Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Search

Read the Text Version

Os militares estavam contentes,especialmente os pequenos, os alferes, ostenentes e os capitães. Para a maioria asatisfação vinha da convicção de que iamestender a sua autoridade sobre o pelotãoe a companhia, a todo esse rebanho decivis; mas, em outros muitos haviasentimento mais puro, desinteresse esinceridade. Eram os adeptos dessenefasto e hipócrita positivismo, umpedantismo tirânico, limitado e estreito,que justificava todas as violências, todosos assassínios, todas as ferocidades emnome da manutenção da ordem, condiçãonecessária, lá diz ele, ao progresso etambém ao advento do regime normal, areligião da humanidade, a adoração dogrão-fetiche, com fanhosas músicas decornetins e versos detestáveis, o paraíso,enfim, com inscrições em escritura fonéticae eleitos calçados com sapatos de sola deborracha! ... Os positivistas discutiam e citavamteoremas de mecânica para justificar assuas idéias de governo, em tudosemelhantes aos canatos e emiradosorientais. A matemática do positivismo foisempre um puro falatório que, naqueles 251

tempos, amedrontava toda a gente. Haviamesmo quem estivesse convencido que amatemática tinha sido feita e criada para opositivismo, como se a Bíblia tivesse sidocriada unicamente para a Igreja Católica enão também para a Anglicana. O prestígiodele era, portanto, enorme. O trem correu, parou ainda em umaestação e foi ter à praça da República. Oalmirante, cosido com as paredes, seguiupara o Arsenal de Marinha; Albernaz eBustamante entraram no Quartel-General.Penetraram no grande casarão, no meiodo retinir de espadas, de toques decornetas; o grande pátio estava cheio desoldados, bandeiras, canhões, feixes dearmas ensarilhadas, baionetas reluzindoao sol oblíquo... No sobrado, nas proximidades dogabinete do ministro, havia um vaivém defardas, dourados, fazendas multicores,uniformes de várias corporações e milícias,no meio dos quais os trajes escuros doscivis eram importunos como moscas.Misturavam-se oficiais da guarda nacional,da polícia, da armada, do exército, debombeiros e de batalhões patrióticos quecomeçavam a surgir. 252

Apresentaram-se e, depois de tê-lofeito ao ajudante-general e ministro daGuerra, a um só tempo, ficaram aconversar nos corredores, com bastanteprazer, pois que tinham encontrado oTenente Fontes e ambos gostavam deouvi-lo. O general porque já era noivo de suafilha Lalá, e Bustamante porque aprendiacom ele alguma cousa de nomenclaturados armamentos modernos. Fontes estava indignado, todo ele erahorror, maldição contra os insurrectos, epropunha os piores castigos. – Hão de ver o resultado... Piratas!Bandidos! Eu, no caso do marechal, se ospegasse... ai deles! O tenente não era feroz nem mau,antes bom e até generoso, mas erapositivista e tinha da sua República umaidéia religiosa e transcendente. Faziarepousar nela toda a felicidade humana enão admitia que a quisessem de outraforma que não aquela que imaginava boa.Fora daí não havia boa fé, sinceridade;eram heréticos interesseiros, e,dominicano do seu barrete frígio, raivosopor não poder queimá-los em autos-de-fé,congesto, via passar por seus olhos uma 253

série enorme de réus confidentes,relapsos, contumazes, falsos, simulados,fictos e confictos, sem samarra, soltos poraí... Albernaz não tinha tanta fúria contraos adversários. No fundo d'alma, ele osqueria até, tinha amigos lá, e essasdivergências nada significavam para a suaidade e experiência. Depositava, entretanto, uma certaesperança na ação do marechal. Estandoem apuros financeiros, não lhe dando obastante a sua reforma e a gratificação deorganizador do arquivo do Largo do Moura,esperava obter uma outra comissão, quelhe permitisse mais folgadamente adquiriro enxoval de Lalá. O almirante, também, tinha grandeconfiança nos talentos guerreiros e deestadista de Floriano. A sua causa não ialá muito bem. Perdera-a em primeirainstância, estava gastando muito dinheiro...O governo precisava de oficiais deMarinha, quase todos estavam na revolta;talvez lhe dessem uma esquadra acomandar... É verdade que... Mas, quediabo! Se fosse um navio, então sim: masuma esquadra a cousa não era difícil;bastava coragem para combater. 254

Bustamante cria com força nacapacidade do General Peixoto, tantoassim que, para apoiá-lo e defender o seugoverno, imaginava organizar um batalhãopatriótico, de que já tinha o nome \"Cruzeirodo Sul\" e naturalmente seria o seucomandante, com todas as vantagens doposto de coronel. Genelício, cuja atividade nada tinha deguerreira, esperava muito da energia e dadecisão do governo de Floriano: esperavaser subdiretor e não podia um governosério, honesto e enérgico, fazer outracousa, desde que quisesse pôr ordem nasua seção. Essas secretas esperanças eram maisgerais do que se pode supor. Nós vivemosdo governo e a revolta representava umaconfusão nos empregos, nas honrarias enas posições que o Estado espalha. Ossuspeitos abririam vagas e as dedicaçõessupririam os títulos e habilitações paraocupá-las; além disso, o governo,precisando de simpatias e homens, tinhaque nomear, espalhar, prodigalizar,inventar, criar e distribuir empregos,ordenados, promoções e gratificações. O próprio Doutor Armando Borges, omarido de Olga e sábio sereno e dedicado 255

quando estudante, colocava na revolta arealização de risonhos anelos. Médico e rico, pela fortuna da mulher,ele não andava satisfeito. A ambição dedinheiro e o desejo de nomeadaesporeavam-no. Já era médico do HospitalSírio, onde ia três vezes por semana e, emmeia hora, via trinta e mais doentes.Chegava, o enfermeiro dava-lheinformações, o doutor ia, de cama emcama, perguntando: \"Como vai?\" \"Voumelhor seu doutor\", respondia o sírio comvoz gutural. Na seguinte, indagava: \"Jáestá melhor?\" E assim passava a visita;chegando ao gabinete receitava: \"Doentenº 1, repita a receita; doente 5... quemé?\"... \"É aquele barbado\"... \"Ahn!\" Ereceitava. Mas médico de um hospital particularnão dá fama a ninguém: o indispensável éser do governo, senão ele não passava deum simples prático. Queria ter um cargooficial, médico, diretor ou mesmo lente dafaculdade. E isso não era difícil, desde quearranjasse boas recomendações pois játinha certo nome, graças à sua atividade efertilidade de recursos. 256

