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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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– Ainda não. Faltam oito dias ainda. E logo a irmã acrescentava: – Tua afilhada deve casar-se sábado,tu não vais? – Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... mando um leitão e um peru. – Ora, tu! Que presente! – Que é que tem? É da tradição. Justamente estavam nesse dia assima conversar os dous irmãos na sala dejantar da velha casa roceira, quandoAnastácio veio avisar-lhe que se achavaum cavalheiro na porteira. Desde que ali se instalara, nenhumavisita batera à porta de Quaresma, a nãoser a gente pobre do lugar, a pedir isso ouaquilo, esmolando disfarçadamente. Elemesmo não travara conhecimento comninguém, de modo que foi com surpresaque recebeu o aviso do velho preto. Apressou-se em ir receber o visitantena sala principal. Ele já subia a pequenaescada da frente e penetrava pela varandaadentro. – Boas-tardes, major. – Boas-tardes. Faça o favor de entrar. O desconhecido entrou e sentou-se.Era um tipo comum, mas o que havia nelede estranho era a gordura. Não era 151

desmedida ou grotesca, mas tinha umaspecto desonesto. Parecia que a fizera derepente e comia, a mais não poder, commedo de a perder de um dia para outro.Era assim como a de um lagarto queentesoura enxúndia para o inverno ingrato.Através da gordura de suas bochechas,via-se perfeitamente a sua magrezanatural, normal, e se devia ser gordo nãoera naquela idade, com pouco mais detrinta anos, sem dar tempo que todo eleengordasse; porque, se as duas faceseram gordas, as suas mãos continuavammagras com longos dedos fusiformes eágeis. O visitante falou: – Eu sou o Tenente Antonino Dutra,escrivão da coletoria... – Alguma formalidade? indagoumedroso Quaresma. – Nenhuma, major. Já sabemos quemo senhor é; não há novidade nemnenhuma exigência legal. O escrivão tossiu, tirou um cigarro,ofereceu outro a Quaresma e continuou: – Sabendo que o major vemestabelecer-se aqui, tomei a iniciativa devir incomodá-lo... Não é cousa deimportância... Creio que o major... – Oh! Por Deus, tenente! 152

– Venho pedir-lhe um pequeno auxílio,um óbulo, para a festa da Conceição, anossa padroeira, de cuja irmandade soutesoureiro. – Perfeitamente. É muito justo. Apesarde não ser religioso, estou... – Uma cousa nada tem com a outra. Éuma tradição do lugar que devemosmanter. – É justo. – O senhor sabe, continuou oescrivão, a gente daqui é muito pobre e airmandade também, de forma que somosobrigados a apelar para a boa vontade dosmoradores mais remediados. Desde já,portanto, major... – Não. Espere um pouco... – Oh! major, não se incomode. Não épara já. Enxugou o suor, guardou o lenço,olhou um pouco lá fora e acrescentou: – Que calor! Um verão como estenunca vi aqui. Tem-se dado bem, major? – Muito bem. – Pretende dedicar-se à agricultura? – Pretendo, e foi mesmo por isso quevim para a roça. – Isto hoje não presta, mas noutrotempo!... Este sítio já foi uma lindeza, 153

major! Quanta fruta! Quanta farinha! Asterras estão cansadas e... – Qual cansadas, Seu Antonino! Nãohá terras cansadas... A Europa é cultivadahá milhares de anos, entretanto... – Mas lá se trabalha. – Por que não se há de trabalhar aquitambém? – Lá isso é verdade; mas há tantascontrariedades na nossa terra que... – Qual, meu caro tenente! Não hánada que não se vença. – O senhor verá com o tempo, major.Na nossa terra não se vive senão depolítica, fora disso, babau! Agora mesmoanda tudo brigado por causa da questãoda eleição de deputados... Ao dizer isto, o escrivão lançou porbaixo das suas pálpebras gordas um olharpesquisador sobre a ingênua fisionomia deQuaresma. – Que questão é? indagou Quaresma. O tenente parecia que esperava apergunta e logo fez com alegria: – Então não sabe? – Não. – Eu lhe explico: o candidato dogoverno é o doutor Castrioto, moçohonesto, bom orador; mas entenderam 154

