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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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Saiu. Na rua parecia que havia festa.As crianças da vizinhança cercavam ocarro fúnebre e faziam inocentescomentários sobre os dourados e enfeites.As grinaldas foram aparecendo e sendopenduradas nas extremidades das colunasdo coche: \"À minha querida filha\", \"Àminha irmã\". As fitas roxas e pretas, comletras douradas, moviam-se lentamente aoleve vento que soprava. Apareceu o caixão, todo roxo, comguarnições de galões dourados, muitobrilhantes. Tudo aquilo ia pra terra. Asjanelas se povoaram, de um lado e doutroda rua; um menino na casa próxima gritouda rua para o interior: \"Mamãe, lá vai oenterro da moça!\" O caixão foi afinal amarradofortemente no carro mortuário, cujoscavalos, ruços, cobertos com uma redepreta, escarvavam o chão cheios deimpaciência. Aqueles que iam acompanhar até aocemitério procuravam os seus carros.Embarcaram todos, e o enterro rodou. A esse tempo, na vizinhança, algunspombos imaculadamente brancos, as avesde Vênus, ergueram o vôo, ruflandoestrepitosamente; deram volta por cima do 351

coche e tornaram logo silenciosos, quasesem bater asas, para o pombal que seocultava nos quintais burgueses... *** 352

IV O Boqueirão O Sítio de Quaresma, em Curuzu,voltava aos poucos ao estado deabandono em que ele o encontrara. A ervadaninha crescia e cobria tudo. Asplantações que fizera tinham desaparecidona invasão do capim, do carrapicho, dasurtigas e outros arbustos. Os arredores dacasa ofereciam um aspecto desolador,apesar dos esforços de Anastácio, semprevigoroso e trabalhador na sua forte velhiceafricana, mas baldo de iniciativa, demétodo, de continuidade no esforço. Um dia capinava aqui, noutro dia ali,outro pedaço, e assim ia saltando detrecho em trecho, sem fazer trabalho quese visse, permitindo que as terras e osarredores da casa adquirissem um aspectode desleixo que não condizia com o seutrabalho efetivo. As formigas voltaram também, maisterríveis e depredadoras, vencendoobstáculos, devastando tudo, restos deseara, brotos de fruteiras, até osaraçazeiros depenavam, com uma energiae bravura que sorriam aos fracos 353

expedientes da inteligência crestada doantigo escravo, incapaz de achar meioseficazes de batê-las ou afungentá-las. Entretanto ele cultivava. Era a suamania, o seu vício, uma teimosia decaduco. Tinha uma horta que disputavadiariamente às saúvas; e, como os animaisda vizinhança a tivessem um dia invadido,ele a protegeu pacientemente com umacerca de materiais mais inconcebíveis:latas de querosene desdobradas, caibrosbons, folhas de coqueiros, tábuas decaixão, não obstante ter à mão bambus àvontade. Na sua inteligência havia umanecessidade do tortuoso, doaparentemente fácil; e, em tudo ele punhaesse jeito de sua psique, tanto no falar,com grandes rodeios, como nos canteirosque traçava, irregulares, maiores aqui,menores ali, fugindo à regularidade, aoparalelismo, à simetria, com um horrorartístico. A revolta tinha tido sobre a políticalocal efeito pacificador. Todos os partidosse fizeram dedicadamente governistas, deforma que, entre os dous poderososcontendores, o Doutor Campos e oTenente Antonino, houve um traço-de- 354

união que os reconciliou e os fezentenderem-se. Ao osso que ambosdisputavam encarniçadamente, chegou umoutro mais forte que pôs em perigo asegurança de ambos e eles se puseramem expectativa, um instante unidos. O candidato foi imposto pelo governocentral e as eleições chegaram. É ummomento bem curioso esse das eleiçõesna roça. Não se sabe bem donde saemtantos tipos exóticos. De tal forma são elesesquisitos que se pode mesmo esperarque apareçam calções e bofes de renda,espadins e gibão. Há sobrecasacas decintura, há calças boca de sino, háchapéus de seda – todo um museu deindumentária que aqueles roceiros vesteme por um instante fazem viver por entre asruas esburacadas e estradas poeirentasdas vilas e lugarejos. Não faltam tambémos valentões, com calças bombachas egrandes bengalões de pequiá, à espera doque der e vier. Para a monótona vida que levavaDona Adelaide, esse desfile de manequinsde museu, por sua porteira, em direção àseção eleitoral que lhe ficava nasproximidades, foi um divertimento. Elapassava longos e tristes dias naquele 355

isolamento. Fazia-lhe companhia desdemuito a mulher de Felizardo, a SinháChica, uma velha cafuza, espécie deMedéia esquelética, cuja fama derezadeira pairava por sobre todo omunicípio. Não havia quem como elasoubesse rezar dores, cortar febres, curarcobreiros e conhecesse os efeitos daservas medicinais: a língua-de-vaca, asilvina, o cipó-chumbo – toda aqueladrogaria que crescia pelos campos, pelascapoeiras, e pelos troncos de árvores. Além desse saber que a faziaestimada e respeitável, tinha também ahabilidade de assistir partos. Naredondeza, entre a gente pobre e mesmoremediada, todos os nascimentos sefaziam aos cuidados de suas luzes. Era de ver como pegava uma faca eagitava o pequeno instrumento domésticoem cruz, repetidas vezes, sobre a sede dador ou da tarefa, rezando em voz baixa,balbuciando preces que afugentavam oespírito maligno que estava ali. Contavam-se dela milagres, vitórias extraordinárias,denunciadoras do seu estranho poderquase mágico, sobre as forças ocultas,que nos perseguem ou nos auxiliam. 356