De quando em quando, publicava umfolheto. O Cobreiro, Etiologia, Profilaxia eTratamento ou Contribuição para o Estudoda Sarna no Brasil; e, mandava o folheto,quarenta e sessenta páginas, aos jornaisque se ocupavam dele duas ou três vezespor ano; o \"operoso Doutor ArmandoBorges, o ilustre clínico, o proficientemédico dos nossos hospitais\", etc., etc. Obtinha isso graças à precaução quetomara em estudante de se relacionar comos rapazes da imprensa. Não contente com isso escreviaartigos, estiradas compilações, em quenão havia nada de próprio, mas ricos decitações em francês, inglês e alemão. O lugar de lente é que o tentava mais;o concurso, porém, metia-lhe medo. Tinhaelementos, estava bem relacionado ecotado na congregação, mas aquelahistória de argüição apavorava-o. Não havia dia em que não comprasselivros, em francês, inglês e italiano; tomaraaté um professor de alemão, para entrarna ciência germânica; mas faltava-lheenergia para o estudo prolongado e a suafelicidade pessoal fizera evolar-se apequena que tivera quando estudante. 257

A sala da frente do alto porão tinhasido transformada em biblioteca. Asparedes estavam forradas de estantes quegemiam ao peso dos grandes tratados. Ànoite, ele abria as janelas das venezianas,acendia todos os bicos-de-gás e se punhaà mesa, todo de branco com um livroaberto sob os olhos. O sono não tardava a vir ao fim daquinta página... Isso era o diabo! Deu emprocurar os livros da mulher. Eramromances franceses, Goncourt, AnatoleFrance, Daudet, Maupassant, que o faziamdormir da mesma maneira que os tratados.Ele não compreendia a grandeza daquelasanálises, daquelas descrições, o interessee o valor delas, revelando a todos, àsociedade, a vida, os sentimentos, asdores daqueles personagens, um mundo!O seu pedantismo, a sua falsa ciência e apobreza de sua instrução geral faziam-nover naquilo tudo, brinquedos,passatempos, falatórios, tanto mais queele dormia à leitura de tais livros. Precisava, porém, iludir-se, a simesmo e à mulher. De resto, da rua, viam-no e se dessem com ele a dormir sobre oslivros?!... Tratou de encomendar algumas 258

novelas de Paulo de Kock em lombadascom títulos trocados e afastou o sono. A sua clínica, entretanto, prosperava.De comandita com o tutor, chegou aganhar uns seis contos, tratando de umfebrão de uma órfã rica. Desde muito que a mulher lhe entravana sua simulação de inteligência, masaquela manobra indecorosa indignou-a.Que necessidade tinha ele disso? Não erajá rico? Não era moço? Não tinha oprivilégio de um título universitário? Tal atopareceu à moça mais vil, mais baixo, que ausura de um judeu, que o aluguel de umapena... Não foi desprezo, nojo que ela tevepelo marido; foi um sentimento maiscalmo, menos ativo; desinteressou-se dele,destacou-se de sua pessoa. Ela sentiu quetinham cortado todos os laços de afeição,de simpatia, que prendiam ambos, toda aligação moral, enfim. Mesmo quando noiva, verificara queaquelas cousas de amor ao estudo, deinteresse pela ciência, de ambições dedescobertas, nele, eram superficiais,estavam à flor da pele; mas desculpou.Muitas vezes nós nos enganamos sobre asnossas próprias forças e capacidades; 259

sonhamos ser Shakespeare e saímos Maldas Vinhas. Era perdoável, mas charlatão?Era demais! Passou-lhe um pensamento mau, masde que valeria essa quase indignidade?...Todos os homens deviam ser iguais; erainútil mudar deste para aquele... Quando chegou a esta conclusão,sentiu um grande alívio, e a sua fisionomiase iluminou de novo como se já estivessede todo passada a nuvem que empanavao sol dos seus olhos. Naquela carreira atropelada para onome fácil, ele não deu pelas modificaçõesda mulher. Ela dissimulava os seussentimentos, mais por dignidade edelicadeza, que mesmo por qualquer outromotivo; e a ele faltavam a sagacidade efinura necessárias para descobri-los sob oseu esconderijo. Continuavam a viver como se nadahouvesse, mas quanto estavam longe umdo outro!... A revolta veio encontrá-los assim; e odoutor, desde três dias, pois há tanto elarebentara, meditava a sua ascensão sociale monetária. O sogro suspendera a viagem àEuropa, e, naquela manhã, após o almoço, 260

conforme o seu hábito, lia recostado numacadeira de viagem os jornais do dia. Ogenro vestia-se e a filha ocupava-se comsua correspondência, escrevendo àcabeceira da mesa de jantar. Ela tinha umgabinete, com todo o luxo, livros,secretária, estantes, mas gostava pelamanhã de escrever ali, ao lado do pai. Asala lhe parecia mais clara, a vista para amontanha, feia e esmagadora, dava maisseriedade ao pensamento e a vastidão dasala mais liberdade no escrever. Ela escrevia e o pai lia; num dadomomento ele disse: – Sabes quem vem aí, minha filha? – Quem é? – Teu padrinho. Telegrafou aoFloriano, dizendo que vinha... Está aqui,n'O País. A moça adivinhou logo o motivo, omodo de agir e reagir de fato sobre asidéias e sentimentos de Quaresma. Quisdesaprovar, censurar; sentiu-o, porém, tãocoerente com ele mesmo, tão de acordocom a substância da vida que ele mesmofabricara, que se limitou a sorrircomplacente: – O padrinho... 261

– Está doido, disse Coleoni, Per lamadonna! Pois um homem que estáquieto, sossegado, vem meter-se nestabarafunda, neste inferno... O doutor voltava já inteiramentevestido, com a sobrecasaca fúnebre e acartola reluzente na mão. Vinha irradiantee o seu rosto redondo reluzia, exceto ondeo grande bigode punha sombras. Aindaouviu as últimas palavras do sogro,pronunciadas com aquele seu portuguêsrouco: – Que há? perguntou ele. Coleoni explicou e repetiu oscomentários que já fizera: – Mas não há tal, disse o doutor. É odever de todo o patriota... Que tem aidade? Quarenta e poucos anos, não é lávelho... Pode ainda bater-se pelaRepública... – Mas não tem interesse nisso,objetou o velho. – E há de ser só quem tem interesseque se deve bater pela República?interrogou o doutor. A moça que acabava de ler a cartaque tinha escrito, mesmo sem levantar acabeça, disse: – Decerto. 262