aqui certos presidentes de CâmarasMunicipais do Distrito que se hão desobrepor ao governo, só porque o SenadorGuariba rompeu com o governador; e –zás – apresentaram um tal Neves que nãotem serviço algum ao partido e nenhumainfluência... Que pensa o senhor? – Eu... Nada! O serventuário do fisco ficouespantado. Havia no mundo um homemque, sabendo e morando no município deCuruzu, não se incomodasse com a brigado Senador Guariba com o governador doEstado! Não era possível! Pensou e sorriulevemente. Com certeza, disse eleconsigo, este malandro quer ficar bem comos dous, para depois arranjar-se semdificuldade. Estava tirando sardinha commão de gato... Aquilo devia ser umambicioso matreiro; era preciso cortar asasas daquele \"estrangeiro\", que vinha nãose sabe donde! – O major é um filósofo, disse ele commalícia. – Quem me dera? fez comingenuidade Quaresma. Antonino ainda fez rodar um pouco aconversa sobre a grave questão, mas, 155

desanimado de penetrar nas tençõesocultas do major, apagou a fisionomia edisse em ar de despedida: – Então o major não se recusa aconcorrer para a nossa festa, não é? – Decerto. Os dous se despediram. Debruçadona varanda, Quaresma ficou a vê-lomontar no seu pequeno castanho, luzidiode suor, gordo e vivo. O escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o majorficou a pensar no interesse estranho queessa gente punha nas lutas políticas,nessas tricas eleitorais, como se nelashouvesse qualquer cousa de vital eimportante. Não atinava por que umarezinga entre dous figurões importantesvinha pôr desarmonia entre tanta gente,cuja vida estava tão fora da esferadaqueles. Não estava ali a terra boa paracultivar e criar? Não exigia ela uma árdualuta diária? Por que não se empregava oesforço que se punha naqueles barulhosde votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres, vidas – trabalhoigual ao de Deus e dos artistas? Era toloestar a pensar em governadores eguaribas, quando a nossa vida pede tudo à 156

terra e ela quer carinho, luta, trabalho eamor... O sufrágio universal pareceu-lhe umflagelo. O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial dequem mora longe, essa de ver chegar osmeios de transporte que nos põem emcomunicações com o resto do mundo. Háuma mescla de medo e de alegria. Aomesmo tempo que se pensa em boasnovas, pensam-se também más. Aalternativa angustia... O trem ou o vapor como que vem doindeterminado, do Mistério, e traz, além denotícias gerais, boas ou más, também ogesto, um sorriso, a voz das pessoas queamamos e estão longe. Quaresma esperou o trem. Ele chegouarfando e se estirando como um réptil pelaestação afora à luz forte do sol poente.Não se demorou muito. Apitou de novo esaiu a levar notícias, amigos, riquezas,tristezas por outras estações além. Omajor pensou ainda um pouco como aquiloera bruto e feio, e como as invenções donosso tempo se afastam tanto da linhaimaginária da beleza que os nossoseducadores de dous mil anos atrás nos 157

legaram. Olhou a estrada que levava àestação. Vinha um sujeito... Dirigia-se paraa sua casa... Quem podia ser? Limpou opince-nez e assestou-o para o homem quecaminhava com pressa... Quem era?Aquele chapéu dobrado, como ummorrião... Aquele fraque comprido... Passomiúdo... Um violão! Era ele! – Adelaide, está aí o Ricardo. *** 158

II Espinhos e Flores Os subúrbios do Rio de Janeiro são amais curiosa cousa em matéria deedificação de cidade. A topografia do local,caprichosamente montuosa, influiu decertopara tal aspecto, mais influíram, porém, osazares das construções. Nada mais irregular, mais caprichoso,mais sem plano qualquer, pode serimaginado. As casas surgiam como sefossem semeadas ao vento e, conforme ascasas, as ruas se fizeram. Há algumasdelas que começam largas comoboulevards e acabam estreitas que nemvielas; dão voltas, circuitos inúteis eparecem fugir ao alinhamento reto com umódio tenaz e sagrado. Às vezes se sucedem na mesmadireção com uma freqüência irritante,outras se afastam, e deixam de permeioum longo intervalo coeso e fechado decasas. Num trecho, há casas amontoadasumas sobre outras numa angústia deespaço desoladora, logo adiante um vastocampo abre ao nosso olhar uma amplaperspectiva. 159