Um dos mais curiosos, e era contadoem toda a parte e a toda a hora, consistiano afastamento das lagartas. Os vermeshaviam dado num feijoal, aos milheiros,cobrindo as folhas e os colmos; oproprietário já desesperava e tinha tudopor perdido quando se lembrou dosmaravilhosos poderes de Sinhá Chica. Avelha lá foi. Pôs cruzes de gravetos pelasbordas da roça, assim como se fizesseuma cerca de invisível material que nelasse apoiasse; deixou uma extremidadeaberta e colocou-se na oposta a rezar. Nãotardou o milagre a verificar-se. Os vermes,num rebanho moroso e serpejante, comose fossem tocados pela vara de um pastor,foram saindo na sua frente, devagar, aosdous, aos quatro, aos cinco, aos dez, aosvinte, e um só não ficou. O Doutor Campos não tinhaabsolutamente nenhuma espécie de ciúmedessa rival. Armou-se de um pequenodesdém pelo poder sobre-humano damulher, mas não apelou nunca para oarsenal de leis, que vedava o exercício desua transcendente medicina. Seria aimpopularidade; ele era político... No interior, e não é preciso afastar-semuito do Rio de Janeiro, as duas 357

medicinas coexistem sem raiva e ambasatendem às necessidades mentais eeconômicas da população. A da Sinhá Chica, quase grátis, ia aoencontro da população pobre, daquela emcujos cérebros, por contágio ou herança,ainda vivem os manitus e manipansos,sujeitos a fugirem aos exorcismos,benzeduras e fumigações. A sua clientela,entretanto, não se resumia só na gentepobre da terra, ali nascida ou criada; haviamesmo recém-chegados de outros ares,italianos, portugueses e espanhóis, que sesocorriam da sua força sobrenatural, nãotanto pelo preço ou contágio das crençasambientes, mas também por aquelaestranha superstição européia de que todoo negro ou gente colorida penetra e ésagaz para descobrir as coisas malignas eexercer a feitiçaria. Enquanto a terapêutica fluídica ouherbácea de Sinhá Chica atendia aosmiseráveis, aos pobretões, a do DoutorCampos era requerida pelos mais cultos ericos, cuja evolução mental exigia amedicina regular e oficial. Às vezes, um de um grupo passavapara o outro; era nas moléstias graves, nascomplicadas, nas incuráveis, quando as 358

ervas e as rezas da milagrosa nadapodiam ou os xaropes e pílulas do doutoreram impotentes. Sinhá Chica não era lá umacompanheira muito agradável. Viviasempre mergulhada no seu sonho divino,abismada nos misteriosos poderes dosfeitiços, sentada sobre as pernascruzadas, olhos baixos, fixos, de fracobrilho, parecendo esmalte de olhos demúmia, tanto ela era encarquilhada e seca. Não esquecia também os santos, asanta madre igreja, os mandamentos, asorações ortodoxas; embora não soubesseler, era forte no catecismo e conhecia ahistória sagrada aos pedaços, aduzindo aeles interpretações suas e interpolaçõespitorescas. Com o Apolinário, o famoso capelãodas ladainhas, era ela o forte poderespiritual da terra. O vigário ficavarelegado a um papel de funcionário,espécie de oficial de registro civil,encarregado dos batizados e casamentos,pois toda a comunicação com Deus e oinvisível se fazia por intermédio de SinháChica ou do Apolinário. É de dever falarem casamento, mas bem podiam seresquecidos, porque a nossa gente pobre 359

faz uso reduzido de tal sacramento e asimples mancebia, por toda a parte,substitui a solene instituição católica. Felizardo, o marido dela, apareciapouco em casa de Quaresma; e, seaparecia, era à noite, passando os diaspelos matos com medo do recrutamento elogo que chegava indagava da mulher se obarulho já tinha acabado. Vivia num constante pavor; dormiavestido, galgando a janela eembrenhando-se na capoeira, à menorbulha ouvida. Tinham dous filhos, mas que tristezade gente! Ajuntavam à depressão moraldos pais uma pobreza de vigor físico euma indolência repugnante. Eram dousrapazes: o mais velho, José, orçava pelosvinte anos; ambos inertes, moles, semforça e sem crenças, nem mesmo a dafeitiçaria, das rezas e benzeduras, quefazia o encanto da mãe e merecia orespeito do pai. Não houve quem os fizesse aprenderqualquer cousa e os sujeitasse a umtrabalho contínuo. De quando em quando,assim de quinze em quinze dias, faziamuma talha de lenha e vendiam ao primeirotaverneiro pela metade do valor; voltavam 360

para casa alegres, satisfeitos, com umlenço de cores vivas, um vidro de água-de-colônia, um espelho, bugigangas quedenunciavam ainda neles gostos bastantesselvagens.Passavam então uma semana em casa, adormir ou perambular pelas estradas evendas; à noite, quase sempre nos dias defesta e domingos, saíam com a\"harmônica\" a tocar peças, no que eramexímios, sendo a presença deles muitorequestada nos bailes da vizinhança. Embora seus pais vivessem em casade Quaresma, raramente lá apareciam; e,se o faziam, era porque de todo nãotinham que comer. Levavam o descuido davida, a imprevidência, a ponto de nãoterem medo do recrutamento. Eram,entretanto, capazes de dedicação, delealdade e bondade, mas o trabalhocontinuado, todo o dia, repugnava-lhes ànatureza, como uma pena ou castigo. Essa atonia da nossa população, essaespécie de desânimo doentio, deindiferença nirvanesca por tudo e todas ascousas cercam de uma caligem detristreza desesperada a nossa raça e tira-lhe o encanto, a poesia e o viço sedutor deplena natureza. 361

Parece que nem um dos grandespaíses oprimidos, a Polônia, a Irlanda, aÍndia apresentará o aspecto cataléptico donosso interior. Tudo aí dorme, cochila,parece morto; naqueles há revolta, há fugapara o sonho; no nosso... Oh!... dorme-se... A ausência de Quaresma trouxerapara o seu sítio essa atmosfera geral daroça. O \"Sossego\" parecia dormir, dormirde encantamento, à espera que o príncipeo viesse despertar. Máquinas agrícolas, que não haviamainda servido, enferrujavam com a etiquetada casa. Aqueles arados de ponta de aço,que tinham chegado com a relva reluzente,de um brilho azulado e doce, estavamhediondos e morriam de tédio noabandono em que jaziam, bracejandoangustiosamente para o céu mudo. Demanhã, não se ouvia mais o cacarejar dasaves no galinheiro, o esvoaçar dospombos – todo esse hino matinal de vida,de trabalho, de fartura não mais se casavacom as auroras rosadas e com o chilreioálacre do passaredo; e ninguém sabia veras paineiras em flor; com as suas lindasflores rosadas e brancas que, a espaços,caíam docemente como aves feridas. 362