– É vem você com as suas teorias,filhinha. O patriotismo não está nabarriga... E sorriu com um falso sorriso que obrilho morto dos seus dentes postiços maisfalsificava. – Mas vocês só falam em patriotismo?E os outros? É monopólio de vocês opatriotismo? fez Olga. – Decerto. Se eles fossem patriotasnão estariam a despejar balas para acidade, a entorpecer, a desmoralizar aação da autoridade constituída. – Deviam continuar a presenciar asprisões, as deportações, os fuzilamentos,toda a série de violências que se vêmcometendo, aqui e no Sul? – Você, no fundo, é uma revoltosa,disse o doutor, fechando a discussão. Ela não deixava de ser. A simpatia dosdesinteressados, da população inteira erapelos insurgentes. Não só isso sempreacontece em toda a parte, comoparticularmente, no Brasil, devido amúltiplos fatores, há de ser assimnormalmente. Os governos, com os seus inevitáveisprocessos de violência e hipocrisias, ficamalheados da simpatia dos que acreditam 263

nele; e demais, esquecidos de sua vitalimpotência e inutilidade, levam a prometero que não podem fazer, de forma a criardesesperados, que pedem sempremudanças e mudanças. Não era, pois, de admirar que a moçatendesse para os revoltosos; e Coleoni,estrangeiro e conhecendo, graças à suavida, as nossas autoridades, calasse assuas simpatias num mutismo prudente. – Não me vá comprometer, hein,Olga? Ela se tinha levantado paraacompanhar o marido. Parou um pouco,deitou-lhe o seu grande olhar luminoso, ecom os finos lábios um pouco franzidos: – Você sabe bem que eu não tecomprometo. O doutor desceu a escada da varanda,atravessou o jardim e ainda do portãodisse adeus à mulher, que lhe seguia asaída, debruçada na varanda, conforme oritual dos bem ou mal casados. Por esse tempo, Coração dos Outrossonhava desligado das contingênciasterrenas. Ricardo vivia ainda na sua casa decômodos dos subúrbios, cuja vista ia deTodos os Santos à Piedade, abrangendo 264

um grande trato de área edificada, umpanorama de casas e árvores. Já não se falava mais no seu rival e asua mágoa tinha assentado. Por esses dias o triunfo desfilava semcontestação. Toda a cidade o tinha naconsideração devida e ele quase sejulgava ao termo da sua carreira. Faltava oassentimento de Botafogo, mas estavacerto de obter. Já publicara mais de um volume decanções; e, agora pensava em publicarmais outro. Há dias vivia em casa, pouco saindo,organizando o seu livro. Passavaconfinado no seu quarto, almoçando café,que ele mesmo fazia, e pão, indo à tardejantar a uma tasca próximo à estação. Notara que sempre que chegava, oscarroceiros e trabalhadores, que jantavamnas mesas sujas, abaixavam a voz eolhavam-no desconfiados; mas não deuimportância... Apesar de popular no lugar, nãoencontrara pessoa alguma conhecidadurante os três últimos dias; ele mesmoevitava falar e, em sua casa, limitava-se ao\"bom-dia\" e à \"boa-tarde\" trocados com osvizinhos. 265

Gostava de passar assim dias, metidoem si mesmo e ouvindo o seu coração.Não lia jornais para não distrair a atençãodo seu trabalho. Vivia a pensar nas suasmodinhas e no seu livro que havia de sermais uma vitória para ele e para o violãoestremecido. Naquela tarde estava sentado à mesa,corrigindo um dos seus trabalhos, um dosúltimos, aquele que compusera no sítio deQuaresma – \"Os lábios de Carola\". Primeiro, leu toda a produção,cantarolando; voltou a lê-la, agarrou oviolão para melhor apanhar o efeito eempacou nestes: É mais bela que Helena e Margarida, Quando sorri meneando a ventarola. Só se encontra a ilusão que adoça a vida Nos lábios de Carola. Nisto ouviu um tiro, depois, outro,outro... Que diabo? pensou. Hão de sersalvas a algum navio estrangeiro.Repinicou o violão e continuou a cantar oslábios de Carola, onde encontrava a ilusãoque adoça a vida... 266

TERCEIRA PARTE

I Patriotas Havia mais de uma hora que eleestava ali, num grande salão do palácio,vendo o marechal, mas sem lhe poderfalar. Quase não se encontravamdificuldades para se chegar à suapresença, mas falar-lhe, a cousa não eratão fácil. O palácio tinha um ar de intimidade,de quase relaxamento, representativo eeloqüente. Não era raro ver-se pelos divãs,em outras salas, ajudantes-de-ordens,ordenanças, contínuos, cochilando, meiodeitados e desabotoados. Tudo nele eradesleixo e moleza. Os cantos dos tetostinham teias de aranha; dos tapetes,quando pisados com mais força, subiauma poeira de rua mal varrida. Quaresma não pudera vir logo, comoanunciara no telegrama. Fora preciso pôrem ordem os seus negócios, arranjarquem fizesse companhia à irmã. FizeraDona Adelaide mil objeções à sua partida;mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra,incompatíveis com a sua idade esuperiores à sua força; ele, porém, não se 268

deixara abater, fizera pé firme, pois sentia,indispensável, necessário que toda a suavontade, que toda a sua inteligência, quetudo o que ele tinha de vida e atividadefosse posto à disposição do governo, paraentão!... oh! Aproveitara os dias até para redigir ummemorial que ia entregar a Floriano. Neleexpunham-se as medidas necessáriaspara o levantamento da agricultura emostravam-se todos os entraves, oriundosda grande propriedade, das exaçõesfiscais, da carestia de fretes, da estreitezados mercados e das violências políticas. O major apertava o manuscrito namão e lembrava-se da sua casa, lá longe,no canto daquela planície feia, olhando, nopoente, as montanhas que se alongavam,se afilavam nos dias claros etransparentes, lembrava-se de sua irmã,dos seus olhos verdes e plácidos que oviram partir com uma impassibilidade quenão era natural; mas do que se lembravamais, naquele momento, era do Anastácio,o seu preto velho, do seu longo olhar, nãomais com aquela ternura passiva deanimal doméstico, mas cheio de assombro,de espanto e piedade, rolando muito nasórbitas as escleróticas muito brancas, 269

