– Como? Então é cousa de umhomem bene? – De juízo, talvez não seja; mas dedoido, também não. – Non capisco. – É uma idéia, meu pai, é um plano,talvez à primeira vista absurdo, fora dosmoldes, mas não de todo doido. É ousado,talvez, mas... Por mais que quisesse, ela não podiajulgar o ato do padrinho sob o critério deseu pai. Neste falava o bom senso e nela oamor às grandes cousas, aos arrojos ecometidos ousados. Lembrou-se de queQuaresma lhe falara em emancipação; ese houve no fundo de si um sentimentoque não fosse de admiração peloatrevimento do major, não foi decerto o dereprovação ou lástima; foi de piedadesimpática por ver mal compreendido o atodaquele homem que ela conhecia hátantos anos, seguindo o seu sonho,isolado, obscuro e tenaz. – Isto vai causar-lhe transtorno,observou Coleoni. E ele tinha razão. A sentença doarquivista foi vencedora nas discussõesdos corredores e a suspeita de queQuaresma estivesse doido foi tomando 101
foros de certeza. Em princípio, osubsecretário suportou bem a tempestade;mas tendo adivinhado que o supunhaminsciente no tupi, irritou-se, encheu-se deuma raiva surda, que se continhadificilmente. Como eram cegos! Ele que hátrinta anos estudava o Brasilminuciosamente; ele que, em virtudedesses estudos, fora obrigado a aprendero rebarbativo alemão, não saber tupi, alíngua brasileira, a única que o era – quesuspeita miserável! Que o julgassem doido – vá! Mas quedesconfiassem da sinceridade de suasafirmações, não! E ele pensava, procuravameios de se reabilitar, caía em distrações,mesmo escrevendo e fazendo a tarefaquotidiana. Vivia dividido em dous: umaparte nas obrigações de todo o dia, e aoutra, na preocupação de provar que sabiao tupi. O secretário veio a faltar um dia e omajor lhe ficou fazendo as vezes. Oexpediente fora grande e ele mesmoredigira e copiara uma parte. Tinhacomeçado a passar a limpo um ofíciosobre cousas de Mato Grosso, onde sefalava em Aquidauana e Ponta-Porã, 102
quando o Carmo disse lá do fundo da sala,com acento escarninho: – Homero, isto de saber é uma cousa,dizer é outra. Quaresma nem levantou os olhos dopapel. Fosse pelas palavras em tupi quese encontravam na minuta, fosse pelaalusão do funcionário Carmo, o certo é queele insensivelmente foi traduzindo a peçaoficial para o idioma indígena. Ao acabar, deu com a distração, maslogo vieram outros empregados com otrabalho que fizeram, para que eleexaminasse. Novas preocupaçõesafastaram a primeira, esqueceu-se e oofício em tupi seguiu com oscompanheiros. O diretor não reparou,assinou e o tupinambá foi dar aoministério. Não se imagina o reboliço que talcousa foi causar lá. Que língua era?Consultou-se o Doutor Rocha, o homemmais hábil da secretaria, a respeito doassunto. O funcionário limpou o pince-nez,agarrou o papel, voltou-o de trás paradiante, pô-lo de pernas para o ar econcluiu que era grego, por causa do \"yy\". 103
O Doutor Rocha tinha na secretaria afama de sábio, porque era bacharel emdireito e não dizia cousa alguma.– Mas, indagou o chefe, oficialmenteas autoridades se podem comunicar emlínguas estrangeiras? Creio que há umaviso de 84... Veja, senhor Doutor Rocha...Consultaram-se todos osregulamentos e repertórios de legislação,andou-se de mesa em mesa pedindoauxílio à memória de cada um e nada seencontrara a respeito. Enfim, o DoutorRocha, após três dias de meditação, foi aochefe e disse com ênfase e segurança:– O aviso de 84 trata de ortografia.O diretor olhou o subalterno comadmiração e mais ficou considerando assuas qualidades de empregado zeloso,inteligente e... assíduo. Foi informado deque a legislação era omissa no tocante àlíngua em que deviam ser escritos osdocumentos oficiais; entretanto nãoparecia regular usar uma que não fosse ado país.O ministro, tendo em vista estainformação e várias outras consultas,devolveu o ofício e censurou o Arsenal.Que manhã foi essa no Arsenal! Ostímpanos soavam furiosamente, os 104
contínuos andavam numa dobadouraterrível e a toda hora perguntavam pelosecretário que tardava em chegar. Censurado! monologava o diretor. Ia-se por água abaixo o seu generalato. Vivertantos anos a sonhar com aquelas estrelase elas se escapavam assim, talvez porcausa da molecagem de um escriturário! Ainda se a situação mudasse... Masqual! O secretário chegou, foi ao gabinetedo diretor. Inteirado do motivo, examinou oofício e pela letra conheceu que foraQuaresma quem o escrevera. Mande-o cá,disse o coronel. O major encaminhou-sepensando nuns versos tupis que lera demanhã. – Então o senhor leva a divertir-secomigo, não é? – Como? fez Quaresma espantado. – Quem escreveu isso? O major nem quis examinar o papel.Viu a letra, lembrou-se da distração econfessou com firmeza: – Fui eu. – Então confessa? – Pois não. Mas Vossa Excelência nãosabe... – Não sabe! que diz? 105
O diretor levantou-se da cadeira, comos lábios brancos e a mão levantada àaltura da cabeça. Tinha sido ofendido trêsvezes: na sua honra individual, na honrade sua casta e na do estabelecimento deensino que freqüentara, a escola da PraiaVermelha, o primeiro estabelecimentocientífico do mundo. Além disso escreverano Pritaneu, a revista da escola, um conto– \"A Saudade\" – produção muito elogiadapelos colegas. Dessa forma, tendo emtodos os exames plenamente e distinção,uma dupla coroa de sábio e artista cingia-lhe a fronte. Tantos títulos valiosos e rarosde se encontrarem reunidos, mesmo emDescartes ou Shakespeare,transformavam aquele – não sabe – de umamanuense em ofensa profunda, eminjúria. – Não sabe! Como é que o senhorousa dizer-me isto! Tem o senhorporventura o curso de BenjamimConstant? Sabe o senhor Matemática,Astronomia, Física, Química, Sociologia eMoral? Como ousa então? Pois o senhorpensa que por ter lido uns romances esaber um francesinho aí, pode ombrear-secom quem tirou grau 9 em Cálculo, 10 em 106
Mecânica, 8 em Astronomia, 10 emHidráulica, 9 em Descritiva? Então?! E o homem sacudia furiosamente amão e olhava ferozmente para Quaresmaque já se julgava fuzilado. – Mas, senhor coronel... – Não tem mas, não tem nada!Considere-se suspenso, até segundaordem. Quaresma era doce, bom e modesto.Nunca fora seu propósito duvidar dasabedoria do seu diretor. Ele não tinhanenhuma pretensão a sábio e pronunciaraa frase para começar a desculpa; mas,quando viu aquela enxurrada de saber, detítulos, a sobrenadar em águas tãofuriosas, perdeu o fio do pensamento, afala, as idéias e nada mais soube nempôde dizer. Saiu abatido, como um criminoso, dogabinete do coronel, que não deixava deolhá-lo furiosamente, indignadamente,ferozmente, como quem foi ferido emtodas as fibras do seu ser. Saiu afinal.Chegando à sala do trabalho nada disse;pegou no chapéu, na bengala e atirou-sepela porta afora, cambaleando como umbêbado. Deu umas voltas, foi ao livreirobuscar uns livros. Quando ia tomar o 107