Dona Adelaide não tinha nem gostonem atividade para superintender aquelesserviços e fruir a poesia da roça. Sofriacom a separação do irmão e vivia como seestivesse na cidade. Comprava os gênerosna venda e não se incomodava com ascousas do sítio. Ansiava pela volta do irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, às quais elerespondia aconselhando calma, fazendopromessas. A última recebida, porém,tinha de sopetão outro acento; não eramais confiante, entusiástica, traíadesânimo, desalento, mesmo desespero. \"Querida Adelaide. Só agora possoresponder-te a carta que recebi há quaseduas semanas. Justamente quando ela mechegou às mãos, acabava de ser ferido,ferimento ligeiro é verdade, mas que melevou à cama e tratar-me-á umaconvalescença longa. Que combate, milhafilha! Que horror! Quando me lembro dele,passo as mãos pelos olhos como paraafastar uma visão má. Fiquei com umhorror à guerra que ninguém podeavaliar... Uma confusão, um infernal zunirde balas, chorões sinistros, imprecações –e tudo isto no seio da treva profunda danoite... Houve momentos que se 363

abandonaram as armas de fogo: batíamo-nos à baioneta, a coronhadas, a machado,a facão. Filha: um combate de trogloditas,uma cousa pré-histórica... Eu duvido, euduvido, duvido da justiça disso tudo,duvido da sua razão de ser, duvido queseja certo e necessário ir tirar do fundo denós todos a ferocidade adormecida, aquelaferocidade que se fez e se depositou emnós nos milenários combates com as feras,quando disputávamos a terra a elas... Eunão vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados commachados de sílex, sem piedade, semamor, sem sonhos generosos, a matar,sempre a matar... Este teu irmão que estásvendo também fez das suas, também foidescobrir dentro de si muita brutalidade,muita ferocidade, muita crueldade... Eumatei, minha irmã; eu matei! E nãocontente de matar, ainda descarreguei umtiro quando o inimigo arquejava a meuspés... Perdoa-me! Eu te peço perdão,porque preciso de perdão e não sei aquem pedir, a que Deus, a que homem, aalguém enfim... Não imaginas como istofaz-me sofrer... Quando caí embaixo deuma carreta, o que doía não era a ferida,era a alma, era a consciência; e Ricardo, 364

que foi ferido e caiu ao meu lado, a gemere pedir – \"capitão, meu gorro; meu gorro!\"– parecia que era o meu própriopensamento que ironizava o meu destino... Esta vida é absurda e ilógica; eu játenho medo de viver, Adelaide. Tenhomedo, porque não sabemos para ondevamos, o que faremos amanhã, de quemaneira havemos de nos contradizer desol para sol... O melhor é não agir, Adelaide; edesde que o meu dever me livre destesencargos, irei viver na quietude, naquietude mais absoluta possível, para quedo fundo de mim mesmo ou do mistériodas cousas não provoque a minha ação oaparecimento de energias estranhas àminha vontade, que mais me façam sofrere tirem o doce sabor de viver... Além do que, penso que todo estemeu sacrifício tem sido inútil. Tudo o quenele pus de pensamento não foi atingido; eo sangue que derramei, e o sofrimento quevou sofrer toda a vida foram empregados,foram gastos, foram estragados, foramvilipendiados e desmoralizados em prol deuma tolice política qualquer... Ninguém compreende o que quero,ninguém deseja penetrar e sentir; passo 365

por doido, tolo, maníaco e a vida se vaifazendo inexoravelmente com a suabrutalidade e fealdade.\"..................................................................... Como Quaresma dizia na carta, o seuferimento não era grave, era, porém,delicado e exigia tempo para uma curacompleta e sem perigos. Ricardo, este,fora ferido mais gravemente. E se osofrimento de Quaresma eraprofundamente moral, o de Coração dosOutros era físico e não se cansava degemer e imprecar contra a sorte que oarrastara até à posição de combatente. Os hospitais em que se tratavamestavam separados pela baía, agoraintransponível, exigindo a viagem de umamargem à outra bem doze horas porestrada de ferro. Tanto na ida como na volta, feridocomo estava, Quaresma passara pelaestação em que morava. O trem, porém,não parava, e ele se limitou a deitar pelaportinhola um longo e saudoso olhar paraaquele seu \"Sossego\", de terras pobres eárvores velhas, onde sonhara repousar 366

calmamente por toda a vida; e, entretanto,o lançara na mais terrível das aventuras. E ele perguntava de si para si, onde,na terra, estava o verdadeiro sossego,onde se poderia encontrar esse repousode alma e corpo, pelo qual tanto ansiava,depois dos sacolejamentos por que vinhapassando – onde? E o mapa doscontinentes, as cartas dos países, asplantas das cidades, passavam-lhe pelosolhos e não viu, não encontrou um país,uma província, uma cidade, uma rua ondeo houvesse. A sua sensação era de fadiga, nãofísica, mas moral e intelectual. Tinhavontade de não mais pensar, de não maisamar; queria, contudo, viver, por prazerfísico, pela sensação material pura esimples de viver. Assim, convalesceu longamente,demoradamente, melancolicamente, semuma visita, sem ver uma face amiga. Coleoni e família se haviam retiradopara fora; o general, por preguiça edesleixo, não viera vê-lo. Vivia só,envolvido na suavidade da convalescença,a pensar no Destino, na sua vida, nasidéias e mais que tudo nas suasdesilusões. 367

Entretanto, a revolta na baía chegavaao fim; toda a gente já pressentia isso equeria esse alívio. O almirante e Albernaz, ambos pelosmesmos motivos, observavam esse fimcom tristeza. O primeiro via fugir o seusonho de comandar uma esquadra e aconseqüente volta para o quadro; e ogeneral sentia perder a sua comissão,cujos rendimentos faziam de forma tãonotável melhorar a situação da família. Naquela manhã, bem cedo, DonaMaricota acordara o marido: – Chico, levanta-te! Olha que tens queir à missa do Senador Clarimundo... Ouvindo a recomendação da mulher,Albernaz ergueu-se logo do leito. Erapreciso não faltar. A sua presença seimpunha e significava muito. Clarimundofora um republicano histórico, agitador,tribuno temido, no tempo do Império; apósa República, porém, não apresentara aosseus pares do Senado nada de útil ebenfazejo. Embora assim, a sua influênciaficara sendo grande; e, com diversosoutros, era chamado patriarca daRepública. Há nos próceres republicanosuma necessidade extraordinária de seremgloriosos e não esquecidos pelo futuro, a 368

que eles se recomendam com teimosointeresse. Clarimundo era um desses próceres e,durante a comoção, não se sabia bem porquê, o seu prestígio cresceu e já se falavanele para substituir o marechal. Albernazconhecera-o vagamente, mas assistir asua missa era quase uma afirmaçãopolítica. A dor da morte da filha já se esvaíramuito na sua memória. O que o fazia sofrerera aquela semivida da moça, mergulhadana loucura e na moléstia. A morte tem avirtude de ser brusca, de chocar, mas nãocorroer, como essas moléstias duradourasnas pessoas amadas; passado que é ochoque vai ficando em nós uma suaverecordação do ente querido, uma boafisionomia sempre presente aos nossosolhos. Dava-se isso com Albernaz e a suasatisfação de viver e a sua jovialidadenatural foram voltando insensivelmente. Obediente à mulher, preparou-se,vestiu-se e saiu. Conquanto se estivesseainda em plena revolta, esses ofíciosfúnebres se faziam nas igrejas do centroda cidade. O general chegou a tempo e àhora. Havia uniformes e cartolas e todos 369