quando o viu penetrar no vagão da estradade ferro. Parecia que farejava desgraça...Não lhe era comum tal atitude e como quea tomava por ter descoberto nas cousassinais de dolorosos acontecimentos a vir...Ora! ... Ficara Quaresma a um canto vendoentrar um e outro, à espera que opresidente o chamasse. Era cedo, poucodevia faltar para o meio-dia, e Florianotinha ainda, como sinal do almoço, o palitona boca. Falou em primeiro lugar a umacomissão de senhoras que vinhamoferecer o seu braço e o seu sangue emdefesa das instituições e da pátria. Aoradora era uma mulher baixa, de bustocurto, gorda, com grandes seios altos efalava agitando o leque fechado na mãodireita. Não se podia dizer bem qual a suacor, sua raça, ao menos: andavam tantasnela que uma escondia a outra, furtandotoda ela a uma classificação honesta. Enquanto falava, a mulherzinhadeitava sobre o marechal os grandes olhosque despediam chispas. Floriano pareciaincomodado com aquele chamejar; eracomo se temesse derreter-se ao calor 270

daquele olhar que queimava mais seduçãoque patriotismo. Fugia encará-la, abaixavao rosto como um adolescente, batia comos dedos na mesa... Quando lhe chegou a vez de falar,levantou um pouco o rosto, mas semencarar a mulher, e, com um grosso edifícil sorriso de roceiro, declinou da oferta,visto a República ainda dispor de bastanteforça para vencer. A última frase, ele a disse com maisvagar e quase ironicamente. As damasdespediram-se; o marechal girou o olharem torno do salão e deu com Quaresma: – Então, Quaresma? fez elefamiliarmente. O major ia aproximar-se, mas logoestacou no lugar em que estava. Umachusma de oficiais subalternos e cadetescercou o ditador e a sua atenção convergiupara eles. Não se ouvia o que diziam.Falavam ao ouvido de Floriano,cochichavam, batiam-lhe nas espáduas. Omarechal quase não falava: movia com acabeça ou pronunciava um monossílabo,cousa que Quaresma percebia pelaarticulação dos lábios. Começaram a sair. Apertavam a mãodo ditador e, um deles, mais jovial, mais 271

familiar, ao despedir-se, apertou-lhe comforça a mão mole, bateu-lhe no ombro comintimidade, e disse alto e com ênfase: – Energia, marechal! Aquilo tudo parecia tão natural,normal, tendo entrado no novo cerimonialda República, que ninguém, nem o próprioFloriano, teve a mínima surpresa, aocontrário alguns até sorriram alegres porver o califa, o cã, o emir, transmitir umpouco do que tinha de sagrado aosubalterno desabusado. Não se foramtodos imediatamente. Um deles demorou-se mais a segredar cousas à supremaautoridade do país. Era um cadete daEscola Militar, com a sua farda azul-turquesa, talim e sabre de praça de pré. Os cadetes da Escola Militarformavam a falange sagrada. Tinham todos os privilégios e todos osdireitos; precediam ministros nasentrevistas com o ditador e abusavamdessa situação de esteio do Sila, paraoprimir e vexar a cidade inteira. Uns trapos de positivismo se tinhamcolado naquelas inteligências e umareligiosidade especial brotara-lhes nosentimento, transformando a autoridade,especialmente Floriano e vagamente a 272

República, em artigo e fé, em feitiço, emídolo mexicano, em cujo altar todas asviolências e crimes eram oblatas dignas eoferendas úteis para a sua satisfação eeternidade. O cadete lá estava... Quaresma pôde então ver melhor afisionomia do homem que ia feixar emsuas mãos, durante quase um ano, tãofortes poderes, poderes de ImperadorRomano, pairando sobre tudo, limitandotudo, sem encontrar obstáculo algum aosseus caprichos, às suas fraquezas evontades, nem nas leis, nem noscostumes, nem na piedade universal ehumana. Era vulgar e desoladora. O bigodecaído; o lábio inferior pendente e mole aque se agarrava uma grande \"mosca\"; ostraços flácidos e grosseiros; não havia nemo desenho do queixo ou olhar que fossepróprio, que revelasse algum dotesuperior. Era um olhar mortiço, redondo,pobre de expressões, a não ser de tristezaque não lhe era individual, mas nativa, deraça; e todo ele era gelatinoso – parecianão ter nervos. Não quis o major ver em tais sinaisnada que lhe denotasse o caráter, a 273

inteligência e o temperamento. Essascousas não vogam, disse ele de si para si. O seu entusiasmo por aquele ídolopolítico era forte, sincero e desinteressado.Tinha-o na conta de enérgico, de fino esupervidente, tenaz e conhecedor dasnecessidades do país, manhoso talvez umpouco, uma espécie de Luís XI forrado deum Bismarck. Entretanto, não era assim.Com uma ausência total de qualidadesintelectuais, havia no caráter do MarechalFloriano uma qualidade predominante:tibieza de ânimo; e no seu temperamento,muita preguiça. Não a preguiça comum,essa preguiça de nós todos; era umapreguiça mórbida, como que uma pobrezade irrigação nervosa, provinda de umainsuficiente quantidade de fluido no seuorganismo. Pelos lugares que passou,tornou-se notável pela indolência edesamor às obrigações dos seus cargos. Quando diretor do Arsenal dePernambuco, nem energia tinha paraassinar o expediente respectivo; e duranteo tempo em que foi ministro da Guerra,passava meses e meses sem lá ir,deixando tudo por assinar, pelo que\"legou\" ao seu substituto um trabalhoavultadíssimo. 274

Quem conhece a atividade papeleirade um Colbert, de um Napoleão, de umFilipe II, de Guilherme I, da Alemanha, emgeral de todos os grandes homens deEstado, não compreende o descasoflorianesco pela expedição de ordens,explicações aos subalternos, de suasvontades, de suas vistas, certamentenecessárias deviam ser tais transmissõespara que o seu senso superior se fizessesentir e influísse na marcha das cousasgovernamentais e administrativas. Dessa preguiça de pensar e de agir,vinha o seu mutismo, os seus misteriososmonossílabos, levados à altura de ditossibilinos, as famosas \"encruzilhadas dostalvezes\", que tanto reagiram sobre ainteligência e imaginação nacionais,mendigas de heróis e grandes homens. Essa doentia preguiça fazia-o andarde chinelos e deu-lhe aquele aspecto decalma superior, calma de grande homemde Estado ou de guerreiro extraordinário. Toda a gente ainda se lembra comoforam os seus primeiros meses degoverno. A braços com o levante depresos, praças e inferiores da fortaleza deSanta Cruz, tendo mandado fazer uminquérito, abafou-o com medo que as 275

pessoas indicadas como instigadoras nãofizessem outra sedição, e, não contentecom isto, deu a essas pessoas asmelhores e mais altas recompensas. Demais, ninguém pode admitir umhomem forte, um César, um Napoleão, quepermita aos subalternos aquelasintimidades deprimentes e tenha com elesas condescendências que ele tinha,consentindo que o seu nome servisse delábaro para uma vasta série de crimes detoda a espécie. Uma recordação basta. Sabe-se bemsob que atmosfera de má vontadeNapoleão assumiu o comando do exércitoda Itália. Augereau, que o chamava\"general de rua\", disse a alguém, após lheter falado: \"O homem meteu-me medo\"; eo corso estava senhor do exército sembatidelas no ombro, sem delegar tácita ouexplicitamente a sua autoridade asubalternos irresponsáveis. De resto, a lentidão com que sufocoua revolta de 6 de setembro mostra bem aincerteza, a vacilação de vontade de umhomem que dispunha daquelesextraordinários recursos que estavam àssuas ordens. 276

