituais indígenas. Uma das tradições das festas juninas é a quadrilha. A dança, feita em pares, representa a encenação de um baile de casamento. A quadrilha foi criada em Paris, na França, no século XVIII (seu nome em francês é quadrille). No século XIX, essa dança fez bastante sucesso no Rio de Janeiro, tanto nos salões da corte quanto entre a população. Ela foi mudando ao longo do tempo até se transformar na quadrilha que é dançada atualmente nas festas juninas de todo o Brasil. Embora fosse uma 207

dança dos meios aristocráticos, mais tarde a quadrilha conquistou o povo e adquiriu um significado novo e mais popular A quadrilha, também chamada de quadrilha junina, quadrilha caipira ou quadrilha matuta, é um estilo de dança folclórica coletiva muito popular no Brasil. Essa dança de teor caipira é típica das festas juninas, que geralmente acontecem nos meses de junho e julho em todas as regiões do país. Por ser uma dança caipira, sua linguagem se aproxima da coloquial e dos meios sertanejos e nordestinos. Há quem diga que a encenação do casamento na dança da quadrilha seja uma crítica social às famílias tradicionais: a noiva aparece grávida e seu pai obriga a se casar. Por esse motivo, a tentativa de fuga do noivo, geralmente embriagado, faz parte da dança. Dessa maneira, de popularizou nos meios rurais como um festejo para agradecer a colheita e, ainda, homenagear os santos populares. Na pós-modernidade, o hibridismo cultural atua como um fator de mudan- ças latentes aos elementos que integram as festividades juninas. Caracterizados, neste aspecto, pelos conflitos sociais entre o que se entende como tradicional e as inovações resultantes do processo mercadológico, os festejos juninos congregam-se em um ambiente de crescente midiatização de massa. No auge deste hibridismo cultural, tratado por Canclini (2008), a nova roupagem dos festejos referidos a Sant Antônio, São Pedro e São João no mês de junho, no estado da Paraíba, reúnem divergentes aspectos. São eles: os referentes ao passado, no que tange ao imaginário popular relativo à imagem dos moradores do sertão, aos costumes interioranos; e a aptidão do mercado em inserir nos festejos juninos atrativos mercadológicos que incitem o maior consumo dos mesmos, como a produção de grandes shows com artistas aclamados pela mídia e pelo público. Em destaque, este artigo detém seu olhar de análise sobre a dança característica do período joanino, as quadrilhas juninas entendidas por Zamith (2007) como dança que perpassa séculos e lugares, as quadrilhas juninas resultam do sincretismo de danças e contradanças europeias que em momento algum pararam de se transformar. As quadrilhas juninas,bem como os festejos juninos,têm sido mercantilizadas e espetacularizadas nas últimas décadas (Castro, 2012). Paralelo a este fato, está o crescente avanço das mídias digitais e das novas tecnologias, que influenciam diretamente na forma como a sociedade detém sua identidade cultural. Portanto, dito isto, temos que as raízes devem ser respeitadas, onde, o Forró é Forró e Rock é Rock, e, cada um (Pop, Sertanejo, Funk, Pagode, Frevo, Axé...) têm sua época. Para tanto, é importante observar a sociedade paraibana, e poque não boqueirãoense, no que diz respeito a sua identidade cultural, dada a simbiose entre a tradicional e o espetáculo (estilizado). 208

JUSTIFICATIVA memória, cultura e identidade Justifica-se em mostrar o papel econômico e social derivado da criação e formação de várias quadrilhas em Boqueirão, PB, as transformações ocorridas na vida dos componentes dessas quadrilhas, e como a sociedade pode se beneficiar da mesma. Neste caso, o estudo baseia-se a partir das transformações socioeconômicas, buscando compreender os fenômenos sociais, culturais e geográficos que ocorrem nesse lugar. A partir do incentivo de uma atividade cultural para proporcionar a sociedade geração de lucratividade. Partindo da problemática de como um grupo junino pode transformar a vida dos seus membros, e a relevância dos mesmos em se beneficiar perante a sociedade na transformação de cunho cidadã. Justifica-se ainda, pela importância da quadrilha junina para a disseminação do patrimônio cultural de Boqueirão, PB, que cultura ao ser definida aqui, se refere as manifestações junina, tendo como seus componentes as artes integradas e festas tradicionais entre outras, porém seu sentido é bem mais abrangente, pois cultura pode ser considerada como tudo que o homem, através da sua racionalidade, mais precisamente da sua inteligência, consegue executar. Dessa forma, todos os povos e sociedades possuem sua cultura por mais tradicional e arcaica que seja, pois todos os conhecimentos adquiridos são passados das gerações passadas para as futuras. As festas juninas são sem dúvida umas das maiores manifestações da cultura popular nordestina, na qual é onde os povos amantes e praticantes se envolvem arduamente no intuito de preservar esta grande riqueza cultural. As expressões da cultura de cada região, estado e/ou município (cidade), contribuem para o enriquecimento cultural, artístico e, consequentemente, ao pa- trimônio imaterial de uma nação, que atrelados ao contexto de construção social, política e econômica de cada povo, atuam como instrumento para construção e disseminação de informação acerca das identidades culturais analisadas. Dessa maneira, podemos perceber que a quadrilha enquanto dança, deve ser compreendida como uma adaptação popularizada de uma antiga tradição comum entre a aristocracia europeia, como uma resultante da apropriação dos costumes por parte da população que não faziam parte da antiga “fidalguia”.E é exatamente a partir dessa apropriação e reinvenção que a quadrilha passou a ser encarada como prática legítima da cultura popular brasileira. Onde, atualmente, divide-se em Quadrilha tradicional (matuta, caipira ou sertaneja) e a Quadrilha profissional ou estilizada. 209

GEOGRAFIA CULTURAL: ABORDAGEM CONTEXTUAL E CONCEITUAL Geografia Cultural teve sua origem marcada pelos povos gregos, como dis- ciplina delineou-se pelas diferenciações regionais no cruzamento entre a Europa, Ásia, Oriente Médio e a África, emergiu com os antigos geógrafos como Ptolomeu e Estrabão. Buscando descrever e analisar as formas de linguagem, religião, artes, crenças, economia, governo, trabalho e outros fenômenos culturais variam ou per- manecem constantes, de um lugar para outro e na explicação de como os humanos comportam no espaço geográfico (INGRDS, 2014). Assim, a Geografia Cultural passou a destacar os aspectos materiais das culturas, o vestuário, o hábitat, os utensílios e as técnicas, ou seja, pretendia analisar os modos de existência dos grupos humanos (ALVES & ALVES, 2008, p. 1). Por- tanto, a Geografia Cultural Contemporânea também teve sua origem na Europa entre o final do Século XIX e início do Século XX, segundo Claval (2003). Este ressaltou uma Geografia pensada como ciência, a fim de intervir nos conceitos de uma nova identidade. Claval (2002) ainda afirma que, a Alemanha e França foram às precursoras no desencadeamento dessa ciência, que estariam interligadas ao positivismo e o historicismo, que posteriormente, adentrou nos Estados Unidos da América, no ano de 1925. O destaque dessa ciência nos Estados Unidos ocorreu em meados do século XX, principalmente ao norte do país, quando se falava e estudava a Geografia Cultural proposto por Carl Sauer (1925). Muitos dos conteúdos destacados por Sauer estavam correlacionados a história da cultura no espaço, paisagem cultural e ecologia cultural entre outros (ROSENDAHL; CORRÊA, 1999). A partir dos estudos e análises realizadas por Carl Sauer, que foi o primeiro geógrafo americano a se dedicar ao estudo da cultura na Geografia, muitos geó- grafos brasileiros seguiram seus conhecimentos tais como Roberto Lobato Corrêa, Manuel Correia de Andrade, Zeny Rosendahl, entre outros, arremessaram-se sobre temas da Geografia Cultural, tanto no âmbito dos estudos regionais, nacionais e internacionais,nos quais estes passaram a fornecer uma moldura para a compreensão dos estudos, análises, elementos, espacialidade, temporalidade e os modos de vida cultural da Geografia Cultural brasileira e mundial. Ao se referir da Geografia Cultural no Brasil, pode-se dizer que ela chegou de forma precoce, devido aos efeitos causados pela influência francesa, além da falta de recursos para os estudos da mesma aqui no país. No início da década de 1990, houve a criação do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Espaço e Cultura – NEPEC, realizada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, criado por Zeny Rosendahl. Este núcleo foi o marco inicial da Geografia Cultural brasileira, nele 210

se encontrava grandes nomes da Geografia, como Paul Claval adepto dos Estudos memória, cultura e identidade Saurianos, e também, da nova fase da Geografia Cultural francesa. Os estudos foram voltados para elaboração de livros referentes à Geografia Cultural, que posteriormente foram lançados. Essa expansão fez com que essa Geografia, ganhasse destaque, passando a ser um dos principais pontos de estudos nas Universidades. Baseando-se 19 em todo um contexto histórico pode-se dizer que a Geografia Cultural passa a ter um papel importante na construção da identi- dade do indivíduo, pois valoriza traços que vai da sua origem a suas manifestações locais, isso implica em dizer que ela busca explorar o meio de vida das pessoas, seus comportamentos, suas necessidades, e a partir disso, manter uma relação com o meio ambiente e as políticas econômicas e sociais. Nesse sentido, a cultura não é uma realidade primeira, mas uma construção imaginada que permite que as pessoas se comuniquem e formem grupos unidos (CLAVAL, 1999). Por meio deste termo, fica claro que a cultura não é um conceito problemático, mas uma totalidade imutável, transmitida como herança irrecusável para as novas gerações que, pela imitação, construíram hábitos e por eles interna- lizaram os valores do conjunto do corpo social (COSGROVE, 1998). E são através das manifestações de um povo, da crença, dos costumes, do modo de vida, que o lugar a qual esse povo pertence, se enraíza costumes que são transformados em identidade, e a partir dessa identidade, o ser passa a pertencer a um determinado grupo, possuindo traços marcantes, de fácil entendimento de onde ele veio de onde ele pertence. O Nordeste brasileiro é exemplo disso, por produzir as maiores festas juninas do país. A Região possui na cultura vários aspectos que guardam características marcantes de um povo, que são representadas através das suas manifestações cul- turais, seja pela fé, ou até mesmo para o lazer, remete a princípios de luta, união e coragem, a qual hoje é visto como símbolo de prosperidade e fartura, levando em conta de que suas tradições, atualmente, são fundamentais para geração de emprego e renda, movimentando todo um comércio e especialistas da área, ligados ao evento. O Nordeste é reconhecido nacionalmente como uma Região extremamente rica em cultura, tradições, festejos, artesanato, culinária e agricultura de vários tipos, geralmente influenciadas por costumes indígenas,africanas e até mesmo portuguesas. Os costumes, as tradições, os hábitos culturais muitas vezes variam de Estado para Estado, e até mesmo dentro de um mesmo Estado. A Cultura do Nordeste destaca-se pelas suas particularidades e tipicidades, apesar de extremamente variada, essa população ainda costuma resguardar a sua cultura através das pessoas, principalmente os mais velhos. A base desta cultura caracteriza-se pelo sistema luso-brasileiro, com grandes influências africanas, em especial na costa de Pernambuco à Bahia e no Maranhão, e indígenas, em especial 211