se comprimiam para assinar as listas depresença. Não tanto que quisessematestar à família do morto esse atodelicado; dominava-os, além disso, aesperança de ter os nomes nos jornais. Albernaz não deixou de atirar-setambém a uma das listas que andavampelas mesas da sacristia; e, quando iaassinar, alguém lhe falou. Era o almirante.A missa ia começar, mas ambos evitaramentrar na nave cheia, e ficaram a um vãoda janela, na sacristia, conversando. – Então acaba breve, hein? – Dizem que a esquadra já saiu dePernambuco. Fora Caldas quem falara primeiro e aresposta do general fê-lo sorrir irônicodizendo: – Enfim... – A baía está cercada de canhões,continuou o general, após uma pausa, e omarechal vai intimá-los a renderem-se. – Já era tempo, fez Caldas... Comigo,a cousa já estava acabada... levar quasesete meses para dar cabo de unscalhambeques! ... – Você exagera, Caldas; a cousa nãoera tão fácil assim... E o mar? 370

– Que fez, a esquadra tanto tempo noRecife, você não me dirá? Ah! Se fossecom este seu criado, tinha logo partido eatacado... Sou pelas decisões prontas... O padre, no interior da igreja,continuava a pedir a Deus repouso para aalma do Senador Clarimundo. O místicocheiro de incenso vinha até eles e o votivoperfume, votivo ao Deus da paz e dabondade, não os demovia dos seuspensamentos guerreiros. – Entre nós, aduziu Caldas, não hámais gente que preste... Isto é um paísperdido, acaba colônia inglesa... Coçou nervoso um dos favoritos eesteve um instante a olhar o ladrilho dochão. Albernaz avançou, meio sarcástico: – Agora não; agora a autoridade estáprestigiada, consolidada, e uma era deprogresso vai abrir-se para o Brasil. – Qual o quê! Onde é que você viu umgoverno... – Mais baixo, Caldas! – ...onde é que se viu um governo quenão aproveita as aptidões, abandona-as,deixa-as por aí vegetar?... Dá-se o mesmocom as nossas riquezas naturais: jazempor aí à toa! 371

A sineta soou e olharam um pouco anave cheia. Pela porta, via-se uma porçãode homens, todos de negro, ajoelhados,contritos, batendo nos peitos, a confessarde si para si: mea culpa, mea maximaculpa... Uma réstia de sol coava-se por umadas aberturas do alto e resplandecia sobrealgumas cabeças. Insensivelmente, os dous, na sacristia,levaram a mão ao peito e confessaramtambém: mea culpa, mea maxima culpa... A missa veio a acabar e ambosentraram para o abraço da pragmática. Anave rescendia a incenso e tinha umaspecto tranqüilo de imortalidade. Todos tinham um grande ar decompunção: amigos, parentes, conhecidose desconhecidos pareciam sofrerigualmente. Albernaz e Caldas, logo quepenetraram no corpo da igreja, apanharamno ar um sentimento profundo eafivelaram-no ao rosto. Genelício também viera; ele tinha ovício das missas das pessoas importantes,dos cartões de pêsames, doscumprimentos em dias de aniversário.Temendo que a memória não lheajudasse, possuía um caderninho onde as 372

datas aniversárias estavam assentadas eas residências também. O índice eraorganizado com muito cuidado. Não haviasogra, prima, tia, cunhada, de homemimportante que, em dia de aniversário, nãorecebesse os seus parabéns, e, por morte,não o levasse à igreja em missa de sétimodia. O seu traje de luto era de panogrosso, pesado; e, olhando-o, lembrava-nos logo de um castigo dantesco. Na rua, Genelício escovava a cartolacom a manga da sobrecasaca e dizia aosogro e ao almirante: – A cousa está pra acabar!... Breve... – E se resistirem? perguntou ogeneral. – Qual! Não resistem. Corre que jápropuseram rendição... É preciso arranjaruma manifestação ao marechal... – Não acredito, fez o almirante.Conheço muito o Saldanha, é orgulhoso enão se entrega assim... Genelício ficou um pouco assustadocom a entonação da voz do seu parente;teve medo que ele falasse mais alto, dessena vista e o comprometesse. Calou-se;Albernaz, porém, avançou: 373

– Não há orgulho que resista a umaesquadra mais forte. – Forte! Uns calhambeques, homem! Caldas continha a custo a fúria que lheia n'alma. O céu estava azul e calmo.Havia nele nuvens brancas, leves,esgarçadas, que se moviam lentamente,como velas, naquele mar infinito. Genelícioolhou-o um pouco e aconselhou: – Almirante não fale assim... Olheque... – Qual! Não tenho medo...Porcarias! ... – Bom, fez Genelício, eu tenho que irà Rua Primeiro de Março e... Despediu-se e saiu com o seu traje dechumbo, curvado, olhando o chão com oseu pince-nez azulado, palmilhando a ruacom passo miúdo e cauteloso. Albernaz e Caldas ainda estiveramconversando um tempo e se despediramsempre amigos, cada um com o seudesgosto e a sua decepção. Tinham razão: a revolta veio a acabardaí a dias. A esquadra legal entrou; osoficiais revoltosos se refugiaram nosnavios de guerra portugueses e oMarechal Floriano ficou senhor da baía. 374

No dia da entrada, acreditando quehouvesse canhoneio, uma grande parte dapopulação abandonou a cidade,refugiando-se nos subúrbios, por baixo dasárvores, na casa de amigos ou nosgalpões construídos adrede pelo Estado. Era de ver o terror que se estampavanaquelas fisionomias, a ânsia e a angústiatambém. Levavam trouxas, samburás,pequenas malas; crianças de peito, achorar, o papagaio querido, o cachorro deestimação, o passarinho que de há muitoquebrava a tristeza de uma casa pobre. O que mais metia medo era o famosocanhão de dinamite, do \"Niterói\", umaespalhafatosa invenção americana,instrumento terrível, capaz de causarterremotos e de abalar os fundamentosdas montanhas graníticas do Rio. As crianças e as mulheres, mesmofora do alcance de seu poder, temiam ouviro seu estrondo; entretanto, esse fantasmayankee, esse pesadelo, essa quase forçada natureza, foi morrer abandonado numcais, desprezado e inofensivo. O fim do levante foi um alívio; a cousajá estava ficando monótona e o marechalganhou feições sobre-humanas com avitória. 375