Há uma outra face do MarechalFloriano que muito explica os seusmovimentos, atos e gestos. Era o seuamor à família, um amor entranhado,alguma cousa de patriarcal, de antigo quejá se vai esvaindo com a marcha dacivilização. Em virtude de insucessos naexploração agrícola de duas das suaspropriedades, a sua situação particular eraprecária, e não queria morrer sem deixar àfamília as suas propriedades agrícolasdesoneradas do peso das dívidas. Honesto e probo como era, a únicaesperança que lhe restava repousava naseconomias sobre os seus ordenados. Daílhe veio essa dubiedade, esse jogo compau de dous bicos, jogo indispensável paraconservar os rendosos lugares que teve eo fez atarraxar-se tenazmente àPresidência da República. A hipoteca do\"Brejão\" e do \"Duarte\" foi o seu nariz deCleópatra... A sua preguiça, a sua tibieza de ânimoe o seu amor fervoroso pelo lar deram emresultado esse \"homem-talvez\" que,refratado nas necessidades mentais esociais dos homens do tempo, foitransformado em estadista, em Richelieu, 277

e pôde resistir a uma séria revolta commais teimosia que vigor, obtendo vidas,dinheiro e despertando até entusiasmo efanatismo. Esse entusiasmo e esse fanatismo,que o ampararam, que o animaram, que osustentaram, só teriam sido possíveis,depois de ter ele sido ajudante general doImpério, senador, ministro, isto é, após seter \"fabricado\" à vista de todos ecristalizado a lenda na mente de todos. A sua concepção de governo não erao despotismo, nem a democracia, nem aaristocracia; era a de uma tiraniadoméstica. O bebê portou-se mal, castiga-se. Levada a cousa ao grande, o portar-semal era fazer-lhe oposição, ter opiniõescontrárias às suas e o castigo não erammais palmadas, sim, porém, prisão emorte. Não há dinheiro no Tesouro;ponham-se as notas recolhidas emcirculação, assim como se faz em casaquando chegam visitas e a sopa é pouca:põe-se mais água. Demais, a sua educação militar e asua fraca cultura deram mais realce a essaconcepção infantil, raiando-a de violência,não tanto por ele em si, pela suaperversidade natural, pelo seu desprezo 278

pela vida humana, mas pela fraqueza comque acobertou e não reprimiu a ferocidadedos seus auxiliares e asseclas. Quaresma estava longe de pensarnisso tudo; ele com muitos homenshonestos e sinceros do tempo foramtomados pelo entusiasmo contagioso queFloriano conseguira despertar. Pensava nagrande obra que o Destino reservavaàquela figura plácida e triste; na reformaradical que ele ia levar ao organismoaniquilado da pátria, que o major sehabituara a crer a mais rica do mundo,embora, de uns tempos para cá, já tivessedúvidas a certos respeitos. Decerto, ele não negaria taisesperanças e a sua ação poderosa haviade se fazer sentir pelos oito milhões dequilômetros quadrados do Brasil, levando-lhes estradas, segurança, proteção aosfracos, assegurando o trabalho epromovendo a riqueza. Não se demorou muito nessa ordemde pensamentos. Um seu companheiro deespera, desde que o marechal lhe faloufamiliarmente, começou a consideraraquele homem pequenino, taciturno, depince-nez e foi-se chegando, seaproximando e, quando já perto, disse a 279

Quaresma, quase como um terrívelsegredo: – Eles vão ver o \"caboclo\"... O majorhá muito que o conhece? Respondeu-lhe o major e o outroainda lhe fez uma outra pergunta; opresidente, porém, ficara só e Quaresmaavançou. – Então, Quaresma? fez Floriano. – Venho oferecer a Vossa Excelênciaos meus fracos préstimos. O presidente considerou um instanteaquela pequenez de homem, sorriu comdificuldade, mas, levemente, com umpouco de satisfação. Sentiu por aí a forçade sua popularidade e senão a razão boade sua causa. – Agradeço-te muito... Onde tensandado? Sei que deixaste o Arsenal. Floriano tinha essa capacidade deguardar fisionomias, nomes, empregos,situações dos subalternos com quemlidava. Tinha alguma cousa de asiático; eracruel e paternal ao mesmo tempo. Quaresma explicou-lhe a sua vida eaproveitou a ocasião para lhe falar em leisagrárias, medidas tendentes a desafogar edar novas bases à nossa vida agrícola. Omarechal ouviu-o distraído, com uma 280

dobra de aborrecimento no canto doslábios. – Trazia a Vossa Excelência até estememorial... O presidente teve um gesto de mauhumor, um quase \"não me amole\" e dissecom preguiça a Quaresma: – Deixa aí... Depositou o manuscrito sobre a mesae logo o ditador dirigiu-se ao interlocutor deainda agora: – Que há, Bustamante? E o batalhão,vai? O homem aproximou-se mais, umtanto amedrontado: – Vai bem, marechal. Precisamos deum quartel... Se Vossa Excelência desseordem... – É exato. Fala ao Rufino em meunome que ele pode arranjar... Ou antes:leva-lhe este bilhete. Rasgou um pedaço de uma dasprimeiras páginas do manuscrito deQuaresma, e assim mesmo, sobre aquelaponta de papel, a lápis azul, escreveualgumas palavras ao seu ministro daGuerra. Ao acabar é que deu com adesconsideração: 281