no Semiárido, ou seja, na Região do Sertão, fisiograficamente conhecida como Polígono das Secas. CONCEITO DE FESTAS JUNINAS NA PERSPECTIVA DO LOCAL A Região Nordeste é de grande destaque por promover as maiores festas juninas do país ou até mesmo do mundo, sendo a principal atividade turística que mais cresce economicamente quando se tratam de mega eventos urbanos. Segundo Morigi (2001) sua origem está relacionada às crendices populares europeias, que se baseia nos cultos pagãos em adoração ao sol, no período do solstício de verão. Ao passar dos tempos, foi incorporado pelo catolicismo, como datas importantes na comemoração das festividades de alguns Santos da Igreja Católica, precisamente Santo Antônio, São João e São Pedro. No Brasil, essa festa ficou marcada por fazer ligação ao mês de junho. Mês esse, que os agricultores faziam a colheita dos produtos derivado da agricultura local, como o milho, símbolo do circuito junino nordestino, com isso, a origem da festa partiu do cenário rural, atingindo o espaço urbano. Câmara Cascudo (1988), afirma que os portugueses são os precursores dessas comemorações no nosso país, destacando a presença muito forte dos traços folclóricos e religiosos. Uma junção do profano e do sagrado, como elementos essenciais para a formação da cultura popular nordestina. A Cidade de Boqueirão, no interior do Estado da Paraíba, é conhecido atualmente como a “Cidade das Águas”, e, detém também de um dos melhores festejos juninos do Cariri paraibano, que em 30 de abril de 2021, completa 62 anos de emancipação política (Cabaceiras). Boqueirão, enquanto Carnoió, era apenas uma simples e humilde vilarejo, criava e cultivava suas tradições culturais (religio- sas e profanas) junto à população, que algumas perduram até os dias atuais. Vale salientar, que a Vila de Carnoió, que em 30 de abril de 1959, por meio da Lei 2078, é emancipada da Vila Federal de Cabaceiras, PB, instalando-se somente em 30 de novembro de 1959. Onde, sua alteração toponímica, de Carnoió para Boqueirão, se deu pela lei Estadual nº 2311, de junho de 1961. Boqueirão começou a crescer e se desenvolver,a partir do ano de 1948,quando chegava a primeira turma de topografia para dar início aos trabalhos de base da construção do açude. Em, 1951, iniciava-se os trabalhos de fundação; em 1956 se concluía e em 16 de janeiro de 1957, sua inauguração. Durante todo o processo de construção do açude Boqueirão (Epitácio Pessoa), e para extravasar o stress, a população começou a criar e participar assiduamente das festividades culturais local, tais como, padroeira (Nossa Senhora do Desterro – de janeiro) São José (março), São Bento (agosto), carnaval, festas juninas, entre outras. 212

A área das festas supracitadas da época, se concentrava em torno da igreja memória, cultura e identidade matriz católica (Fig. 01) e num pavilhão montado na rua Oliveira Lêdo (Fig.02), sendo a mesma, a primeira rua de Boqueirão, e por outro lado, à rua José Rodrigues (frente a igreja matriz), a segunda rua, em homenagem a um dos seus fundadores. Após, a inauguração do açude, muitos imigrantes resolveram fixar morada, e, de onde, construíram família que se identificam até os dias atuais. Dessa forma, Bo- queirão foi crescendo, a população aumentando e consequentemente, a necessidade de escolas, comércio, lazer, entre outros. Fig. 01 – Igreja Matriz Católica Fonte: Facebook, página Memorial das Águas 213

Fig. 02 – Pavilhão na Rua Oliveira Lêdo Fonte: Facebook, página Memorial das Águas Dessa forma, quando mencionamos escola, comércio e lazer, queremos ao mesmo tempo, lembrar de uma das mais tradicionais festas regionais da região, que é o São João, ou porque não dizer, os Festejos Juninos (Santo Antônio, São João e São Pedro), com exclusividade para as Quadrilhas Juninas (do francês quadrille, é uma modalidade de dança de salão que, no dizer de Câmara Cascudo, foi “a grande dança palaciana do séc. XIX”. Era originalmente dançada por quatro pares em formação retangular), que eram lembrados nas escolas, e de certo animavam as mesmas, onde, aqueciam o comércio local e ao memo tempo, abrilhantava o lazer de uma maneira geral, com o que se dispunha na localidade. Geralmente, essas quadrilhas eram classificadas em familiares (realizadas nos sítios, ou zona rural), escolares e de salão (clubes, pavilhões). Durante os festejos juninos em Boqueirão, as quadrilhas eram realizadas tanto nas escolas, mas, também, nos salões, como a Cooperativa Agrícola Mista (Fig. 03), que tinha como fundador o Coronel Bernard (Fig. 04). 214

Fig. 03 – Cooperativa Mista. Fig. 04 – Cel. Bernard. Fonte: Face- Fonte: Facebook, página Memorial das Águas book, página Memorial das Águas Na zona rural, principalmente, era comum manter as tradições juninas, desde a vestimenta, comidas típicas (milho assado, pamonha, canjica, outros) e o forró “pé de serra”(sanfona, zabumba e triângulo) até o momento da tão sonhada Quadrilha Familiar (Fig. 05). Já no Clube da Vila Operária (Fig. 06), também era realizado as festas juninas dos moradores, como também da população local. Fig. 05 – Quadrilha Familiar. Fonte: Facebook, Fig. 06 – Antigo Clube da Vila Operária. memória, cultura e identidade página Memorial das Águas, 2021 Fonte: Professor Iolanilson, 2021 215

Com o passar do tempo e a população crescendo, havia a necessidade de um ambiente maior e mais acessível, e esse local passou a ser o Mercado Público (Fig. 07), donde, mais tarde pelo mesmo motivo, veio a construção do Clube Recreativo Municipal (Fig. 08), passando a ser o palco não só das festas juninas, mas, também, de todas as festas sociais (debutantes, concluintes, carnavais, outras) de Boqueirão, até os finais dos anos 80. Fig. 07 – Mercado Público. Fonte: Facebook, Fig. 08 – Clube Recreativo. página Memorial das Águas, 2021 Fonte: Google, 2021 CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA EM ESTUDO A área em estudo localiza-se no Município de Boqueirão, PB, que dista a 165 Km da Capital do Estado, João Pessoa, PB e a 44 Km de Campina Grande, PB. Inserida na Mesorregião da Borborema (Fig. 09) e na Microrregião do Cariri Oriental Paraibano (Fig. 10). Fig. 09 – Mesorregião da Borborema. Fig. 10 – Cariri Oriental Paraibano. Fonte: Google, 2021 Fonte: Google, 2021 216

Situado entre a Latitude 08º 25’ 35’’ Sul, e Longitude 36º 08’ 06’’ à Oeste memória, cultura e identidade do Meridiano de Greenwich; uma altitude de 355 metros, e tem uma área de 426, 648 km², com uma população 17.870 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020). Limita-se ao Norte com o Município de Boa Vista e Campina Grande, ao Sul com o Riacho de Santo Antônio, a Leste com Barra de Santana e Caturité e ao Oeste, com Cabaceiras e Barra de São Miguel. As principais rodovias que dão acesso a Boqueirão, são BR-230, partindo da Capital João Pessoa, PB, ligando a BR-104, de Campina Grande, PB, com a Cidade de Queimadas, PB e, com a PB – 148, que dar acesso a Cidade de Bo- queirão, PB. (Fig. 11) Fig. 11 – De João Pessoa, PB (Capital) a Boqueirão, PB. (Fonte: Google, 2021) PROCESSO HISTÓRICO DO SÃO JOÃO EM BOQUEIRÃO A história do São João em Boqueirão vai além dos mega espetáculos que se observa hoje em dia, na verdade, tudo começou nas pequenas comemorações das zonas rurais, com a queima da fogueira, o acender dos fogos de artifícios e a reunião dos familiares e vizinhos,embalados pelo tradicional forró de Luiz Gonzaga e outros, e também a apreciação da mesa farta vinda de uma boa colheita, desta maneira, festejar o período junino, era sinônimo de agradecer por mais um ano vindouro. No âmbito da Cidade de Boqueirão, os vilarejos, sítios que eram os precur- sores dessas festas traziam traços bastante culturais, a pamonha e o milho verde, remetiam a simplicidade de uma identidade marcada pelos antigos costumes que eram passados de pais para filhos. A cidade contava com algumas Quadrilhas Ju- ninas, todas no estilo de Quadrilha Matuta. Com a criação de uma área específica (ruas à caráter) para reunir a massa e engrandecer o espetáculo, os primeiros anos, das Quadrilhas de Rua, foi marcado por improvisos e principalmente pela ajuda da comunidade para a realização do evento. 217

Ferreira (2003) diz que o espaço pensado como “lugar festivo” permite en- tender o sentido de lugar e de evento festivo. Sendo assim, o lugar inserido como um espaço festivo remete as manifestações de território, de identidade, um espaço de conflitos no qual é exercida uma relação de poder, possuindo características marcantes dos que ali estão inseridos. Com a criação de um espaço voltado para as práticas festivas, no ano se- guinte, em 1986 (Fig. 12), a festa passa a ter 10 dias de comemoração, iniciando na terceira semana de junho a 29 do corrente mês e ano em curso. Em 2013, o terreno passa a ganhar uma nova roupagem, e é construída uma Quadra Popular (Praça de Eventos) (Fig.13), sua extensão começa a ser pavimentado, o local recebe palco para shows, barracas para o comércio de bebidas e comidas regionais, barracas essas, de ambulantes e comerciantes locais, destinadas aos visitantes (MORIGI, 2001). Fig. 12 – Quadra do Bairro Novo. Fig. 13 – Quadra do Bairro Novo. Fonte: Professor Iolanilson, 2011 Fonte: Professor Iolanilson, 2013 O São João de Boqueirão, PB, passa a construir uma nova identidade, uma referência voltada para a ideologia produtiva e consumista, uma concepção comercial e de consumo, são contextualizadas práticas capitalistas, referências de progresso e de renovação de um mundo globalizado, desta maneira, a origem dos costumes começam a ser esquecidos e abandonados, abrindo espaço para uma nova era progressista, voltadas para a espetacularização e costumes de uma nova utopia. Fenômenos assim são descritos como um marco histórico da evolução, uma dinamização da cultura, envolvida a novas práticas sociais e globalizada. Perante essa transformação, Rounaet (2000, p. 14) remete que: A globalização por diversos fatores alimenta essas dualidades da coexistência do tradicional e do moderno, é um jogo de interesses que a televisão – como dis- positivo eletrônico e interativo dessa globalização - desempenha muito bem a sua função. A relação da cultura global é com os objetivos, com os bens industrializados ofertados no mercado. Já a cultura local e a relação é com os sujeitos, com os atores sociais que participam dos processos culturais de atualização e modernização. 218