Quaresma teve alta por esse tempo; euma ala de seu batalhão foi destacadapara guarnecer a ilha das Enxadas.Inocêncio Bustamente continuava asuperintender o corpo com muito zelo, dointerior do seu gabinete, na estalagemcondenada que lhe servia de quartel. Aescrituração estava em dia e era feita coma melhor letra. Policarpo aceitou com repugnância opapel de carcereiro, pois na ilha dasEnxadas estavam depositados osmarinheiros prisioneiros. Os seustormentos d'alma mais cresceram com oexercício de tal função. Quase os nãoolhava; tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre eles um conhecia o segredode sua consciência. De resto, todo o sistema de idéias queo fizera meter-se na guerra civil se tinhadesmoronado. Não encontrara o Sully emuito menos o Henrique IV. Sentiatambém que o seu pensamento motriz nãoresidia em nenhuma das pessoas queencontrara. Todos tinham vindo ou compueris pensamentos políticos, ou porinteresse; nada de superior os animava.Mesmo entre os moços, que eram muitos,se não havia baixo interesse, existia uma 376

adoração fetíchica pela forma republicana,um exagero das virtudes dela, um pendorpara o despotismo que os seus estudos emeditações não podiam achar justo. Eragrande a sua desilusão. Os prisioneiros se amontoavam nasantigas salas de aulas e alojamentos dosaspirantes. Havia simples marinheiros;havia inferiores; havia escreventes eoperários de bordo. Brancos, pretos,mulatos, caboclos, gente de todas as corese todos os sentimentos, gente que se tinhametido em tal aventura pelo hábito deobedecer, gente inteiramente estranha àquestão em debate, gente arrancada àforça aos lares ou à calaçaria das ruas,pequeninos, tenros, ou que se haviamalistado por miséria; gente ignara, simples,às vezes cruel e pervesa como criançasinconscientes; às vezes, boa e dócil comoum cordeiro, mas, enfim, gente semresponsabilidade, sem anseio político, semvontade própria, simples autômatos nasmãos dos chefes e superiores que atinham abandonado à mercê do vencedor. De tarde, ele ficava a passear,olhando o mar. A viração soprava ainda eas gaivotas continuavam a pescar. Osbarcos passavam. Ora eram lanchas 377

fumarentas que lá iam para o fundo dabaía; ora pequenos botes ou canoas,roçando carinhosamente a superfície daságuas, pendendo para lá e para cá, comose as suas alvas velas enfunadasquisessem afagar a espelhenta superfíciedo abismo. Os Órgãos vinham suavementemorrendo na violeta macia; e o resto eraazul, um azul imaterial que inebriava,embriagava, como um licor capitoso. Ficava assim um tempo longo, a ver, equando se voltava, olhava a cidade queentrava na sombra, aos beijos sangrentosdo ocaso. A noite chegava e Quaresmacontinuava a passear na borda do mar,meditando, pensando, sofrendo comaquelas lembranças de ódios, desangueiras e ferocidade. A sociedade e a vida pareceram-lhecousas horrorosas, e imaginou que doexemplo delas vinham os crimes queaquela punia, castigava e procuravarestringir. Eram negras e desesperadas, assuas idéias; muita vez julgou que delirava. E então se lamentava por estarsozinho, por não ter um companheiro comquem conversar, que lhe fizesse fugiràqueles tristes pensamentos que o 378

assediavam e se estavam transformandoem obsessão. Ricardo estava de guarnição na ilhadas Cobras; e, mesmo que ali estivesse,os rigores da disciplina não lhe permitiriamuma conversa mais amigável. Vinha anoite inteiramente, e o silêncio e a trevaenvolviam tudo. Quaresma ainda ficava horas ao arlivre a pensar, olhando o fundo da baía,onde quase não havia luzes queinterrompessem a continuidade do negrornoturno. Fixava bem os olhos para lá, como seos quisesse habituar a penetrar nascousas indecifráveis e adivinhar dentro dasombra negra a forma das montanhas, orecorte das ilhas que a noite tinha feitodesaparecer. Fatigado, ia dormir. Nem sempredormia bem; tinha insônia e, se queria ler,a atenção recusava fixar-se e opensamento vagabundava muito longe dolivro. Certa noite em que ia dormindomelhor, um inferior veio acordá-lo pelamadrugada: – Senhor major, está aí o \"home\" doItamarati. 379

– Que homem? – O oficial que vem buscar a turma doBoqueirão. Sem atinar bem do que se tratava,levantou-se e foi ao encontro do visitante.O homem já estava no interior de um dosalojamentos. Uma escolta estava à porta.Seguiam-se algumas praças, das quaisuma levava uma lanterna que derramavano salão uma fraca luzerna amarelada. Avasta sala estava cheia de corpos,deitados, seminus, e havia todo o íris dascores humanas. Uns roncavam, outrosdormiam somente; e, quando Quaresmaentrou, houve alguém que em sonhogemeu – ai! Cumprimentaram-se,Quaresma e o emissário do Itamarati, enada disseram. Ambos tiveram medo defalar. O oficial despertou um dosprisioneiros e disse para as praças:\"Levem este.\" Seguiu adiante e despertou outro: –\"Onde você esteve?\" \"Eu\" – respondeu omarinheiro – \"na 'Guanabara'\"... \"Ah!patife\" acudiu o homem do Itamarati...\"Este também... Levem!\"... Os soldados condutores iam até àporta, deixavam o prisioneiro e voltavam. 380

O oficial passou por uma porção delese não fez reparo; adiante, deu com umrapaz claro, franzino, que não dormia.Gritou então: \"Levante-se!\" O rapazergueu-se tremendo – \"Onde estevevocê?\" perguntou – \"Eu era enfermeiro\",retrucou o rapaz. – \"Que enfermeiro!\" fez oemissário. \"Levem este também\"... – Mas, \"seu\" tenente, deixe-meescrever à minha mãe, pediu o rapazquase chorando. – Que mãe! respondeu o homem doItamarati. Siga! Vá! E assim foi uma dúzia, escolhida aesmo, ao acaso, cercada pela escolta, aembarcar num batelão que uma lanchalogo rebocou para fora das águas da ilha. Quaresma não atinou de pronto com osentido da cena e foi após o afastamentoda lancha que ele encontrou umaexplicação. Não deixou de pensar então por queforça misteriosa, por que injunção irônicaele se tinha misturado em tão tenebrososacontecimentos, assistindo ao sinistroalicerçar do regime... A embarcação não ia longe. O margemia demoradamente de encontro àspedras do cais. A esteira da embarcação 381

estrelejava fosforescente. No alto, num céunegro e profundo, as estrelas brilhavamserenamente. A lancha desapareceu nas trevas dofundo da baía. Para onde ia? Para oBoqueirão... *** 382