– Ora! Quaresma! rasguei o teuescrito... Não faz mal... Era a parte decima, não tinha nada escrito. O major confirmou e o presidente, emseguida, voltando-se para Bustamante: – Aproveita Quaresma no teubatalhão. Que posto queres? – Eu! fez Quaresma estupidamente. – Bem. Vocês lá se entendam. Os dous se despediram do presidentee desceram vagarosamente as escadas doItamarati. Até à rua nada disseram um aooutro. Quaresma vinha um pouco frio. Odia estava claro e quente; o movimento dacidade parecia não ter sofrido alteraçãoapreciável. Havia a mesma agitação debondes, carros e carroças; mas nasfisionomias, um terror, um espanto, algumacousa de tremendo ameaçava todos eparecia estar suspenso no ar. Bustamante deu-se a conhecer. Era oMajor Bustamante, agora Tenente-Coronel, velho amigo do marechal, seucompanheiro do Paraguai. – Mas nós nos conhecemos! exclamouele. Quaresma esteve olhando aquelevelho mulato escuro, com uma grandebarba mosaica e olhos espertos, mas não 282

se lembrou de tê-lo já encontrado algumdia. – Não me recordo... Donde? – Da casa do General Albernaz... Nãose lembra? Policarpo então teve uma vagarecordação e o outro explicou-lhe aformação do seu batalhão patriótico\"Cruzeiro do Sul\". – O senhor quer fazer parte? – Pois não, fez Quaresma. – Estamos em dificuldades...Fardamento, calçado para as praças... Nasprimeiras despesas devemos auxiliar ogoverno... Não convém sangrar o Tesouro,não acha? – Certamente, disse com entusiasmoQuaresma. – Folgo muito que o senhor concordecomigo... Vejo que é um patriota... Resolvipor isso fazer um rateio pelos oficiais, emproporção ao posto: um alferes concorrecom cem mil-réis, um tenente comduzentos... O senhor que patente quer?Ah! É verdade! O Senhor é major, não é? Quaresma então explicou por que otratavam por major. Um amigo, influênciano Ministério do Interior, lhe tinha metido onome numa lista de guardas-nacionais, 283

com esse posto. Nunca tendo pago osemolumentos, viu-se, entretanto, sempretratado major, e a cousa pegou. Aprincípio, protestou, mas como teimassemdeixou. – Bem, fez Bustamante. O senhor ficamesmo sendo major. – Qual é a minha quota? – Quatrocentos mil-réis. Um poucoforte, mas... O senhor sabe; é um postoimportante... Aceita? – Pois não. Bustamante tirou a carteira, tomounota com uma pontinha de lápis edespediu-se jovialmente: – Então, major, às seis, no quartelprovisório. A conversa se havia passado naesquina da Rua Larga com o Campo deSant'Ana. Quaresma pretendia tomar umbonde que o levasse ao centro da cidade.Tencionava visitar o compadre emBotafogo, fazendo, assim, horas para asua iniciação militar. A praça estava pouco transitada; osbondes passavam ao chouto compassadodas mulas; de quando em quando ouvia-seum toque de corneta, rufos de tambor, e doportão central do quartel-general saía uma 284

força, armas ao ombro, baionetas caladas,dançando nos ombros dos recrutas,faiscando com um brilho duro e mau. Ia tomar o bonde, quando se ouviramalguns disparos de artilharia e o secoespoucar dos fuzis. Não durou muito;antes que o bonde atingisse à Rua daConstituição, todos os rumores guerreirostinham cessado, e quem não estivesseavisado havia de supor-se em temposnormais. Quaresma chegou-se para o centro dobanco e ia ler o jornal que comprara.Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logointerrompido; bateram-lhe no ombro.Voltou-se. – Oh! general! O encontro foi cordial. O GeneralAlbernaz gostava dessas cerimônias etinha mesmo um prazer, uma deliciosaemoção em reatar conhecimentos que setinham enfraquecido por uma separaçãoqualquer. Estava fardado, com aquele seuuniforme maltratado; não trazia espada e opince-nez continuava preso por umtrancelim de ouro que lhe passava pordetrás da orelha esquerda. – Então veio ver a cousa? – Vim. Já me apresentei ao marechal. 285

– \"Eles\" vão ver com quem semeteram. Pensam que tratam com oDeodoro, enganam-se!... A República,graças a Deus, tem agora um homem nasua frente... O \"caboclo\" é de ferro... NoParaguai... – O senhor conheceu-o lá, não,general? – Isto é... Não chegamos a nosencontrar; mas o Camisão... É duro, ohomem. Estou como encarregado dasmunições... É o fino o \"caboclo\": não mequis no litoral. Sabe muito bem quem sou eque munição que saia das minhas mãos, émunição... Lá, no depósito, não me sai umcaixote que eu não examine... Énecessário... No Paraguai, houve muitadesordem e comilança: mandou-se muitacal por pólvora – não sabia? – Não. – Pois foi. O meu gosto era ir para aspraias, para o combate; mas o \"homem\"quer que eu fique com as munições...Capitão manda, marinheiro faz... Ele sabelá... Deu de ombros, concertou o trancelimque já caía da orelha e esteve calado uminstante. Quaresma perguntou: – Como vai a família? 286

– Bem. Sabe que Quinota casou-se? – Sabia, o Ricardo me disse. E DonaIsmênia, como vai? A fisionomia do general toldou-se erespondeu como a contragosto: – Vai no mesmo. O pudor de pai tinha-o impedido dedizer toda a verdade. A filha enlouquecerade uma loucura mansa e infantil. Passavadias inteiros calada, a um canto, olhandoestupidamente tudo, com um olhar mortode estátua, numa atonia de inanimado,como que caíra em imbecilidade; masvinha uma hora, porém, em que sepenteava toda, enfeitava-se e corria àmãe, dizendo: \"Apronta-me, mamãe. Omeu noivo não deve tardar... é hoje o meucasamento.\" Outras vezes recortava papel,em forma de participações, e escrevia:Ismênia de Albernaz e Fulano (variava)participam o seu casamento. O general já consultara uma dúzia demédicos, o espiritismo e agora andava àsvoltas com um feiticeiro milagroso; a filha,porém, não sarava, não perdia a mania ecada vez mais se embrenhava o seuespírito naquela obsessão de casamento,alvo que fizeram ser da sua vida, a que 287

não atingira, aniquilando-se, porém, o seuespírito e a sua mocidade em pleno verdor. Entristecia o seu estado aquela casaoutrora tão alegre, tão festiva. Os bailestinham diminuído; e, quando eramobrigados a dar um, nas datas principais, amoça, com todos os cuidados, à custa detodas as promessas, era levada para casada irmã casada, lá ficava, enquanto asoutras dançavam, um instante esquecidasda irmã que sofria. Albernaz não quis revelar aquela dorde sua velhice; reprimiu a emoção econtinuou no tom mais natural, naqueleseu tom familiar e íntimo que usava comtodos: – Isto é uma infâmia, SenhorQuaresma. Que atraso para o país. E osprejuízos? Um porto destes fechado acomércio nacional quantos anos deretardamento não representa! O major concordou e mostrou anecessidade de prestigiar o Governo, deforma a tornar impossível a reprodução delevantes e insurreições. – Decerto, aduziu o general. Assimnão progredimos, não nos adiantamos. Eno estrangeiro que mau efeito! 288