Exemplo disso, em 2006, a Praça de Eventos passa por um processo de padronização, suas barracas, Trailers são bem localizadas, dando um novo estilo as ruas no seu entorno, para que a forma seja esteticamente harmoniosa. E a cada ano, sempre existe algum elemento que marca a evolução da festa, que vai da ci- dade cenográfica - fundada em 2000, um simulacro que caracteriza a fundação da Cidade de Boqueirão, por meio da Vila de Carnoió e prédios históricos, como as réplicas do 1º Cemitério, algumas casas comerciais, o cine Arte e a Igreja de Nossa Senhora do Desterro, Capela do Bairro Novo (RODRIGUES, 2006). (Fig. 14, 15) Fig. 14 – Prédios Históricos. Fig. 15 – Praça de Eventos. Fonte: Professor Iolanilson, 2011 Fonte: Professor Iolanilson, 2017 Como também a expansão da festa que ultrapassa o espaço da Praça de Eventos e atingem outros pontos do município, como por exemplo, o Distrito do Marinho, responsável por receber no Lajedo do Marinho muitos turistas, a exposição de Artesanato das Crocheteiras e até mesmo os trabalhos dos artesões do Belas Artes em Boqueirão, todos voltados para melhor atender a demanda de turistas que visitam a cidade no período junino. (Figs. 16, 17) Fig. 16 – Lajedo do Marinho. Fig. 17– Crocheteiras do Marinho. memória, cultura e identidade Fonte: Professor Iolanilson, 2016 Fonte: Nadilson Valentim, 2017 219

Desta maneira, é importante constatar que os Festejos Juninos, hoje é de- finido como uma das principais festas populares do Brasil, desta forma, apresenta características modernas, a festa se insere na sociedade do espetáculo e consequen- temente, o que era rural, simples e religioso, passa por uma nova funcionalidade, ligada ao urbano e as políticas socioculturais. O contemporâneo remete a novas funcionalidades, o turismo requer uma demanda mais sofisticada, e o capital é o eixo econômico que os órgãos responsáveis pela festa almejam. Canclini (2008) descreve como hibridismo cultural, quando as expressões derivadas dos costumes tradicionais de cada povo sofrem influência das manifestações exteriores, não sendo possível a imutabilidade da cultura tradicional, em virtude das mudanças decorrentes das novas sociedades industriais e urbanas. Portanto, com base nos conhecimentos de Canclini, uma estrutura voltada para o espetáculo, atualmente o São João de Boqueirão, possui uma funcionalidade econômica em vez de comemorativa, existe toda uma logística voltada para esta dimensão a que o evento se propõe. QUADRILHAS JUNINAS EM BOQUEIRÃO Desde que a Quadrilha foi introduzida nos Festejos Juninos, à mesma come- çou a perder a identidade europeia, ganhando novas características, sobretudo no estilo caipira. A dança é símbolo das festas juninas nordestinas. Mas, suas evolu- ções perpetuam até hoje, com passos de danças que possuem seus nomes, ainda da cultura francesa, como é o caso das palavras, anavantur e anarriê. Com um toque de música do Nordeste, o tradicional forró pé de serra, e vestes e adereços voltados para trajes típicos do nordestino. Nos últimos anos, a Quadrilha Junina de ênfase regional e brincante, conhecida como matuta ou tradicional (Fig. 18, 19, 20), passa por um processo de reconstrução de identidade, abrindo espaço para o espetáculo, a Quadrilha que antes era voltada para o divertimento dos brincantes, hoje é considerada um produto comercial e turístico. Os investimentos que envolvem as Quadrilhas atualmente as tornam grandes empresas no mercado junino e também são eficazes pela renda gerada no município no período dos festejos, englobando vários profissionais de diversos setores, além da geração de benefícios para aqueles que fazem parte desse universo teatral e espetacularizado. 220

Fig. 18 – Q. dos Professores. Fig. 19 – Q. Dos Palmares. Fig. 20 – Q. dos Cangaceiros memória, cultura e identidade Fonte: CNEC, 1993 Fonte: Averlanje Queiroz, 1990 Fonte: Genaldo Alves, 1995 A função da Quadrilha hoje está ligada a propósitos inovadores, ligados ao meio turístico e econômico. A Quadrilha Junina passa a servir de espetáculo para a plateia, o grupo envolvido na construção dessa encenação, requer o envolvimen- to de profissionais de todas as áreas, capazes de transformar as apresentações em um verdadeiro show, tais profissionais que estão envolvidos o ano todo, buscam a compreender histórias, que servirão de narrativas, para a construção do que será trabalhada naquele ano consecutivo, a escolha do tema ou enredo, é a percussora para que a Quadrilha que recebe o nome de Quadrilha Estilizada, se diferencie da Quadrilha Tradicional e Grupo Folclórico (Fig. 21, 22, 23). Fig. 21 – Arraiá do Assaré. Fig. 22 – Escolas Municipais. Fig. 23 – 1º Grupo Folcl. Univer- Fonte: Averlanje Queiroz, 1994 Fonte: Prof. Iolanilson, 2000 sal. Fonte: Prof. Iolanilson, 1994 Existem outros fatores que a fazem possuir características pós-moderna,a partir do tema escolhido, a direção dessas Quadrilhas irá trabalhar em toda uma temática que faça com que o enredo principal seja bem elaborado e que o público entenda o que ela quer mostrar, lembrando sempre que mesmo com a implantação de novos costumes, é de obrigatoriedade, conceitos que remetem a Quadrilha Matuta seja na roupa, ou na evolução sensacionais quadrilhas, distribuídas por vários bairros e ruas da cidade, à exemplos de: Arraiá dos Professores da CNEC, Arraiá do Assaré, Arraiá dos Palmares, Arraiá dos Cangaceiros, Quadrilha das Virgens, Arraiá da Ca- chibemba, Quadrilha do Rotary Club, Quadrilha dos Pescadores, Arraiá da Terceira 221

Idade, Arraiá da Escola Criativa da Mônica, Arraiá da Raimundo Hermes, Arraiá do Lixo ainda é um Luxo, Arraiá dos Funcionários Públicos e o Arraiá do Povão. CONSIDERAÇÕES FINAIS O ápice da manifestação cultural na Região Nordeste,está interligado a cultura de seu povo, como a música e a dança, ambos possuem um papel de expressivida- de na mensagem que querem produzir. A Quadrilha Junina veio como forma de junção desse papel junto às comemorações aos Santos Juninos. Com a chegada da globalização, os grupos folclóricos passaram a exercer uma função significativa, desta forma, houve a formação de um contexto influenciador que transformou a cultura das mesmas. A quadrilha junina detém de uma complexa estrutura e organização, envolvendo sujeitos, internos e externos, para construção de suas apresentações. A abrangência temática que as quadrilhas abordam em seu conteúdo, sempre alinhado à modernidade ao tradicional, destacam-se por transmitir e disseminar informação. Desse modo, podemos salientar a sua importância para comunidade, bem como à população boqueirãoense como ferramenta de preservação e propagação das tradições juninas. A estrutura das quadrilhas tradicionais ou “da roça” mostrando sua naturalidade coloquial e/ou estilizadas, por meio da sua temática, transmite informação através das histórias que trazem nas apresentações e, por isso, as confi- guram como fonte de informação. Ao possibilitarem que as pessoas tenham contato e absorvam as informações e dados acerca de sua cultura, história e identidade que, posteriormente, estejam aptas para recuperação nas mídias sociais. É nesse sentido que as quadrilhas agem como fator de disseminação de informação, levando também a história da nossa cultura e de tantas outras cidades que são homenageadas com suas quadrilhas ou grupos folclóricos. Nessa perspectiva, elas atuam como fator de desenvolvimento social por aguçar o imaginário do público e formar senso crítico. Boqueirão foi celeiro de muitas quadrilhas e quadrilheiros tradicionais (Mar- cadores), à exemplo de Sr. Zuzinha, João de Nequinho, Prof. Dedé de Eduardo, Zuleido, Neto Som, Prof. Tinda, Prof. Iolanilson, que fundou o primeiro grupo de dança de Boqueirão (Grupo Folclórico Universal) e, depois, com as inovações, pas- saram por aqui, deixando seus conhecimentos, Os professores Andrade e Deuzimar, sobrevindos de Campina Grande, onde, aqui chegando, implantaram as quadrilhas estilizadas, e, depois, outros e outros marcadores, puxadores, chegaram e também deixaram seus legados espetaculares em várias outras sensacionais quadrilhas e grupos folclóricos na cidade. Conclui-se que a Quadrilha em si, é um patrimônio cultural nosso e pode ser vista como instrumento de disseminação da sua história e raízes, tanto com os vários temas aplicados, como também por levar seu nome para diversas cidades 222

e estados. Ela é representante de sua cidade e que obtém muito sucesso do meio memória, cultura e identidade junino. Além do mais, exerce trabalho social de muita visibilidade e reverência, tanto por beneficiar sua comunidade, como por propiciar interação entre as pessoas por meio de lazer, cultura e trabalho. E Boqueirão também, deve preservar esse legado cultural, em não deixar desaparecer. REFERÊNCIAS ACERVO DA QUADRILHA JUNINA MOLEKA 100 VERGONHA. Ajuste em Equipamentos Elétricos. Campina Grande-PB: Sede da Moleka 100 Vergonha, 2019. ALVES. B. F; ALVES. D. F. Geografia Cultural: da sua gênese ao contexto das contribui- ções atuais. In: 4 Semana do Servidor e 5 Semana Acadêmica. Universidade Federal de Uberlândia: Uberlândia, 2008. CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do Folclore Brasileiro, São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: como entrar e sair da modernidade. 4 ed. São Paulo: EDUSP, 2008. CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural: o estado da arte. In Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. _____________. A Contribuição Francesa ao Desenvolvimento de Abordagem Cultural na Geografia/Paul Claval. In: CORRÊA, L. R. ROSENDAHL, R (org). Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2003. CODECOM. Apresentação da Junina Moleka em 2011. Arquivo Pessoal. S/D. CORDEIRO, Cléa. Memorial do Maior São João do Mundo. Arquivo Pessoal, S/D. COSGROVE, Denis Edmund. A Geografia stá em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In CORRÊA, R. L.; ROSENDALH, Z. (org.). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. p. 92 – 123. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapas estaduais/municipais, 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/. Acesso em 10/03/2019. MORIGI, Valdir José. José. Imagens Recortadas, Tradições Reinventadas: as narrativas da festa junina de Campina Grande – Paraíba.Tese (Doutorado em Sociologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2001. ROSENDHAL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato. Manifestações da Cultura no Espaço. Geografia Cultural: Passado e Futuro. Rio de Janeiro. Ed. UERJ, 1999. ROUANET. Lei de Incentivo à Cultura. Disponível em: http://leideincentivoacultura. cultura.gov.br/. Acesso em 03 abr. 2019. SAUER, Carl. A Morfologia da Paisagem. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSEN- DHAL, Zany (org.) Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998 (1925). ZAMITH,Rosa Maria Barbosa.A dança da Quadrilha na Cidade do Rio de Janeiro: sua im- portância na sociedade oitocentista.Textos escolhidos de cultura e arte populares,v.4,n 1,2007. 223