V A Afilhada Como lhe parecia ilógico com elemesmo estar ali metido naquele estreitocalabouço. Pois ele, o Quaresma plácido,o Quaresma de tão profundospensamentos patrióticos, merecia aqueletriste fim? De que maneira sorrateira oDestino o arrastara até ali, sem que elepudesse pressentir o seu extravagantepropósito, tão aparentemente sem relaçãocom o resto da sua vida? Teria sido elecom os seus atos passados, com as suasações encadeadas no tempo, que fizeracom que aquele velho deus docilmente otrouxesse até à execução de tal desígnio?Ou teriam sido os fatos externos quevenceram a ele, Quaresma, e fizeram-noescravo da sentença da onipotentedivindade? Ele não sabia, e, quandoteimava em pensar, as duas cousas sebaralhavam, se emaranhavam e aconclusão certa e exata lhe fugia. Não estava ali há muitas horas. Forapreso pela manhã, logo ao erguer-se dacama; e, pelo cálculo aproximado dotempo, pois estava sem relógio e mesmo 383

se o tivesse não poderia consultá-lo àfraca luz da masmorra, imaginava podiamser onze horas.Por que estava preso? Ao certo nãosabia; o oficial que o conduzira nada lhequisera dizer; e, desde que saíra da ilhadas Enxadas para a das Cobras, nãotrocara palavra com ninguém, não viranenhum conhecido no caminho, nem opróprio Ricardo que lhe podia, com umolhar, com um gesto, trazer sossego àssuas dúvidas. Entretanto, ele atribuía aprisão à carta que escrevera aopresidente, protestando contra a cena quepresenciara na véspera.Não se pudera conter. Aquela leva dedesgraçados a sair assim, a desoras,escolhidos a esmo, para uma carniçariadistante, falara fundo a todos os seussentimentos; pusera diante dos seus olhostodos os seus princípios morais; desafiaraa sua coragem moral e a sua solidariedadehumana; e ele escrevera a carta comveemência, com paixão, indignado. Nadaomitiu do seu pensamento; falou claro,franca e nitidamente.Devia ser por isso que ele estava alinaquela masmorra, engaiolado,trancafiado, isolado dos seus semelhantes 384

como uma fera, como um criminoso,sepultado na treva, sofrendo umidade,misturado com os seus detritos, quasesem comer... Como acabarei? Comoacabarei? E a pergunta lhe vinha, no meioda revoada de pensamentos que aquelaangústia provocava pensar. Não haviabase para qualquer hipótese. Era deconduta tão irregular e incerta o Governoque tudo ele podia esperar: a liberdade oua morte, mais esta que aquela. O tempo estava de morte, decarnificina; todos tinham sede de matar,para afirmar mais a vitória e senti-la bemna consciência cousa sua, própria, ealtamente honrosa. Iria morrer, quem sabe se naquelanoite mesmo? E que tinha ele feito de suavida? Nada. Levara toda ela atrás damiragem de estudar a pátria, por amá-la equerê-la muito, no intuito de contribuir paraa sua felicidade e prosperidade. Gastarasua mocidade nisso, a sua virilidadetambém; e, agora que estava na velhice,como ela o recompensava, como ela opremiava, como ela o condecorava?Matando-o. E o que não deixara de ver, degozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Nãobrincara, não pandegara, não amara – 385

todo esse lado da existência que parecefugir um pouco à sua tristeza necessária,ele não vira, ele não provara, ele nãoexperimentara. Desde dezoito anos que o talpatriotismo lhe absorvia e por ele fizera atolice de estudar inutilidades. Que lheimportavam os rios? Eram grandes? Poisque fossem... Em que lhe contribuiria paraa felicidade saber o nome dos heróis doBrasil? Em nada... O importante é que eletivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-sedas suas cousas de tupi, do folk-lore, dassuas tentativas agrícolas... Restava dissotudo em sua alma uma satisfação?Nenhuma! Nenhuma! O tupi encontrou a incredulidade geral,o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o àloucura. Uma decepção. E a agricultura?Nada. As terras não eram ferazes e elanão era fácil como diziam os livros. Outradecepção. E, quando o seu patriotismo sefizera combatente, o que achara?Decepções. Onde estava a doçura denossa gente? Pois ele não a viu combatercomo feras? Pois não a via matarprisioneiros, inúmeros? Outra decepção. Asua vida era uma decepção, uma série,melhor, um encadeamento de decepções. 386

A pátria que quisera ter era um mito;era um fantasma criado por ele no silênciodo seu gabinete. Nem a física, nem amoral, nem a intelectual, nem a políticaque julgava existir, havia. A que existia defato era a do Tenente Antonino, a doDoutor Campos, a do homem do Itamarati. E, bem pensando, mesmo na suapureza, o que vinha a ser a Pátria? Nãoteria levado toda a sua vida norteado poruma ilusão, por uma idéia a menos, sembase, sem apoio, por um Deus ou umadeusa cujo império se esvaía? Não sabiaque essa idéia nascera da amplificação dacrendice dos povos greco-romanos de queos ancestrais mortos continuariam a vivercomo sombras e era preciso alimentá-laspara que eles não perseguissem osdescendentes? Lembrou-se do seu Fustelde Coulanges... Lembrou-se de que essanoção nada é para a Menenanã, paratantas pessoas... Pareceu-lhe que essaidéia como que fora explorada pelosconquistadores por instantes sabedoresdas nossas subserviências psicológicas,no intuito de servir às suas própriasambições. Reviu a história; viu as mutilações, osacréscimos em todos os países históricos 387

e perguntou de si para si: como umhomem que vivesse quatro séculos, sendofrancês, inglês, italiano, alemão, podiasentir a Pátria? Uma hora, para o francês, o Franco-Condado era terra dos seus avós, outranão era; num dado momento, a Alsácianão era, depois era e afinal não vinha aser. Nós mesmos não tivemos a Cisplatinae não a perdemos; e, porventura, sentimosque haja lá manes dos nossos avós e porisso sofremos qualquer mágoa? Certamente era uma noção semconsistência racional e precisava serrevista. Mas, como é que ele tão sereno, tãolúcido, empregara sua vida, gastara o seutempo, envelhecera atrás de tal quimera?Como é que não viu nitidamente arealidade, não a pressentiu logo e sedeixou enganar por um falaz ídolo,absorver-se nele, dar-lhe em holocaustotoda a sua existência? Foi o seuisolamento, o seu esquecimento de simesmo; e assim é que ia para a cova, semdeixar traço seu, sem um filho, sem umamor, sem um beijo mais quente, sem 388