O bonde chegara ao Largo de SãoFrancisco e os dous se separaram.Quaresma foi direitinho ao Largo daCarioca e Albernaz seguiu para a Rua doRosário. Olga viu entrar seu padrinho semaquela alegria expansiva de sempre. Nãofoi indiferença que sentiu, foi espanto,assombro, quase medo, embora soubesseperfeitamente que ele estava a chegar.Entretanto, não havia mudança nafisionomia de Quaresma, no seu corpo, emtodo ele. Era o mesmo homem baixo,pálido, com aquele cavanhaque apontadoe o olhar agudo por detrás do pince-nez...Nem mesmo estava mais queimado e ojeito de apertar os lábios era o mesmo queela conhecia há tantos anos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impelido,empurrado por uma força estranha, por umturbilhão; bem examinando, entretanto,verificou que ele entrara naturalmente,com o seu passo miúdo e firme. Donde lhevinha então essa cousa que a acanhava,que lhe tirara a sua alegria de ver pessoatão amada? Não atinou. Estava lendo nasala de jantar e Quaresma não se faziaanunciar; ia entrando conforme o velho 289

hábito. Respondeu ao padrinho ainda soba dolorosa impressão da sua entrada: – Papai saiu; e o Armando está láembaixo escrevendo. De fato, ele estava escrevendo oumais particularmente: traduzia para o\"clássico\" um grande artigo sobre\"Ferimentos por arma de fogo\". O seuúltimo truc intelectual era este do clássico.Buscava nisto uma distinção, umaseparação intelectual desses meninos poraí que escrevem contos e romances nosjornais. Ele, um sábio, e sobretudo, umdoutor, não podia escrever da mesmaforma que eles. A sua sabedoria superior eo seu título \"acadêmico\" não podiam usarda mesma língua, dos mesmos modismos,da mesma sintaxe que esses poetastros eliteratecos. Veio-lhe então a idéia doclássico. O processo era simples: escreviado modo comum, com as palavras e o jeitode hoje, em seguida invertia as orações,picava o período com vírgulas e substituíaincomodar por molestar, ao redor porderredor, isto por esto, quão grande ou tãogrande por quamanho, sarapintava tudo deao invés, em-pós, e assim obtinha o seuestilo clássico que começava a causar 290

admiração aos seus pares e ao público emgeral. Gostava muito da expressão – àsrebatinhas; usava-a a todo o momento e,quando a punha no branco do papel,imaginava que dera ao seu estilo umaforça e um brilho pascalianos e às suasidéias uma suficiência transcendente. Denoite, lia o padre Vieira, mas logo àsprimeiras linhas o sono lhe vinha e dormiasonhando-se \"físico\", tratado de mestre,em pleno Seiscentos, prescrevendosangria e água quente, tal e qual o doutorSangrado. A sua tradução estava quase no fim, jáestava bastante prático, pois com o tempoadquirira um vocabulário suficiente e aversão era feita mentalmente, em quasemetade, logo na primeira escrita. Recebeuo recado da mulher, anunciando-lhe avisita, com um pequeno aborrecimento,mas, como teimasse em não encontrar umequivalente clássico para \"orifício\", julgouútil a interrupção. Queria pôr \"buraco\", masera plebeu; \"orifício\", se bem que muitousado, era, entretanto, mais digno. Navolta talvez encontrasse, pensou: e subiu àsala de jantar. Ele entrou prazenteiro, como seu grande bigode esfarelado, o seu 291

rosto redondo e encontrou padrinho eafilhada empenhados em uma discussãosobre autoridade. Dizia ela: – Eu não posso compreender essetom divino com que os senhores falam daautoridade. Não se governa mais em nomede Deus, por que então esse respeito,essa veneração de que querem cercar osgovernantes? O doutor, que ouvira toda a frase, nãopôde deixar de objetar: – Mas é preciso, indispensável... Nóssabemos bem que eles são homens comonós, mas, se for assim, tudo vai por águaabaixo. Quaresma acrescentou: – É em virtude das própriasnecessidades internas e externas da nossasociedade que ela existe... Nas formigas,nas abelhas... – Admito. Mas há revoltas entre asabelhas e formigas, e a autoridade semantém lá à custa de assassínios,exações e violências? – Não se sabe... Quem sabe?Talvez... fez evasivamente Quaresma. O doutor não teve dúvidas e foi logodizendo: 292

– Que temos nós com as abelhas?Então nós, os homens, o pináculo daescala zoológica iremos buscar normas devida entre insectos? – Não é isso, meu caro doutor;buscamos nos exemplos deles a certezada generalidade do fenômeno, da suaimanência, por assim dizer, disseQuaresma com doçura. Ele não tinha acabado a explicação ejá Olga refletia: – Ainda se essa tal autoridadetrouxesse felicidade – vá; mas não; de quevale? – Há de trazer, afirmoucategoricamente Quaresma. A questão éconsolidá-la. Conversaram ainda muito tempo. Omajor contou a sua visita a Floriano, a suapróxima incorporação ao batalhão\"Cruzeiro do Sul\". O doutor teve uma pontade inveja, quando ele se referiu ao modofamiliar por que Floriano o tratara. Fizeramum pequeno lunch e Quaresma saiu. Sentia necessidade de rever aquelasruas estreitas, com as suas lojas profundase escuras, onde os empregados semoviam como em um subterrâneo. Atortuosa Rua dos Ourives, a esburacada 293

Rua da Assembléia, a casquilha Rua doOuvidor davam-lhe saudades. A vida continuava a mesma. Haviagrupos parados e moças a passeio; noCafé do Rio, uma multidão. Eram osavançados, os \"jacobinos\", a guardaabnegada da República, os intransigentesa cujos olhos a moderação, a tolerância eo respeito pela liberdade e a vida alheiaseram crimes de lesa-pátria, sintomas demonarquismo criminoso e abdicaçãodesonesta diante do estrangeiro. Oestrangeiro era sobretudo o português, oque não impedia de haver jornais\"jacobiníssimos\" redigidos por portuguesesda mais bela água. A não ser esse grupo gesticulante eapaixonado, a Rua do Ouvidor era amesma. Os namoros se faziam e as moçasiam e vinham. Se uma bala zunia no altocéu azul, luminoso, as moças davamgritinhos de gata, corriam para dentro daslojas, esperavam um pouco e logovoltavam sorridentes, o sangue a subir àsfaces pouco e pouco, depois da palidez domedo. Quaresma jantou num restaurant edirigiu-se ao quartel, que funcionava 294