bonde encontrou o Ricardo Coração dosOutros. – Cedo, hein major? – É verdade. E calaram-se ficando um diante dooutro num mutismo contrafeito. Ricardoavançou algumas palavras: – O major, hoje, parece que tem umaidéia, um pensamento muito forte. – Tenho, filho, não de hoje, mas de hámuito tempo. – É bom pensar, sonhar consola. – Consola, talvez; mas faz-nostambém diferentes dos outros, cavaabismos entre os homens... E os dous separaram-se. O majortomou o bonde e Ricardo desceudescuidado a Rua do Ouvidor, com o seupasso acanhado e as calças dobradas nascanelas, sobraçando o violão na suaarmadura de camurça. *** 108
V O Bibelot Não era a primeira vez que ela vinhaali. Mais de uma dezena já subira aquelalarga escada de pedra, com grupos demármores de Lisboa de um lado e dooutro, a Caridade e Nossa Senhora daPiedade; penetrara por aquele pórtico decolunas dóricas, atravessara o átrioladrilhado, deixando à esquerda e à direita,Pinel e Esquirol, meditando sobre oangustioso mistério da loucura; subiraoutra escada encerada cuidadosamente efora ter com o padrinho lá em cima, triste eabsorvido no seu sonho e na sua mania.Seu pai a trazia às vezes, aos domingos,quando vinha cumprir o piedoso dever deamizade, visitando Quaresma. Há quantotempo estava ele ali? Ela não se lembravaao certo; uns três ou quatro meses, setanto. Só o nome da casa metia medo. Ohospício! É assim como uma sepultura emvida, um semi-enterramento, enterramentodo espírito, da razão condutora, de cujaausência os corpos raramente seressentem. A saúde não depende dela e 109
há muitos que parecem até adquirir maisforça de vida, prolongar a existência,quando ela se evola não se sabe por queorifício do corpo e para onde. Com que terror, uma espécie de pavorde cousa sobrenatural, espanto de inimigoinvisível e onipresente, não ouvia a gentepobre referir-se ao estabelecimento dapraia das Saudades! Antes uma boamorte, diziam. No primeiro aspecto, não secompreendia bem esse pasmo, esseespanto, esse terror do povo por aquelacasa imensa, severa e grave, meiohospital, meio prisão, com seu alto gradil,suas janelas gradeadas, a se estender poruns centos de metros, em face do marimenso e verde, lá na entrada da baía, naPraia das Saudades. Entrava-se, viam-seuns homens calmos, pensativos,meditabundos, como monges emrecolhimento e prece. De resto, com aquela entradasilenciosa, clara e respeitável, perdia-selogo a idéia popular da loucura; oescarcéu, os trejeitos, as fúrias, oentrechoque de tolices ditas aqui e ali. Não havia nada disso; era uma calma,um silêncio, uma ordem perfeitamente 110
naturais. No fim, porém, quando seexaminavam bem, na sala de visitas,aquelas faces transtornadas, aqueles aresaparvalhados, alguns idiotas e semexpressão, outros como alheados emergulhados em um sonho íntimo sem fim,e via-se também a excitação de uns, maisviva em face à atonia de outros, é que sesentia bem o horror da loucura, oangustioso mistério que ela encerra, feitonão sei de que inexplicável fuga do espíritodaquilo que supõe o real, para se apossare viver das aparências das cousas ou deoutras aparências das mesmas. Quem uma vez esteve diante desteenigma indecifrável da nossa próprianatureza fica amedrontado, sentindo que ogerme daquilo está depositado em nós eque por qualquer cousa ele nos invade,nos toma, nos esmaga e nos sepulta numadesesperadora compreensão inversa eabsurda de nós mesmos, dos outros e domundo. Cada louco traz em si o seumundo e para ele não há maissemelhantes: o que foi antes da loucura éoutro muito outro do que ele vem a serapós. E essa mudança não começa, não sesente quando começa e quase nunca 111
acaba. Com o seu padrinho, como fora? Aprincípio, aquele requerimento... Mas queera aquilo? Um capricho, uma fantasia,cousa sem importância, uma idéia de velhosem conseqüência. Depois, aquele ofício?Não tinha importância, uma simplesdistração, cousa que acontece a cadapasso... E enfim? A loucura declarada, atorva e irônica loucura que nos tira a nossaalma e põe uma outra, que nos rebaixa...Enfim, a loucura declarada, a exaltação doeu, a mania de não sair, de se dizerperseguido, de imaginar como inimigos, osamigos, os melhores. Como fora dolorosoaquilo! A primeira fase do seu delírio,aquela agitação desordenada, aquele falarsem nexo, sem acordo com que serealizava fora dele e com os atospassados, um falar que não se sabiadonde vinha, donde saía, de que ponto doseu ser tomava conhecimento! E o pavordo doce Quaresma? Um pavor de quemviu um cataclismo, que o fazia tremer todo,desde os pés à cabeça, e enchia-o deindiferença para tudo mais que não fosse oseu próprio delírio. A casa, os livros e os seus interessesde dinheiro andavam à matroca. Para ele,nada disso valia, nada disso tinha 112
existência e importância. Eram sombras,aparências; o real eram os inimigos, osinimigos terríveis cujos nomes o seu delírionão chegava a criar. A velha irmã,atarantada, atordoada, sem direção, semsaber que alvitre tomar. Educada em casasempre com um homem ao lado, o pai,depois o irmão, ela não sabia lidar com omundo, com negócios, com as autoridadese pessoas influentes. Ao mesmo tempo, nasua inexperiência e ternura de irmã,oscilava entre a crença de que aquilo fosseverdade e a suspeita de que fosse loucurapura e simples. Se não fosse seu pai (e Olga amavamais por isso o seu rude pai) que seinteressava, chamando a si os interessesda família e evitando a demissão de queestava ameaçado, transformando-a emaposentadoria, que seria dele? Como éfácil na vida tudo ruir! Aquele homempautado, regrado, honesto, com empregoseguro, tinha uma aparência inabalável;entretanto bastou um grãozinho desandice... Estava há uns meses no hospício, oseu padrinho, e a irmã não o podia visitar.Era tal o seu abalo de nervos, era tal aemoção ao vê-lo ali naquela meia-prisão, 113
decaído dele mesmo que um ataque seseguia e não podia ser evitado.Vinham ela e o pai, às vezes o pai só,algumas vezes Ricardo, e eram só os trêsa visitá-lo.Aquele domingo estavaparticularmente lindo, principalmente emBotafogo, nas proximidades do mar e dasmontanhas altas que se recortavam numcéu de seda. O ar era macio e docementeo sol faiscava nas calçadas.O pai vinha lendo os jornais e ela,pensando, de quando em quandofolheando as revistas ilustradas que traziapara alegrar e distrair o padrinho.Ele estava como pensionista; mas,embora assim, no começo, ela teve umcerto pudor em se misturar com osvisitantes.Parecia-lhe que a sua fortuna a punhaacima de presenciar misérias; recalcouporém, dentro de si, esse pensamentoegoísta, o seu orgulho de classe, e agoraentrava naturalmente, pondo em destaquea sua elegância natural. Amava essessacrifícios, essas abnegações, tinha osentimento da grandeza deles, e ficoucontente consigo mesma. 114
No bonde vinham outros visitantes etodos não tardaram em saltar no portão domanicômio. Como em todas as portas dosnossos infernos sociais, havia de toda agente, de várias condições, nascimentos efortunas. Não é só a morte que nivela; aloucura, o crime e a moléstia passamtambém a sua rasoura pelas distinçõesque inventamos. Os bem-vestidos e os mal-vestidos, oselegantes e os pobres, os feios e osbonitos, os inteligentes e os néscios,entravam com respeito, com concentração,com uma ponta de pavor nos olhos comose penetrassem noutro mundo. Chegavam aos parentes e osembrulhos se desfaziam: eramguloseimas, fumo, meias, chinelas, àsvezes livros e jornais. Dos doentes unsconversavam com os parentes; outrosmantinham-se calados, num mutismo feroze inexplicável; outros indiferentes; e era tala variedade de aspectos dessas recepçõesque se chegava a esquecer o império dadoença sobre todos aqueles infelizes, tantoela variava neste ou naquele, para sepensar em caprichos pessoais, em ditamesdas vontades livres de cada um. 115
E ela pensava como esta nossa vida évariada e diversa, como ela é mais rica deaspectos tristes que de alegres, e como navariedade da vida a tristeza pode maisvariar que a alegria e como que dá opróprio movimento da vida. Verificando isso, quase tevesatisfação, pois a sua natureza inteligentee curiosa se comprazia nas mais simplesdescobertas que seu espírito fazia. Quaresma estava melhor. A exaltaçãopassara e o delírio parecia quererdesaparecer completamente. Chocando-secom aquele meio, houve logo nele umareação salutar e necessária. Estava doido,pois se o punham ali... Quando veio a ter com o compadre ea afilhada até trazia um sorriso desatisfação por baixo do bigode já grisalho.Tinha emagrecido um pouco, os cabelospretos estavam um pouco brancos, mas oaspecto geral era o mesmo. Não perderatotalmente a mansuetude e a ternura nofalar, mas quando a mania lhe tomavaficava um tanto seco e desconfiado. Ao vê-los disse amavelmente: – Então vieram sempre... Estava àespera... 116
Cumprimentaram-se e ele deu mesmoum largo abraço na afilhada. – Como está Adelaide? – Bem. Mandou lembranças e nãoveio porque... adiantou Coleoni. – Coitada! disse ele, e pendeu acabeça como se quisesse afastar umarecordação triste; em seguida, perguntou: – E o Ricardo? A afilhada apressou-se em responderao padrinho, com alvoroço e alegria. Via-ojá escapo à semi-sepultura da insânia. – Está bom, padrinho. Procurou papaihá dias e disse que a sua aposentadoria jáestá quase acabada. Coleoni tinha-se sentado. Quaresmatambém e a moça estava de pé, paramelhor olhar o padrinho com os seus olhosmuito luminosos e firmes no encarar.Guardas, internos e médicos passavampelas portas com a indiferença profissional.Os visitantes não se olhavam, pareciamque não queriam conhecer-se na rua. Láfora, era o dia lindo, os ares macios, o marinfinito e melancólico, as montanhas a serecortar num céu de seda – a beleza danatureza imponente e indecifrável. Coleoni,embora mais assíduo nas visitas, notavaas melhoras do compadre com satisfação 117
que errava na sua fisionomia, num ligeirosorriso. Num dado momento aventurou: – O major já está muito melhor; quersair? Quaresma não respondeu logo;pensou um pouco e respondeu firme evagarosamente: – É melhor esperar um pouco. Voumelhor... Sinto incomodar-te tanto, masvocês que têm sido tão bons, hão de levartudo isso para conta da própria bondade.Quem tem inimigos deve ter também bonsamigos... O pai e a filha entreolharam-se; omajor levantou a cabeça e parecia que aslágrimas queriam rebentar. A moçainterveio de pronto: – Sabe, padrinho, vou casar-me. – É verdade, confirmou o pai. A Olgavai casar-se e nós vínhamos preveni-lo. – Quem é teu noivo? perguntouQuaresma. – É um rapaz... – Decerto, interrompeu o padrinhosorrindo. E os dous acompanharam-no comfamiliaridade e contentamento. Era umbom sinal. 118
– É o Senhor Armando Borges,doutorando. Está satisfeito, padrinho? fezOlga gentilmente. – Então é para depois do fim do ano. – Esperamos que seja por aí, disse oitaliano. – Gostas muito dele? indagou opadrinho. Ela não sabia responder aquelapergunta. Queria sentir que gostava, masestava que não. E por que casava? Nãosabia... Um impulso do seu meio, umacousa que não vinha dela – não sabia...Gostava de outro? Também não. Todos osrapazes que ela conhecia não possuíamrelevo que a ferisse, não tinham o \"quê\",ainda indeterminado na sua emoção e nasua inteligência, que a fascinasse ousubjugasse. Ela não sabia bem o que era,não chegava e extremar na percepção dassuas inclinações a qualidade que elaqueria ver dominante no homem. Era oheróico, era o fora do comum, era a forçade projeção para as grandes cousas; masnessa confusão mental dos nossosprimeiros anos, quando as idéias e osdesejos se entrelaçam e se embaralham,Olga não podia colher e registrar esse 119
anelo, esse modo de se lhe representar ede amar o indivíduo masculino. E tinha razão em se casar semobedecer à sua concepção. É tão difícil vernitidamente num homem, de vinte a trintaanos, o que ela sonhara que era bempossível tomasse a nuvem por Juno...Casava por hábito de sociedade, umpouco por curiosidade e para alargar ocampo de sua vida e aguçar asensibilidade. Lembrou-se disso tudorapidamente e respondeu sem convicçãoao padrinho: – Gosto. A visita não se demorou muito mais.Era conveniente que fosse rápida, nãoconvinha fatigar a atenção doconvalescente. Os dous saíram semesconder que iam esperançados esatisfeitos. Na porta já havia alguns visitantes àespera do bonde. Como não estivesse oveículo no ponto, foram indo ao longo dafachada do manicômio até lá. Em meio docaminho, encontraram, encostada aogradil, uma velha preta a chorar. Coleoni,sempre bom, chegou-se a ela: – Que tem, minha velha? 120
A pobre mulher deitou sobre ele umdemorado olhar, úmido e doce, cheio deuma irremediável tristeza e respondeu: – Ah, meu sinhô!... É triste... Um filho,tão bom, coitado! E continuou a chorar. Coleonicomeçou a comover-se; a filha olhou-acom interesse e perguntou no fim de uminstante: – Morreu? – Antes fosse, sinhazinha. E por entre lágrimas e soluços contouque o filho não a conhecia mais, não lherespondia às perguntas; era como umestranho. Enxugou as lágrimas e concluiu: – Foi \"cousa-feita\". Os dous afastaram-se tristes, levandon'alma um pouco daquela humilde dor. O dia estava fresco e a viração, quecomeçava a soprar, enrugava a face domar em pequenas ondas brancas. O Pãode Açúcar erguia-se negro, hirto, solene,das ondas espumejantes, e como quepunha uma sombra no dia muito claro. No Instituto dos Cegos, tocavamviolino: e a voz plangente e demorada doinstrumento parecia sair daquelas cousastodas, da sua tristeza e da sua solenidade. 121
O bonde tardou um pouco. Chegou.Tomaram. Desceram no Largo da Carioca.É bom ver-se a cidade nos dias dedescanso, com as suas lojas fechadas, assuas estreitas ruas desertas, onde ospassos ressoam como em claustrossilenciosos. A cidade é como umesqueleto, faltam-lhe as carnes, que são aagitação, o movimento de carros, decarroças e gente. Na porta de uma loja ououtra, os filhos do negociante brincam emvelocípedes, atiram bolas e ainda mais sesente a diferença da cidade no dia anterior. Não havia o hábito de procurar osarrabaldes pitorescos e só encontravam,por vezes, casais que iamapressadamente a visitas, como elesagora. O Largo de São Francisco estavasilencioso e a estátua, no centro daquelepequeno jardim que desapareceu, pareciaum simples enfeite. Os bondes chegavampreguiçosamente ao largo com poucospassageiros. Coleoni e sua filha tomaramum que os levasse à casa de Quaresma.Lá foram. A tarde se aproximava e astoilettes domingueiras já apareciam nasjanelas. Pretos com roupas claras egrandes charutos ou cigarros, grupos decaixeiros com flores estardalhantes; 122
meninas em cassas bem engomadas;cartolas antediluvianas ao lado de vestidospesados de cetim negro, envergados emcorpos fartos de matronas sedentárias; e odomingo aparecia assim decorado com asimplicidade dos humildes, com a riquezados pobres e a ostentação dos tolos. Dona Adelaide não estava só. Ricardoviera visitá-la e conversavam. Quando ocompadre de seu irmão bateu no portão,ele contava à velha senhora o seu últimotriunfo: – Não sei como há de ser, DonaAdelaide. Eu não guardo as minhasmúsicas, não escrevo – é um inferno! O caso era de pôr um autor em mauslençóis. O Senhor Paysandón, de Córdova(República Argentina), autor muitoconhecido na mesma cidade, lhe tinhaescrito, pedindo exemplares de suasmúsicas e canções. Ricardo estavaatrapalhado. Tinha os versos escritos, masa música não. É verdade que as sabia decor, porém, escrevê-las de uma hora paraoutra era trabalho acima de sua força. – É o diabo! continuou ele. Não é pormim; a questão é que se perde umaocasião de fazer o Brasil conhecido noestrangeiro. 123
A velha irmã de Quaresma não tinhagrande interesse pelo violão. A suaeducação que se fizera, vendo semelhanteinstrumento entregue a escravos ou genteparecida, não podia admitir que elepreocupasse a atenção de pessoas decerta ordem. Delicada, entretanto,suportava a mania de Ricardo, mesmoporque já começava a ter uma ponta deestima pelo famoso trovador dossuburbanos. Nasceu-lhe essa estima peladedicação com que ele se houve no seudrama familiar. Os pequenos serviçais etrabalhos, os passos para ali e para aqui,ficaram a cargo de Ricardo, que osdesempenhara com boa vontade ediligência. Atualmente era ele o encarregado detratar da aposentadoria do seu antigodiscípulo. É um trabalho árduo, esse deliquidar uma aposentadoria, como se dizna gíria burocrática. Aposentado o sujeito,solenemente por um decreto, a cousacorre uma dezena de repartições efuncionários para ser ultimada. Nada hámais grave do que a gravidade com que oempregado nos diz: ainda estou fazendo ocálculo; e a cousa demora um mês, mais 124
até, como se se tratasse de mecânicaceleste. Coleoni era o procurador do major,mas não sendo entendido em cousasoficiais, entregou ao Coração dos Outrosaquela parte do seu mandato. Graças à popularidade de Ricardo, eda sua lhaneza, vencera a resistência damáquina burocrática e a liquidação estavaanunciada para breve. Foi isso que ele anunciou a Coleoni,quando este entrou seguido da filha.Pediram, tanto ele como Dona Adelaide,notícias do amigo e do irmão. A irmã nunca entendera direito oirmão, com a crise não o ficoucompreendendo melhor; mas o sentiraprofundamente com o sentimento simplesde irmã e desejava ardentemente a suacura. Ricardo Coração dos Outros gostavado major, encontrara nele certo apoiomoral e intelectual de que precisava. Osoutros gostavam de ouvir o seu canto,apreciavam como simples diletantes; maso major era o único que ia ao fundo da suatentativa e compreendia o alcancepatriótico de sua obra. 125
De resto, ele agora sofriaparticularmente – sofria na sua glória,produto de um lento e seguido trabalho deanos. É que aparecera um crioulo a cantarmodinhas e cujo nome começava a tomarforça e já era citado ao lado do seu. Aborrecia-se com o rival, por dousfatos: primeiro: pelo sujeito ser preto; esegundo: por causa das suas teorias. Não é que ele tivesse ojeriza particularaos pretos. O que ele via no fato de haverum preto famoso tocar violão, era que talcoisa ia diminuir ainda mais o prestígio doinstrumento. Se o seu rival tocasse piano epor isso ficasse célebre, não havia malalgum; ao contrário: o talento do rapazlevantava a sua pessoa, por intermédio doinstrumento considerado; mas, tocandoviolão, era o inverso: o preconceito que lhecercava a pessoa, desmoralizava omisterioso violão que ele tanto estimava. Ealém disso com aquelas teorias! Ora! Querque a modinha diga alguma cousa e tenhaversos certos! Que tolice! E Ricardo levava a pensar nesse rivalinesperado que se punha assim diantedele como um obstáculo imprevisto nasubida maravilhosa para a sua glória. 126
Precisava afastá-lo, esmagá-lo, mostrar asua superioridade indiscutível; mas como? A réclame já não bastava; o rival aempregava também. Se ele tivesse umhomem notável, um grande literato, queescrevesse um artigo sobre ele e a suaobra, a vitória estava certa. Era difícilencontrar. Esses nossos literatos eram tãotolos e viviam tão absorvidos em cousasfrancesas... Pensou num jornal, O Violão,em que ele desafiasse o rival e oesmagasse numa polêmica. Era isso que precisava obter e aesperança estava em Quaresma,atualmente recolhido ao hospício, masfelizmente em via de cura. A sua alegria foijustamente grande quando soube que oamigo estava melhor. – Não pude ir hoje, disse ele, mas ireidomingo. Está mais gordo? – Pouca cousa, disse a moça. – Conversou bem, acrescentouColeoni. Até ficou contente quando soubeque Olga ia casar-se. – Vai casar-se, Dona Olga? Parabéns. – Obrigada, fez ela. – Quando é, Olga? perguntou DonaAdelaide. – Lá para o fim do ano... Tem tempo... 127
E logo choveram perguntas sobre onoivo e afloraram as considerações sobreo casamento. E ela se sentia vexada; julgava, tantoas perguntas como as considerações,impudentes e irritantes; queria fugir àconversa, mas voltavam ao mesmoassunto, não só Ricardo, mas a velhaAdelaide, mais loquaz e curiosa quecomumente. Esse suplício que se repetiaem todas as visitas, quase a faziaarrepender-se de ter aceitado o pedido.Por fim, achou um subterfúgio,perguntando: – Como vai o general? – Não o tenho visto, mas a filhasempre vem aqui. Ele deve andar bem, aIsmênia é que anda triste, desolada –coitadinha! Dona Adelaide contou então o dramaque agitava a pequenina alma da filha dogeneral. Cavalcanti, aquele Jacó de cincoanos, embarcara para o interior, há três ouquatro meses, e não mandara nem umacarta nem um cartão. A menina tinhaaquilo como um rompimento; e ela, tãoincapaz de um sentimento mais profundo,de uma aplicação mais séria de energiamental e física, sentia-o muito, como cousa 128
irremediável que absorvia toda a suaatenção. Para Ismênia, era como se todos osrapazes casadoiros tivessem deixado deexistir. Arranjar outro era problemainsolúvel, era trabalho acima de suasforças. Cousa difícil! Namorar, escrevercartinhas, fazer acenos, dançar, ir apasseios – ela não podia mais com isso.Decididamente, estava condenada a nãose casar, a ser tia, a suportar durante todaa existência esse estado de solteira que aapavorava. Quase não se lembrava dasfeições do noivo, dos seus olhosesgazeados, do seu nariz duro efortemente ósseo; independente damemória dele, vinha-lhe sempre àconsciência, quando, de manhã, o estafetanão lhe entregava carta, essa outra idéia:não casar. Era um castigo... A Quinota iacasar-se, o Genelício já estava tratandodos papéis; e ela que esperara tanto, efora a primeira a noivar-se ia ficar maldita,rebaixada diante de todas. Parecia até queambos estavam contentes com aquelafuga inexplicável de Cavalcanti. Como elesse riam durante o carnaval! Como elesatiraram aos seus olhos aquela sua viuvezprematura, durante os folguedos 129
carnavalescos! Punham tanta fúria no jogode confetes e bisnagas, de modo a deixarbem claro a felicidade de ambos, aquelamarcha gloriosa e invejada para ocasamento, em face do seu abandono. Ela disfarçava bem a impressão daalegria deles que lhe parecia indecente ehostil; mas o escárnio da irmã que lhe diziaconstantemente: \"Brinca, Ismênia! Ele estálonge, vai aproveitando\" – metia-lhe raiva,a raiva terrível de gente fraca, que corróiinteriormente, por não poder arrebentar dequalquer forma. Então, para espantar os mauspensamentos, ela se punha a olhar oaspecto pueril da rua, marchetada depapeluchos multicores, e as serpentinasirisadas pendentes nas sacadas; mas oque fazia bem à sua natureza pobre,comprimida, eram os cordões, aqueleruído de atabaques e adufes, de tamborese pratos. Mergulhando nessa barulheira, oseu pensamento repousava e como que aidéia que a perseguia desde tanto tempoficava impedida de lhe entrar na cabeça. De resto, aqueles vestuáriosextravagantes de índios, aqueles adornosde uma mitologia francamente selvagem,jacarés, cobras, jabutis, vivos, bem vivos, 130
traziam à pobreza de sua imaginaçãoimagens risonhas de rios claros, florestasimensas, lugares de sossego e pureza quea reconfortavam. Também aquelas cantigas gritadas,berradas, num ritmo duro e de uma grandeindigência melódica, vinham como reprimira mágoa que ia nela, abafada, comprimida,contida, que pedia uma explosão de gritos,mas para o que não lhe sobrava forçabastante e suficiente. O noivo partira um mês antes docarnaval e depois do grande festejocarioca a sua tortura foi maior. Semhábitos de leitura e de conversa, sematividade doméstica qualquer, ela passavaos dias deitada, sentada, a girar em tornode um mesmo pensamento: não casar.Era-lhe doce chorar. Nas horas da entrega dacorrespondência, tinha ainda uma alegreesperança. Talvez? Mas a carta não vinha,e voltava ao seu pensamento: não casar. Dona Adelaide, acabando de contar odesastre da triste Ismênia, comentou: – Merecia um castigo isso, nãoacham? Coleoni interveio com brandura e boavontade: 131
– Não há razão para desesperar. Hámuita gente que tem preguiça deescrever... – Qual! fez Dona Adelaide. Há trêsmeses, Senhor Vicente! – Não volta, disse Ricardosentenciosamente. – E ela ainda o espera, DonaAdelaide? perguntou Olga. – Não sei, minha filha. Ninguémentende essa moça. Fala pouco, se faladiz meias palavras... É mesmo umanatureza que parece sem sangue nemnervos. Sente-se a sua tristeza, mas nãofala. – É orgulho? perguntou ainda Olga. – Não, não... Se fosse orgulho, elanão se referia de vez em quando ao noivo.É antes moleza, preguiça... parece que elatem medo de falar para que as cousas nãovenham a acontecer. – E os pais que dizem a isso? indagouColeoni. – Não sei bem. Mas pelo que pudeperceber, o incômodo do general não égrande e Dona Maricota julga que ela devearranjar \"outro\". – Era o melhor, disse Ricardo. 132
– Eu creio que ela não tem maisprática, disse sorrindo Dona Adelaide.Levou tanto tempo noiva... E a conversa já tinha virado paraoutros assuntos, quando a Ismênia veiofazer a sua visita diária à irmã deQuaresma. Cumprimentou todos e todos sentiramque ela penava. O sofrimento dava-lhemais atividade à fisionomia. As pálpebras estavam roxas e até osseus pequenos olhos pardos tinham maisbrilho e expansão. Indagou da saúde deQuaresma e depois calaram-se uminstante. Por fim Dona Adelaide lheperguntou: – Recebeste carta, Ismênia? – Ainda não, respondeu ela, comgrande economia de voz. Ricardo moveu-se na cadeira.Batendo com o braço num dunkerque, veioatirar ao chão uma figurinha de biscuit, quese esfacelou em inúmeros fragmentos,quase sem ruído. *** 133
SEGUNDA PARTE
I No \"Sossego\" Não era feio o lugar, mas não erabelo. Tinha, entretanto, o aspecto tranqüiloe satisfeito de quem se julga bem com asua sorte. A casa erguia-se sobre um socalco,uma espécie de degrau, formando asubida para a maior altura de umapequena colina que lhe corria nos fundos.Em frente, por entre os bambus da cerca,olhava uma planície a morrer nasmontanhas que se viam ao longe; umregato de águas paradas e sujas cortava-aparalelamente à testada da casa; maisadiante, o trem passava vincando aplanície com a fita clara de sua linhacapinada; um carreiro, com casas, de um ede outro lado, saía da esquerda e ia ter àestação, atravessando o regato eserpeando pelo plaino. A habitação deQuaresma tinha assim um amplohorizonte, olhando para o levante, a\"noruega\", e era também risonha egraciosa nos seus caiados. Edificada coma desoladora indigência arquitetônica dasnossas casas de campo, possuía, porém, 135
vastas salas, amplos quartos, todos comjanelas, e uma varanda com uma colunataheterodoxa. Além desta principal, o sítio do\"Sossego\", como se chamava, tinha outrasconstruções: a velha casa da farinha, queainda tinha o forno intacto e a rodadesmontada, e uma estrebaria coberta desapê. Não havia três meses que vierahabitar aquela casa, naquele ermo lugar, aduas horas do Rio, por estrada de ferro,após ter passado seis meses no hospícioda praia das Saudades. Saíra curado?Quem sabe lá? Parecia; não delirava e osseus gestos e propósitos eram de homemcomum embora, sob tal aparência, sepudesse sempre crer que não se lhedespedira de todo, já não se irá a loucura,mas o sonho que cevara durante tantosanos. Foram mais seis meses de repousoe útil seqüestração que mesmo de uso deuma terapêutica psiquiátrica. Quaresma viveu lá, no manicômio,resignadamente, conversando com osseus companheiros, onde via ricos que sediziam pobres, pobres que se queriamricos, sábios a maldizer da sabedoria,ignorantes a se proclamarem sábios; mas,deles todos, daquele que mais se admirou, 136
foi de um velho e plácido negociante daRua dos Pescadores que se supunha Átila.Eu, dizia o pacato velho, sou Átila, sabe?Sou Átila. Tinha fracas notícias dapersonagem, sabia o nome e nada mais.Sou Átila, matei muita gente – e era só. Saiu o major mais triste ainda do quevivera toda a vida. De todas as cousastristes de ver, no mundo, a mais triste é aloucura; é a mais depressora e pungente. Aquela continuação da nossa vida tale qual, com um desarranjo imperceptível,mas profundo e quase sempre insondável,que a inutiliza inteiramente, faz pensar emalguma cousa mais forte que nós, que nosguia, que nos impele e em cujas mãossomos simples joguetes. Em vários tempose lugares, a loucura foi consideradasagrada, e deve haver razão nisso nosentimento que se apodera de nósquando, ao vermos um louco desarrazoar,pensamos logo que já não é ele quem fala,é alguém que vê por ele, interpreta ascousas por ele, está atrás dele, invisível!... Quaresma saiu envolvido, penetradoda tristeza do manicômio. Voltou a suacasa, mas a vista das suas cousasfamiliares não lhe tirou a forte impressãode que vinha impregnado. Embora nunca 137
tivesse sido alegre, a sua fisionomiaapresentava mais desgosto que antes,muito abatimento moral, e foi para levantaro ânimo que se recolheu àquela risonhacasa de roça, onde se dedicava amodestas culturas. Não fora ele, porém, quem selembrara; fora a afilhada que lhe trouxe àidéia aquele doce acabar para a sua vida.Vendo-o naquele estado de abatimento,triste e taciturno, sem coragem de sair,enclausurado em sua casa de SãoCristóvão, Olga dirigiu-se um dia aopadrinho meiga e filialmente: – O padrinho por que não compra umsítio? Seria tão bom fazer as suas culturas,ter o seu pomar, a sua horta... não acha? Tão taciturno que ele estivesse, nãopôde deixar de modificar imediatamente asua fisionomia à lembrança da moça. Eraum velho desejo seu, esse de tirar da terrao alimento, a alegria e a fortuna; e foilembrando dos seus antigos projetos querespondeu à afilhada: – É verdade, minha filha. Quemagnífica idéia tens tu! Há por aí tantasterras férteis sem emprego... A nossa terratem os terrenos mais férteis do mundo... O 138
milho pode dar até duas colheitas equatrocentos por um... A moça esteve quase arrependida dasua lembrança. Pareceu-lhe que ia atearno espírito do padrinho manias já extintas. – Em toda a parte – não acha, meupadrinho? – há terras férteis. – Mas como no Brasil, apressou-se eleem dizer, há poucos países que astenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar,criar, cultivar o milho, o feijão, a batata-inglesa... Tu irás ver as minhas culturas, aminha horta, e meu pomar – então é que teconvencerás como são fecundas asnossas terras! A idéia caiu-lhe na cabeça e germinoulogo. O terreno estava amanhado e sóesperava uma boa semente. Não lhevoltou a alegria que jamais teve, mas ataciturnidade foi-se com o abatimentomoral, e veio-lhe a atividade mentalcerebrina, por assim dizer, de outrostempos. Indagou dos preços correntes dasfrutas, dos legumes, das batatas, dosaipins; calculou que cinqüenta laranjeiras,trinta abacateiros, oitenta pessegueiros,outras árvores frutíferas, além dosabacaxis (que mina!), das abóboras eoutros produtos menos importantes, 139
podiam dar o rendimento anual e mais dequatro contos, tirando as despesas. Seriaocioso trazer para aqui os detalhes dosseus cálculos, baseados em tudo que vemestabelecido nos boletins da Associaçãode Agricultura Nacional. Levou em linha deconta a produção média de cada pé defruteira, de hectare cultivado, e também ossalários, as perdas inevitáveis; e, quantoaos preços, ele foi em pessoa ao mercadobuscá-los. Planejou a sua vida agrícola com aexatidão e meticulosidade que punha emtodos os seus projetos. Encarou-a portodas as faces, pesou as vantagens eônus; e muito contente ficou em vê-lamonetariamente atraente, não por ambiçãode fazer fortuna, mas por haver nisso maisuma demonstração das excelências doBrasil. E foi obedecendo a essa ordem deidéia que comprou aquele sítio, cujo nome– \"Sossego\" – cabia tão bem à nova vidaque adotara, após a tempestade que osacudira durante quase um ano. Nãoficava longe do Rio e ele o escolheraassim mesmo maltratado, abandonado,para melhor demonstrar a força e o poderda tenacidade, do carinho, no trabalho 140
agrícola. Esperava grandes colheitas defrutas, de grãos, de legumes; e do seuexemplo, nasceriam mil outroscultivadores, estando em breve a grandecapital cercada de um verdadeiro celeiro,virente e abundante a dispensar osargentinos e europeus. Com que alegria ele foi para lá! Quasenão teve saudades de sua velha casa deSão Januário, agora propriedade de outrasmãos, talvez destinada ao mercenáriomister de lar de aluguel... Não sentiu queaquela vasta sala, abrigo calmo dos seuslivros durante tantos anos, fosse servirpara salão de baile fútil, fosse testemunhartalvez rixas de casais desentendidos, ódiosde família – ela tão boa, tão doce, tãosimpática, com o seu teto alto e as suasparedes lisas, em que se tinhamincrustado os desejos de sua alma e todaela penetrava da exalação dos seussonhos! ... Ele foi contente. Como era tão simplesviver na nossa terra! Quatro contos de réispor ano, tirado da terra, facilmente,docemente, alegremente! Oh! terraabençoada! Como é que toda a gentequeria ser empregado público, apodrecernuma banca, sofrer na sua independência 141
e no seu orgulho? Como é que se preferiaviver em casas apertadas, sem ar, semluz, respirar um ambiente epidêmico,sustentar-se de maus alimentos, quandose podia tão facilmente obter uma vidafeliz, farta, livre, alegre e saudável? E era agora que ele chegava a essaconclusão, depois de ter sofrido a misériada cidade e o emasculamento darepartição pública, durante tanto tempo!Chegara tarde, mas não a ponto de quenão pudesse, antes da morte, travarconhecimento com a doce vida campestree a feracidade das terras brasileiras. Entãopensou que foram vãos aqueles seusdesejos de reformas capitais nasinstituições e costumes: o que era principalà grandeza da pátria estremecida, era umaforte base agrícola, um culto pelo seu soloubérrimo, para alicerçar fortemente todosos outros destinos que ela tinha depreencher. Demais, com terras tão férteis, climasvariados, a permitir uma agricultura fácil erendosa, este caminho estavanaturalmente indicado. E ele viu então diante dos seus olhosas laranjeiras em flor, olentes, muitobrancas, a se enfileirar pelas encostas das 142
colinas, como teorias de noivas; osabacateiros, de troncos rugosos, a sopesarcom esforço os grandes pomos verdes; asjabuticabas negras a estalar dos caulesrijos; os abacaxis coroados que nem reis,recebendo a unção quente do sol; asabobreiras a se arrastarem com florescarnudas cheias de pólen; as melancias deum verde tão fixo que parecia pintado; ospêssegos veludosos, as jacasmonstruosas, os jambos, as mangascapitosas; e dentre tudo aquilo surgia umalinda mulher, com o regaço cheio de frutose um dos ombros nu, a lhe sorriragradecida, com um imaterial sorrisodemorado de deusa – era Pomona, adeusa dos vergéis e dos jardins!... As primeiras semanas que passou no\"Sossego\", Quaresma as empregou numaexploração em regra da sua novapropriedade. Havia nela terra bastante,velhas árvores frutíferas, um capoeirãogrosso com camarás, bacurubus,tinguacibas, tabebuias, munjolos, e outrosespécimes. Anastácio, que oacompanhara, apelava para as suasrecordações de antigo escravo de fazenda,e era quem ensinava os nomes dos 143
indivíduos da mata a Quaresma muito lidoe sabido em cousas brasileiras. O major logo organizou um museu dosprodutos naturais do \"Sossego\". Asespécies florestais e campesinas forametiquetadas com os seus nomes vulgares,e quando era possível com os científicos.Os arbustos, em herbário, e as madeiras,em pequenos tocos, seccionadoslongitudinal e transversalmente. Os azares de leituras tinham-nolevado a estudar as ciências naturais e ofuror autodidata dera a Quaresma sólidasnoções de Botânica, Zoologia, Mineralogiae Geologia. Não foram só os vegetais quemereceram as honras de um inventário; osanimais também, mas como ele não tinhaespaço suficiente e a conservação dosexemplares exigia mais cuidado,Quaresma limitou-se a fazer o seu museuno papel, por onde sabia que as terraseram povoadas de tatus, cutias, preás,cobras variadas, saracuras, sanãs,avinhados, coleiros, tiês, etc. A partemineral era pobre, argilas, areia e, aqui eali, uns blocos de granito esfoliando-se. Acabado esse inventário, passou duassemanas a organizar a sua biblioteca 144
agrícola e uma relação de instrumentosmeteorológicos para auxiliar os trabalhosda lavoura. Encomendou livros nacionais,franceses, portugueses; comproutermômetros, barômetros, pluviômetros,higrômetros, anemômetros. Vieram estes eforam arrumados e colocadosconvenientemente. Anastácio assistia a todos essespreparativos com assombro. Para quetanta cousa, tanto livro, tanto vidro? Estariao seu antigo patrão dando parafarmacêutico? A dúvida do preto velho nãodurou muito. Estando certa vez Quaresmaa ler o pluviômetro, Anastácio, ao lado,olhava-o espantado, como quem assiste aum passe de feitiçaria. O patrão notou oespanto do criado e disse: – Sabes o que estou fazendo,Anastácio? – Não \"sinhô\". – Estou vendo se choveu muito. – Para que isso, patrão? A gente sabelogo \"de olho\" quando chove muito oupouco... Isso de plantar é capinar, pôr asemente na terra, deixar crescer eapanhar. 145
Ele falava com a sua voz mole deafricano, sem \"rr\" fortes, com lentidão econvicção. Quaresma, sem abandonar oinstrumento, tomou em consideração oconselho de seu empregado. O capim e omato cobriam as suas terras. Aslaranjeiras, os abacateiros, as mangueirasestavam sujos, cheios de galhos mortos, ecobertos de uma medusina cabeleira deerva-de-passarinho; mas como não fosseépoca própria à poda e ao corte dosgalhos, Quaresma limitou-se a capinar porentre os pés das fruteiras. De manhã, logoao amanhecer, ele mais o Anastácio, láiam, de enxada ao ombro, para o trabalhodo campo. O sol era forte e rijo; o verãoestava no auge, mas Quaresma erainflexível e corajoso. Lá ia. Era de vê-lo, coberto com um chapéude palha de coco, atracado a um grandeenxadão de cabo nodoso, ele, muitopequeno, míope, a dar golpes sobregolpes para arrancar um teimoso pé deguaximba. A sua enxada mais parecia umadraga, um escavador, que um pequenoinstrumento agrícola. Anastácio, junto aopatrão, olhava-o com piedade e espanto. 146
Por gosto andar naquele sol a capinar semsaber?... Há cada cousa neste mundo! E os dous iam continuando. O velhopreto, ligeiro, rápido, raspando o matorasteiro, com a mão habituada, a cujoimpulso a enxada resvalava sem obstáculopelo solo, destruindo a erva má;Quaresma, furioso, a arrancar torrões deterra daqui, dali, demorando-se muito emcada arbusto e, às vezes, quando o golpefalhava e a lâmina do instrumento roçava aterra, a força era tanta que se erguia umapoeira infernal, fazendo supor que poraquelas paragens passara um pelotão decavalaria. Anastácio, então, intervinhahumildemente, mas em tom professoral: – Não é assim, \"seu majó\". Não semete a enxada pela terra adentro. É deleve, assim. E ensinava ao Cincinato inexperienteo jeito de servir-se do velho instrumento detrabalho. Quaresma agarrava-o, punha-se emposição e procurava com toda a boavontade usá-lo da maneira ensinada. Eraem vão. O flange batia na erva, a enxadasaltava e ouvia-se um pássaro ao altosoltar uma piada irônica: bem-te-vi! Omajor enfurecia-se, tentava outra vez, 147
fatigava-se, suava, enchia-se de raiva ebatia com toda a força; e houve váriasvezes que a enxada, batendo em falso,escapando ao chão, fê-lo perder oequilíbrio, cair, a beijar a terra, mãe dosfrutos e dos homens. O pince-nez saltava,partia-se de encontro a um seixo. O major ficava todo enfurecido evoltava com mais rigor e energia à tarefaque se impusera; mas, tanto é em nossosmúsculos firme a memória ancestral dessesagrado trabalho de tirar o sustento denossa vida, que não foi impossível aQuaresma acordar nos seus o jeito, amaneira de empregar a enxada vetusta. Ao fim de um mês, ele capinavarazoavelmente, não seguido, de sol a sol,mas com grandes repousos de hora emhora que a sua idade e falta de hábitorequeriam. Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o nodescanso e ambos, lado a lado, à sombrade uma fruteira mais copada, ficavam a vero ar pesado daqueles dias de verão queenrodilhava as folhas das árvores e punhanas cousas um forte acento de resignaçãomórbida. Então, aí por depois do meio-dia,quando o calor parecia narcotizar tudo emergulhar em silêncio a vida inteira, é que 148
o velho major percebia bem a alma dostrópicos, feita de desencontros comoaquele que se via agora, de um sol alto,claro, olímpico, a brilhar sobre um torporde morte, que ele mesmo provocava. Almoçavam mesmo no eito, comidasdo dia anterior, aquecidas rapidamentesobre um improvisado fogão de calhaus, eo trabalho ia assim até à hora do jantar.Havia em Quaresma um entusiasmosincero, entusiasmo de ideólogo que querpôr em prática a sua idéia. Não se agastoucom as primeiras ingratidões da terra,aquele seu mórbido amor pelas ervasdaninhas e o incompreensível ódio pelaenxada fecundante. Capinava e capinavasempre até vir jantar. Esta refeição ele fazia mais demorada.Conversava um pouco com a irmã,contava-lhe a tarefa do dia, consistindosempre em avaliar a área já limpa. – Sabes, Adelaide, amanhã estarão aslaranjeiras limpas, não ficará nem maisuma touceira de mato. A irmã, mais velha que ele, nãopartilhava aquele seu entusiasmo pelascousas da roça. Considerava-o silenciosa,e, se viera viver com ele, não foi senãopelo hábito de acompanhá-lo. Decerto, ela 149
o estimava, mas não o compreendia. Nãochegava a entender nem os seus gestosnem a sua agitação interna. Por que nãoseguira ele o caminho dos outros? Não seformara e se fizera deputado? Era tãobonito... Andar com livros, anos e anos,para não ser nada, que doideira! Seguira-oao \"Sossego\" e, para entreter-se, criavagalinhas, com grande alegria do irmãocultivador. – Está direito, dizia ela, quando oirmão lhe contava as cousas do seutrabalho. Não vá ficares doente... Neste soltodo o dia... – Qual, doente, Adelaide! Não estásvendo como essa gente tem tanta saúdepor aí... Se adoecem, é porque nãotrabalham. Acabado o jantar, Quaresma chegavaà janela que dava para o galinheiro eatirava migalhas de pão às aves. Ele gostava desse espetáculo,daquela luta encarniçada entre patos,gansos, galinhas, pequenos e grandes.Dava-lhe uma imagem reduzida da vida edos prêmios que ela comporta. Depois,fazia indagações sobre a vida dogalinheiro: – Já nasceram os patos, Adelaide? 150
Search
Read the Text Version
- 1
- 2
- 3
- 4
- 5
- 6
- 7
- 8
- 9
- 10
- 11
- 12
- 13
- 14
- 15
- 16
- 17
- 18
- 19
- 20
- 21
- 22
- 23
- 24
- 25
- 26
- 27
- 28
- 29
- 30
- 31
- 32
- 33
- 34
- 35
- 36
- 37
- 38
- 39
- 40
- 41
- 42
- 43
- 44
- 45
- 46
- 47
- 48
- 49
- 50
- 51
- 52
- 53
- 54
- 55
- 56
- 57
- 58
- 59
- 60
- 61
- 62
- 63
- 64
- 65
- 66
- 67
- 68
- 69
- 70
- 71
- 72
- 73
- 74
- 75
- 76
- 77
- 78
- 79
- 80
- 81
- 82
- 83
- 84
- 85
- 86
- 87
- 88
- 89
- 90
- 91
- 92
- 93
- 94
- 95
- 96
- 97
- 98
- 99
- 100
- 101
- 102
- 103
- 104
- 105
- 106
- 107
- 108
- 109
- 110
- 111
- 112
- 113
- 114
- 115
- 116
- 117
- 118
- 119
- 120
- 121
- 122
- 123
- 124
- 125
- 126
- 127
- 128
- 129
- 130
- 131
- 132
- 133
- 134
- 135
- 136
- 137
- 138
- 139
- 140
- 141
- 142
- 143
- 144
- 145
- 146
- 147
- 148
- 149
- 150
- 151
- 152
- 153
- 154
- 155
- 156
- 157
- 158
- 159
- 160
- 161
- 162
- 163
- 164
- 165
- 166
- 167
- 168
- 169
- 170
- 171
- 172
- 173
- 174
- 175
- 176
- 177
- 178
- 179
- 180
- 181
- 182
- 183
- 184
- 185
- 186
- 187
- 188
- 189
- 190
- 191
- 192
- 193
- 194
- 195
- 196
- 197
- 198
- 199
- 200
- 201
- 202
- 203
- 204
- 205
- 206
- 207
- 208
- 209
- 210
- 211
- 212
- 213
- 214
- 215
- 216
- 217
- 218
- 219
- 220
- 221
- 222
- 223
- 224
- 225
- 226
- 227
- 228
- 229
- 230
- 231
- 232
- 233
- 234
- 235
- 236
- 237
- 238
- 239
- 240
- 241
- 242
- 243
- 244
- 245
- 246
- 247
- 248
- 249
- 250
- 251
- 252
- 253
- 254
- 255
- 256
- 257
- 258
- 259
- 260
- 261
- 262
- 263
- 264
- 265
- 266
- 267
- 268
- 269
- 270
- 271
- 272
- 273
- 274
- 275
- 276
- 277
- 278
- 279
- 280
- 281
- 282
- 283
- 284
- 285
- 286
- 287
- 288
- 289
- 290
- 291
- 292
- 293
- 294
- 295
- 296
- 297
- 298
- 299
- 300
- 301
- 302
- 303
- 304
- 305
- 306
- 307
- 308
- 309
- 310
- 311
- 312
- 313
- 314
- 315
- 316
- 317
- 318
- 319
- 320
- 321
- 322
- 323
- 324
- 325
- 326
- 327
- 328
- 329
- 330
- 331
- 332
- 333
- 334
- 335
- 336
- 337
- 338
- 339
- 340
- 341
- 342
- 343
- 344
- 345
- 346
- 347
- 348
- 349
- 350
- 351
- 352
- 353
- 354
- 355
- 356
- 357
- 358
- 359
- 360
- 361
- 362
- 363
- 364
- 365
- 366
- 367
- 368
- 369
- 370
- 371
- 372
- 373
- 374
- 375
- 376
- 377
- 378
- 379
- 380
- 381
- 382
- 383
- 384
- 385
- 386
- 387
- 388
- 389
- 390
- 391
- 392
- 393
- 394
- 395
- 396
- 397
- 398
- 399
- 400
- 401
- 402
- 403
- 404