nenhum mesmo, e sem sequer umaasneira! Nada deixava que afirmasse a suapassagem e a terra não lhe dera nada desaboroso. Contudo, quem sabe se os outros quelhe seguissem as pegadas não seriammais felizes? E logo respondeu a simesmo: mas como? Se não se fizeracomunicar, se nada dissera e nãoprendera o seu sonho, dando-lhe corpo esubstância? E esse seguimento adiantaria algumacoisa? E essa continuidade traria enfimpara a terra alguma felicidade? Há quantosanos vidas mais valiosas que a dele sevinham oferecendo, sacrificando e ascousas ficaram na mesma, a terra namesma miséria, na mesma opressão, namesma tristeza. E ele se lembrava que há bem cemanos, ali, naquele mesmo lugar ondeestava, talvez naquela mesma prisão,homens generosos e ilustres estiverampresos por quererem melhorar o estado decousas de seu tempo. Talvez só tivessempensado, mas sofreram pelo seupensamento. Tinha havido vantagem? Ascondições gerais tinham melhorado? 389

Aparentemente sim; mas, bem examinado,não. Aqueles homens, acusados de crimetão nefando em face da legislação daépoca, tinham levado dous anos a serjulgados; e ele, que não tinha crime algum,nem era ouvido, nem era julgado: seriasimplesmente executado! Fora bom, fora generoso, forahonesto, fora virtuoso – ele que fora tudoisso, ia para a cova sem acompanhamentode um parente, de um amigo, de umcamarada... Onde estariam eles? Sobre o RicardoCoração dos Outros, tão simples, e tãoinocente na sua mania de violão, ele nãoporia mais os olhos? Era tão bom que opudesse, para mandar à sua irmã o últimorecado, ao preto Anastácio um adeus, àsua afilhada um abraço! Nunca mais osveria, nunca! E ele chorou um pouco. Quaresma, porém, enganava-se emparte. Ricardo soubera de sua prisão eprocurava soltá-lo. Teve notícia do exatomotivo dela; mas não se intimidou. Sabiaperfeitamente que corria grande risco, poisa indignação no palácio contra Quaresmafora geral. A vitória tinha feito os vitoriosos 390

inclementes e ferozes, e aquele protestosoou entre eles como um desejo dediminuir o valor das vantagens alcançadas.Não havia mais piedade, não havia maissimpatia, nem respeito pela vida humana;o que era necessário era dar o exemplo deum massacre à turca, porém clandestino,para que jamais o poder constituído fosseatacado ou mesmo discutido. Era afilosofia social da época, com forças dereligião, com os seus fanáticos, com osseus sacerdotes e pregadores, e ela agiacom a maldade de uma crença forte, sobrea qual fizéssemos repousar a felicidade demuitos. Ricardo, entretanto, não seamedrontou; procurou influências deamigos. Ao entrar no Largo de SãoFrancisco encontrou Genelício. Vinha damissa da irmã da sogra do DeputadoCastro. Como sempre, trajava uma pesadasobrecasaca preta que parecia de chumbo.Já estava subdiretor e o seu trabalho eraagora imaginar meios e modos de serdiretor. A cousa era difícil; mas trabalhavanum livro: Os Tribunais de Contas nosPaíses Asiáticos – o qual, demonstrandouma erudição superior, talvez lhe levasseao alto lugar cobiçado. 391

Vendo-o, Ricardo não se deteve.Correu-lhe ao encalço e falou-lhe: – Doutor, Vossa Excelência dá licençaque lhe dê uma palavra? Genelício perfilou-se todo e, comotivesse péssima memória das fisionomiashumildes, perguntou com solenidade earrogância: – Que deseja, camarada? Coração dos Outros estava com a suafarda do \"Cruzeiro do Sul\" e não ficavabem a Genelício dar-se como conhecidode soldado. O trovador julgou-o mesmoesquecido e indagou ingenuamente: – Não me conhece mais, doutor? Genelício fechou um pouco os olhospor detrás do pince-nez azulado e dissesecamente: – Não. – Eu, fez com humildade Ricardo, souRicardo Coração dos Outros, que cantouno seu casamento. Genelício não sorriu, não deu mostrasde alegria e limitou-se: – Ah! É o senhor! Bem: que deseja? – O senhor não sabe que o majorQuaresma está preso? – Quem é? – Aquele que foi vizinho do seu sogro. 392

– Aquele maluco... Ahn!... E daí? – Eu queria que o senhor seinteressasse... – Não me meto nessas cousas, meuamigo. O governo tem sempre razão.Passe bem. E Genelício seguiu com o seu passocauteloso de quem poupa as solas dasbotas, enquanto Ricardo ficava de pé aolhar o largo, a gente que passava, aestátua imóvel, as casas feias, a igreja...Tudo lhe pareceu hostil, mau ouindiferente; aquelas caras de homenstinham cataduras de feras e ele quis porum momento chorar de desespero por nãopoder salvar o amigo. Lembrou-se, porém, de Albernaz, ecorreu a procurá-lo. Não era longe, mas ogeneral ainda não tinha chegado. Ao fimde uma hora o general chegou e, dandocom Ricardo, perguntou: – Que há? O trovador, bastante emocionado,explicou-lhe com voz dorida todo o fato.Albernaz concertou o pince-nez, ajeitoubem o trancelim de ouro na orelha e dissecom doçura: – Meu filho, eu não posso... Vocêsabe; sou governista e parece, se eu for 393

pedir por um preso, que já não o soubastante... Sinto muito, mas... que se háde fazer? Paciência. E entrou para o seu gabineteprazenteiro, muito seguro de si, dentro doseu plácido uniforme de general. Os oficiais continuavam a entrar e asair; as campainhas soavam; os contínuosiam e vinham; e Ricardo procurava entretodas aquelas fisionomias uma que lhepudesse valer. Não havia e eledesesperava. Mas quem havia de ser?Quem? Lembrou-se: o comandante; e foiter com o Coronel Bustamante, na velhaestalagem que servia de quartel aogarboso \"Cruzeiro do Sul\". O batalhão ainda continuava em pé deguerra. Embora terminada a revolta noporto do Rio de Janeiro era precisomandar forças para o Sul; de forma que osbatalhões não tinham sido dissolvidos eum dos apontados para partir era o\"Cruzeiro\". O alferes coxo, no ensaboado pátio daantiga estalagem, continuava na sua fainade instrutor dos novos recrutas. Om –brôôô... armas! Mei – ãã volta! Ricardo entrou, subiu rapidamente aoscilante escada do velho cortiço e logo 394