provisoriamente num velho cortiçocondenado pela higiene, lá pelos lados daCidade Nova. Tinha o tal cortiço andartérreo e sobrado, ambos divididos emcubículos do tamanho de camarotes denavio. No sobrado, havia uma varanda degrade de pau e uma escada de madeiralevava até lá, escada tosca e oscilante,que gemia à menor passada. A casa daordem funcionava no primeiro quartinho dosobrado e o pátio, já sem as cordas desecar ao sol a roupa, mas com as pedrasmanchadas das barrelas e da água desabão, servia para a instrução dosrecrutas. O instrutor era um sargentoreformado, um tanto coxo, e admitido nobatalhão com o posto de alferes, quegritava com uma demora majestosa: \"om –brô\"... armas! O major entregou a sua quota aocoronel e este esteve a mostrar-lhe omodelo do fardamento. Era muito singular essa fantasia deseringueiro: o dólmã era verde-garrafa etinha uns vivos azul-ferrete, alamaresdourados e quatro estrelas prateadas, emcruz, na gola. Uma gritaria fê-los vir até à varanda.Entre soldados entrava um homem, a se 295

debater, a chorar e a implorar, ao mesmotempo, levando de quando em quandouma reflada. – É o Ricardo! exclamou Quaresma. Osenhor não o conhece, coronel? continuouele com interesse e piedade. Bustamante estava impassível navaranda e só respondeu depois de algumtempo: – Conheço... É um voluntáriorecalcitrante, um patriota rebelde. Os soldados subiram com o\"voluntário\" e Ricardo logo que deu com omajor, suplicou-lhe: – Salve-me, major! Quaresma chamou de parte o coronel,rogou-lhe e suplicou-lhe, mas foi inútil... Hánecessidade de gente... Enfim, fazia-ocabo. Ricardo, de longe, seguia a conversados dous: adivinhou a recusa e exclamou: – Eu sirvo sim, sim, mas dêem-me omeu violão. Bustamante perfilou-se e gritou aossoldados: – Restituam o violão ao cabo Ricardo! 296

II Você, Quaresma, É um Visionário Oito horas da manhã. A cerraçãoainda envolve tudo. Do lado da terra, malse enxergam as partes baixas dos edifíciospróximos; para o lado do mar, então, avista é impotente contra aquela trevaesbranquiçada e flutuante, contra aquelamuralha de flocos e opaca, que secondensa ali e aqui em aparições, emsemelhanças de cousas. O mar estásilencioso: há grandes intervalos entre oseu fraco marulho. Vê-se da praia umpequeno trecho, sujo, coberto de algas, eo odor da maresia parece mais forte com aneblina. Para a esquerda e para a direita, éo desconhecido, o Mistério. Entretanto,aquela pasta espessa, de uma claridadedifusa, está povoada de ruídos. O chiardas serras vizinhas, os apitos de fábricas elocomotivas, os guinchos de guindastesdos navios enchem aquela manhãindecifrável e taciturna; e ouve-se mesmoa bulha compassada de remos que feremo mar. Acredita-se, dentro daquele decoro,que é Caronte que traz a sua barca parauma das margens do Estige... 297

Atenção! Todos perscrutam a cortinade névoa pastosa. Os rostos estãoalterados; parece que, do seio da bruma,vão surgir demônios... Não se ouve a bulha: o escalerafastou-se. As fisionomias respiramaliviadas... Não é noite, não é dia; não é odilúculo, não é o crepúsculo; é a hora daangústia, é a luz da incerteza. No mar, nãohá estrelas nem sol que guiem; na terra, asaves morrem de encontro às paredesbrancas das casas. A nossa miséria é maiscompleta e a falta daqueles mudos marcosda nossa atividade dá mais fortepercepção do nosso isolamento no seio danatureza grandiosa. Os ruídos continuam, e, como nada sevê, parece que vêm do fundo da terra ousão alucinações auditivas. A realidade sónos vem do pedaço de mar que se avista,marulhando com grandes intervalos,fracamente, tenuemente, a medo, deencontro à areia da praia, suja debodelhas, algas e sargaços. Aos grupos, após o rumor dos remos,os soldados deitaram-se pela relva quecontinua a praia. Alguns já cochilam;outros procuram com os olhos o céu 298

através do nevoeiro que lhes umedece orosto. O cabo Ricardo Coração dos Outros,de rifle à cintura e gorro à cabeça, sentadonuma pedra, está de parte, sozinho, e olhaaquela manhã angustiosa. Era a primeira vez que via a cerraçãoassim perto do mar, onde ela faz sentirtoda a sua força de desesperar. Em geral,ele só tinha olhos para as alvoradas clarase purpurinas, macias e fragrantes; aqueleamanhecer brumoso e feio era umanovidade para ele. Sob o fardamento de cabo, omenestrel não se aborrece. Aquela vidasolta da caserna vai-lhe bem n'alma; oviolão está lá dentro e, em horas de folga,ele o experimenta, cantarolando em vozbaixa. É preciso não enferrujar os dedos...O seu pequeno aborrecimento é nãopoder, de quando em quando, soltar opeito. O comandante do destacamento éQuaresma que, talvez, consentisse... O major está no interior da casa queserve de quartel, lendo. O seu estudopredileto é agora artilharia. Comproucompêndios; mas, como sua instrução éinsuficiente, da artilharia vai à balística, da 299

balística à mecânica, da mecânica aocálculo e à geometria analítica; desce maisa escada; vai à trigonometria, à geometriae à álgebra e à aritmética. Ele percorreessa cadeia de ciências entrelaçadas comuma fé de inventor. Aprende uma noçãoelementaríssima após um rosário deconsultas, de compêndio em compêndio; eleva assim aqueles dias de ócio guerreiroenfronhado na matemática, nessamatemática rebarbativa e hostil aoscérebros que já não são moços. Há no destacamento um canhãoKrupp, mas ele nada tem a ver com omortífero aparelho; contudo, estudaartilharia. É encarregado dele o TenenteFontes, que não dá obediência ao patriotamajor. Quaresma não se incomoda comisso; vai aprendendo lentamente a servir-se da boca-de-fogo e submete-se àarrogância do subalterno. O comandante do \"Cruzeiro do Sul\", oBustamente da barba mosaica, continuano quartel, superintendendo a vida dobatalhão. A unidade tem poucos oficiais emuito poucas praças; mas o Estado paga opré de quatrocentas. Há falta de capitães,o número de alferes está justo, o detenentes quase, mas já há um major, que é 300


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook