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Boqueirão

Published by Papel da palavra, 2022-05-15 15:03:53

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essa parte eu não lembro, mas os primeiros alunos eram crianças extremamente educação e sociabilidades carentes, carentes mesmo”. Não demorou muito, logo as vagas foram preenchidas, pois, A escola era pequena, mas tinha duas salas de aula, banheiro, brinquedos, cadeira, quadro, lápis de colorir e papel para fazer atividades, as primeiras professoras era eu e Tânia e a merendeira era Bida, não tínhamos diretora e nem coordenadora pedagógica, a escola era administrada pela secretá- ria de educação da época que era dona Neuza. ( Josefa Rosângela Costa Ernesto, 16 de fevereiro de 2021). Figura 1 - Alunos do Primeiro Pré-Escolar (1983) Fonte: Arquivo pessoal da professora Josefa Rosângela Costa Ernesto. A referida professora relata que a escola funcionava no turno da tarde, ti- nha apenas duas salas de aula para atender várias crianças de 4 a 6 anos, “era uma sala pequena, no primeiro dia de aula eram tantas crianças chorando, era ‘coisa de doido’, eu com 18 anos sem experiência e nem conhecimento para isso, nem sei como dei conta.” Sem orientação e coordenação, restava às professoras se valer das brincadeiras, dos desenhos, estudo das letras do alfabeto, escrita e contagem de numerais, entre outros conteúdos temáticos pautados nas respectivas datas come- morativas de cada mês. O relato nos mostra a forma pela qual a Educação Infantil deu seus primeiros passos na cidade,tudo aconteceu sem planejamento,sem muitos requisitos e critérios de ordem, o que revela a fragilidade e desorganização que circundou a Pré-escola e a precariedade na qual essa se instituiu. Como destaca Didonet, (1992, p. 22), “na área da Pré-escola não houve acentuadas divergências quanto ao perfil – qualidades pessoais, tipo de trabalho a desempenhar e formação a ser obtida – do professor da pré-escola”. Segundo o autor, se levava em consideração o peso que se dava 249

para as qualidades pessoais, gostar de criança, saber tratar com crianças pequenas, disposição, espírito alegre, higiene, saúde, e disposição para a formação escolar. Sendo assim, a ausência de formação, planejamento e articulação pedagógica, marcaram o início das aulas, a construção da rotina diária, as práticas e metodolo- gias, o que fez com que as professoras trabalhassem de forma intuitiva, a partir de suas experiências cotidianas invés de estarem pautadas numa proposta pedagógica, pensada e planejada para atender as necessidades e especificidades das crianças. Por cerca de dois anos, as crianças foram atendidas na primeira “escola in- fantil” pública, porém com a chegada do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), que em muitos municípios, era coordenado por monitoras também sem formação, visava à formação de hábitos, habilidades e atitudes nas crianças, servia como forma de amenizar a grande desigualdade existente, sem promover aprendizagens significativas (CLARICE FILIATRE, 2011). Por meio deste pro- grama, o município passou a receber financiamento, foi compelido a se adequar a política nacional de expansão de vagas e a implantar o programa que prepararia as crianças carentes para o ingresso ao Ensino Fundamental. Todavia,com o aumento da demanda,já não era possível atendê-las no mesmo espaço, foi quando se mudaram para o prédio que foi nomeado pela comunidade escolar como o Pré-escolar, situado na Rua José de Sousa Barbosa, onde atualmente funciona a Secretaria de Saúde. O município de Boqueirão estava diante de um grande desafio, dar segui- mento ao modelo educacional proposto pelo programa MOBRAL, sem dispor de um espaço adequado para atender ao alunado e sem ter nenhuma profissional com formação pedagógica. No entanto, assim como em outros municípios do país, foi o MOBRAL “quem subsidiou a implantação e gerenciou a formação, o pagamento e as práticas das educadoras que trabalhariam com essa nova clientela”(DIDONET 1992, p. 21-22), o que se afirma na fala da professora, “as coisas mudaram depois do MOBRAL, nós íamos para Alagoa Grande, passávamos dias lá em formação, as formações era muito boas, foi lá que eu descobri o que era ser professora, nossa, era muito bom, chega dar saudade daquela época”. (Solange Pereira Rodrigues 09/02/2020). Por meio das formações proporcionadas semestralmente, teoricamente elas se achavam mais seguras,no entanto,no intervalo entre uma formação e outra não se dava continuidade a essas formações, o que dificultava o trabalho no contexto da prática. Sendo assim, elas desabafam e afirmam que “foi fazendo, sem sabe fazer que aprendemos, fomos vivendo e aprendendo a ser professora. Sabe Fabnice, se fosse hoje, eu não aceitaria ser indicada pra trabalhar assim, foi muito difícil no começo”, (Lenice Barbosa, 11/02/2020). Nos relatos das professoras Lenice Bar- bosa e Solange Pereira Rodrigues, percebemos que embora considerassem que as 250

formações fossem de qualidade, não eram suficientes, pois, faltavam acompanha- educação e sociabilidades mento e direcionamento para pôr em prática e atuar junto a essas crianças, o que indica que a implantação da Educação Infantil no município foi posta em prática de cima pra baixo e sem nenhuma preparação física sem espaço educacional apro- priado, estrutural ou mesmo formação educacional. Apesar das dificuldades um sentimento de otimismo, responsabilidade e compromisso, lhes fazia cumprir com a tarefa a qual lhes fora atribuída. O gosto pela profissão servia de fio condutor das ações como podemos perceber na fala da colaboradora: Realmente era muito difícil nós tínhamos muita vontade de fazer as coisas darem certo, íamos pra lá com muita vontade, não era só pelo dinheiro por que passávamos até três meses sem salário, mas nos arrumávamos, íamos com vontade de receber as crianças e nós tentávamos, ‘fazíamos no escuro’, acredito que se na época tivéssemos a habilitação que temos hoje, teria sido um sucesso e os ganhos seriam outros. ( Josefa Rosângela Costa Ernesto, 16 de fevereiro de 2021). A respeito desse início da Pré-escola em Boqueirão, percebemos nas falas das colaboradoras a satisfação de ser parte dessa história e ao mesmo tempo, a angústia ao rememorar as dificuldades que enfrentavam, mas, mesmo diante das limitações, como espaço físico inadequado, recursos didáticos e pedagógicos escassos, falta de direcionamento e planejamento pedagógico e preparo necessário para construírem suas práticas pedagógicas. A professora Solange Pereira Rodrigues relembra um dos momentos que marcou a ela e suas colegas por ser o momento de tornar conhecido a toda co- munidade o trabalho desenvolvido no ambiente escolar. Em tempos de pouca visibilidade e valorização profissional, o dia do Desfile Cívico de 7 de Setembro era dia de festa e de reconhecimento. Esse dia era o mais esperado do ano, a gente passava semanas cortando e colando papel, fazendo cartazes, preparando tudo, para os meninos saírem desfilando. Me lembro que era a turma que mais chamava a tenção por ser pequenos, era tão trabalhoso, mas era tão bonito. (Solange Pereira Rodrigues 09/02/2020). 251

.Figura 2 – Participação do Pré-Escolar no desfile cívico de 7 de setembro de 1988 Fonte: Arquivo pessoal da professora Josefa Rosangela Costa Ernesto. Puxando um pouco mais pela memória, as participantes descrevem com detalhes a rotina cotidiana no Pré-escolar. Rememoramos esses momentos com a ressalva de que as atividades ao ar livre sempre são lembradas com um acentuado sorriso e boas lembranças por todas as professoras. Através das narrativas memo- rialísticas das professoras Lenice Barbosa e Josefa Rosângela, nos é oportunizado “participar” de alguns momentos de aula e brincadeiras no Pré-escolar. Pela manhã as crianças chagavam às 7 horas da manhã, já chegavam me abraçando, guardavam seus materiais e a gente fazia oração, cantava e já começava fazer as atividades de escrita, leitura e pintura. Às 9 horas era uma festa, eles merendavam e já queriam sair para o recreio. No pátio da escola eles recreavam, debaixo do pé de castanhola, eram tantas crianças juntas, um barulho e correria, era uma festa. Depois voltava para sala, até acalmar eles, era tempo, às vezes, fazia mais tarefinha até dar 11 horas quando os pais vinham buscar eles. (Lenice Barbosa, 11/02/2020). Esse local não foi pensado para atender crianças, as salas de aula eram bastante quentes e pequenas, no período do verão não oferecia conforto, em frente ao Pré-escolar tem até hoje um pé de castanhola, eu sempre aproveitava a parte externa, levava bancos, mesas para todas as crianças, passava à tarde lá, aproveitando o vento. E lá no pátio, também acontecia o recreio, debaixo desse pé de castanhola os meninos brincavam de bola e com o que tinha pra brincar e as meninas gostavam de assistir os meninos, ficavam sentadinhas nos bancos enquanto os meninos jogavam futebol,mas 252

elas brincavam de outras coisas também. Mas eu aproveitava também para educação e sociabilidades dar aula, eles faziam desenhos livres, desenhos das paisagens que estavam vendo e quando a gente passeava, íamos para ponte recém-construída, levava para ver o rio, chegavam todos encalorados e ficavam embaixo da árvore para fazer desenhos do que viram no passeio, e assim aproveitava o espaço e a sombra da árvore. ( Josefa Rosângela Costa Ernesto, 16 de fevereiro de 2021). Figura 3 – Prédio da Primeira Pré-escola Fonte – Arquivo Pessoal da Pesquisadora. (Atualmente funciona a Secretaria de Saúde) Os momentos descritos foram testemunhados pela castanholeira,(Terminalia Catappa), árvore exótica, alta, de troco áspero, galhos horizontais, folhas grandes que mudam de cor, do verde vivo, passa pelo amarelo e ficam vermelhas quando estão prestes a cair, seu fruto é arredondado, de sabor ácido e tinge de vermelho a boca. Pelo Nordeste é comum ser plantada na frente de casa para aproveitar a sombra. Essa árvore foi citada por todas as professoras, pois sua generosa sombra e caracte- rísticas possibilitou que as crianças vivenciassem diversos momentos com seus pares. Ao ouvir as professoras narrarem esses momentos a nossa imaginação cor- reu solta e por meio do exercício imaginativo, num fechar de olhos inferimos que a infância ali era boa, era aquela que tem de tudo um pouco, de boa relação com amigos e professores a brincadeiras e travessuras que marcaram e ficaram gravados nas memórias dos infantes por toda vida. No Pré-escolar, meninos e meninas de olhos arregalados, sorrisos largos e corpinhos agitados corriam de um lado para outro, seus gritos agudos comprovavam o prazer que sentiam por estarem ao ar livre. Bracinhos curtos tentando abraçar o tronco áspero da grande árvore, olhares curiosos desejosos de fazer uma escalada, mas as suas perninhas curtas e professoras atentas, os impediam de subir. 253

Sem se preocupar com nada, nem viam o tempo passar. Nas mãos das crian- ças, a natureza se transformava na mais perfeita brincadeira, tudo era motivo para criação e diversão. A generosa castanholeira, além de ofertar a sobra presenteava diariamente os pequenos curiosos com suas folhas e frutos, um convite à diversão, por meio da imaginação, tudo se transformava em brinquedo. Uma folha era abano, avião, guarda-chuva, chapéu, cata-vento. Uma casta- nhola, era bola, era boi, era comidinha, era carrinho era tinta de pintar pedras e paredes ou tudo que eles quisessem criar. Era comum rabiscar no chão, mesmo que linhas imaginárias o que nas pequenas cabecinhas era um emaranhado de ideias. A sensibilidade, a simplicidade e afeto permeavam as relações, “não esqueço deles, eram tão carinhosos traziam flores para as professoras ou simplesmente nos davam um abraço e esperava receber de volta, isso era o que nos enchia de força para continuar.” (Lenice Barbosa, 11/02/2020). As lembranças dos momentos vividos nesse lugar são rememoradas com emoção, pois essa fase representa um capítulo importante da história de vida de criança e adultos,“todas as vezes que passo lá em frente, vejo aquele pé de castanhola e me lembro de tudo que vivemos lá” (Solange Pereira Rodrigues 09/02/2020). A castanholeira conseguiu manter-se firme lá até hoje, já o Pré-escolar, o tempo e as circunstâncias trataram de extingui-lo. As mudanças evolutivas nas correntes educacionais que aconteceram no país resultaram na construção de uma nova concepção de Educação Infantil, o que impulsionou mudanças significativas na estruturação e organização da educação para crianças. Além disso, o processo de municipalização do ensino implantado pelo Go- verno Federal delegou aos municípios o papel de ofertar a Educação Infantil, seja na Creche, seja na Pré-escola. Diante dessa responsabilidade, o município se deu conta das fragilidades da etapa educacional inicial, portanto, tornou-se prioritário superar as aplicações orçamentárias insuficientes, a escassez de recursos materiais, a precariedade das instalações físicas, das ausências de formações dos profissionais e o baixo número de vagas ofertadas, ou seja, era preciso dar novos passos adiante, a ampliação da rede educacional era necessária e urgente. Sendo assim, novos espaços educacionais foram construídos e semelhante à castanholeira que se renovava a cada estação e generosamente frutificava, assim aconteceu com Educação Infantil de Boqueirão, da semente plantada por gestores e pelas mãos colaboradoras das pioneiras ‘brotou’na cidade, duas novas instituições infantis, a Creche Josefa Barbosa Camelo Leal e a Creche Maria Eduarda Barbosa, e assim, novas personagens continuaram a escrever a história da Educação infantil. 254

CRECHE: A QUE VEIO... COMO ESTÁ... PARA ONDE VAMOS... (1991 – 2020) educação e sociabilidades A creche é uma instituição em expansão no Brasil. O histórico de sua implantação está ligado às transformações e modificações do papel da mulher na sociedade. As referências históricas da creche mostram que ela foi criada para cuidar das crianças pequenas, cuja mãe, movida pela necessidade de oferecer sus- tento para a família, saiu em busca de trabalho. Didonet (2001, p. 12), nos diz que “sua origem na sociedade ocidental está no trinômio mulher-trabalho-criança, até hoje a conexão desses três elementos determinam grande parte da demanda, da organização administrativa de serviços da creche”. Com a ausência da mulher no ambiente familiar, era comum que os pe- queninos ficassem em casa sob a guarda de irmãos maiores, ou familiares, o que levava muitas crianças a viverem em condições impróprias deixando-as vulneráveis a desnutrição generalizada, a sofrem acidentes domésticos e serem acometidas por doenças. Essa realidade elevou as taxas de mortalidade infantil e despertou na sociedade religiosa, empresários e educadores o sentimento de piedade. “Foi sendo encarada como problema que a criança começou a ser percebida pela sociedade e com sentimento filantrópico, criativo, assistencial, é que começou a ser atendida fora da família”. (DIDONET 2001, p. 12). O referido autor relata que no Brasil, inicialmente essa instituição foi no- meada por “Guarda da Criança,”seu nome revelava a sua finalidade. Essa expressão traduziu qual seria a intenção de criar espaços de atendimento à criança. Por força da consolidação das Leis Trabalhistas (CLT, 1943), a creche passou a ser um direito da mãe trabalhadora e não mais encarada como um favor social. Sendo assim, a creche para atender aos filhos de operários e das famílias pobres tinha que atender em tempo integral, ser gratuita, zelar pela saúde, alimentação e ensinar hábitos de higiene a criança. O caráter assistencialista inicial determinou as principais características do modelo tradicional de creche o qual temos resquícios até hoje. A educação infantil figura na Constituição Brasileira de 1988 em seu artigo (art. 208, IV), como sendo dever do Estado ofertá-la em creches e pré-escolas e direito de toda criança e opção da família em acessá-la. Legalmente compete aos Municípios a responsabilidade da oferta dessa etapa, em regime de colaboração com Estados e a União. (ROSEMBERG, 2003). Mediante princípio constitucional, as concepções de criança e do atendimento a elas direcionado começaram a serem revistas e impulsionaram mudanças nas esferas estaduais e municipais. A Lei de Diretrizes e Bases, LDB - 9394/96, reforçou esse princípio e incorporou as creches aos sistemas de ensino municipais, tal ação, visou a ampliação de vagas, consolidar, estruturar, e afirmar a Educação Infantil como etapa educacional enfatizando 255

que o atendimento ofertado neste nível educativo deve ser submetido a padrões mínimos de qualidade. No mesmo ano, o MEC por meio de sua Coordenadoria de Educação Infantil-(COEDI), elaborou uma nova proposta nacional de política de Educa- ção Infantil com diretrizes e metas direcionadas a expansão com atendimento de qualidade nas creches e pré-escola. Como se pode perceber, a evolução da Educação Infantil no país estava acontecendo a passos largos, pressionado pelas mudanças que aconteciam no con- texto nacional, o município de Boqueirão, embora com dificuldades, se esforçava para acompanhar o modelo nacional. Além disso, tendo conhecimento da difícil realidade a qual muitas famílias residentes em bairros periféricos passavam, via na implantação de duas creches a oportunidade de ofertar cuidado e educação prin- cipalmente para as crianças carentes. A história das creches municipais tem seu início na década de 90. Nesse pe- ríodo, a cidade estava se expandindo rapidamente, principalmente o bairro da Bela Vista. As famílias eram carentes e numerosas, as crianças precisavam ser cuidadas enquanto suas mães trabalhavam nos campos de verduras, além disso, o índice de mortalidade infantil era alto, mesmo para aquelas mães que não trabalhavam fora, ter um lugar para guardar, alimentar e higienizar seus filhos representava um ato de proteção as suas vidas. Para conhecermos a trajetória da Creche Josefa Barbosa Camelo Leal (creche das Malvinas) e da Creche Maria Eduarda Barbosa (creche da Bela Vista) con- tamos com colaboração da diretora pioneira, Maria Rosa de Lima que participou da inauguração e administração das primeiras creches municipais e atuou nelas por dez anos. Colaboraram também, Lenice Barbosa, Solange Pereira Rodrigues e Joelma Cavalcante Albuquerque, professoras atuantes nessas desde sua fundação. Assim nos conta Maria Rosa de Lima, conhecida por Maria de Geraldo, a primeira diretora escolar da Creche Josefa Barbosa Camelo Leal. 256

Ingressei na educação no ano de 1992, eu sempre tive o desejo de trabalhar educação e sociabilidades com criança eu admirava o trabalho de creche, a minha ida pra educação foi por meio de um concurso que não foi válido e acabei indicada para trabalhar na equipe de apoio até final ano. Mas em janeiro de 1993 teve a mudança de gestor, era João Paulo Barbosa Leal e passou a ser João Fernandes da Silva e o secretário de educação era Miro na época, ele me chamou para uma reunião e me convidou para abrir a creche das Malvinas que estava pronta, mas fechada, a da Bela Vista estava sendo construída ainda. Lá os pais vaziam mutirão ajudando para que ela fosse terminada logo e começasse a funcionar o mais rápido possível, era uma necessidade muito grande abrir a creche. Tive muito medo de assumir, não era professora, por isso resisti ao chamado por que eu não tinha experiência com escola e nem formação de nada, [...]. Então eu aceitei, mas sabia que era uma responsabilidade muito grande, montamos uma equipe e daí começamos a fazer matrícula. Antes de abrir o secretário de educação providenciou uma formação com um grupo da UEPB para formar a equipe, éramos coordenados por Edilene Rodrigues, mas se não fosse isso, nós íamos abrir os trabalhos como cegos sem saber de nada, até para as professoras era novidade por ser uma coisa integral, muito difícil. Essas formações aconteciam a cada dois ou três meses. Nesse começo o gestor nos ajudou demais, ele era preocupado com a educação e dai, depois dessas formações no dia 23 de março de 1993 a gente abriu a cre- che com criança, não houve festa de inauguração porque tinha urgência para abrir ao público. Na creche das Malvinas tinha criança do Bairro Novo e das Malvinas. Um ano depois, em 1994, foi aberta ao público a Creche Maria Eduarda Barbosa, a da Bela Vista, a diretora era Gracilene. Quando começou a funcionar as mães traziam as crianças de todas as idades, algumas mães levavam os filhos de carroça de mão, mas não era possível aceitar a todos, houve uma procura muito grande, mas logo que as crianças completavam a idade, elas levava eles, a creche parecia um depósito de criança, tinha mais do que podia matricular, mas tinha caso que era tão difícil que não tinha como recusar a matrícula e como não atender, porque era um ato de caridade com aqueles inocentes, guardar eles na escola, para proteger de violência de fome e maus tratos muitas vezes. (Maria Rosa de Lima 10/02/2021). De acordo com o relato compreendemos que as creches municipais, Josefa Barbosa Camelo Leal, situada na Rua Francisco Fernandes do Rêgo, Bairro das Malvinas e a Creche Maria Eduarda Barbosa localizada na Rua Santa Catarina, 257

Bela Vista, foram construídas estrategicamente nos bairros onde havia uma maior demanda por assistência a primeira infância. Figura 4 – Creche Maria Eduarda Barbosa Fonte – Arquivo Pessoal da Pesquisadora Figura 5 – Creche Maria Eduarda Barbosa Fonte – Arquivo Pessoal da Pesquisadora 258

Em relação à estrutura física, ambas tinham a capacidade de atender de 80 a educação e sociabilidades 100 crianças de 2 a 6 anos. Para os padrões da época, eram consideradas adequadas para oferecer cuidados e educação. Ao logo desses 29 anos nenhum dos prédios passaram por reformas, apenas pequenos reparos para manutenção, estes, já não se adequam aos padrões de qualidade exigidos e não dão conta de atender a demanda por vagas chegando a trabalharem acima da capacidade em alguns anos. As creches não atendem criança na faixa etária de 0 a 2 anos por não possuir estrutura que atendesse as especificidades dos bebês. Ao que se refere à rotina diária, ambas as instituições atendiam em tempo integral,segundo a descrição das colaboradoras,a rotina diária estava assim distribuída: Às 7h da manhã, era servida a primeira refeição, trocavam-se as roupas pelo fardamento e os pequenos eram encaminhados para a sala de aula para participar dos momentos ditos pedagógicos, em seguida acontecia o momento da higiene, do almoço e do descanso em quartos coletivos. Por volta das 13h à medida que iam acordando,recebiam o lanche e novamente voltavam para sala de aula para mais um momento pedagógico, porém esse tempo era mais destinado às aulas lúdicas voltadas as brincadeiras. No meio da tarde, mais uma vez tomavam banho, jantavam e iam para casa às 17h. ( Joelma Cavalcante Albuquerque 09/02/2021). Na descrição da rotina podemos ver que não havia na rede municipal uma proposta de integração entre o cuidar e o educar, havia clara separação entre esses dois aspectos e a prioridade era garantir que a “criança cresça sadia, guardada, protegida, alimentada, o que não é o suficiente para o seu desenvolvimento, pois, essa ação por si só limita o seu presente e modela o seu futuro.” (BUJES; HOF- FMANN, 1991 p. 124). Falando no futuro das crianças, do final do século XX até a primeira década do século XXI, foram empreendidas inúmeras pesquisas e estudos sobre o desen- volvimento infantil e a importância da educação na primeira infância, emergia uma nova concepção de criança e de Educação Infantil. Neste contexto, a concepção assistencialista e compensatória que tinha por objetivo superar a miséria, a pobreza e a negligencia das famílias ou até mesmo o modelo preparatório, que visa à prática escolarizante com intuito de preparar a criança para sua entrada no ensino fundamental, precisava ser superado e dar espaço para uma nova concepção, a histórico-cultural de educação. Nesse conceito de educação, o brincar é contemplado como atividade fundamental, uma vez que representa um espaço privilegiado de interação infantil e de constituição do sujeito-criança como sujeito humano, produto e produtor de história e de cultura. Na visão de KRAMER (1996), essa nova concepção coloca a 259

criança como sujeito social, criadora de cultura, desveladora de contradições e com outro modo de ver a realidade que acerca. De acordo com Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, (RCNEI, 1998) superar as concepções de educação anteriores, significa atentarmos para várias questões que vão muito além dos aspectos legais. “Envolve, principal- mente, assumir as especificidades da Educação Infantil e rever concepções sobre a infância, as relações entre classes sociais, às responsabilidades da sociedade e o papel do estado diante das crianças pequenas”. Visto que a origem das creches e pré-escolas tinha por objetivo atender somente a população carente o que significou em muitas situações atuar de forma compensatória para sanar as supostas faltas e carências das crianças e de suas famí- lias, é de suma importância que reflitamos sobre a qualidade da educação oferecida para estas crianças dentro dessas instituições infantis. É preciso dar centralidade e trazer para a agenda dos governos,seja em âmbito federal, estadual e principalmente municipal, a temática, expansão com qualidade da oferta da Educação Infantil para que a rede educacional não se preocupe apenas em ampliar o número de vagas e continue ofertando um serviço precarizado, mas, sobretudo, qualifique essa oferta, pois é importante fazer dessas instituições “lugares de respeito e de valorização das crianças pequenas e suas formas de pensar, sentir e expressar-se, de convivência, de múltiplas interações e abertura para o mundo, de acesso a diferentes produções culturais, de humanização e de promoção da equidade”, (NUNES; CORSINO (2009, p. 32). Para compreendemos em que patamar está o atendimento ofertado nas creches municipais, contamos com a contribuição de Lenice Barbosa, Solange Pereira Rodrigues e Joelma Cavalcante Albuquerque, professoras que participaram da abertura das creches e continuam atuando nessas instituições e com a contribui- ção das atuais diretoras, Fabiana de Sousa Mendes e Anadia Duarte da Costa que estão a frente da gestão das creches há 8 anos. As vozes dessas profissionais nos ajudaram esboçar o modo do atendimento prestado atualmente nessas instituições. Tomando por base as orientações do documento “Critérios para o Atendi- mento em Creches que Respeitem os Direitos Fundamentais da Criança,” (2009), refletiremos sobre os critérios de qualidade para um atendimento de qualidade na Educação Infantil e os aspectos a serem melhorados a fim de ampliar e qualificar a educação pública ofertada à primeira infância. Planejamento Institucional: esse critério trata da importância da existência de uma proposta pedagógica planejada e avaliada a partir da reflexão sobre prá- ticas educativas. No município de Boqueirão esse aspecto encontra-se bastante fragilizado, pois as instituições não possuem uma proposta pedagógica definida e atualizada, único documento, o Projeto Político Pedagógico, encontrado nas 260

instituições e na Secretaria de Educação, foram elaborados no ano de 2012 e não educação e sociabilidades passaram por atualização. Estes documentos apresentam o mesmo conteúdo e plano de ação para as duas creches, o que indica que não foi levado em consideração às especificidades e particularidades do contexto social de cada instituição. Apesar de se tratar de um importante documento que deveria ter sido elaborado em regime de colaboração com toda a comunidade escolar, as docentes relataram que a elas não foi oportunizado participar da elaboração e nem de estudá-lo. Multiplicidade de Experiências e Linguagens – Interações: os dois critérios fazem relação às rotinas e práticas adotadas nas creches e avalia a convivência em espaços coletivos e o respeito à dignidade, ao ritmo, à identidade, aos desejos, às ideias e às conquistas das crianças. Na fala das profissionais, percebemos que embora tenham acontecidos avanços importantes no modo de atender as crianças, a forma como é organizado o tempo-espaço educativo demonstra que ele é compreendido e organizado para sujeitos-alunos e não para sujeitos-crianças, mesmo depois de 29 anos de história, a rotina diária sofreu poucas alterações e, portanto, no espaço da creche ainda são reproduzidos o modelo de rotinas de anos anteriores. Segundo as professoras, as principais mudanças ocorrerão no contexto da sala de aula, “atualmente há uma preocupação de trazer para as aulas elementos e projetos lúdicos, mais músicas e brincadeiras para facilitar o aprendizado das crianças,” ( Joelma Cavalcante Albuquerque, 09/02/2021). O recorte nos mostra que no cotidiano das instituições infantis as interações e experiências precisam ser repensadas, pois existe uma grande distância entre o que se faz e o que deveria ser feito. As rotinas são marcadas muitas vezes por momentos rígidos, com supervalorização dos momentos vividos apenas dentro da sala de aula, desconsiderando os demais espaços e momentos da rotina que muitas vezes está a favor dos adultos e não das crianças. Corroboramos com Hoffmann; Silva (1995 p. 12), ao afirmarem que: Às crianças de nossas creches não é dado o direito de pedir colo, sujar-se, brincar na água (por que dá bronquite), brincar na areia (por que dá alergia), acordar antes do tempo, quebrar brinquedos, fazer barulho. O que elas podem ou não fazerem é definido pelo adulto, e essas decisões estão a serviço da rotina e do conforto das pessoas que aí trabalham, mesmo que inconscientes do seu significado e do autoritarismo nelas subjacentes. Neste sentido, as ações desenvolvidas nas creches e pré-escolas ainda estão restringidas a práticas destituídas de significados, voltadas excepcionalmente a cuidar, e preparar os pequenos para etapa escolar seguinte.Tal prática desconsidera 261

a criança, como sujeito de direito, produtora de cultura, havendo então, uma despro- porção entre as decisões dos adultos e as necessidades e/ou escolhas dos pequenos. Promoção da saúde: neste aspecto, as gestoras relatam que o município tra- balha em parceria com a Secretaria de Saúde que oferece atendimento sistemático por meio da equipe multiprofissional da saúde e do Programa de Saúde da Família, que atuam dentro das instituições e trabalham com as famílias usuárias da creche quando necessário. Todavia, no quesito alimentação saudável é preciso que se tenha um olhar mais apurado e sensível para atender as necessidades nutricionais de cada grupo etário. As professoras e sua formação: em relação à equipe pedagógica e docente, a rede de Educação Infantil pública conta com 1 coordenadora pedagógica a quem compete orientar e acompanhar o trabalho nas duas instituições. O corpo docente de ambas as creches é composto por 17 professoras, todas com formação em nível superior. A fim de conhecer o perfil destas, as agrupamos em três grupos que assim se apresenta: dentre as professoras do primeiro grupo, 37% tem de 40 a 48 anos de idade e de 8 a 12 anos de trabalho prestados nas creches; no segundo, 38% tem entre 50 a 59 anos e em média, 20 anos de trabalho; no terceiro grupo, 25% têm entre 60 a 63 anos e mais de 25 anos de serviços prestados. A primeira vista, olhando os percentuais isoladamente, nos parece que está equilibrado o quadro de professores no que se refere aos aspectos idade e tempo de serviços prestados, porém, fazendo o somatório do segundo grupo com o terceiro, temos um percentual de 63% de professoras que estão atuando nessas creches há duas décadas ou mais, ou seja, já estão em final de carreira, o que indica, que em breve a Educação Infantil demandará uma renovação em seu quadro docente. Ao que se refere à formação do professor ela é entendida internacionalmente como um importante critério de qualidade para avaliar a qualidade da educação. A formação inicial e continuada implica em um investimento persistente, em serviço, que resulta em desenvolvimento de habilidades, que aprimoram a prática peda- gógica e reflete diretamente no comportamento e desenvolvimento das crianças e das famílias. Os depoimentos coletados para esse estudo mostram que as professoras reconhecem que a ausência de uma formação continuada tem causado impactos na qualidade do trabalho por elas desenvolvidos. 262

Quando iniciei o trabalho na creche eu não tinha formação alguma, mas educação e sociabilidades logo percebi que era preciso buscar a formação inicial, fiz o curso Normal, depois cursei Pedagogia e daí parei de estudar. Sinto muita falta de estar me atualizando, as vezes bate o sentimento de estar ficando para trás, saíram tantos documentos novos, por exemplo a BNCC, os professores das creches nunca estudaram sobre essa proposta, não tenho dúvida que pra trabalhar bem é preciso se atualizar, mas não recebemos esse apoio do município há anos.” ( Joelma Cavalcante Albuquerque 09/02/2021). A nosso ver, uma creche preocupada com a qualidade tem como um de seus objetivos investir continuamente na formação de seus funcionários, do corpo do- cente e da equipe de apoio, todos precisam receber formação para desenvolverem suas atividades de modo que reflitam e planejem suas ações, ou seja, precisam estar preparados para a tarefa de cuidar e educar a criança. De acordo com Kramer (2002 p.129), a formação dos docentes da Educação Infantil é indispensável,“Os profissionais [...] que atuam com crianças precisam assu- mir a reflexão sobre a prática, o estudo crítico das teorias que ajudam a compreender as práticas, criando estratégias de ação, rechaçando receitas ou manuais”. A essas professoras deve ser oportunizado, estudar para que compreendam a especificidade da infância, a singularidade dessa etapa e o quanto ela é essencial na vida humana. Vagas ofertadas, Espaços, materiais e mobiliários: atualmente as creches atendem cerca de 200 crianças, em tempo integral. A clientela é bastante diversi- ficada, residentes em vários bairros da cidade, porém em sua maioria, as crianças usuárias da creche advêm das famílias com baixo poder aquisitivo ou filhos de mães trabalhadoras. O atendimento é organizado em quatro agrupamentos: Maternal I (2 a 2 anos e 11 meses); Maternal (3 a 3 anos e 11 meses); Pré-escola I (4 a 4 anos e 11 meses); Pré-escola II (5 a 5 anos e 11 meses). No que se refere ao número de atendimentos realizados na rede municipal de Educação Infantil, desde a fundação das creches não houve a expansão da rede através da criação de novas vagas em creche, os números se mantiveram. No en- tanto, foram criadas novas vagas para a Pré-escola, não em escolas infantis, mas em escolas do Ensino Fundamenta I. De acordo com os dados do censo escolar de 2013[2], 80,80% da população de 4 e 5 anos frequentou a Pré-Escola, e da população de 0 a 3 anos, apenas 20,60% frequentou creche ou escola infantil. Vale salientar, que das crianças em idade de atendimento em creche, apenas as de 2 a 3 anos são atendidas tendo seu direito 2   Fonte: Plano Municipal de Educação do município de Boqueirão, Estado Região e Brasil - IBGE/Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – 2013). 263

a educação assegurado. Já a população de 0 a 1 ano e 11meses, o município não conseguiu ainda incluí-las, por não disponibilizar de estrutura física adequada para o atendimento dos bebês conforme preconiza os referenciais e legislações vigentes. Diante desse quadro, e tomando por base a orientação do Plano Nacional de Educação, PNE (2014-2024), o município elaborou no ano de 2015 o seu Plano Municipal de Educação (PME) para o decênio 2015-2025. Em sua meta 1, o PME visa universalizar, até 2016, a Educação Infantil na Pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade e ampliar a oferta em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 0 a 3 anos de idade até o final da sua vigência. Nesse contexto de desigualdades de acesso a democratização da Educação Infantil se configura, portanto, como meta da sociedade boqueirãoense. Nosso maior desafio é possibilitar que as crianças tenham acesso a uma “educação de qualidade e possam frequentar as instituições de ensino com a garantia de que encontrarão um espaço adequado para atender as suas necessidades e interesses, tendo respeitadas dentro do coletivo, suas individualidades” Flores et al. (2015). Diante dos desafios postos, a gestão municipal, visando o alcance de suas metas e cumprimento de suas responsabilidades de expandir e qualificar o aten- dimento ofertado na rede de Educação Infantil, no ano 2016 aderiu ao Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Pública de Educação Infantil, (Proinfância), instituído pelo Governo Federal por meio do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) através da Resolução nº. 6, de 24 de abril de 2007. O Proinfância é uma política pública, cujo objetivo é ampliar a oferta de vagas na primeira etapa da Educação Básica, a partir do repasse de recursos federais destinados à construção de prédios e aquisição de equipamentos indispensáveis para o funcionamento com qualidade de creches e pré-escolas, (FLORES, 2012). Este projeto está organizado em cinco componentes: projeto arquitetônico, construção da obra, aquisição de equipamentos e mobiliários, assessoramento pedagógico e manu- tenção das novas matriculas. Esses componentes se constituem como proposição de ampliação do acesso e melhoria na qualidade do atendimento em creches e pré-escolas. Para a construção da creche com padrão Proinfância foi pactuado com go- verno Federal um contrato no valor de R$ 1.791.189,81[3]. O projeto pactuado e caracteriza-se pelo Tipo 1, com uma área construída de 1510.23 m2 e capacidade de atendimento de até 376 crianças com idade de 0 a 5 anos em dois turnos (ma- tutino e vespertino), ou 188 crianças em período integral. A nova creche está sendo construída na Rua Castro Alves, 01, Bairro da Bela Vista e encontra-se com 95% da obra concluída, o termino de vigência do convênio data 30/09/2021. 3   SIMEC - Transparência Pública - Obras FNDE. http://simec.mec.gov.br/painelObras/ 264

Figura 6: Creche pactuada pelo Projeto Proinfância educação e sociabilidades Fonte: arquivo pessoal da pesquisadora A construção dessa imponente escola tem gerado expectativas nas famílias e nos profissionais da educação, todos aguardam ansiosos pelas prováveis mudan- ças que ocorrerão na educação infantil local por ocasião da mudança para a nova escola com padrão Proinfância que pela primeira vez atenderá todas faixas etárias de 0 à 5 anos. Através da implantação do Proinfância espera-se inaugurar em Boqueirão um novo paradigma de espaço físico escolar para as crianças, rompendo com a cultura de que qualquer espaço e qualquer forma de atendimento servem para atender as crianças de 0 a 5 anos de idade. Segundo COELHO, (2017) “uma creche é mais que um prédio, o território de atuação de uma creche ou de uma pré-escola é muito maior do que o território do prédio que ela funciona, ela tem uma função sócio-política, pedagógica e protetiva que não fica restrita ao prédio”. Por fim não se espera que o Proinfância por si só preencha as lacunas e sane todos os problemas das quatro últimas décadas, mas se espera que o os gestores municipais tenham a sabedoria e compromisso de usá-lo como ponto de partida para a reconstrução da Educação Infantil do município de Boqueirão. 265

PARA ENCERRAR, POR ENQUANTO... A história da Educação Infantil pública do município de Boqueirão tem mostra- do que a educação para a primeira infância não tem escapado à lógica da produção e reprodução da pobreza e das desigualdades sociais. Mesmo a Educação Infantil alcançando importantes conquistas legais no campo das políticas educacionais e os direitos das crianças estejam assegurados, na legislação vigente, estes não estão, ainda, de todo garantidos e implementados, seja do ponto de vista do acesso, seja no que se refere à qualidade da oferta. De uma vez por toda, precisamos entender e reconhecer que a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica, e, portanto, precisa estar inclusa nas políticas municipais de educação, está acessível a todos os meninos e meninas indistinta- mente e ser ofertada com qualidade. Já passou da hora de superamos a ideia de que qualquer atendimento serve para os filhos das classes mais pobres, pois esse é o momento de trabalharmos conjuntamente para pautar o atendimento ofertado nos critérios de qualidade. Diante do que foi rememorado, refletido e exposto neste estudo, reconhe- cemos que a tarefa para o município é imensa, pois, para além de projetar o futuro, tem-se a incumbência de acertar ou reparar as opções de tempos passados.Tempos de maior restrição de conhecimentos e de recursos humanos e financeiros, tempos de menor mobilização de políticas públicas que fizesse frente às desigualdades sociais, tempos que não se compreendia bem os conceitos de criança e dos seus direitos.Tempos onde o pouco era entendido como suficiente.Tempos que deixou herança, que fragilizou a Educação Infantil que deixou sequelas no que diz respeito a sua qualidade. Sem esquecer do passado, é preciso olhar e andar para frente, pois “são muitos os futuros possíveis, mas só um terá lugar e isso depende da nossa capacidade de pensar e de agir.” (NÓVOA, 2009). Sendo assim, o momento é de diálogo. É, pois, necessário almejar por mudanças estruturais, é preciso trazer para o centro da agenda governamental a discussão da oferta com qualidade em creches e pré-escola. É imprescindível que se reconheça que existe um abismo entre os direitos previstos na legislação e o que de fato está sendo assegurado no contexto da prá- tica, e que entendamos que a real situação da educação para a infância, demanda empenho, esforço, estratégias, estudo, elaboração e/ou ajustes das políticas públicas municipais e ações efetivas por parte do poder público. É necessário ampliar as parecerias com os interlocutores e fortalecer o diálogo com aqueles que até então estavam fora do debate, relativo à educação de crianças de 0 a 5 anos. 266

Não podemos mais negligenciar os direitos das nossas crianças, devemos educação e sociabilidades olhar com um pouco mais de cuidado para elas, para não nos tornamos algozes da sua infância. Quanto sociedade, precisamos sobre tudo, assumir nosso compromisso ético com as crianças e decidir hoje que espaço e oportunidades lhes daremos. Para encerrarmos, por enquanto, pois a história da Educação Infantil está apenas por recomeçar um novo capítulo de sua história, convidamos o leitor a refletir sobre o que nos diz a filósofa alemã Hannah Arendt, A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar o mundo comum. (Arendt, 2016 [1954], p.147). Por fim, deixamos claro que não podemos mais negligenciarmos os direitos das nossas crianças, devemos olhar com um pouco mais de cuidado para elas, para não nos tornamos algozes da sua infância. Quanto sociedade, precisamos sobre tudo, assumir nosso compromisso ético para com elas e decidir hoje que espaço e oportunidades lhes daremos. Temos que levantar as nossas vozes e dizer para as meninas e meninos que nós, cidadãos e educadores boqueirãoenses não os abandonaremos a própria sorte, que nos interessamos, nos importamos e lutaremos pela preservação e efetivação do seu direito de receber educação de qualidade. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A crise da educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Editora Perspectiva, 1997). BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº. 9.394. Brasília, 1996. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução n. 6, de 24 de abril de 2007. Estabelece as orientações e diretrizes para execução e assistência financeira suplementar ao Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipa- mentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil – Proinfância. Brasília, 2007. Disponível em: <https://www.fnde.gov.br/index.php/acesso-a-informacao/institucional/ legislacao/item/3130-resolu%C3%A7%C3%A3o-cd-fnde-n%C2%BA-6-de-24-de-abril- -de-2007>. Acesso em: 22 fevereiro, 2021. 267

BRASIL. Ministério de Educação e do Desporto. Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil. Brasília, DF: MEC, 1998. BUJES, Maria Isabel E.; HOFFMANN, Jussara M. L. A creche à espera do pedagógico. Perspectiva. Florianópolis, v.9, n.16, p. 112-131, jan/dez. 1991. BRASIL. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. 2. ed. Brasília: MEC/ Secretaria da Educação Básica/ Diretoria de Concepções e Orientações Curriculares para Educação Básica/Coordenação Geral de Educação Infantil, 2009. CHARTIER, Roger. Inscrever e Apagar: Cultura escrita e Literatura, Séculos XI a XVIII. Tradução Luzmara Curcino Ferreira, São Paulo: Editora UNESP, 2007. CORSINO, Patrícia. (org.) Educação infantil: cotidiano e políticas. Campinas/SP: Autores Associados, 2009. DIDONET, Vital. Balanço Crítico da Educação Pré-Escolar nos Anos 80 e Perspectivas Para a Década de 90. Em Aberto, Brasília, 1992. Disponível em: http://emaberto.inep.gov. br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/2120 Acesso em: 07 de fev. 2021. DIDONET, Vital. CRECHE: a que veio... Para onde vai... Em Aberto, Brasília, vol. 18, n.73, p.11-27, jul.2001. Disponível em: http://www.emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/ emaberto/article/view/3033 Acesso em: 08 de mar. 2021. FLORES, Maria Luiza Rodrigues. ALBUQUERQUE, Simone Santos. Implementação do Proinfância no Rio Grande do Sul: perspectivas políticas e pedagógicas. Porto Alegre: EDIPUCRUS,2012.Disponível em: https://editora.pucrs.br/edipucrs/acessolivre/Ebooks// Pdf/978-85-397-0663-1.pdf Acesso em: 10/01/2021. FLORES, Maria Luiza Rodrigues; SANTOS, Marlene Oliveira dos; KLEMANN, Vil- mar. Estratégias de incidência para ampliação do acesso à Educação Infantil. In: BRASIL. Insumos para o debate 2 – Emenda Constitucional n.º 59/2009 e a educação infantil: impactos e perspectivas. São Paulo: Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2010. HOFFMANN, Jussara.; SILVA, Maria Beatriz G. Ação educativa na creche, cadernos da Educação Infantil I. 5.ed. Porto Alegre: Mediação, 1995. KRAMER, Sônia; LEITE, Maria Isabel. (1996). Infância: Fios e Desafios da Pesquisa. SP: Papirus. KRAMER, Sônia. Infância e educação: o necessário caminho de trabalhar contra a bar- bárie. In: (Org.). Infância e educação infantil. 2. ed. Campinas: Papirus, 2002. p. 269-289 KUHLMANN JR., M. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2011. MENESES, Adélia Bezerra de (1999) “Uma Representação Histórica”. In Caderno Mais! Folha de S.Paulo. São Paulo, 19/09/99. Movimento Interfóruns de Educação Infantil Do Brasil. Educação Infantil: construindo o presente. Campo Grande: Ed. UFMS, 2002. NÓVOA, António. EDUCAÇÃO 2021: PARA UMA HISTÓRIA DO FUTURO. Revista Iberoamericana de Educación (2009). Disponível em: https://rieoei.org/historico/ documentos/rie49a07_por.pdf . Acesso em: 05, mar,2021. 268

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I PARTE 4 REGIONALIZAÇÃO E TURISMO



15 regionalização e turismo “AS ROCHAS QUE GERAM RENDA”: O PROJETO TURÍSTICO DESENVOLVIDO NO DISTRITO DO MARINHO, BOQUEIRÃO, PARAÍBA EDRIANO SERAFIM DE ARAÚJO INTRODUÇÃO Viver na região Nordeste é mesmo para os fortes, como acreditava o escritor Euclides da Cunha. Aqui no Semiárido, segundo o Instituto Regional da Pequenas Agropecuária Apropriada (2006) vivem quase 21 milhões de pessoas, destacando que mais de 9 milhões (44%) pertencem à zona rural, onde se encontram os mais pobres, com índices de qualidade de vida muito abaixo da média nacional. O se- miárido brasileiro tem como características principais, a aridez de seu clima e o bioma Caatinga retratado e relatado durante anos de forma pejorativa e até mesmo preconceituosa, como a região da seca e da fome. Porém, as belezas da caatinga e de sua geodiversidade estão aos pouco transformando esta realidade. Através do turismo rural, a paisagem da caatinga tem proporcionado uma verdadeira revolução e trazendo desenvolvimento para regiões antes ignoradas pela atividade turística tradicional, como é o caso do lajedo do Marinho no Distrito do Marinho, muni- cípio de Boqueirão-PB. O lajedo do Marinho, devido a sua localização geográfica, destaca-se na paisagem árida do Cariri paraibano, o que atraiu ao longo do tempo os olhares dos povos antigos, que aqui viveram e que, assim como, nos dias atuais atraem muitos turistas e visitantes. O Distrito Marinho, Boqueirão – PB, vem se destacando no cenário do turismo rural de experiência, graças sua a paisagem peculiar proporcio- nada pelas várias formações rochosas que afloram na vegetação de caatinga, na qual a comunidade do Distrito Marinho está inserida. Este conjunto de fatores faz com que a paisagem do Lajedo do Marinho seja o principal produto que a comunidade oferece a seus visitantes, uma paisagem rústica que remete seus visitantes a uma experiência única com a natureza e com toda mística do lugar. Lugar este cercado de belezas naturais, arqueológicas e históricas devido a povos, que aqui habitaram, deixando suas marcas nos paredões e abrigos rochosos. A paisagem é tão magnífica que atraiu para lá uma figura importante da nossa história e um dos grandes nomes da religiosidade do Nordeste Brasileiro: Antônio Conse- lheiro. Hoje, todo este potencial turístico tem influenciado na qualidade de vida de 273

seus moradores gerando renda onde antes havia apenas rochas e a caatinga seca. Este fato se traduzindo no sentimento de identidade que este povo tem com seu lugar. Neste contexto, paisagem e lugar formam os pilares da identidade local, na qual se integram homem e natureza. Seus habitantes cultuam um sentimento de pertencimento ao lugar. São pessoas que em sua maioria sempre viveram no entorno do lajedo e de sua paisagem. Este fato corrobora e legitima um profundo sentimento de identidade. Desta forma, tendo como base a Paisagem do Lajedo do Marinho, desenvolveu-se um projeto que impactou de forma muito positiva toda comunidade gerando renda e dando uma nova perspectiva de convívio com o clima semiárido da região. Com apoio técnico do SEBRAE, desenvolveu-se um projeto no qual não apenas o lajedo e sua paisagem fossem comtemplados, mas uma iniciativa ampla capaz de integrar a natureza, a cultura e a história local. Hoje, a partir do turismo a comunidade vem se transformando, impulsionada por uma cadeia de geração de renda, associada ao turismo que beneficia toda a comunidade. Este trabalho visa entender, a partir da paisagem do lajedo do Marinho, como turismo rural vem mudando a realidade dos moradores deste pequeno dis- trito e a cadeia de geração de renda associada ao turismo. O legado desse projeto para comunidade e para toda a região do semiárido como uma nova proposta de geração de renda. REFERENCIAL TEÓRICO A paisagem do Lajedo do Marinho é tão imponente para a região, que conseguiu integrar-se a identidade local de uma forma que a paisagem natural e a comunidade, são vistas como uma paisagem única. Houve a fusão do natural com o antrópico e isso se deu neste sentimento de identidade que a comunidade tem a com a paisagem que é portadora de memória e, portanto, ajuda a construir esse sentimento de identidade (MELO,2016). Para Bertrand (1968/1972, p.02): A paisagem não é a simples edição de elementos geográficos disparata- dos. É, numa determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto, em perpétua evolução. [...} É preciso frisar bem que não se trata somente da paisagem natural, mas da paisagem total interagindo todas as implicações da ação antrópica. Bertrand (1968/1972, p.02) 274

Concordando com Bertrand (1968/1972), a paisagem do Lajedo do Mari- regionalização e turismo nho, desde os primórdios da ocupação do homem primitivo, já fascinava os povos que aqui viveram, haja a vista os vários registros de ocupação de povos indígenas que aqui estiveram ou se estabeleceram. No entorno do Lajedo do Marinho foram encontradas dezenas de grafismos rupestres, locais de sepultamentos, oficinas e fer- ramentas líticas, tudo isso sendo fundamentado através de um projeto de pesquisas arqueológicas desenvolvidas pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas), através do seu núcleo de pesquisas arqueológicas (NUPEAH) tendo como coordenador dos estudos, aqui desenvolvidos, o Professor, Arqueólogo, Flávio Moraes. Outro fato que chama a atenção na área é a presença de muitos tanques naturais: 26 ao todo. São locais onde os arranjos naturais das rochas, em superfície propiciam a acumulação de água doce, fator este, determinante para que este arranjo na paisagem tornasse o local apto a ocupação humana ao longo do tempo, conforme relatado por MARTIN (2013, p.276). São conjuntos formados por abrigos com pinturas com pinturas rupes- tres, permanente ou temporariamente ocupados com acampamento ou habitação, com um cemitério nas proximidades, sempre perto de fontes d`agua, tais como caldeirões, olhos d‘água ou pequenos riachos ,ou seja, sítios com pinturas,cemitério e agua,em um pé de serra,que são elementos que caracterizam basicamente os sitio arqueológicos da sub - tradição dos cariris velhos na Paraíba e em Pernambuco. Martin (2013, p.276). Assim sendo, a presença dos tanques naturais de água doce no em torno do Lajedo tornava a área um oásis em plena caatinga, o que nos faz acreditar que a paisagem natural oferecia condições para que grupos humanos aqui se estabelecessem. Fato corroborado por datações feitas em fragmento ósseo coletado nas escavações no Sitio Arquelógico Serra da Tesoura na área circuvizinha ao Lajedo do Marinho. De onde foram aferidos uma idade de 1480 anos antes do presente,utilizando-se o método de datação por carbono14. Caramella (1998); Argan (2005); Proença (2007) citado por NETO; MALANSKI,2016, p.83) disse: A noção de paisagem acompanha a vida humana antes mesmo da existência de seu conceito e sua gênese está baseada na observação do meio. As primeiras manifestações dessa percepção direcionada a alguns componentes do ambiente são as pinturas rupestres. Já na antiguidade, os elementos que constituam a paisagem das sociedades oriental e ocidental eram bastante distintos, dadas suas diferenças culturais e geográficas. Na idade média, a Europa ainda vivia a herança romana dos parques 275

públicos com construções arquitetônicas postas em maior evidencia do que os componentes da natureza, como plantas e os animais. No Oriente, a paisagem e o ser humano eram encarados como parte do cosmo. Na Renascença recebeu influências, a concepção ocidental de paisagem re- cebeu influencias das experiencias e dos ambientes dos povos do Oriente, do Extremo Oriente e do Mediterrâneo, quando pintores ocidentais e orientais registraram atentamente as paisagens. Caramella (1998); Argan (2005); Proença (2007) citado por Neto; Malanski,2016, p.83) Deste modo, a percepção da paisagem transformava-se acompanhando a evolução cultural humana, nos mais variados e distintos contextos históricos. Ao longo da história, a paisagem foi conceituada e recebeu diversas definições, conceitos estes, que variavam de acordo com os interesses e influências culturais e políticas aos quais os pesquisadores estivessem expostos, direto ou indiretamente. Assim, Kotler (1976, citado por NETO; MALANSKI,2016, p.85) afirma: A construção do conceito de paisagem passou pela análise, de importantes pesquisadores, como Alexander Von Humboldt (1769-1859) e Friedrich Ratzel (1844—1904), na Alemanha, Vasilly Dokuchaev(1846- 1903), na Rússia, entre outros, o termo sofre modificações conforme o grupo que o utiliza. Para os Alemães e ingleses, a paisagem está ligada ao território e ao aspecto visual; já para os russos, apresenta valor territorial. Como vimos, nesta breve conceituação da percepção da paisagem, ao longo da história, a paisagem sempre teve presente entre os fatores que contribuía com a evolução política, econômica e cultural dos diversos povos. Assim como hoje, a paisagem do Lajedo do Marinho, a partir de uma percepção econômica vem con- tribuindo de maneira decisiva no desenvolvimento econômico local. Destacam-se nesta paisagem , além dos habitantes, que compõem o fator humano , os grandes matacões que afloram no lajedo, as Serras do Gavião e dos Macacos, a Pedra da Tesoura, a Furna do Caboclo Bravo, os diversos tanques naturais, dentre eles: os Tanques da Lua, do Encosto e o Tanque do Lajedo, soma-se a tudo isso, a vege- tação e a fauna peculiar ao bioma caatinga com sua resiliência ao clima semiárido. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS A metodologia utilizada está baseada no método indutivo utilizando-se da pesquisa qualitativa, segundo (GIL,2008, p. 10) “no método indutivo parte-se da observação de fatos ou fenômenos cujas causa se deseja conhecer”, através da 276

observação in loco o pesquisador colheu as informações aqui contidas. Ainda, Gil regionalização e turismo (1994) salienta que este tipo de pesquisa proporciona uma vasta coleta de dados que auxilia na elaboração e definição de conceitos sobre o tema abordado. Tais informações são consubstanciadas, em artigos científicos, livros, revistas e fotografias, como também, pesquisa bibliográficas, que são contribuições cultu- rais ou científicas realizadas no passado sobre um determinado assunto, tema ou problema que possa ser estudado (LAKATOS & MARCONI, 2001; CERVO & BERVIAN, 2002). CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA ESTUDADA O Lajedo do Marinho está localizado no Município de Boqueirão no Estado da Paraíba, na região imediata a Campina Grande, na Região Nordeste do Brasil. O Município de Boqueirão, fica a 179 quilômetros da capital João Pessoa, com uma população estimada em 17.870 (IBGE,2020) distribuídos em 374,523 km² de área. Figura 01. Mapa da Paraíba, em destaque a cidade de Boqueirão. Fonte: Base de dados do IBGE 2018 Datum: Horizontal SIRGAS 2000 Elaborado por Professor Flávio Moraes. O Lajedo do Marinho está a cerca de 14 quilômetros da sede do município encravado no alto do planalto do Planalto da Borborema, a 610 metros de altitude. O acesso ao distrito se dá pela BR 104 via PB 148, tendo como referência a cidade 277

Campina Grande. Devido sua localização, apresenta uma paisagem rochosa com- posta por grande matações e afloramentos de rochas ígneas de vários formatos que moldaram a paisagem de formar muito peculiar, apresentando um arranjo natural que impacta por seu visual rochoso e harmonioso com seu entorno. Na área do Lajedo do Marinho, a vegetação predominante é a caatinga onde sobressaem-se as plantas xerófilas adaptadas ao clima como a macambira, umbu, mandacaru umburana, angico, juazeiro, catingueira entre outras. O clima é semiárido, apresenta temperaturas médias anuais que oscilam entre 25ºC a 29ºC e uma precipitação que varia entre 300 a 800mm anual. A fauna local é bem diversificada. Por ser uma área turística, o local é pro- tegido e isso fez com que nesta região ocorram várias espécies típicas do bioma, inclusive no lajedo podemos encontrar o gavião-azul da caatinga (Geranospiza caerulescens), como também, roedores, repteis e uma variedade grande de pequenos pássaros típicos da Caatinga. O PROJETO TURÍSTICO LOCAL E O USO SUSTENTÁVEL DA PAISAGEM Figura 02: fotografia do Lajedo do Marinho Fonte: Arquivo pessoal. A paisagem do Lajedo do Marinho aflora no alto do planalto da Borborema como se fosse uma “ Acrópole Grega” em perfeita harmonia entre os elementos físicos, biológicos, históricos e culturais, que agregam um valor visual impactante aos olhos de quem a vislumbra. E foi este impacto, visual, que fez com que, no ano 278

de, 2014, fosse desenvolvido um projeto de uso sustentável da área, tendo como regionalização e turismo base, o turismo rural de experiência. O projeto foi desenvolvido pelo SEBRAE, que, percebendo o potencial que a paisagem oferecia, capacitou moradores da própria comunidade com o curso de condutores turísticos locais‘. Durante este período de capacitação, além das belezas naturais do local também foram abordados a história e a cultura local. Efetivadas as capacitações os técnicos do Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE), desenvolveram o projeto especifico para o Lajedo do Marinho. No projeto consta- vam, área de camping,artesanato, trilhas ecológicas e históricas, como diferencial, o projeto inseria a Comunidade neste contexto.. Possibilitando, desta forma, que muitas famílias, a partir do turismo, complementasse sua renda. Gerando assim, uma cadeia produtiva voltada para atender a demanda turística do local. Os ‘Condutores turísticos do Lajedo do Marinho’ – pois é assim que eles se apresentam aos turistas – são pessoas da comunidade que, após passarem pelo curso de capacitação oferecido pelo SEBRAE,onde aprendem técnicas específicas voltadas ao atendimento ao turista, com foco no turismo rural, no curso o que enfatiza-se a paisagem natural, a história e a cultura local. Desta forma, o projeto turístico teria uma identidade e um diferencial, pois valorizando o “todo” objetivava-se que toda comunidade estivesse inserida no projeto direto ou indiretamente. Após cinco anos de projeto, percebe-se que o objetivo de integrar a comu- nidade foi alcançado. Há um sentimento de valorização na comunidade quando se trata do projeto turístico local, haja vista, na interação turista/morador , é nítido para quem observa que há uma troca cultural entre ambos que só é possível devido ao projeto, que pelo nome já diz tudo — “turismo de experiência” que é definido assim pelo SEBRAE: O turismo de rural de experiência é uma forma inovadora de oferta turística, baseada nos princípios do marketing de experiências. Atende às aspirações do homem contemporâneo porque oferece ao visitante a possibilidade de ir além da observação. E incentiva o turista a participar ativamente do passeio, interagindo com a cultura local. Essa interação gera engajamento e ligação emocional com o local visitado, o que se vive e nunca mais se esquece. O resultado é um turista impactado pela viagem. Ele será um dos maiores divulgadores da experiência. (SEBRAE, 2015). O projeto turístico além, de proporcionar ao visitante o contato com a beleza da paisagem natural do Lajedo do Marinho, propicia que este turista vivencie o cotidiano da comunidade que vive no entorno da área do Lajedo. O turista interage 279

diretamente com os moradores e com os costumes locais, como por exemplo: tirar leite de cabras e de vacas, aprender como se faz o queijo e apreciar os diversos sabores da culinária tradicional do Cariri paraibano. O Projeto conta com uma área de camping com uma boa estrutura com banheiros ecológicos(masculino e feminino), energia elétrica, — “wifi”, água encanada, fogão e forno a lenha e redário. Conta ainda com as motos de apoio, que são utilizadas para levar todas as bagagens e mantimentos, caso o turista solicite, pois na área de acampamento não há acesso para carros. De forma opcional, e sob agendamento prévio, é servido café da manhã, almoço e jantar no local. Para os mais aventureiros, os condutores oferecem o pacote completo que inclui, além do camping, as trilhas ecológicas onde o visitante interage diretamente com a paisagem bela e única do bioma caatinga. Nas trilhas o turista com o auxílio dos condutores turísticos interage com a vegetação e com a fauna local e ainda conhece os vários sítios arqueológicos com grafismos rupestres, oficinas liticas e locais de sepultamento. Figura 03: Turistas nas trilhas do lajedo do Figura 04: Pintura rupestre no Lajedo do Marinho. (Arquivo Pessoal) Marinho. (Arquivo Pessoal) São vários tipos de trilhas que são oferecidas aos turistas, que são classificadas de acordo com seu grau de dificuldade pelos próprios condutores: a trilha leve, a moderada e a difícil. A Trilha leve tem um percurso de 2km passando, por entre a mata, pela Pedra da Tesoura (sitio histórico e arqueológico),Tanque da Lua, Pedra da Castanha, até chegar no Mirante da Serra do Gavião. A trilha moderada é a mais procurada pelos turistas, tem 4,5 km de extensão, mas ela tem um percurso mais íngreme o que aumenta a dificuldade. A trilha do Conselheiro, como é conhecida, tem este nome devido a passagem de Antônio Conselheiro exatamente nos pontos iniciais da trilha, o açude do Marinho Velho e a furna do Caboclo Bravo como cita Manuel Benício (1997). A trilha segue por caminhos dentro da caatinga passando por uma grande quantidade de matações 280

e sítios históricos terminando na área de acampamento do Lajedo do Marinho. regionalização e turismo Já a trilha considerada difícil é a junção do percurso das trilhas anteriores citadas, acrescentando-se ao seu percurso a passagem pelo cume da Serra do Macaco onde o turista precisa escalar um paredão rochoso, isto explica o fato desta trilha ser considerada difícil pelos condutores locais. A CADEIA PRODUTIVA O Projeto desenvolvido no Lajedo do Marinho tem abrangido não apenas a comunidade, mas de certa forma o Município como um todo, pois a demanda por serviços que atividade turística requer é muito diversificada.Essa demanda por serviços gera oportunidades empreendedoras como: surgimento de infraestrutura no local, de restaurantes e pousada, gerando renda e emprego o que leva a surgir assim, uma cadeia produtiva associada a atividade turística na comunidade e no entorno da mesma. A cadeia produtiva dá-se a partir das necessidades que cada grupo ou indivi- dualmente,o turista,solicite os serviços ou pacotes turísticos.Quando um grupo vem acampar, ele, naturalmente, solicita: aluguel das barracas de camping, almoço, café da manhã, trilhas, sejam elas, a pé, a cavalo ou em caminhão pau de arara. Assim, neste momento,entra em ação uma cadeia produtiva na comunidade,de serviços e produtos, gerando emprego e renda para as famílias locais envolvidas no projeto. Esta cadeia produtiva age da seguinte forma: o turista precisar de guias ou condutores turísticos locais, incluindo, entres eles, o pessoal do apoio, com auxílio de motocicletas, que levam todos os equipamentos e bagagens dos turistas para área de camping. Ao solicitar, almoço, jantar e café da manhã, ele aciona o grande elo dessa cadeia produtiva, pois tudo o que é consumido, de acordo com o projeto turístico desenvolvido na comunidade, preferencialmente, deve ser adquirido ou produzido na própria comunidade. Lembrando que, a comida servida, é típica regional, onde todos os ingredientes, já fazem parte da base alimentar da comunidade. Então, a galinha de capoeira e os ovos é fornecida pelo morador X, o feijão verde pelo Y, as hortaliças pelo Z, assim como, o queijo e o leite e, aquilo que não puder ser forne- cido diretamente pelo produtor, é comprado no comércio local, que é composto por pequenos mercadinhos, um restaurante e pizzaria e alguns barzinhos e quiosques onde, o turista a noite, geralmente costuma saborear petiscos e bebidas. Cada etapa desse projeto, que fique claro, é desempenhada por pessoas dife- rentes, dentro do projeto. Isso faz com que a dimensão social do projeto se amplie na comunidade, contemplando um grande número de famílias. Haja vista, o dono da caminhão pau de arara, o rapaz do sax, que toca ao pôr-do-sol a “AVE Maria Sertaneja”, os cantores e cantoras que tocam músicas ao vivo, tanto na área de camping, como no restaurante e pizzaria e nos quiosques da praça da comunidade. 281

Ainda inserido nesta cadeia produtiva podemos citar de forma importantís- sima o artesanato local, de crochê, famoso por suas cores vibrantes, uma tradição das mulheres da comunidade, que vem passando esta cultura de geração em ge- ração. Hoje, as famosas, Crocheteiras do Lajedo do Marinho, são conhecidas por seu artesanato no Brasil e no exterior, composta por um grupo de 16 mulheres da comunidade que se organizaram em uma associação, a ASSCCROM (Associação das Crochetearas e Condutores Turísticos do Lajedo do Marinho). Todo este processo envolvendo múltiplos atores na comunidade caracteriza o chamado turismo de base comunitária, que foi definido assim: O turismo de base comunitária é aquele no qual as populações locais possuem o controle efetivo sobre o seu desenvolvimento e gestão, e está baseado na gestão comunitária ou familiar das infraestruturas e serviços turísticos, no respeito ao meio ambiente, na valorização da cultura local e na economia solidária (Turisol, 2010). Fazendo uma analogia ao que acontece no lajedo de Pai Mateus, na cidade de Cabaceiras, que é um destino turístico já consolidado e amplamente divulgado nas mídias, lá a paisagem, assim como no Lajedo do Marinho, é o grande atrativo para a atividade turística. Porém, a atividade turística não é considerada de base comunitária, devido toda sua infraestrutura e serviços prestados ser desempenhadas de forma isolada pelo proprietário do local. A área que está inserido o lajedo do Marinho não pertence ao um único proprietário: são várias pequenas propriedades onde seus proprietários, inseridos no projeto, veem no turismo, além de uma fonte de renda, a valorização cultural, o uso sustentável da paisagem natural e geográfica. Diante desse envolvimento da comunidade, há um instinto de cooperação entre todos, que provoca um senti- mento de identidade e apego ao lugar que conforme, Gonçalves (2007, citado por ARCARO, GONÇALVES,2019, p.39): O lugar tem um significado para o indivíduo que o incorpora à própria identidade. Na construção da identidade, existem dimensões e caracte- rísticas do entorno físico, que são incorporadas pelo sujeito por meio da interação com o ambiente. Nesse sentido, a identidade de lugar é um componente específico do próprio eu do sujeito, forjado em um complexo de ideias conscientes e inconscientes, sentimentos, valores, objetivos, pre- ferências, habilidades e tendências. Gonçalves (2007, citado por Arcaro, Gonçalves,2019, p.39): 282

Diante disso,atualmente na comunidade está consolidada uma cadeia produtiva regionalização e turismo associada ao turismo envolvendo, agricultores, pequenos pecuaristas, comerciantes e artesãos locais. A atividade turística que a paisagem do lajedo tornou possível na comunidade cumpre um papel de agente de desenvolvimento local agregando valor a paisagem, a cultura e a histórias dessa comunidade, gerando assim, qualidade de vida e desenvolvimento sustentável. Antes da implantação deste projeto turístico, a área do lajedo do Marinho, era utilizada para a criação de animais, cabras principalmente, pequenas plantações de lavouras de subsistência, feijão, mandioca e milho.Tais práticas, ao do longo tempo, causaram grande impacto na paisagem,pois houve um intenso desmatamento e quei- madas no local, objetivando abrir espaço para a pastagem e a prática da agricultura. Lembrando que devido ao clima semiárido e da vegetação predominante ser a caatinga, estas áreas degradadas, precisam de um longo período para se restabe- lecerem. É aí que surge um dos legados do turismo sustentável; além da geração de renda no entorno da comunidade. A paisagem precisa estar preservada,assim, as áreas degradas, em função do projeto turístico adotado na comunidade, também necessitam ser restauradas. Pensando nisso, está em andamento um projeto de reflo- restamento utilizando arvores nativas da caatinga, como o umbuzeiro, ipês, angicos, baraúnas entre outras. Além disso, na área imediata ao Lajedo do Marinho, seus proprietários aboliram a agricultura, a pecuária extensiva e a criação de caprinos. O LEGADO DO PROJETO Hoje, o Lajedo do Marinho é destaque, premiado, no turismo estadual.Tanto é que já foi cenário de documentários, atividades culturais diversas e programas de televisão que são exibidos a nível nacional,como por exemplo o programa — Tempero de família do canal de TV GNT, apresentado por Rodrigo Hilbert. A gravação deste Programa em 2017, trouxe uma grande visibilidade que impulsionou o projeto turístico. O lajedo recebe turistas do Brasil e do mundo, fato este registrado em um livro de registros onde os condutores, pedem que os turistas assinem e informem de onde vieram, contribuindo assim, com o controle do fluxo turístico local. Soma-se a tudo isso, o projeto, proporcionou a melhoria da qualidade de vida dos moradores, devido a geração de renda. E, ainda, como uma alternativa viável de exploração sustentável do bioma caatinga, agregando valores naturais, históricos e culturais, oriundos da atividade do turismo. Afinal, segundo o (SEBRAE,2015): com crescimento de aproximadamente 30% ao ano, o turismo rural é uma das atividades econômicas que mais se desenvolve no país. Desta forma contribui também para a fixação do homem no campo, pois ao dinamizar as atividades geradores de renda no campo, projetos como esse 283

tornam-se eficazes ferramentas capazes de amenizar ou até mesmo impedir o êxodo rural, haja vista, que cria novas possibilidades de geração de renda no setor rural. Fortalecendo a identidade e o sentimento de pertencimento do homem do campo com o seu lugar, como afirma: Relph (1979, p.10): Os lugares só adquirem identidade e significado através da intenção humana e da relação existente entre aquelas intenções e os atributos ob- jetivos do lugar, ou seja, o cenário físico e as atividades ali desenvolvidas. Impulsiona também a produção associada ao turismo pois grande parte da economia da comunidade passou a usufruir dos recursos oriundos do projeto turístico trazendo consigo uma vasta gama de serviços e produtos para atender as demandas que a atividade turística exige, o que gera renda e emprego. Portanto, o legado maior é que o projeto gerou renda e qualidade de vida, revitalizou a cultura e valorizou, ainda mais, o sentimento de identidade da comunidade com a paisagem do Lajedo, pois agora, aquela paisagem, antes despercebida, traz aos moradores do Distrito Marinho possibilidades, que devido ao projeto turístico, vem trazendo prosperidade ,emprego renda e desenvolvimento sutentável em pleno semiárido nordestino. HISTÓRIA E CULTURA DA COMUNIDADE DO DISTRITO MARINHO O Distrito Marinho atual tem sua origem no Marinho Velho que é uma pequena localidade, a cerca de 1 km de distância do Distrito Marinho. Foi lá que a família Tomé, pioneira nessa região, se estabeleceu ainda no século XIX, tendo com seu Patriarca o Senhor João Tomé, dono da “Fazenda Marinho”, assim como relato Manoel Benicio na sua obra “Rei dos jagunços”, de 1887, que relata a passagem de Antônio Conselheiro na fazenda de João Tomé. Fora de sorte que descera de Canindé por Quixadá, Riachuelo, Icó, Missão velha, Milagres e, atravessando os cariris velhos, chegaram em Paraíba, onde vamos encontra-lo em 1887 rodeado de todo seu prestigio e numeroso bando, no Município de Cabaceiras, ao pé do Rio Paraíba, arranchando no povoado de Boqueirão (Benicio,1997, p.38). 284

Antes de sua emancipação política, o povoado de Boqueirão pertencia a regionalização e turismo Cidade de Cabaceiras. Boqueirão conquistou sua emancipação política e portanto, tornando-se Cidade no ano de 1961. Continuando o relato, Benicio, Manoel (1997, p.39) afirma: — No dia seguinte, a procissão madrugou e foi sestear na fazenda do cauíla João Tomé. Historicamente esta é a única fonte, escrita, na qual podemos contar a origem da comunidade, já que há outros relatos orais, porém sem fontes escritas confiáveis. Mas, devido à seca e consequentemente a necessidade de água, após o crescimento da população, aos poucos, um novo povoado foi surgindo no entorno de um grande tanque natural, próximo do Marinho Velho. Pois, o tanque natural oferecia uma grande reserva de água, o que garantiria, em plena Caatinga, uma certa segurança hídrica as famílias. Este novo povoado logo foi chamado de “Marinho Novo”que no ano de 1988, pela lei estadual nº 5051,passou oficialmente a categoria de Distrito da Cidade de Boqueirão- PB, o Distrito Marinho. A Comunidade também é conhecida por sua História indígena, alguns mo- radores relatam que são descendentes indígenas, tais relatos são acompanhados de histórias familiares, que afirmavam que alguns de seus parentes foram capturados a laço mata a dentro.Tudo isso nos remete aos povos Cariri ou simplesmente Tapuias, como eram chamados os povos indígenas que habitam o interior nordestino, que deixaram na Comunidade do Distrito do Marinho as marcas de sua ocupação, nos diversos grafismos rupestres encontradas nos paredões rochosos da área do Lajedo do Marinho e do seu entorno. Ainda, deixaram dezenas de locais de sepultamento, onde nas escavações recentes, podemos perceber a riqueza cultural que estes povos levam consigo, como por exemplo: as diversas formas de sepultamento, vários adornos funerais que ornamentavam os corpos, bem como; uma infinidade de contas de colares e pingentes, confeccionados com matéria-prima diversificada e alguns trabalhados com grafismos em sua extemidade, remetendo provavelmente a cultura dos Povos Cariri. Estes povos também se destacaram por serem excelentes na arte de mani- pular algumas variedades de plantas e produzirem trançados que dava origem a uma grande variedade de produtos e utensílios utilizados no dia a dia do grupo. As pessoas que ocuparam o lugar hoje conhecido como Sítio Pedra da Tesoura no Distrito do Marinho, no Cariri Paraibano, assim como gran- de parte das populações que ocuparam as matas e sertões brasileiros no período que antecede a chegada europeia, exploraram bastante as plantas e cipós oferecidos pela natureza, confeccionando cordas, cestos e bolsas utilizadas por exemplo, para carregar e armazenar alimentos captados nas redondezas, bem como quaisquer outros objetos de seu interesse.(Costa; Aguiar , 2019, p. 217) 285

Com o crescimento da Comunidade e consequentemente a demanda por água aumentando, após obras para aumentar a capacidade hídrica do Tanque natural que abastasse a comunidade, o Distrito do Marinho passou a receber água do Açude Epitácio Pessoa, o Boqueirão, que está incluso no projeto de transposição do Rio São Francisco, eixo leste. Esta água não é tradada, é bruta, distribuída por gravida- de, pois o tanque fica na parte elevada da comunidade, atendendo as necessidades hídricas básicas de acerca de 1200 habitantes. Figura 03: Tanque do Lajedo que abastesse a comunidade. (Arquivo Pessoal) Figura 04: Praça da comunidade (Arquivo Pessoal) Além da família Tomé, a comunidade do Distrito Marinho destacam-se quatro grandes famílias: Plácido Oliveira; Maurício;Albino e a familia Araújo. Fato este, que deixa a sensação de que toda comunidade é ´formada por apenas uma grande família, isso devido aos fortes laços de parentescos que há entre seus habitantes, pois ao longo do tempo estas famílias estreitaram seus laços por causa do grande número de casamentos que ocorreram entre seus membros. A passagem de Antônio Conselheiro na comunidade, talvez explique a tra- dição católica da comunidade, pois são raríssimos seguidores de outra religião que não o catolicismo. Outra tradição na comunidade é o artesanato do crochê, como já relatado anteriormente, este oficio que ao longo do tempo foi e ainda é ensinado as crianças da comunidade, onde destacam -se um grupo de mulheres que ficaram famosas como As Crocheteiras do Lajedo do Marinho. Hoje, a comunidade tenta preservar sua história construindo, com recursos dos próprios moradores um museu arqueológico, em parceria, com o Instituto Me- morial da Borborema e a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e da Prefeituta Municipal que cedeu o espaço para sua construção. Com isso, a comunidade, busca atrair, também, um novo nicho do turismo, o turismo pedagógico, que impulsio- naria ainda mais o turismo local,com conservação, preservação e divulgação dos potenciais arquelogicos da comunidade. 286

CONSIDERAÇÕES FINAIS regionalização e turismo A paisagem do Lajedo do Marinho exprime com todo seu esplendor o con- ceito de topofília, defendido por TUAN (1980), quando remete o visitante e o nativo a um estado de plena integração homem e natureza. Todo este potencial natural agregou mais valor aos fatores arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, que aliado a vontade de empreender da comunidade e a qualificação proporcionada pelo SEBRAE, tornou-se uma experiência bem-sucedida na tentativa de manter o homem no campo e de conviver no semiárido nordestino. O projeto desenvolvido a partir da paisagem como atrativo turístico,abriu uma nova perspectiva de vida e geração de renda. Fato que impacta na qualidade de vida, autoestima, identidade e no sentimento de pertencimento ao lugar. A comunidade vive intensamente esta transformação, percebe-se que há uma grande cooperação e organização entre seus membros para atender da melhor maneira possível o turista e o visitante, o que retrata também outra característica local, a tradição de ser uma comunidade hospitaleira que tem o prazer de receber bem quem os visita. Apesar de ser um caso de sucesso, de receber turistas do mundo todo, ainda, não recebe o devido apoio do setor público local. Devido ao projeto o Lajedo do Marinho é o principal destino turístico do Município superando o açude Epitácio Pessoa, popularmente conhecido como Açude de Boqueirão. Constatado isso, esperava-se um maior empenho do poder público local, haja vista, que o projeto desenvolvido no Lajedo do Marinho desempenha um papel social importante dentro da cadeia produtiva do Município de Boqueirão. Portanto, esperamos que este projeto que tem como base o uso da paisagem, seja replicado em outros lugares do semiárido nordestino e que várias famílias, assim como aqui, sejam beneficiadas. O projeto mostrou que a paisagem pode e dever ser o pilar do uso sustentável do bioma Caatinga e o turismo no espaço rural surge como uma das principais atividades para este fim. REFERÊNCIAS BENÍCIO, Manoel. O rei dos jagunços: Crônica histórica e de costumes sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1997. BERTRAND, G.; BERTRAND, C. Uma Geografia transversal e de travessias: o meio ambiente através dos territórios e das temporalidades. Maringá: Ed. Massoni, 2007. COSTA, R.L.; AGUIAR, F. A produção cesteira e de cordoarias na pré-história do Cariri Paraibano. REVISTA DE ARQUEOLOGIA (SOCIEDADE DE ARQUEOLOGIA BRASILEIRA. IMPRESSO), V.32 N1, 2019. 287

IRPAA.ORG. No semiárido, viver é aprendera conviver. Disponível em: <https://irpaa.org/publicacoes/cartilhas/no-semiarido-viver-e-aprender-a- conviver.pdf>. Acesso em 26/05/2019. GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1994. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos metodologia científica. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. MALANSKI, Lawrence Mayer. Território e representação. Curitiba: Intersaberes, 2016 MARTIN, Gabriela. Pré-história do nordeste do Brasil. 5ª ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE,2013. Mello, LAÉRCIO. O uso de diferentes linguagens na leitura Geográfica. Curitiba: Inter- saberes, 2016. NETO, Emílio Sarde. Território e representação. Curitiba: Intersaberes, 2016. RELPH, E. C. As Bases Fenomenológicas da Geografia. Rio Claro: v. 4, n. 7, p. 1- 25, 1979. SEBRAE-SP. JUSBRASIL. Turismo rural no Brasil. Disponível em: <https://sebrae- sp. jusbrasil.com.br/noticias/2502800/turismo-rural-no-brasil-cresce-a-taxa-de-30-ao- ano>. Acesso em: acesso 22/05/2019. TUAN, Yi-Fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980. TURISOL, Série. Metodologias no Turismo Comunitário: Tucum. São Paulo: Rede Turisol, 2010. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA -UFPR.O Espaço Geográfico em Análise. Curitiba: Revista Raega, V.46 N.1, 2019. 288

16 regionalização e turismo NOÇÕES DE PERTENCIMENTO: AS ÁGUAS DO AÇUDE DE BOQUEIRÃO, DA CONSTRUÇÃO AO COLAPSO NO ABASTECIMENTO PAULO DA MATA MONTEIRO INTRODUÇÃO O crescimento da população e o consequente aumento da demanda pelo uso da água em todo o mundo levou a incidência de constantes conflitos. Esses conflitos transformados em litígios se apresentam de diversas formas, indo do uso para agricultura, consumo humano e industrial. No Brasil, os conflitos envolvendo o uso da água têm aumentado significa- tivamente nos últimos anos assim como o número de pessoas envolvidas também é crescente. No estado da Paraíba, um dos conflitos emblemáticos acerca da água é o do Açude Epitácio Pessoa (açude de Boqueirão), iniciado com a sua escassez em 1998, com alguns breves lampejos de pacificidade e se agravando em 2017, coincidindo com a chegada das águas da transposição do Rio São Francisco, do Projeto de Interligação de Bacia. Nesta pesquisa, aborda-se a problemática da água enquanto um direito fun- damental, os conflitos envolvendo o seu uso e como esse bem tão importante tem sido fonte de disputas em decorrência do aumento populacional e da diminuição das reservas de água doce no planeta. Retrata ainda a gestão dos recursos hídricos no Brasil e no estado da Paraíba, passando pela construção do açude de Boqueirão e abastecimento da Cidade de Campina Grande. Mostra a representatividade do manancial do ponto de vista histórico, social e econômico. A água e seus diversos usos configuram-se como grandes desafios para as sociedades contemporâneas. A crescente necessidade por água potável, em combi- nação com a diminuição da sua disponibilidade, tanto no seu aspecto quantitativo quanto qualitativo, tem intensificado os conflitos pelo acesso, uso, consumo e gestão desse recurso, constituindo-se um problema de dimensões ecológica, cultural, social e de política de gestão pública. A importância do açude de Boqueirão repousa no fato de ser esse o manancial de água potável que abastece um grande contingente populacional, notadamente de populações urbanas como Campina Grande. A presente pesquisa tem como objetivo geral entender a problemática envol- vendo os diversos usos das águas do “Boqueirão” com vistas à satisfação hídrica das 289

populações por ele abastecidas.Os objetivos específicos são: entender como o acesso a água representa um direito fundamental; mostrar como funciona a dinâmica da gestão dos recursos hídricos na Paraíba; explicar como o Açude de Boqueirão é importante para as populações que fazem uso de suas águas e promovem o desenvolvimento. Sendo assim, assenta-se na seguinte problemática: como os conflitos gera- dos pelos diversos usos das águas do “Boqueirão” relacionam-se com a satisfação hídrica das populações por ele abastecidas? Trabalha-se com a hipótese de que a gestão ineficiente dos recursos hídricos leva ao surgimento de constates conflitos decorrente do uso das águas. A metodologia empregada consiste em uma pesquisa exploratória, a qual é parte integrante da pesquisa bibliográfica em fontes fidedignas, estando baseada em artigos científicos, livros e monografias sobre o tema. Além disso, também são utilizadas notícias da mídia impressa e online. Quanto aos métodos, este trabalho está baseado no qualitativo. Em vista disso, busca-se realizar um estudo sistemático sobre o assunto, incluindo os conceitos dos termos principais para desenvolver o tema pretendido de modo a construir uma pesquisa importante para a academia e para a ciência. 1 DO ACESSO À ÁGUA ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL A água é um elemento indispensável para todas as espécies vivas, bem como para os seres humanos que não conseguem sobreviver sem o uso desse bem tão precioso, mesmo sabendo disso muitas pessoas não tem a sensibilidade para poder proteger e preservar as águas do planeta. Para Antunes, (2006, p. 687), a luta pelo acesso a água tem sido uma das principais fontes de conflitos internacionais, sobretudo nas regiões semiáridas e áridas, reconhecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). A água foi o motivo de cerca de 20 grandes disputas internacionais. Quanto aos conflitos inter- nacionais podemos falar em milhares. Ainda de acordo com o mesmo autor, a água é uma das principais preocupações e fontes de discussões internacionais, pois afeta a todos de forma universal e podem deixar à iminência a vida de gerações futuras. Com o significativo aumento populacional registrado a partir do século XX e o consequente aumento do consumo de água potável, assim como o aumento do desperdício, aumento do uso para a agricultura e a indústria, crescem também os desafios ao homem moderno, que é o de utilizar de forma racional os recursos naturais em especial à água. O homem moderno precisa encontrar o ponto de equilíbrio para a convivên- cia pacífica ente o meio que o cerca e a sua existência futura, visto que os recursos 290

naturais estão disponíveis, mas devem ser preservados e cuidados de forma a garantir regionalização e turismo a existência desses recursos no futuro. O esgotamento dos recursos naturais pode gerar um grande problema para os seres vivos e até mesmo extinção de espécies. Caso o homem não os utilize corretamente, a população pode sofrer com a escassez de água e alimentos. O abastecimento de água doce do planeta está em risco, de acordo com a Organização das Nações Unidas. Conforme dados do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos de 2015 (Água para um Mundo Sustentável), se a população não mudar o uso, o gerenciamento e compartilhamento do recurso, este poderá não ser suficiente para suprir as neces- sidades da população mundial (ONU, 2015). Cerca de 3% é a quantidade de água própria para o consumo, sendo que no mundo existe uma desigualdade na distribuição de água potável. Especificamente quanto ao Brasil, é um dos países que sofre com a crise da água, pois apesar de haver abundância de tal recurso, a maior parte deste está localizada na região Norte, enquanto as regiões com maior concentração populacional são o Nordeste e Sudeste. Mas, este é um problema que vai além dessa distribuição (PLANETA TERRA, 2010). De acordo com Victorino (2007, p. 28), para evitar a crise da água, “seriam necessários: evitar desperdício, interromper processos poluidores e criar novas maneiras de captação, controle e distribuição da água”. Ante o exposto, fica cada vez mais evidente a necessidade de preservação e cuidados com os mananciais. A ONU definiu o período compreendido entre 2005 e 2015 como a “Década Internacional para a ‘Ação Água’ para a vida”, como forma de contribuir na preservação das águas mundiais tendo como meta reduzir o desperdício e deverá ser fornecida água para 1,6 bilhão de pessoas e saneamento para 2,1 bilhões entre 2002 e 2015, principalmente entre as famílias pobres nos países mais pobres do mundo (ONU, 2015). Segundo Castro (2013), a água, como parte do meio ambiente, foi mencio- nada em algumas ocasiões, embora seu reconhecimento como direito fundamental tenha sido tardio, já que nenhum texto internacional mencionava expressamente esse direito como fundamental. Somente em 1977 ocorreu a primeira Conferência especifica sobre a água, na Argentina, conhecida como Ação de Mar Del Plata. Na Irlanda, na cidade de Dublin, em 1992 ocorreu a Conferência Interna- cional sobre a Água e Meio Ambiente; no Brasil, aconteceu a ECO-92.  Nessas conferências, observou-se a finitude dos recursos hídricos e a necessidade de sua preservação, pelo que se extraiu a sugestão de que os Estados adotassem gestões de recursos hídricos. 291

No Brasil, do ponto de vista da legislação, a Constituição de 1988 aborda o tema da água fora dos artigos destinados aos direitos fundamentais, deslocando a mesma para outro Título, que a considera como bem da União e dos Estados. Assim, no Título III, da Organização do Estado, no Capítulo II, dispõe: Art. 20. São bens da União: [...] III – Os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu do- mínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a territórios estrangeiros ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I – As águas superficiais ou subterrâneas,fluentes,emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União. (BRASIL, 1988) A água é elemento essencial para a vida humana,sem a qual não se faz possível que qualquer elemento vivo possa sobreviver. Nesse sentido, não há como negar que a água se trata de um direito fundamental para o ser humano e, portanto, deve ser usufruída por todos os indivíduos. O acesso à água é primordial para uma vida digna. A seguir cumpre discutir sobre a importância da gestão dos recursos hídricos na Paraíba com vista à preservação dos mananciais assim como o gerenciamento visando à garantia do abastecimento de água para a população. 2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PANORAMA ATUAL DA GESTÃO DOS RECUR- SOS HÍDRICOS NA PARAÍBA No Brasil, o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos foi instituído através da Constituição Federal de 1988, introduzindo uma importante mudança no que diz respeito à gestão dos recursos hídricos do país ao considerar todas as águas de domínio público - antes considerada de domínio público e pri- vado pelo código das águas, Decreto nº 24.642 -, colocando-a sob controle federal ou estadual. As águas que atravessam ou limitam mais de um Estado pertencem à União. Ao Estado cabe o domínio das águas de superfície e subterrâneas, localizadas em seus limites territoriais. Em 1997, foi aprovada a Lei conhecida como Lei das águas, de nº 9.433/97, que institui a Política Nacional dos Recursos Hídricos. 292

Na Paraíba, a gestão das águas fica a cargo de uma autarquia denominada regionalização e turismo Agencia Executiva de Gestão das Águas da Paraíba (AESA). Esta foi criada pela Lei Estadual 7.779, de 07/07/2005, estando vinculada à Secretaria de Estado dos Recursos Hídricos, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia (SERHMACT). Quanto aos objetivos da AESA o art. 3º da Lei 7.779/2005 prescreve: São objetivos da AESA, o gerenciamento dos recursos hídricos subterrâ- neos e superficiais de domínio do Estado da Paraíba, de águas originárias de bacias hidrográficas localizadas em outros Estados que lhe sejam transferidas através de obras implantadas pelo Governo Federal e, por delegação, na forma da Lei, de águas de domínio da União que ocorrem em território do Estado da Paraíba. (PARAÍBA, 2005) A gestão de recursos hídricos para Brito (2008, p. 46) pode ser definida como o conjunto de ações destinadas a regular o uso, o controle e a proteção dos recursos hídricos, em conformidade com a legislação e normas pertinentes. A AESA, após sua criação, passou a ser a responsável pala implementação da Política Estadual dos Recursos Hídricos, com previsão legal na Lei Estadual nº 6.308, de 02 de julho de 1996, cujos objetivos principais estão no art. 2º da referida lei. Passa-se a transcrevê-los: [...] I. O acesso aos Recursos Hídricos é direito de todos e objetiva atender às necessidades essenciais da sobrevivência humana. II. Os Recursos Hídricos são um bem público, de valor econômico, cuja utilização deve ser tarifada. III. A bacia hidrográfica é uma unidade básica físico-territorial de pla- nejamento e gerenciamento dos Recursos Hídricos. IV. O gerenciamento dos Recursos Hídricos far-se-á de forma partici- pativa e integrada, considerando os aspectos quantitativos e qualitativos desses Recursos e as diferentes fases do ciclo hidrológico. V.O aproveitamento dos Recursos Hídricos deverá ser feito racionalmente de forma a garantir o desenvolvimento e a preservação do meio ambiente. VI. O aproveitamento e o gerenciamento dos Recursos Hídricos serão utilizados como instrumento de combate aos efeitos adversos da poluição, da seca, das inundações, do desmatamento indiscriminado, das queimadas, da erosão e do assoreamento. (PARAIBA, 1996) 293

A autarquia é responsável pelo monitoramento dos açudes e barragens no estado da Paraíba. O volume armazenado por esses mananciais, somam cerca de quatro bilhões m³ de água. O destaque é para os açudes de Coremas – Mãe D’Água na A sub-bacia do Rio Piancó e o de Boqueirão na Região do Alto curso do Rio Paraíba, conforme descreve o Relatório Anual Sobre a Situação dos Recursos Hídricos no Estado da Paraíba 2008-2009 (p. 48). Embora a gestão das águas do açude de Boqueirão não seja de responsabi- lidade exclusiva da AESA, essas águas recebem uma gestão compartilhada entre Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS), AESA e Agencia Nacional das águas (ANA). Uma resolução conjunta dos órgãos citados estabelece as prioridades de uso das águas advindas do Projeto de Integração do São Francisco (PISF) (Resolução Conjunta ANA e AESA-PB, nº 1.292 de 17 de julho de 2017). Ainda de acordo com Brito (2008, p. 57), a bacia do Paraíba é totalmente paraibana e de grande importância por atender uma grande parcela da população estadual (52%). É composta pela sub-bacia do rio Taperoá e regiões do Alto, Médio e Baixo curso do Rio Paraíba. Seu principal Rio é o Paraíba, o mais extenso do Estado, tendo sua nascente na região semiárida, na Serra do Jabitacá – município de Monteiro (Planalto da Borborema), e se estende no sentido Sudoeste-Nordeste até chegar a sua foz no Oceano Atlântico, no município de Cabedelo. O aprovei- tamento principal das águas dessa bacia é para irrigação e abastecimento urbano. O principal açude dessa bacia é justamente o Epitácio Pessoa (Boqueirão). Conforme as informações contidas no sitio da Companhia de Água e Esgoto da Paraíba (CAGEPA), principal cessionária das águas do Açude de Boqueirão, são abastecidas as seguintes cidades: Campina Grande, Queimadas, Caturité, Barra de Santana, Lagoa Seca, Alagoa Nova, São Sebastião de Lagoa de Roça, Matinhas, Pocinhos, Boqueirão, Cabaceiras, Boa Vista, Soledade, Juazeirinho, Cubati, São Vicente do Seridó, Pedra Lavrada, Olivedos e Sossego. Somando uma população estimada em 644.604 mil habitantes. Com destaque para a cidade de Campina Grande com cerca de 410 mil habitantes (IBGE, 2018). Ante ao exposto,sabe-se que o Açude Epitácio Pessoa representa não somente um manancial de água, representa sobretudo, o mais importante reservatório da região e o único que abastece Campina Grande, segunda maior cidade do Estado da Paraíba com importância econômica a nível de Nordeste, cabendo a discussão que se segue sobre o papel que exerce para o bem estar das populações que de suas águas dependem. 294

3 REPRESENTATIVIDADE DO AÇUDE DE BOQUEIRÃO PARA O BEM ESTAR DA regionalização e turismo COLETIVIDADE QUE USUFRUI DE SUAS ÁGUAS O açude de Boqueirão foi construído dentro da política de açudagem do governo federal, cujo objetivo era gerar energia elétrica, perenizar o Rio Paraíba, pesca, cultura de vazante e consumo humano, minimizando os efeitos das estiagens. De acordo com Molle (1994, p. 14), a história de açudes no Nordeste é tão antiga como a história de sua colonização pelos portugueses. Na realidade, o próprio nome açude - derivado da palavra árabe as-Sadd (barragem) comprova origem ainda mais remota, se nos debruçarmos sobre a História do homem e de suas técnicas. O primeiro registro de seca foi feito pelo padre jesuíta Fernão Cardin em 1583 e o segundo em 1587. Várias secas se sucederam ao longo dos séculos se- guintes, mas somente mais tarde, com o objetivo de organizar um sistema central coordenador das obras contra as secas, foram tomadas providências federais que resultaram no Decreto nº 7.619 de 21/10/1909, criando a Inspetoria Nacional de Obras Contra as Secas (INOCS) que posteriormente, através do Decreto nº 13.687, passaria a ser chamado de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), antes de assumir a denominação atual de Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), que lhe foi conferida em 1945 pelo Decreto-Lei nº 8.846, com a concepção de combate à seca através de obras, principalmente a partir da construção de açudes. A Lei n° 4229 de 01/06/1963 transformou o DNOCS em autarquia fe- deral. As atribuições do DNOCS, desde a criação do IFOCS sempre fizeram jus a expressão “Obras Contra as Secas”, mudando apenas, no decorrer do tempo, a abrangência, a especificidade e o alcance social dessas obras. Após a sua inauguração na década de 1950, o Açude de Boqueirão (cons- truído pelo DNOCS) assume um importantíssimo papel no cenário regional, em face da utilidade de suas águas, com destaque para o abastecimento da cidade de Campina Grande. O alcance social proporcionado pela perenização do Rio Paraíba por ter disponibilizado água (para o consumo humano, animal e irrigação e cultura de vazante) às populações ribeirinhas durante o período de estiagem. Ainda cabe ressaltar a importância do manancial para as centenas de famílias que cultivam as margens do Epitácio Pessoa garantindo ocupação e o sustento para esses agricultores, assim como a pesca e a atividade turística que foi potencializada com as águas do “Boqueirão”. 295

3.1 ABASTECIMENTO DE CAMPINA GRANDE: DO AÇUDE VELHO AO AÇUDE DE BOQUEIRÃO No contexto de longas estiagens, cumpre fazer um recorte sobre a situação de abastecimento de água por que passava a cidade de Campina Grande, principal centro urbano do interior do Nordeste e segunda maior cidade da Paraíba. Com o intuito de minimizar o problema de abastecimento, foi construído, em 1828, pelo Governo Provincial da Paraíba, um açude na Vila Nova da Rainha, pois esta possuía até então apenas riachos. O Açude Velho foi o primeiro reservatório a atender o município, construído onde antes havia o “Riacho das Piabas”, no atual centro da cidade. Sua inauguração ocorreu em 1830, mas só veio a ser concluído em 1844, tornando-se naquele mo- mento o maior reserva­tório público do Planalto da Borborema. Sua construção foi motivada pela necessidade de atender à demanda de água a partir do crescimento demog­ ráfico e pelas estiagens prolongadas, que a região Nordeste enfrentou, prin- cipalmente a que ocorreu entre 1824 a 1828 (RANGEL JUNIOR, 2013, p. 17). A história do abastecimento de água de Campina Grande ainda conta com a construção do “Açude Novo” construído em 1830, o “Açude de Bodocongó” construído entre os anos de 1915-1917 o qual exerceu pouca importância no abastecimento da cidade, o Açude João Suassuna em Puxinanã construído entre os anos de 1925-1926 e em 1939 frente a crescente demanda de água foi construído o Açude Vaca Brava, localizado nos limites dos municípios de Areia e Remígio (Região do Agreste-Brejo da Paraíba). Utilizando o sistema de adutora para abas- tecer a Rainha da Borborema. Com o aumento populacional e a importância econômica que passaria a exercer Campina Grande, essa teve seu abastecimento proporcionado pelas águas do Açude Epitácio Pessoa, que foi construído ente os anos de 1950-1956, sendo inaugurado em janeiro de 1957. Com uma capacidade de armazenamento inicial de 535.680.000 m³ de água. Em decorrência do assoreamento sua capacidade atual é de cerca de 411.686.287 m³ de água de acordo com a última batimetria (SILVA; NASCIMENTO, 2015, p. 5). Desse modo, percebemos que o aumento populacional e o consequente aumento da demanda por água potável coincidiu com a redução da capacidade de armazenamento do açude de Boqueirão levando a iminente possibilidade de colapso no abastecimento de água de Campina Grande e região. 296

3.2 AÇUDE DE BOQUEIRÃO: DA CONSTRUÇÃO AO COLAPSO NO ABASTECIMENTO regionalização e turismo A barragem de Boqueirão teve seus momentos iniciais de preparação no ano de 1948, quando da chegada dos primeiros engenheiros do DNOCS e sua equipe topográfica para fazer o levantamento técnico do local. Dois anos depois muitos outros técnicos chegaram para dar continuidade ao trabalho de infraestrutura, só em 1951 é que as obras tiveram início de fato. Segue trecho do decreto de desapropriação da área onde foi construído o açude de Boqueirão assinado pelo então Presidente da República Getúlio Vargas e pelo paraibano, Ministro da Viação e Obras Públicas, José Américo. Decreto nº 35.549, de 24 de Maio de 1954. Art. 1º Fica declarada de utilidade pública, para efeito de desapropriação pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Sêcas áreas de terreno com noventa e três milhões de metros quadrados, representada na planta que com êste baixa, devidamente rubricada, necessária à construção do açude público “Boqueirão”,no município de Cabeceiras,Estado da Paraíba. Art. 2º Êste decreto entrará em vigor a partir da data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. (BRASIL, 1954) Em 1956 o Rio Paraíba é barrado, para alguns moradores da vila (onde hoje é Boqueirão) e leigos da engenharia um feito que parecia impossível e, em janeiro de 1957 é inaugurada a barragem a qual recebeu o nome de ex-presidente da República, o paraibano Epitácio Pessoa. 3.2.1 A INAUGURAÇÃO DA OBRA: DA VINDA DO PRESIDENTE AO IDEÁRIO POPULAR Inaugurado em janeiro de 1957,o Açude Epitácio Pessoa era uma das grandes obras da política de açudagem do governo federal. A festa de inauguração durou três dias e teve a presença do então presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira, que foi saudado pela população com muita festa. Veja exemplo do que retratavam os poetas populares, exemplificado por meio do poema feito por um funcionário aposentado do DNOCS: 297

Eis a obra concluída a população agradece a festa rola três dias anoitece e amanhece dançou-se samba e xaxado churrasco e choop gelado de graça pra quem quiser. Nosso querido presidente pisa o solo nordestino inaugurou a barragem depois de um discurso fino quando anunciou seus planos vi gente quase chorando para abraçar Juscelino. (GUIMARÃES, 1997, p. 17). A construção do açude representava diversas possibilidades, como enfatizado anteriormente (perenização do Rio Paraíba, pesca, abastecimento humano, etc.). Representava também o fim das grandes cheias do “Paraíba”, pois com a barragem esse passaria a ser perenizado possibilitando diversas atividades econômicas às suas margens. Veja o que enfatiza o jornal “O Boqueirão”: Os engenheiros das obras contra as secas acabaram de realizar um feito sen- sacional: transformaram um bicho de sete cabeças em manso cordeiro criado para montaria de menino. O Rio Paraíba, o terrível, o que nunca respeitou o homem ribeirinho, o que devorava lavouras e afogava rebanhos, não faz mais medo a ninguém. É hoje em dia um rio como outros e corre tranqui- lamente em leito menor [...] ( JORNAL O BOQUEIRÃO, 1957, p 01). E continua o citado informativo: [...] Era absoluto, indomável, sem respeito pelos grandes e pequenos. Quando os búzios soavam nas noites de cheia, o melhor era correr para os altos e dá logo tudo por perdido. O “Paraíba”vinha solto de canga e corda e o grande caldal amarelo tomava todos os baixos, enfiava-se pelos riachos subia as barreiras e depois começava a gemer, tal como as jiboias de barriga cheia.[...] Pois bem, esse monstro acaba de ser domado pelos engenheiros brasileiro. O técnico das Obras Contra as Secas amarrou argola nas ventas do Urso feroz e ele agora dança ao compasso das máquinas que tamparam o Boqueirão de Cabaceiras... ( JORNAL O BOQUEIRÃO, 1957, p. 01). 298


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