que chegou ao cubículo do comandante,gritou: \"Com licença, comandante!\" Bustamante andava de mau humor.Aquele negócio de partir para o Paranánão lhe agradava. Como é que havia desuperintender a escrita do batalhão, nofervor de batalhas, nas desordens demarchas e contramarchas? Isso era umatolice do comandante marchar; o chefedevia ficar a resguardo, para providenciare dirigir a escrituração. Ele pensava nessas cousas, quandoRicardo pediu licença. – Entre, disse ele. O bravo coronel coçava a grandebarba mosaica, tinha o dólmã desabotoadoe acabava de calçar um dos pés de botina,para com mais decência receber o inferior. Ricardo expôs o seu pedido e esperoucom paciência a resposta, que custou a vir.Por fim, Inocêncio disse, sacudindo acabeça e olhando o inferior cheio deseveridade: – Vai-te embora, senão mando-teprender! Já! E apontou com o dedo a porta dasaída num gesto marcial e enérgico. Ocabo não se demorou mais. No pátio oinstrutor coxo, veterano do Paraguai, 395

continuava com solenidade a encher aarruinada estalagem com as suas vozesde comando: Om-brôôô... armas! Meia-ãã... volta... volver! Ricardo veio andando triste edesalentado. O mundo lhe parecia vaziode afeto e de amor. Ele que sempredecantara nas suas modinhas adedicação, o amor, as simpatias, via agoraque tais sentimentos não existiam. Tinhamarchado atrás de cousas fora darealidade, de quimeras. Olhou o céu alto.Estava tranqüilo e calmo. Olhou asárvores. As palmeiras cresciam comorgulho e titanicamente pretendiam atingiro céu. Olhou as casas, as igrejas, ospalácios e lembrou-se das guerras, dosangue, das dores que tudo aquilo custara.E era assim que se fazia a vida, a históriae o heroísmo: com violência sobre osoutros, com opressões e sofrimentos. Logo, porém, recordou que era precisosalvar o amigo e que era necessário darmais uns passos. Quem poderia?Consultou sua memória. Viu um, viu outroe por fim lembrou-se da afilhada deQuaresma, e foi procurá-la na RealGrandeza. 396

Chegou, narrou-lhe o fato e as suassinistras apreensões. Ela estava só, pois omarido cada vez mais trabalhava paraaproveitar os despojos da vitória; nãoperdia um minuto, andando atrás de um ede outro. Olga lembrou-se bem do padrinho, doseu eterno sonhar, da sua ternura, datenacidade que punha em seguir as suasidéias, da sua candura de donzelaromântica... Durante um instante uma grande penatomou-a toda inteira e tirou-lhe a vontadede agir. Pareceu-lhe que era bastante asua piedade e ela ia de algum modo darlenitivo ao sofrimento do padrinho; masbem cedo o viu ensangüentado – ele, tãogeneroso, ele, tão bom, e pensou emsalvá-lo. – Mas que fazer, meu caro SenhorRicardo, que fazer? Eu não conheçoninguém... Eu não tenho relações...Minhas amigas... A Alice, a mulher doDoutor Brandão, está fora... A Cassilda, afilha do Castrioto, não pode... Não sei, meuDeus! E acentuou estas últimas palavrascom grande e lancinante desespero. Osdous ficaram calados. A moça, que estava 397

sentada, tomou a cabeça entre as mãos eas suas unhas longas e aperoladasengastaram-se nos seus cabelos negros.Ricardo estava de pé e aparvalhado. – Que hei de fazer, meu Deus? repetiuela. Pela primeira vez, ela sentiu que avida tinha cousas desesperadoras.Possuía a mais forte disposição de salvarseu padrinho; faria sacrifício de tudo, masera impossível, impossível! Não havia ummeio; não havia um caminho. Ele tinha queir para o posto de suplício, tinha que subiro seu Calvário, sem esperança deressurreição. – Talvez seu marido, disse Ricardo. Pensou um pouco, demorou-se maisno exame do caráter do esposo; mas, embreve, viu bem que o seu egoísmo, a suaambição e sua ferocidade interesseira nãopermitiriam que ele desse o mínimo passo. – Qual, esse... Ricardo não sabia o que aconselhá-lae olhava sem pensamentos os móveis e amontanha negra e alta que se avistava dasala onde estavam. Queria encontrar umalvitre, um conselho; mas nada! A moça continuava a cravar os dedosnos seus cabelos negros e a olhar a mesa 398

em que repousavam os seus cotovelos. Osilêncio era augusto. Num dado momento, Ricardo teveuma grande alegria no olhar e disse: – Se a senhora fosse lá... Ela levantou a cabeça; os seus olhosse dilataram de espanto e o rosto lhe ficourígido. Pensou um pouco, um nada, e faloucom firmeza: – Vou. Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foivestir-se. Ele então pensou com admiraçãonaquela moça que por simples amizade sedava a tão arriscado sacrifício, que tinha aalma tão ao alcance dela mesma e asentiu bem longe desse nosso mundo,deste nosso egoísmo, dessa nossabaixeza e cobriu a sua imagem com umgrande olhar de reconhecimento. Não tardou que ela ficasse pronta eainda abotoava as luvas, na sala de jantar,quando o marido entrou. Vinha radiante,com os seus grandes bigodes e o seurosto redondo cheio de satisfação de simesmo. Nem fez menção de ter vistoRicardo e foi logo direto à mulher: – Vais sair? 399

Ela, afogueada pela ânsiadesesperada de salvar Quaresma, dissecom certa vivacidade: – Vou. Armando ficou admirado de vê-la falardaquele modo. Voltou-se um instante paraRicardo, quis interrogá-lo, mas logo,dirigindo-se à mulher, perguntou comautoridade: – Onde vais? A mulher não lhe respondeu logo e,por sua vez, o doutor interrogou o trovador: – Que faz o senhor aqui? Coração dos Outros não teve ânimode responder; adivinhava uma cenaviolenta que ele teria querido evitar, masOlga adiantou-se: – Vai acompanhar-me ao Itamarati,para salvar da morte meu padrinho. Jásabe? O marido pareceu acalmar-se.Acreditou que, com meios suasórios,poderia evitar que a mulher desse passotão perigoso para os seus interesses eambições. Falou docemente: – Fazes mal. – Por quê? perguntou ela com calor. – Vais comprometer-se. Sabes que... 400


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