PARTE 3 EDUCAÇÃO E SOCIABILIDADES



13 educação e sociabilidades MASCULINIDADES NO UNIVERSO FEMININO: UM ESTUDO NA ESCOL A NORMAL MUNICIPAL DE BOQUEIRÃO - PB NOS ANOS 2000 MARIA DO DESTERRO LUIZ GOMES No Brasil, a educação articulada com a problemática de gênero emerge com o movimento da luta feminista, de resistência de grupos comprometidos politi- camente com processos das transformações sociais, especificamente no tocante à equidade de gênero. Ao tratarmos a temática das relações de gênero, observamos que estas são relações de poder estabelecidas, social e culturalmente, exercidas entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, homens e homens, ocorrendo nas esferas públicas e privadas, transmitidas de geração em geração. Infelizmente, existem modelos de comportamento esperados para cada sexo. No espaço educacional, meninas fazem o papel de “boazinhas”, mais quietas, organizadas e esforçadas. Devem ter cadernos impecáveis e jamais voltarem sujas ou suadas do recreio. Já os meninos podem se mostrar mais agitados e indisci- plinados. Espera-se que eles gostem de futebol e se tolera que tenham o caderno menos organizado e o material incompleto. Qualquer deslize nesses padrões de comportamento representa sinal de alerta, da inversão do que se espera de uma atitude feminina ou masculina. Do mesmo modo, a escolha profissional deve corresponder a papéis social- mente estabelecidos. O homem deve escolher atividades consideradas masculinas e as mulheres atividades consideradas femininas. Fugir à norma representa uma inversão de padrões. Nesse contexto,foi realizado este trabalho de pesquisa qualitativo-quantitativa visando descobrir os reais motivos que afastam os homens dos cursos do magisté- rio, como também tentamos desenvolver a sensibilização junto à escola, universo da pesquisa que dispõe de pouca oportunidade para focalizar o tema em estudo. A abordagem da pesquisa que ora apresentamos objetivou traçar o perfil dos docentes masculinos da Escola Pública de Formação Docente, localizada no Município de Boqueirão-PB, a fim de identificar suas contribuições e destacar os conflitos de gênero vivenciados pelos/as professores/as formados/as na referida escola. A análise vem representar uma construção histórica cultural (VAINFAS, 2002), contra a exclusão dos homens do universo da educação infantil e básica, seguindo os princípios de teorias feministas (BADINTER, 1993; MURARO; BOFF, 2002, MACHADO, 2004). 227

Importa reconhecer que há um déficit significativo nos estudos sobre os ho- mens no contexto das relações de gênero. Esse representa um campo em construção. Faz-se necessário explicitar o enfoque de gênero que adotamos ao tratar sobre o tema da masculinidade e ao abordar homens em situação de ensino e aprendizado. Em vez de procurar os culpados, se faz necessário identificar como se cons- troem e como se mantêm relações de subordinação, gerando menos desigualdade social e possibilitando, transformações no âmbito das relações sociais. O magistério tem sido uma profissão exercida,majoritariamente por mulheres e os cursos normais, em nível médio, constituem-se um espaço predominantemente feminino, tanto no aspecto docente, como no discente. O magistério apresenta atualmente essa característica em todas as séries, correspondendo ao estudo peda- gógico que objetiva preparar professores e professoras para lecionarem no Ensino Infantil, Fundamental e Médio. Esse fenômeno chamado de feminização do magistério tem sido apontado pela teoria feminista como um processo histórico-cultural, sendo explicado a partir de múltiplos olhares de gênero, político, econômico e cultural. No processo de feminização do magistério há a supervalorização social da maternidade (FORNA, 1999), passando a ser um componente importante para a construção da identidade, uma vez que tem sido a mulher a responsável pela educação dos futuros cidadãos e dóceis operários que geram a produção do País. Ainda nesta linha de pensamento, (NÓVOA, 1997) destaca que a femi- nização do magistério foi um dos principais aspectos que contribuíram para a desvalorização social e econômica da profissão, visto que tem, em sua gênese, como profissão, características evidentes de: docilidade, falta de competitividade e obediência, sendo fatores de suma importância para a manutenção da ordem que, aliado ao fato da escola ser concebida como o espaço do silêncio, do controle corporal, da disciplina; lugar de ouvir e não falar, transformando a educação em mero reprodutor de um sistema. A ideia do estereótipo do exercício do magistério ser profissão feminina tem sido traçada no seio da família, fato percebido claramente nos depoimentos reco- lhidos daqueles que “heroicamente se aventuraram” a abraçar a profissão. Segundo os pesquisados, a escolha do magistério estimulou preconceitos, obrigando-os a forjar a aceitação na sociedade. Nessa perspectiva, a organização do sistema educativo incentivou o ingresso das mulheres no magistério, uma vez que a estrutura econômica, política de muitos países havia sido arrasada durante a 2ª Guerra; o Estado não havia se recuperado totalmente a ponto de proporcionar empregos para toda essa massa trabalhadora composta por homens e mulheres. Nesse momento, a atividade docente foi bas- tante incentivada devido à falta de oportunidades para a mão-de-obra feminina e, 228

sendo a docência uma atividade considerada como um prolongamento do trabalho educação e sociabilidades doméstico, o mais viável seria, portanto, o magistério ser ocupado por mulheres. O magistério era visto com uma extensão da maternidade, o destino pri- mordial da mulher. Cada aluno ou aluna era representado como filho ou filha espiritual e a docência como uma atividade de amor e doação à qual acorreriam aqueles jovens que tivessem vocação. (LOURO, 1997, p. 451) Assim,a masculinidade tem sido definida em oposição à feminilidade.Nos padrões patriarcais cabe ao ser masculino não expressar seus sentimentos e emoções. Deve ser rígido, frio, agressivo se distanciando do mundo feminino para “provar”que é homem. O homem deve exibir uma aparência de audácia, agressividade, até mostra-se disposto a correr todos os riscos, inclusive quando a razão ou o medo aconselham o contrário. O homem que se submete a esses impe- rativos é o supermacho que durante muito tempo povoou a imaginação das massas. (BANDITER, 1993, p.134) No entanto, ocorrem modificações sociais significativas na década de 70. Afloram as ideias feministas que se contrapõem aos moldes patriarcais pré-deter- minados para o ser homem e o ser mulher. Buscando inserir-se no mercado de trabalho, ter o direito de administrar o próprio corpo, e exercer sua cidadania, o feminismo promove uma cisão na estrutura social. A ruptura do ideal masculino que ostentava uma virilidade inquestionável é colocada em xeque. A identidade masculina construída nos moldes patriarcais não encontra subsídios hegemônicos para manter sua “superioridade” em relação à identidade feminina. O sonho igualitário desmantelou a masculinidade tradicional e pôs fim ao seu prestígio. Isto se traduziu numa recusa dos valores masculinos e na idealização dos valores femininos. A maioria dos homens sentiu-se relegada ao banco de réus. Angústia, culpa e agressividade foram as reações mais comuns. (BANDITER, 1993, p.148) Portanto, se faz pertinente esclarecer que não é o sexo, a raça ou a cor que qualifica ou profissionaliza o ser humano. O profissional da educação deve ser alguém, homem ou mulher, responsável que fundamente sua prática pedagógica e educativa em uma opção de valores e ideais que promova a equidade entre os sexos. Importa conceber o exercício docente como uma ação humana, individual e ao 229

mesmo tempo coletiva, fundamental ao reconhecimento e possível intervenção na realidade social, política, econômica e cultural da sociedade na qual estão inseridos. Desse modo, professor e/ou professora, enquanto agente transformador da sociedade é responsável pelo desenvolvimento das competências e habilidades necessárias à formação do cidadão desde a Educação Infantil ao Ensino Superior. Um exemplo disto são as construções de gênero presentes no espaço escolar, na qual perpassam todo o processo educativo e, portanto, não podem ser ignoradas. A esse respeito, Bernardo (2000, p. 29) também traz suas contribuições ao afirmar que: [...] a educação é dialética e política,podendo funcionar como instrumento de resistência e de transformação social, comprometida com a superação das desigualdades nas relações de gênero, retirando a “invisibilidade” e “desnaturalizando” essas relações. A professora, na medida em que ques- tiona os comportamentos rotulados como exclusivamente “masculinos ou femininos”, ou ainda, quando problematiza o que é apresentado nos materiais didáticos,as ilustrações dos livros que vinculam ideologias sexistas, estarão contribuindo para o processo de recreação da subjetividade do ser humano, visando uma humanização plena da mulher e do homem. (BERNARDO,2002, p.29) No contexto das lutas sociais por uma escola pública de melhor qualidade, não podemos excluir a problemática das relações de gênero, visando à construção de uma sociedade não sexista, onde sejam desenvolvidas plenamente as potencialida- des humanas, porque não existe qualidade exclusivamente masculina ou feminina, existem tão somente qualidades humanas. A educação articulada com a problemática do gênero emerge como movimento de luta, de resistência das instituições comprometidas politicamente com os pro- cessos das transformações sociais especificamente no tocante à equidade de gênero. Por isso, se espera de educadores e educadoras um olhar e ouvido atentos no cotidiano escolar a fim de evitarem a discriminação negativa, o reforço dos estereótipos, o desrespeito às diferenças individuais e opções sexuais. Esperam-se intervenções positivas que questionem idéias e sentimentos, convidando alunos e alunas a participarem da construção de um mundo em que as relações sociais sejam mais justas e mais felizes, onde homens e mulheres possam se desenvolver plenamente, buscando a valorização da paz e de todas as formas de vida. Portanto, refletindo sobre essas questões, propomos uma educação escolar não sexista, para que, já transformada e conscientizada, possa interferir no meio social equilibrando as desigualdades existentes nos diversos grupos sociais. 230

Como escreve Simone de Beauvoir, “Ninguém nasce mulher, se torna”. Esta educação e sociabilidades afirmação é comprovada pela vida: homens e mulheres, nascidos iguais como seres humanos,tornam-se desiguais socialmente; se a realidade é dinâmica e contraditória, a educação não pode ser neutra. Quando desenvolvemos uma prática educativa, estamos assumindo um compromisso social com outras pessoas. Neste caso, ou educamos para que as pessoas se apropriem de suas capacidades humanas, ou as educamos para a submissão, reproduzindo condições necessárias para a perpetuação de normas e esteriótipos. Por fim, as reproduções culturais, manifestas pela escola e na escola, passando a enxergá-la como “espaço atravessado pelas relações de gênero” (LOURO, 2000, p. 26), considerando suas respectivas implicações sociais. Dessa forma, as formações do professor e da professora devem articular todos os elementos intervenientes na prática pedagógica em suas contradições e diversidade. É importante que as temáticas de gênero e sexualidade sejam vin- culadas ao contexto escolar e à sociedade em geral ensejando práticas plenas de significações que favoreçam à produção de subjetividades menos excludentes, e que as diferenças dos seres humanos sejam respeitadas, independente de que sejam do sexo masculino ou feminino. No final do ano de 1993, após uma avaliação geral do desenvolvimento da Educação do Município de Boqueirão, chegou-se à conclusão de que, além de cursos de reciclagens, se fazia necessário, o Curso Normal, em nível médio. O objetivo de tal curso era sanar as deficiências dos professores leigos que, não haviam concluído o Ensino Fundamental. A Divisão de Educação do Município, em conjunto com a Prefeitura Municipal, solicitou ao Conselho Estadual de Educação uma autorização para o funcionamento de um curso profissionalizante na Modalidade – Normal, em Nível Médio. Tal pleito foi atendido prontamente, considerando que o município tinha 247 (duzentos e quarenta e sete) docentes. Dentre esses, apenas 50 (cinqüenta) tinham habilitação específica, e o restante, 197 (cento e noventa e sete), eram leigos dos quais 85 (oitenta e cinco) com Ensino Fundamental incompleto, 45 (quarenta e cinco) com o Ensino Fundamental completo, 25 (vinte e cinco) com o Ensino Médio incompleto e 40 (quarenta) com o Ensino Médio completo. Em 1994, foi fundada a Escola Normal Municipal Padre António Palmei- ra, pelo Decreto-Lei nº 422, de 04 de Janeiro de 1994, visando à qualificação de professores e professoras do município e cidades circunvizinhas. A referida escola, desde a sua criação teve quatro diretores/as, sendo eles: Laudemiro Lopes de Figueiredo Filho – de janeiro a dezembro de 1994, Izabel Cristina Barbosa dos Santos – de janeiro de 1995 a dezembro de 2000 e Cândida de Normando – de janeiro de 2001 a dezembro de 2004 e, atualmente, a escola é dirigida por Denise Silva Monteiro. Como vimos, a escola teve apenas uma diretoria gerenciada por pessoa do sexo masculino. 231

Desde sua fundação em 1994, a Escola Normal Municipal Padre Antônio Palmeira, formou aproximadamente 480 (quatrocentos e oitenta) profissionais, dentre estes 5 (cinco) homens, ( José Erivaldo da Silva, Reginaldo Cardoso, José Carlos Silva, Manoel Paulo Rodrigues, Ozanildo Borges Ferreira). Assim, perce- be-se um pequeno índice de procura das pessoas do sexo masculino ao magistério, tanto a nível discente quanto a nível docente e administrativo. Nesse contexto, foi realizado este trabalho de pesquisa objetivando descobrir os reais motivos que afastam o público alvo dos cursos do magistério, como também desenvolvemos um trabalho de sensibilização junto à sociedade acadêmica que, aparentemente, tem tido pouco ou nenhuma oportunidade de focalizar o tema em estudo. Ao analisar os dados da referida pesquisa, percebemos claramente que há pouca representatividade masculina na formação para docência na educação infantil e séries iniciais, no município de Boqueirão. Desta forma,constatamos na pesquisa quantitativa que foram formadas durante a existência da Escola Normal Municipal Padre Antônio Palmeira,475 (quatrocentos e setenta e cinco) mulheres para apenas 5 (cinco) homens,o que representa em termos percentuais,1,05% de todo o universo masculino para 98,95% de mulheres formadas. Quanto à atuação profissional, quatro dos formados pela Escola Normal Municipal Padre Antônio Palmeira atuam na zona rural sendo que um atua na EJA – Educação de Jovens e Adultos e três com Educação Infantil. Desses, apenas um atua na zona urbana na Educação Básica. Comprovamos,no decorrer da pesquisa,que o principal motivo de afastamento dos homens da Escola Normal é o preconceito com relação às questões de gênero, haja vista ser o magistério uma profissão concebida culturalmente como feminina. Contemporaneamente, os estudos de gênero na área da masculinidade e formação do educador são incipientes. Apesar de haver certo interesse por parte de determinados pesquisadores,ainda são limitados os estudos e/ou pesquisas que tratam do tema. Podemos destacar as pesquisas de Elizabeth Badinter, Ana Paula Portella, Benedito Medrado, Cecília de Melo e Souza, Pedro Nascimento, Simone Diniz, entre outras. Tais estudos feministas vêm contribuindo significativamente para que as escolas e outras instituições se libertem da ideia preconceituosa criada em torno da docência na educação infantil e séries iniciais,exercida por pessoas do sexo masculino. Em todas as sociedades do mundo, incluindo os países com um nível de vida relativamente elevado, 600 milhões de crianças, mulheres e homens continuam a enfrentar práticas e obstáculos discriminatórios, que os im- pedem de exercer os seus direitos e as suas liberdades e tornam mais difícil a sua plena participação na vida das sociedades em que estão inseridos (Revista CONSTRUIR NOTÍCIAS, nº 27, ano 05, Março/Abril 2006). 232

Para professores e professoras conceberem a profissão como uma ação educação e sociabilidades humana, individual e coletiva, deve reconhecer a realidade social em que vivem e perceberem os obstáculos que esta mesma sociedade coloca na compreensão do que seja atividade masculina e feminina, conforme nos sugere Machado (2004. p 39): A denominação ‘homem feminino’e ‘mulher masculino’apontam a ausên- cia de conceitos que possam operar mais eficientemente nas indagações a respeito do que caracterizam um homem e uma mulher, se há de fato uma possibilidade de defini-los atualmente. Desse modo, a professora ou o professor, como sujeitos de transformação, tem um papel muito importante na construção das relações de gênero no interior da escola, na qual perpassam todo o processo educativo e, portanto, não pode ser ignorado. Nessa mesma direção sugerimos a promoção de uma educação não sexista, de modo que homens e mulheres vivenciem as diferenças sem que estas sejam traduzidas em desigualdades: A literatura sobre a presença de homens em ocupações tradicionalmente femininas revela que, dentre os obstáculos que se impõem contra a presença de homens na educação infantil, é o fato de que tal atividade tem sido fortemente associada às mulheres e a padrões de feminilidade. Além disso, a introdução de homens nessa área tem gerado preocupações variadas, principalmente no que se refere à conduta dos homens educadores. Evidenciamos, portanto nesta pesquisa, que os profissionais da educação do sexo masculino do curso magistério pesquisado, apresentam diferentes motivos para justificarem a escolha da profissão. Os pesquisados destacaram como motivos: imposição do poder público, vocação, única oportunidade de trabalho, possibilidade de sair da condição de professor leigo e por necessidade de formação. Diferente- mente das profissionais da educação do sexo feminino, que justificam a escolha do magistério como que feita baseada no “suposto” instinto materno e no amor pelo ensino ou vocação inata. *** 233

Assim,resolvemos registrar a trajetória de vida de professores que frequentaram a Escola Normal Municipal Padre Antônio Palmeira, conforme veremos a seguir: JOSÉ ERIVALDO DA SILVA ministra aulas desde 1993 no Ensino Fun- damental.Tornou-se professor pela necessidade local do Sítio Cavaco no município de Boqueirão-PB, este foi previamente selecionado em um processo simplificado realizado pela Secretaria Municipal de Educação no mesmo ano. Atuou em sala de aula, sob essas condições até 1997, quando participou de concurso público, sendo aprovado para o cargo de professor polivalente para o município de Boqueirão, onde leciona até os dias atuais. O referido professor cursou a Escola Normal no período de 1994 a 1996, sendo, portanto, membro da turma pioneira. Relata que sua inserção na turma se deu de forma rápida, e sua aceitação perdura aos dias atuais, porém, não era satis- feito com o estudo da profissão, pois ela lhe foi imposta. Em seu relato nos diz que: O Secretário de Educação Laudemiro Lopes me impôs estudar na Escola Normal, pois caso contrário eu seria demitido e, como na época não tinha outra alternativa, fui obrigado a cursar o magistério. Atualmente agradeço, pois logo após o curso magistério, tratei de cursar Enfermagem. Só que achei uma decepção, não assumi a profissão em momento algum. Por fim, cursei Ciências Econômicas na Universidade Federal de Campina Grande e posteriormente fiz a pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável na mesma instituição, e ainda estou matriculado no mestrado em Engenharia dos Recursos Naturais na Universidade Federal de Campina Grande. José Erivaldo leciona na Escola Municipal Virginius da Gama e Melo no Município de Boqueirão e coordena um curso pré-vestibular no Município, o Pró-Vest Vestibulares e Concursos. Foi coordenador do Ensino Fundamental do município de Boqueirão por quatro anos, de 2001 a 2004, e no mesmo período, acumulou cargos de Coordenador Financeiro do PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e projetista da Prefeitura Municipal de Boqueirão. A ideia de o estereótipo do exercício do magistério ser profissão feminina, é traçada já em nível de família, isto é percebido claramente nos depoimentos reco- lhidos. Ao abordamos o professor sobre a aceitação de sua família por sua profissão, obtivemos a seguinte declaração: 234

Sofri preconceito pela escolha da profissão de professor. Na minha família educação e sociabilidades muitas pessoas criticavam dizendo: Erivaldo é daqueles que “heroicamente se aventuraram”a abraçar a profissão, não se sabe se vai aguentar sobreviver com tão pequeno salário. REGINALDO CARDOSO cursou a Escola Normal no período de 1997 a 2000, atua na rede municipal de ensino no Município de Caturité desde 2000, em turmas de educação infantil. Atualmente é aluno do curso de Pedagogia na Universidade do Vale do Acaraú – UVA. Em se tratando de interação, nunca teve problemas com as ques- tões de gênero, pois sempre conviveu bem com as mulheres, uma vez que estava estudando para ser professor e, mediante essa situação, interagia muito bem com o sexo oposto. Ele nos diz que; Minha escolha deu-se instintivamente, pois desde menino brincava de ser professor e quando adulto surgiu a oportunidade. Sendo assim, não pensei duas vezes: gosto muito de criança e de ser professor e tendo em vista o meu casamento a se realizar em dezembro, almejo gerar muitas crianças. Quanto ao nível de aprendizagem das turmas que são lecionadas pelos homens, é senso comum que ocorre um elevado percentual de apreensão dos con- teúdos, assim como da interação destes com problemas cotidianos. É certo que os professores promovem uma significativa inserção social dos educandos sob sua responsabilidade, fato constatado, na figura do Professor Reginaldo que promove continuamente atividades de cunho cultural com a participação de alunos/alunas da comunidade. O evento mais recente data de dezembro de 2006, com o projeto Leitura na Praça realizado pela UEPB – Universidade Estadual da Paraíba, no Município de Caturité – PB, momento em que o professor envolveu seus alunos e alunas participando com a turma ativamente. O projeto que envolvia leituras de poesias também foi motivo de críticas preconceituosas, por parte de pessoas desinformadas sobre os valores dos seres hu- manos,independente do sexo masculino ou feminino,utilizando críticas mesquinhas, tais como: “os machos da cidade agora recitam poesia, em vez de estarem montados nos cavalos, onde é lugar de homem com H maiúsculo”. Segundo os pesquisados, a escolha do magistério estimulou preconceitos, até mesmo durante o lazer, em conversas nos bares com as desagradáveis e apa- rentemente inocentes brincadeiras: “agora nosso amigo virou uma professorinha” e embora os mesmos tenham se formado no magistério e exerçam a profissão, 235

tiveram que forjar a aceitação no ambiente em que trabalham, na família, e assim na comunidade como um todo. JOSÉ CARLOS SILVA cursou a Escola Normal no período de 2000 a 2003. É residente no Sítio Moita de Boqueirão-PB. Atua como professor de 1ª a 4ª série na rede municipal. Não tem preconceito em estudar num universo quase que totalmente feminino. Atualmente é aluno do Curso de História da Universidade Estadual da Paraíba. Segundo suas informações, o professor não tinha a intenção de lecionar: A princípio eu não tinha conhecimento do que vinha a ser a profissão de professor, mas após ter contato com uma turma da EJA me identifiquei bastante. O que o motivou de cursar o pedagógico foi por começar a trabalhar na educação infantil, onde permanece até os dias atuais. MANOEL PAULO RODRIGUES, é casado, residente no Sítio Bento de Boqueirão leciona no Sistema Municipal de Educação desde 1984. Com o surgimento da Escola Normal, percebeu uma oportunidade de ampliar os conhe- cimentos, isto por uma advertência da então Secretária de Educação do Município Rozélia Sousa Santiago. Assim Manoel se expressa sobre a escolha do magistério Não tive nenhum problema de cursar o magistério. Em minha turma era um homem e doze mulheres e sempre me dei bem com todas. Trabalhar com Educação Infantil não foi escolha, aconteceu meio que por obra do destino, porém confesso minha total afeição, tanto que continuo até hoje. Fui professor leigo por longos vinte e dois anos e deixei de ser após cursar o Normal. E agradeço ao curso do magistério por ter um diploma e poder melhorar a minha atuação na sala de aula. OZANILDO BORGES FERREIRA, residente no Sítio Cavaco de Boqueirão, é professor desde 2002, atua na rede municipal de ensino com turmas multisseriadas (1ª a 4ª série). Cursou o Pedagógico no período de 2001 a 2005, e assim nos relata sobre sua experiência: Confesso que no início do curso foi difícil, pois nunca havia estudado em um universo tão feminino como aquele. Sentia-se deslocado, mas com o passar do tempo percebi que estava ali para aprender uma profissão independente de ser homem ou mulher. 236

E acrescenta: educação e sociabilidades As oportunidades de trabalho em nosso município são muito escassas. Percebi, no magistério, uma oportunidade de trabalho. Estou na profissão desde 2002, e, escolhi a educação de crianças por considerar a infância a fase mais importante da aprendizagem na vida de um ser humano. Percebemos que a presença masculina no magistério infantil, embora criti- cada e rejeitada, vem sendo desmistificada mediante aos estudos de gênero e que os homens que abraçam tal carreira conseguem realizar bons trabalhos. Com esta afirmação, não queremos dizer que, o trabalho educacional feminino seja menos importante do que o masculino, porém por termos poucos homens na profissão, suas vivências acabam por se transformarem em objeto de estudo e tendo um caráter louvável, pelo fato dos poucos homens representarem uma amostra significativa na desconstrução da sociedade sexista. Esta pesquisa confirma a necessidade de propiciar uma prática pedagógica desafiadora, pois a problemática das relações de gênero é decorrência de um reflexo enaltecido pelas relações sociais ao longo do tempo e reforçado pelas práticas que constituem as instituições: família, escola e igreja. Verificamos ainda, nas entrevistas, que a família continua a influir na escolha profissional desestimulando os filhos ao interesse pelo magistério e artes, justifi- cando serem áreas especificamente femininas e pouco remuneradas, enquanto que os estimulam para as ciências matemáticas e da natureza, sob a alegação de serem adequadas para os homens. Outro fato agravante diz respeito à falta de informação generalizada sobre o conceito e teorias de gênero e sexualidade, pois os professores e professoras demons- tram ausência de conhecimento e pouco interesse em modificar comportamentos ou mesmo trabalhar tais questões. Os resultados da pesquisa confirmam que a construção da identidade de gênero compactua-se fortemente com a formação do ser humano nos diferentes contextos sociais. Assim, as diferenças biológicas se converteram em desigualdades nas relações de gênero reforçando o sexismo. Refletindo sobre esse contexto, mediante a análise confirmada, chegamos à conclusão de que, não devemos permitir a dominação de um sexo sobre o outro, devemos sim, lutarmos em favor das transformações no sentido de superar as in- justiças sociais, como pretendem as teorias feministas. Por isso, concluímos que não podemos tratar dos estereótipos socialmente construídos apenas com desejo de diminuí-los. Importa proporcionar aos segui- mentos da instituição, principalmente aos professores/as, uma leitura crítica da 237

realidade com subsídios necessários para refletirem a respeito das ações, atitudes e comportamento escolar, objetivando entrever nesse processo formas de construir identidades de gênero com menos preconceito e mais confiança nas capacidades que ambos os sexos possuem. Sugerimos algumas práticas educativas que visem à reflexão e minimizem as desigualdades de gênero na escola nas séries iniciais de modo a desconstruir a educação sexista: • Discussão sobre as expectativas da turma a respeito de homens e mulheres. Por exemplo: pedir que todos descrevam ou façam desenhos de um homem ou de uma mulher e mostre como as imagens do “masculino e do feminino”são moldadas pela sociedade e pelos meios de comunicação. • Solicitação aos alunos e alunas que reconstruam a história profissional de suas famílias, citando onde trabalhavam as mulheres a duas ou três gerações? E os ho- mens? Conversa sobre os estereótipos no trabalho. • Organização de jogos com equipes mistas para promoção da integração entre os sexos. • Inversão das expectativas em torno dos papéis de gênero: pedir para que uma aluna carregue uma caixa de livros e que um aluno varra uma sujeira na sala. • Debate sobre atividades que a mulher e o homem possam realizar tipo: cozinhar, costurar, fazer consertos, brincar com bonecas, jogar bola, etc. • Convite aos alunos e alunas para a realização de “tarefas em comum”, como trabalhar com peças e ferramentas de marceneiro e/ou lavar roupas. • Estímulo para que as alunas estudem ciências exatas e os alunos estudem arte e poesia. • Incentivo à leitura de poemas e poesias para meninos e meninas e realização da apresentação de sarau para toda a escola. • Desenvolvimento de propostas a respeito da culinária regional e praticar algumas receitas na cozinha da escola solicitando para as meninas ditarem os ingredientes e os meninos conduzir o restante do processo para, em seguida, discutir a inversão dos papéis. Enfim, importa que pesquisadores e pesquisadoras da educação reflitam sobre sua prática partindo da realidade e das teorias de autores que ressaltam a sociedade baseada nos princípios da equidade, justiça e paz entre homens e mu- lheres do presente século. Por isso, concluímos que não podemos tratar dos estereótipos socialmente construídos apenas com desejo de diminuí-los. Importa proporcionar principal- mente aos professores e professoras, uma leitura crítica da realidade com subsídios 238

necessários para refletir a respeito das ações, atitudes e comportamento, objetivando educação e sociabilidades entrever nesse processo formas de construir identidades de gênero com menos preconceitos e mais confiança nas capacidades intelectuais, físicas, emocionais que ambos os sexos possuem. REFERÊNCIAS BANDINTER, Elizabeth. XY sobre a identidade masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1993. BERNARDO, A. M. C. Implicações pedagógicas das relações de gênero no cotidiano escolar. In: CARVALHO, Maria Eulina Pessoa de (Org.). Consciência de Gênero na Escola. João Pessoa: Editora Universitária/UEPB, 2000. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1980. (v.1 e 2). FORNA, Aminatta. Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães. Tradução: Ângela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. LOURO, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: vozes, 1997. MACHADO, Lia Zanotta. Masculinidades e violência, gênero e mal-estar na sociedade contemporânea. In: SCHPTUN, Mônica Raisa (Org.). Masculinidades. São Paulo: Boi- tempo Editorial. Santa Cruz do Sul, Edunisc, 2004. MURARO, Rose Maria; BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. NÓVOA, Antônio (Org.). Vida de professores. Porto: Porto Editora, 1997. PORTELLA, Ana Paula et.al. Homens: sexualidade, direitos e construção da pessoa. Recife: SOS CORPO, 2004. RODRIGUES, Janine Marta Coelho. Construindo a profissionalização docente. João Pessoa: Editora Universitária/UEPB, 2003. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da história: micro história. Rio de Janeiro: Editora Campos, 2002. 239

14 REMEMORAR PARA PRESERVAR: as vozes das professoras da Educação Infantil de Boqueirão JOSEFA FABNICE DE SOUSA FREITAS “Cada um lê com os olhos que tem E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto.” (Leonardo Boff ) APRESENTAÇÃO Este artigo se propõe a resgatar a trajetória da implantação da Educação Infantil no município de Boqueirão, partindo da memória docente das educadoras pioneiras que se constituíram como fontes importantes para a história da Educação Infantil da cidade. As vozes dessas professoras nos permitiram identificar as formas de atendimento e as concepções que vem caracterizando a Educação Infantil ao longo dos anos, conhecer as principais personagens, instituições e movimentos que marcaram a sua história, a partir do ano de 1980. Em termos metodológicos, por razão do caráter subjetivo dos aspectos in- vestigados, a produção e a análise dos dados se deram nos princípios da pesquisa qualitativa. Os dados foram coletados e analisados através de entrevista memorial semi-orientada e das relações que fizemos junto aos referenciais bibliográficos. Para a coleta de dados, foram realizadas entrevistas durante o mês de fevereiro de 2021 com as docentes[1], Josefa Rosangela Costa Ernesto, Solange Pereira Rodrigues, Lenice Barbosa de Lima,Joelma Cavalcante Albuquerque,com a ex-diretora escolar, Maria Rosa de Lima e as atuais diretoras, Anadia Duarte da Costa e Fabiana de Sousa Mendes. As colaboradoras concordaram em manter suas identidades por entenderem que seria importante para que pudessem ser reconhecidas como as pioneiras da Educação Infantil do município e para garantir a confiabilidade das informações prestadas. Com base nos princípios éticos da pesquisa educacional, foi assinado um termo de consentimento por ambas as partes. Diante da confiança 1   A s participantes foram selecionadas por meio de critérios pré-estabelecido: ter trabalha- do na primeira escola infantil e ter participado da fundação e/ou trabalhar nas creches municipais. Por não conseguirmos contatar a todas as pioneiras, trabalhamos com uma amostragem de sete participantes que representaram e rememoraram com propriedade cada etapa da construção histórica da Educação Infantil de Boqueirão. 240

recíproca, a pesquisadora assegurou às colaboradoras o direito da leitura do texto educação e sociabilidades final antes de sua publicação para obter delas a aprovação. Esta narrativa constituiu-se,assim,como um instrumento de resgate histórico, de reflexão e de resistência, pois, a memória não é apenas constatação do passado ou advertência; ela tem um vetor necessariamente projetivo, neste sentido, a ela- boração da memória se dá no presente e vem responder as demandas do presente, (MENESES 1999). Diante da escassez de fontes escritas, pesquisas e documentos oficiais, que retratem a historicidade da educação para a primeira infância em Boqueirão, esse estudo torna-se relevante, por oportunizar as professoras pioneiras que muitas vezes são relegadas ao esquecimento, rememorar os primórdios e experiências de “seu tempo de professora,” ressignificar suas experiências, buscar respostas para suas inquietações, pensar sobre seus valores e ao apresentar os fatos que a seu ver foram marcantes, contribuir para a construção da memória educacional da cidade. Ao leitor trará a oportunidade de abrir um canal de discussão entre o passado e o presente, de sensibilizar-se, desvendar novas formas de resistir e desenvolver uma postura reflexiva que o mobilize a atuar em defesa da garantia da Educação Infantil de qualidade social para todos os meninos e meninas indistintamente. Os proveitos desse estudo poderão também,ser percebidos por aqueles/aquelas que desejarem estudar sobre a educação na cidade ou mesmo continuarem a deixar registrado, em textos, a história dos sujeitos que contribuíram para a construção da Educação Infantil em Boqueirão, colaborando então, com a formação da história social do município. Para uma apresentação mais didática, inicialmente, o texto aborda o caminho trilhado na construção da Educação Infantil no Brasil e as principais marcas históricas da construção do direito à Educação Infantil. Para compreender a constituição da Educação Infantil em Boqueirão, expomos assim, três recortes temporais que no conjunto contemplam as fases: 1) compreende os anos de 1980 a 1990 e apresenta relatos dos primórdios da Educação Infantil pública municipal e seus desafios; 2) retrata os anos de 1991 a 2020 trazendo um panorama da implantação das creches municipais, das experiências vivenciadas, dos desafios e da realidades atual no con- texto dessas instituições; 3) compreendendo que rememorar é importante e futurar é necessário, toma-se por base o ano de 2021, o qual vislumbra-se um novo horizonte para Educação Infantil,novas perspectivas são criadas e a esperança de continuarmos escrevendo a história da Educação infantil de Boqueirão com qualidade são cultivadas. Seguimos otimistas e confiantes que outros levantarão suas vozes e reivindicarão por uma maior atenção por parte do poder público para com a educação dos infantes boqueirãoenses. Assumindo essa luta, colheremos os frutos do trabalho e esforço coletivo de todos que fazem parte de uma rede de Educação Infantil em construção. 241

O CAMINHO TRILHADO NA CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL O direito à Educação Infantil pública é recente no Brasil, a concepção de criança como sujeito de direito foi historicamente se constituindo ao longo do tempo. Para rememorar a constituição da Educação Infantil do município de Boqueirão/ PB, é preciso compreender como se deu o processo histórico da Educação Infantil em âmbito nacional, pois as concepções de infância são construções históricas e em cada época predominam certas ideias de criança, de como ela desenvolve e qual conhecimento lhe é próprio, tais concepções orientam ações diversas por parte do poder público conforme a camada social atendida. Até meados do século XIX não havia no Brasil creches, parques infantis ou jardins de infância para o atendimento de crianças pequenas. Com o aumento da migração dos moradores da zona rural para os grandes centros urbanos e com a ocorrência da Proclamação da República foi surgindo as condições para que acontecesse um desenvolvimento cultural e tecnológico no país. Desse modo, o anseio das elites políticas por construir uma nação moderna e próspera os levou a assimilar, novos preceitos educacionais, (OLIVEIRA, 2012). Porém, pensar um ambiente promotor da educação para os infantes dos di- ferentes grupos sociais era um enorme desafio, pois o poder público se posicionava contrário à ideia de se criar jardins da infância que pudessem atender a classe pobre. Contudo, se fortalecia no país um movimento de proteção à infância pautada numa visão assistencialista de atendimento de caridade aos menos afortunados, e mesmo diante das combativas críticas investidas por diversos setores da sociedade, em 1896, os primeiros jardins de infância públicos foram criados, todavia, como o foco dos investimentos na área da Educação, na época era no ensino primário, estes centros educacionais não deveriam ser mantidos pelo poder público. Com a intensificação da industrialização e da urbanização, a estrutura da família e as concepções e formas de cuidar das crianças foram sendo modificadas, no ano de 1919, o governo instituiu o Departamento da Criança do Século XX, esse movimento defendia à assistência cientifica a infância, sob o discurso médico sanitarista que atribuía à família a responsabilidade por eventuais doenças que viessem acometer seus filhos, podendo a creche, acolhê-los e proporcionar-lhes um desenvolvimento saudável. (KUHLMANN JR, 2011). À medida que os movimentos operários se fortaleciam e as suas reivindicações se canalizavam ao estado,novas perspectivas se criavam para o atendimento à criança pobre, pois, “muitas mulheres contratadas pelas fábricas, começaram a se politizar e exigir seus direitos, o que incluía a criação de locais para a guarda e atendimento das suas crianças enquanto trabalhavam”(OLIVEIRA, 2012, p. 22). Somada a isso, muitas discussões no campo da educação estavam ocorrendo no Brasil e colocando 242

no centro do debate, as políticas públicas nacionais. À exemplo, o Movimento das educação e sociabilidades Escolas Novas, organizado por grandes educadores brasileiros que trouxe para a agenda pública a discussão da Educação Pré-escolar, como sendo à base do sistema escolar, entretanto, predominava a ideia da educação assistencialista para a classe pobre, mas também acontecia o debate sobre a renovação pedagógica nos jardins de infância, onde estudavam os filhos da elite. Com o dinamismo do contexto sociopolítico e econômico, o qual passava o país e com o significativo aumento da participação feminina no mercado de trabalho, na década de 60 uma importante mudança ocorreu na área da educação para a primeira infância, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (4024/61), que incluiu as escolas maternais e os jardins de infância no sistema de ensino brasileiro. De acordo com Kuhlmann Jr. (2011), nos anos dos governos militares, as políticas públicas adotadas, apenas acentuaram a ideia das creches e pré-escolas como sendo mecanismos de assistência para os mais pobres. Neste sentido, as de- sigualdades eram percebidas no padrão do atendimento e no modo de educação que orientava o trabalho dos diferentes grupos sociais. Para as crianças advindas das classes mais favorecidas, houve uma significativa mudança no olhar e no repre- sentar a educação, nos parques infantis e jardins de infância onde eram atendidas, o trabalho estava voltado para o seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social, com destaque na criatividade e na sociabilidade. Porém, nos centros destinados a atender os filhos da classe pobre, A pedagogia das instituições educacionais para os pobres é uma pedagogia da submissão, uma educação assistencialista marcada pela arrogância que humilha para depois oferecer o atendimento como dádiva, como favor aos poucos selecionados para o receber. Uma educação preconceituosa da pobreza e que, por meio de um atendimento de baixa qualidade, pretende preparar os atendidos para permanecer no lugar social a que estariam destinados. [...]. (KUHLMANN JR. 2011, p. 166-1670). As palavras do referido autor, embora façam referência a um período ocor- rido no final do século XIX e início do século XX, está atualíssima, pois ainda há resquícios da concepção assistencialista arraigada na sociedade e no modelo de educação ofertada às crianças pobres, o que impede que estas se emancipem e transformem sua realidade social. Diante de um cenário desfavorável àqueles que estavam às margens da so- ciedade, nos anos 70, os movimentos sociais se fortificavam, travavam lutas pela redemocratização do país e contra as desigualdades sociais, o que induziu o regime 243

militar a adotar medidas para a ampliação do acesso da camada pobre a escola pública obrigatória, mesmo assim, persistia a insuficiência de vagas, o que levou o poder público a implementar programas assistenciais que se mostraram alter- nativas emergenciais, mas, inadequadas, devido à precariedade com os quais eram realizados. Mães-crecheiras, Lares-vacinais e creches domiciliares foram alguns dos programas implantados. Nesse período, cresceu o número de creches comunitárias no país, muitas das quais realizavam um trabalho pedagógico e assim, foram sendo modificadas algumas representações sobre a Educação Infantil. Segundo Flores (2010,p.27),para a área da Educação no Brasil,e especialmente para Educação Infantil, a “década de 80 representa um marco na configuração de alguns direitos, momento a partir do qual, concepções políticas e práticas voltadas à educação pública apresentaram inúmeras transformações”. Nesse período, as ações de importantes movimentos sociais repercutiram na constituição do ordenamento legal para a educação da criança de até seis anos de idade, pressionando os gover- nos, federal, estadual e municipal a implementarem novas políticas para o setor, no momento de redemocratização do país. Nos anos de 1981 e 1982, a educação pré-escolar teve destaque e gozou de prestígio dentro do MEC. Constava da agenda de todos os eventos, internos e externos, promovidos pelo Ministério, seja nos de nível exclusivamente técnico, seja nos de nível político, (DIDONET 1992). Nesse período, o Estado elaborou uma política de intensa expansão da oferta de vagas, configurando a Educação Infantil um modelo de atendimento de massa, o MEC lançou e implantou dois importantes programas, o Legião Brasileira de Assistência (LBA) e o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), ambos pautados numa concepção de educação compensatória, com o objetivo de preparar crianças carentes para o ingresso no Ensino Fundamental, (ROSEMBERG 1999). O Programa MOBRAL, “entrou no contexto do Pré-escolar adotando, e explicitando, as respostas da UNICEF para esta faixa etária de idade, ele foi res- ponsável pela expansão da Pré-escola no Brasil, chegando em 1982 a responder por 50% do atendimento pré-escolar público”, (ROSEMBERG 1999, p.18). Segundo a autora, esse programa restringia-se a atender crianças de 4 a 6 anos e a política proposta pelo MEC guiava as ações das instituições educacionais destinadas a essa faixa-etária. Por meio de convênios, os recursos orçamentários e técnicos, proce- dente da Fundação MOBRAL causaram grande impacto na ampliação de vagas, alterando o modelo de funcionamento da educação Pré-escolar o que contribuiu para o processo de expansão das escolas. Posteriormente, esse modelo sofreu, o impacto de novas ideias sobre Educação Infantil veiculadas pelos movimentos de mulheres e o movimento pelos direitos das crianças resultando em propostas avançadas para a constituição de 1988. 244

De 1986 a outubro de 1988 aconteceu um movimento que representou um educação e sociabilidades marco para a história do direito da criança. Centenas de organismos públicos e privados promoveram o Movimento “Criança e Constituinte”. A Constituição Federal de 1988 normatizou os direitos fundamentais, reconheceu a Educação Infantil como direito da criança e como instrumento para igualdade de oportu- nidades de gênero, na medida em que apoia o trabalho materno extra doméstico. A carta constitucional é a primeira legislação que coloca às crianças de zero a seis anos como sujeitos de direitos e apresenta o Estado como tendo a obrigatoriedade de ofertar Educação Infantil em creche e pré-escola. Tomando por referência o texto constitucional, na década de 90 foram instituídas as Leis, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nº 8.069/90, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), nº 9394/96, que rati- ficou o papel do Estado em ofertar e o direito da criança de ter acesso à educação de qualidade. Além disso, a LDB oficializou a Educação Infantil como sendo a primeira etapa da Educação Básica, fez a integração das duas subetapas, creche e pré-escola e reconheceu que pra além do cuidar e brincar é também necessário educar a criança pequena. Respaldados no ordenamento legal, estados e municípios criaram projetos e programas, a fim de garantir o direito à Educação para todas as crianças de zero a seis anos, uma vez que “é este o imperativo ora colocado a todos, legisladores/ as, gestores/as, intelectuais, educadores/as e famílias”, conforme FLORES (2010, p. 31). Diante da demanda colocada aos gestores, em diversos estados brasileiros, diferentes entidades, movimentos sociais, estudiosos e militantes, se mobilizaram, e criaram fóruns de grande representatividade em prol da defesa do direito e na proposição de políticas para a área da Educação Infantil. Em setembro de 1999, representantes dos principais fóruns do país se reuniram no encontro anual da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPED), realizada em, Minas Gerais, levando à criação do Movimento Inter- fóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), desde então, Vozes de todas as partes do País têm se pronunciado para que a criança seja reconhecida como cidadã de direito e de fato; vozes que clamam por uma maior atenção por parte das autoridades, para que elas, também, as- sumam essa luta, fazendo constar em nossas legislações como é de direito, uma política educacional coerente, a destinação de recursos específicos e um plano adequado à formação de professores para a educação infantil. E, principalmente, que façam valer essas legislações através de ações concretas. (MIEIB, 2002, p. 7). 245

Em 2005 o MIEIB em parceria com a ANPEd comandou uma reação na- cional de pressão ao poder executivo e legislativo, com manifestos via redes sociais, mobilizações nas ruas em várias cidades do país e no Congresso Nacional, onde aconteceu o histórico Movimento dos Fraldas Pintadas que protestava contra o projeto de lei que propunha ampliar o financiamento para a Educação Básica, mas sem contemplar as creches, contudo, mediante a união de forças, em prol da efetiva garantia dos direitos da criança brasileira, obteve-se a conquista da inclusão das creches na Lei promulgada, em 2007. Em conseguinte, passos importantes foram dados para o enfrentamento do desafio a garantia do direito da criança a Educação Infantil de qualidade, no âm- bito do financiamento, no campo pedagógico e da legislação os quais destacamos: a divisão constitucional de competências entre os entes federados, a aprovação do Fundeb (2007). Cumprindo seu papel de indutor de políticas educacionais e proponente de diretrizes para educação o Ministério da Educação e Cultura (MEC), elaborou documentos que referenciam e servem de parâmetros para educação das crianças de 0 a 6 anos de idade, dentre eles estão: Política Nacional de Educação Infantil (2006); Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil (2006) e (2018); Critérios para um Atendimento em Creche que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (2009); Indicadores da Qualidade na Educação Infantil (2009); as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (2009); Plano Nacional de Educação 2011-2020 (2010) e 2014-2024 (2014). Marco Legal da 1ª Infância (2016); Base Nacional Comum Curricular (2017); (FLORES et al. 2010). Em 2020 foi implantado o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério (Fundeb), em substituição ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef ). De acordo com Sousa Junior, (2020), o Novo Fundeb será provisório, com prazo de vigência de 14 anos, e durante esse período os Estados, Municípios e o Distrito Federal deverão investir os recursos na manutenção e desenvolvimento da Educação Básica e na remuneração de seus profissionais. O autor destaca que o seguimento Creche, sofreu riscos de ficar de fora do novo Fundo, e que sua inclusão no Fundeb, foi a mais recente e importante conquista para a etapa da Educação Infantil. O fundo deverá atender desde as creches, até o ensino médio e “constitui-se, sem sombra de dúvidas, um importante passo no sentido de quebrar a política de focalização dos investimentos no ensino público que imperou desde meados da década de 1990 até os dias atuais” (SOUSA JUNIOR, 2020, p. 1). Sendo assim, o Fundeb poderá significar um grande avanço em termos de melhoria da oferta da Educação Básica no país, contribuindo para a garantia 246

do direito da criança de 0 a 3 anos de ter acesso à creche, primeiro seguimento da educação e sociabilidades Educação Infantil. A retrospectiva anterior evidencia que nas últimas décadas, no país, houve vários movimentos que consolidaram na esfera conceitual e no plano legal o para- digma do direito à educação para as crianças de zero até seis anos.Todavia, mesmo a Educação Infantil alcançando importantes conquistas legais no campo das políticas educacionais e o direito da criança ter acesso a educação de qualidade esteja assegu- rado, na legislação vigente, este não está, ainda, de todo garantido e implementado, seja do ponto de vista do acesso, seja no que se refere à qualidade da oferta. Sendo assim, a democratização da Educação Infantil se configura, portanto, como meta da sociedade brasileira. O maior desafio da Educação Infantil atual, principalmente, na esfera municipal, continua sendo, possibilitar que as crianças tenham acesso a uma educação de qualidade e possam frequentar as instituições de ensino com a garantia de que encontrarão um espaço adequado para atender as suas necessidades e interesses, tendo respeitadas dentro do coletivo, suas individualidades. MEMÓRIAS QUE CONSTROEM HISTÓRIAS: NOS TEMPOS DO PRÉ-ESCOLAR (1980 – 1990) Vamos juntos “abrir o portal do tempo” que faz ligação entre passado e presente e nos conduz ao futuro. Vamos nos reportar a uma época, visitar um lugar, conhecer o primeiro Pré-escolar. Um espaço que não era tecido apenas de cimento, tijolos, ferro e areia, mas, um lugar que tinha gente, gente grande e gente pequena. E onde tem gente, tem diversidade, tem beleza, tem afeto, tem riso, tem brincadeiras, tem aprendizagem, tem compromisso, tem resistência, tem luta, tem saber-fazer, tem experiência, tem esperança, tem memórias. A chave que dar acesso a esse lugar não se pode ver e nem tocar, mas ela se ‘materializa’ por meio das memórias orais pertencentes e produzidas pelas profes- soras Josefa Rosangela Costa Ernesto, Solange Pereira Rodrigues, Lenice Barbosa, algumas das pioneiras da Educação para infância do município de Boqueirão. Graças a capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos tempos, nos é possível trazer o passado até o presente, recriar o passado, ao mes- mo tempo em que o projetamos no futuro. Em meio à trama de esquecimentos, lembranças, emoções e sensações, por meio da lente do sensível dispusemo-nos a lapidar as memórias de outrem, um trabalho que demandou atenção, sensibilidade e respeito, pois, como afirma Bossi (1994), as memórias são na verdade narrativas de identidade, na medida em que as entrevistadas não apenas nos mostraram como elas vêm a si mesmo e o mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade. 247

Tomando a narrativa memorialística como possibilidade de produção da história, a constituição histórica da Educação Infantil do município de Boqueirão, aqui apresentada foi delineada através do relato oral das docentes, que generosa- mente compartilharam conosco as mais íntimas lembranças das suas experiências vividas. Essas memórias são conhecimentos produzidos da realidade do dia a dia que se afirmam nas vozes dessas que antes, não tinham sido ouvidas e reconhecidas. Apesar dos fatos estarem circunscrito a uma época passada, a história oral nos possibilita “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 2002, p. 16-17). Sendo assim, o movimento de rememorar trouxe à tona a possibilidade para o resgate das gênesis da Educação Infantil em Boqueirão, e assim contribuir para educação do município, permitindo não apenas melhor compreensão das mudanças educacionais, mas também o fomento à preservação da história de uma comunidade. Tomadas nesse sentido é que as memórias das ex-professoras da Escola Pré-escolar das décadas de 80-90 são consideradas como documentos que auxi- liaram na construção deste estudo. Assim, pelas memórias das “tias”, como eram carinhosamente tratadas pelas crianças, rememoraremos os tempos do Pré-escolar. A história da Educação Infantil de Boqueirão tem seu início no ano de 1982, ano em que no Brasil acontecia a redemocratização do país,importantes movimentos sociais pró educação e igualdade de oportunidades para todos se mobilizavam e pressionavam o Estado, que por sua vez, elaborava a política de expansão da oferta de vagas, segundo (KULMANN JR, 2000) foi a partir da década de 80 que, no Brasil, se institui legalmente a educação para as crianças pequenas. Nas palavras da primeira professora, Rosa, ( Josefa Rosângela Costa Ernesto), antes de 1982 não havia escola infantil na cidade, a Pré-escola chega à cidade de sobressalto, e de modo desorganizado, pois não existia espaço físico para comportar essa nova modalidade de ensino. “Não tinha sido construído uma escola pública para as crianças, a prefeitura preparou o prédio conhecido como a casa do Juiz, para ser a primeira escola,” que se situava na Rua José Cordeiro dos Santos, Bairro Novo. “Para começar, eu e Tânia, não tínhamos curso pedagógico nem formação, mas mesmo assim, saímos pelo bairro para fazer as matrículas por que as famílias não tinham conhecimento da abertura de uma escola infantil na cidade”. A professora nos conta que, ao saírem em busca de alunos, elas se deparavam com a difícil realidade a qual viviam as crianças e suas famílias, “era uma pobreza, os pais diziam que a criança não iria pra escola por que não tinha um chinelo.” Após as visitas as professoras voltavam com vários depoimentos e carregadas de problemas que não lhes eram possíveis solucionar, “passávamos tudo que víamos para secretária de educação, não lembro se na época ela tomou as providencias, 248


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