Marcham assim ao acaso asedificações e conseguintemente oarruamento. Há casas de todos os gostose construídas de todas as formas. Vai-se por uma rua a ver um correr dechalets, de porta e janela, parede defrontal, humildes e acanhados, de repentese nos depara uma casa burguesa, dessasde compoteiras na cimalha rendilhada, ase erguer sobre um porão alto commezaninos gradeados. Passada essasurpresa, olha-se acolá e dá-se com umachoupana de pau-a-pique, coberta dezinco ou mesmo palha, em torno da qualformiga uma população; adiante, é umavelha casa de roça, com varanda ecolunas de estilo pouco classificável, queparece vexada a querer ocultar-se, diantedaquela onda de edifícios disparatados enovos. Não há nos nossos subúrbios cousaalguma que nos lembre os famosos dasgrandes cidades européias, com as suasvilas de ar repousado e satisfeito, as suasestradas e ruas macadamizadas ecuidadas, nem mesmo se encontramaqueles jardins, cuidadinhos, aparadinhos,penteados, porque os nossos, se os há,são em geral pobres, feios e desleixados. 160

Os cuidados municipais também sãovariáveis e caprichosos. Às vezes, nasruas, há passeios em certas partes eoutras não; algumas vias de comunicaçãosão calçadas e outras da mesmaimportância estão ainda em estado denatureza. Encontra-se aqui um pontilhãobem cuidado sobre um rio seco e passosalém temos que atravessar um ribeirãosobre uma pinguela de trilhos mal juntos. Há pelas ruas damas elegantes, comsedas e brocados, evitando a custo que alama ou o pó lhes empane o brilho dovestido; há operário de tamancos; háperalvilhos à última moda; há mulheres dechita; e assim pela tarde, quando essagente volta do trabalho ou do passeio, amescla se faz numa mesma rua, numquarteirão, e quase sempre o mais bemposto não é que entra na melhor casa. Além disto, os subúrbios têm maisaspectos interessantes, sem falar nonamoro epidêmico e no espiritismoendêmico; as casas de cômodos (quem assuporia lá!) constituem um deles beminédito. Casas que mal dariam para umapequena família, são divididas,subdivididas, e os minúsculos aposentosassim obtidos, alugados à população 161

miserável da cidade. Aí, nesses caixotinshumanos, é que se encontra a faunamenos observada da nossa vida, sobre aqual a miséria paira com um rigor londrino. Não se podem imaginar profissõesmais tristes e mais inopinadas da genteque habita tais caixinhas. Além dosserventes de repartições, contínuos deescritórios, podemos deparar velhasfabricantes de rendas de bilros,compradores de garrafas vazias,castradores de gatos, cães e galos,mandingueiros, catadores de ervasmedicinais, enfim, uma variedade deprofissões miseráveis que as nossaspequena e grande burguesias não podemadivinhar. Às vezes, num cubículo dessesse amontoa uma família, e há ocasiões emque os seus chefes vão a pé para a cidadepor falta do níquel do trem. Ricardo Coração dos Outros moravaem uma pobre casa de cômodos de umdos subúrbios. Não era das sórdidas, masera uma casa de cômodos dos subúrbios. Desde anos que ele a habitava egostava da casa que ficava trepada sobreuma colina, olhando da janela do seuquarto para uma ampla extensão edificadaque ia da Piedade a Todos os Santos. 162

Vistos assim do alto, os subúrbios têm asua graça. As casas pequeninas, pintadasde azul, de branco, de oca, engastadasnas comas verde-negras das mangueiras,tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiroou uma palmeira, alta e soberba, fazem avista boa e a falta de percepção dodesenho das ruas põe no programa umsabor de confusão democrática, desolidariedade perfeita entre as gentes queas habitavam; e o trem minúsculo, rápido,atravessa tudo aquilo, dobrando àesquerda, inclinando-se para a direita,muito flexível nas suas grandes vértebrasde carros, como uma cobra entrepedrouços. Era daquela janela que Ricardoespraiava as suas alegrias, as suassatisfações, os seus triunfos e também osseus sofrimentos e mágoas. Ainda agora estava ele lá, debruçadono peitoril, com a mão em concha noqueixo, colhendo com a vista uma grandeparte daquela bela, grande e originalcidade, capital de um grande país, de queele a modos que era e se sentia ser, aalma, consubstanciado os seus tênuessonhos e desejos em versos discutíveis,mas que a plangência do violão, se não 163

lhes dava sentido, dava um quê debalbucio, de queixume dorido da pátriacriança ainda, ainda na sua formação... Em que pensava ele? Não pensavasó, sofria também. Aquele tal pretocontinuava na sua mania de querer fazer amodinha dizer alguma cousa, e tinhaadeptos. Alguns já o citavam como rivaldele, Ricardo; outros já afirmavam que otal rapaz deixava longe o Coração dosOutros, e alguns mais – ingratos! – jáesqueciam os trabalhos, o tenaz trabalharde Ricardo Coração dos Outros em prol dolevantamento da modinha e do violão, enem nomeavam o abnegado obreiro. Com o olhar perdido, Ricardolembrava-se de sua infância, daquela suaaldeia sertaneja, da casinha dos seus pais,com seu curral e o mugido dos vitelos... Eo queijo? Aquele queijo tão substancial,tão forte, feio como aquela terra, mas ferazcomo ela tanto que bastava comer deleuma pequena fatia para se sentiralmoçado... E as festas? Saudades... E oviolão, como aprendeu? O seu mestre, oManeco Borges, não lhe predissera ofuturo: \"Irás longe, Ricardo. A viola. A violaquer teu coração.\" 164

Por que então aquele encarniçamento,aquele ódio contra ele – ele que trouxerapara esta terra de estrangeiros a alma, osuco, a substância do país! E as lágrimas lhe saltaram quentesdos olhos afora. Olhou um pouco asmontanhas, farejou o mar lá longe... Erabela a terra, era linda, era majestosa, masparecia ingrata e áspera no seu granitoonipresente que se fazia negro e mauquando não era amaciado pela verduradas árvores. E ele estava ali só, só com a suaglória e o seu tormento, sem amor, semconfidente, sem amigo, só como um deusou como um apóstolo em terra ingrata quenão lhe quer ouvir a boa nova. Sofria em não ter um peito amado,amigo em que derramasse aquelaslágrimas que iam cair no solo indiferente.Por aí, lembrou-se dos famosos versos: Se choro... bebe o pranto a areia ardente... Com a lembrança, ele baixou umpouco o olhar à terra e viu, que, no tanqueda casa, um tanto escondida dele, umarapariga preta lavava. Ela abaixava o 165

corpo sobre a roupa, carregava todo o seupeso, ensaboava-a ligeira, batia-a deencontro à pedra, e recomeçava. Tevepena daquela pobre mulher, duas vezestriste na sua condição e na sua cor. Veio-lhe um afluxo de ternura e, depois, pôs-sea pensar no mundo, nas desgraças,ficando um instante enleado no enigma donosso miserável destino humano. A rapariga não o viu, distraída com otrabalho; e se pôs a cantar: Da doçura dos teus olhos A brisa inveja já tem Era dele. Ricardo sorriu satisfeito eteve vontade de ir beijar aquela pobremulher, abraçá-la... E como eram as cousas? Ele recebialenitivo daquela rapariga; era a suahumilde e dorida voz que vinha afagar oseu tormento! Vieram-lhe então à memóriaaqueles versos do padre Caldas, esse seuantecessor feliz que teve um auditório defidalgas: 166

Lereno alegrou os outros E nunca teve alegria... Enfim era uma missão!... A raparigaacabou de cantar e Ricardo não se pôdeconter: – Vai bem, Dona Alice, vai bem! Senão fosse, por que eu lhe pedia bis? A rapariga estendeu a cabeça,reconheceu quem falava e disse: – Não sabia que o senhor estava aí,senão não cantava na vista do senhor. – Qual o quê! Posso garantir-lhe queestá bom, muito bom. Cante. – Deus me livre! Para o senhor me\"acriticar\"... Embora insistisse muito, a rapariganão quis continuar. As mágoas pareciamter passado do pensamento de Ricardo.Veio ao interior do quarto e pôs-se à mesana tenção de escrever. O seu quarto tinha o mobiliário maisreduzido possível. Havia uma rede comfranjas de rendas, uma mesa de pinho,sobre ela objetos de escrever; umacadeira, uma estante com livros, e,pendurado a uma parede, o violão na suaarmadura de camurça. Havia também umamáquina para fazer café. 167

Sentou-se e quis começar umamodinha sobre a Glória, essa cousafugace, que se tem e se pensa que não setem, alguma cousa impalpável, incolhívelcomo um sopro, que nos alanceia, queima,inquieta e abrasa como o Amor. Tentou começar, dispôs o papel, masnão pôde. A emoção tinha sido forte, todaa sua natureza tinha sido lavrada,baralhada, com a idéia daquele furto quese queria fazer ao seu mérito. Nãoconseguiu assentar o pensamento,apanhar as palavras no ar, sentir a músicazumbir no ouvido. A manhã ia alta. As cigarras defrontechilreavam no tamarineiro desfolhado;começava a esquentar e o céu estava deum azul ligeiro\", tênue, fino. Quis sair,procurar um amigo, espairecer com ele,mas quem? Ainda se o Quaresma... Ah! oQuaresma! Esse, sim, trazia-lhe conforto econsolo. É verdade que ultimamente esse seuamigo se achava pouco interessado pelamodinha; mas assim mesmo compreendiao seu propósito, os fins e o alcance daobra a que ele, Ricardo, se propunha.Ainda se o major estivesse perto, mas tãolonge! Consultou as algibeiras. Não 168

chegava a dous mil-réis a sua fortuna.Como ir? Arranjaria um passe e iria.Bateram à porta. Traziam-lhe uma carta.Não reconheceu a letra; rasgou o envelopecom emoção. Que seria? Leu: \"Meu caro Ricardo – Saúde – Minhafilha Quinota casa-se depois de amanhã,quinta-feira. Ela e o noivo fazem muitogosto que você apareça. Se o amigo nãoestiver comprometido com alguém, agarreo violão e venha até cá tomar umachávena de chá conosco – Seu amigoAlbernaz.\" O trovador, à proporção que lia, iamudando de fisionomia. Até então estavacarregada e dura; quando acabou de ler obilhete, um sorriso brincava por toda ela,descia e subia, ia de uma face a outra. Ogeneral não o abandonara; para orespeitável militar, Ricardo Coração dosOutros ainda era o rei do violão. Iria earranjaria passagem com o antigo vizinhode Quaresma. Contemplou um pouco oviolão, demoradamente, ternamente,agradecidamente como se fosse um ídolobenfazejo. Quando Ricardo penetrou em casa doGeneral Albernaz, o último brinde haviasido levantado e todos se dirigiam para a 169

sala de visitas em pequenos grupos. DonaMaricota vestia seda malva e o seu bustocurto parecia ainda mais abafado, maissocado, naquele tecido caro que parecerequerer corpos elegantes e flexíveis.Quinota estava radiante no vestido denoiva. Ela era alta, de feições maisregulares que a irmã Ismênia, mas menosinteressante e mais comum detemperamento e alma, embora faceira.Lalá, a terceira filha do general, que já seajeitava a moça, tinha muito pó-de-arroz,estava sempre a concertar o penteado e asorrir para o Tenente Fontes. Umcasamento bem cotado e esperado.Genelício dava o braço à noiva,encasacado numa casaca mal talhada,que punha bem à mostra a sua gibosidade,e caminhava todo atrapalhado nosapertados sapatos de verniz. Ricardo não os viu passar, pois, aoentrar, a fila estava no general, metidonum segundo uniforme dos grandes dias,que lhe ia mal como a farda de um guardanacional endomingado; mas, quem tinhaum ar importante, marcial e navegado, aomesmo tempo palaciano, era o Contra-Almirante Caldas. Fora padrinho e estavairrepreensível na sua casaca do uniforme. 170

As âncoras reluziam como metais de bordoem hora de revista e os seus favoritos,muito penteados, alargavam a sua face epareciam desejar com ardor os grandesventos do vasto oceano sem fim. Ismêniaestava de rosa e andava pelas salas com oseu ar dolente, com o seu vagar, com osseus gestos lentos, dando providências. OLulu, o único filho do general, impava noseu uniforme do Colégio Militar, cheio dedourados e cabelos, tanto mais quepassara de ano, graças aos empenhos dopai. O general não tardou em vir falar comRicardo; e os noivos, quando o trovador oscumprimentou, agradeceram-lhe muito, eaté Quinota disse um – \"sou muito feliz...\"– deitando a cabeça de lado e sorrindopara o chão, sorriso que encheu de imensotransporte a cândida alma do menestrel. Deram começo às danças e o general,o almirante, o Major InocêncioBustamante, que também viera deuniforme, com a sua banda roxa dehonorário, o Doutor Florêncio, Ricardo edous convidados outros foram para a salade jantar palestrar um pouco. O general estava satisfeito. Sonhavahá tantos anos uma cerimônia daquelas 171

em sua casa e enfim pela primeira vez viarealizado esse anseio. A Ismênia foi aquela desgraça... Oingrato!... Mas para que recordar? Os cumprimentos se repetiram. – É um rapagão, o seu novo genro,disse um dos convidados novos. O general tirou o pince-nez que erapreso por um trancelim de ouro, eenquanto o limpava, respondeu, olhandocom aquele jeito dos míopes: – Estou muito contente. Por aí pôs o pince-nez, endireitou otrancelim e continuou: – Creio que casei bem minha filha:rapaz formado, bem encaminhado einteligente. O almirante acudiu: – E que carreira! Não é por ser meuparente, mas com trinta e dois anosprimeiro escriturário do Tesouro, é cousanunca vista. – O Genelício não está no Tribunal deContas, não passou? perguntou Florêncio. – Passou, mas é a mesma cousa,replicou o outro convidado novo, que erada amizade do recém-casado. De fato, Genelício tinha arranjado atransferência e não fora só isso que o 172

decidira a casar-se. Tendo escrito uma –Síntese de Contabilidade Pública Científica– viu-se, sem saber como, cumulado deelogios pela \"imprensa desta capital\". Oministro, atendendo ao mérito excepcionalda obra, mandou-lhe dar dous contos deprêmio, tendo sido a edição feita à custado Estado, na Imprensa Nacional. Era umgrosso volume de quatrocentas páginas,tipo doze, escrito em estilo de ofício comuma vasta documentação de decretos eportarias, ocupando dous terços do livro. A primeira frase da primeira parte, oquinhão do livro verdadeiramente sintéticoe científico, fora até muito notada e gabadapelos críticos, não só pela novidade daidéia, como também pela beleza daexpressão. Dizia assim: \"A Contabilidade Públicaé a arte ou ciência de escriturarconvenientemente a despesa e receita doEstado.\" Além do prêmio e da transferência, elejá tinha promessa de ser subdiretor naprimeira vaga. Ouvindo tudo isso que tinham dito oalmirante, o general e os convidadosnovos, o major não pôde deixar deobservar: 173

– Depois da militar, a melhor carreira éa da Fazenda, não acham? – Sim... Bem entendido, fez o DoutorFlorêncio. – Eu não quero falar dos formados,apressou-se o major. Esses... Ricardo sentia-se na obrigação dedizer qualquer cousa e foi soltando aprimeira frase que lhe veio aos lábios: – Quando se prospera, todas asprofissões são boas. – Não é assim tanto, obtemperou oalmirante, alisando um dos favoritos. Não épara desfazer das outras, mas a nossa,hein, Albernaz? hein, Inocêncio? Albernaz levantou a cabeça como sequisesse apanhar no ar uma lembrança edepois replicou: – É, mas tem os seus percalços.Quando se está numa trapalhada, fogodaqui, tiro dali, morre um, grita outro comoem Curupaiti, então... – O senhor esteve lá, general?perguntou o convidado amigo deGenelício. – Não estive. Adoeci e vim para oBrasil. Mas o Camisão... Não imaginam oque foi – você sabe, não é, Inocêncio? – Se estive lá... 174

– Polidoro tinha ordem de atacarSauce, Flores à esquerda e \"nós\" caímossobre os paraguaios. Mas os malandrosestavam bem entrincheirados, tinhamaproveitado o tempo... – Foi \"seu\" Mitre, disse Inocêncio. – Foi. Atacamos com fúria. Eraribombar de canhões que metia medo,bala por todo o canto, os homens morriamcomo moscas... Um inferno! – Quem venceu? perguntou um dosconvidados novos. Todos se entreolharam admirados,exceto o general que julgava a sabedoriado Paraguai excepcional. – Foram os paraguaios, isto é,repeliram o nosso ataque. É por isso queeu digo que a nossa profissão é bela, mastem as suas \"cousas\"... – Isso não quer dizer nada. Tambémna passagem de Humaitá... ia dizendo oalmirante. – O senhor estava a bordo? – Não, eu fui mais tarde. Perseguiçõesfizeram com que eu não fosse designado,porque o embarque equivalia a umapromoção... Mas, na passagem deHumaitá... 175

Na sala de visitas as dançascontinuavam com animação. Era raro quealguém viesse de dentro até onde elesestavam. Os risos, a música, e o mais quese adivinhava não distraíam aqueleshomens das suas preocupações belicosas. O general, o almirante e o majorenchiam de pasmo aqueles burguesespacíficos, contando batalhas em que nãoestiveram e pugnas valorosas que nãopelejaram. Não há como um cidadão pacato, bemcomido, tendo tomado alguns vinhosgenerosos, para apreciar as narrações deguerra. Ele só vê a parte pitoresca, a partepor assim dizer espiritual das batalhas, dosencontros; os tiros são os de salva e sematam é cousa de somenos. A Mortemesmo, nas narrações feitas assim, perdea sua importância trágica: três mil mortos,só! ! ! De resto, contadas pelo GeneralAlbernaz, que nunca tinha visto a guerra, acousa ficava edulcorada, uma guerrabibliothèque rose, guerra de estampapopular, em que não aparecem acarniçaria, a brutalidade e a ferocidadenormais. 176

Estavam Ricardo, o Doutor Florêncio,o exato empregado como engenheiro dasÁguas, aqueles dous recentesconhecimentos de Albernaz, embevecidos,boquiabertos e invejosos diante dasproezas imaginárias daqueles trêsmilitares, um honorário, talvez o menospacífico dos três, o único que tivessemesmo tomado parte em alguma cousaguerreira – quando Dona Maricota chegousempre diligente, ativa, dando movimentoe vida à festa. Era mais moça que omarido, tinha ainda inteiramente pretos oscabelos na sua cabeça pequena, quecontrastava tanto com o seu corpoenorme. Ela vinha ofegante e dirigiu-se aomarido: – Então, Chico, que é isso? Ficou aí eeu que faça sala, que anime as moças...Pra sala todos! – Já vamos, Dona Maricota, dissealguém. – Não, fez com rapidez a dona dacasa, é já. Vamos, \"seu\" Caldas, \"seu\"Ricardo, os senhores! E foi empurrando um a um peloombro. 177

– Depressa, depressa, que a filha doLemos vai cantar; e depois é o senhor...Está ouvindo, \"seu\" Ricardo! – Pois não, minha senhora. É umaordem... E foram. No caminho o general parouum pouco, chegou-se a Coração dosOutros e perguntou: – Diga-me uma cousa: como vai onosso amigo Quaresma? – Vai bem. – Tem-lhe escrito? – Às vezes. Eu queria, general... O general suspendeu a cabeça,levantou um pouco o pince-nez quecomeçava a cair, e perguntou: – O quê? Ricardo ficou intimidado com o armarcial com que Albernaz lhe fez apergunta. Depois de uma ligeira hesitação,respondeu de um jacto, com medo deperder as palavras: – Eu queria que o senhor mearranjasse uma passagem, um passe, parair vê-lo. O general esteve uns instantes decabeça baixa, coçou o cabelo e disse: – Isso é difícil, mas você apareça lá,na repartição, amanhã. 178

E continuaram a andar. Aindaandando, Coração dos Outrosacrescentou: – Estou com saudades dele, depoistenho certos desgostos... O senhor sabe:um homem que tem nome... – Vá lá amanhã. Dona Maricota apareceu na frente efalou agastada: – Vocês não vêm! – Já vamos, fez o general. E depois, dirigindo-se a Ricardo,ajuntou: – Aquele Quaresma podia estar bem,mas foi meter-se com livros... É isto! Eu,há bem quarenta anos, que não pego emlivro... Chegaram à sala. Era vasta. Tinhadous grandes retratos em pesadasmolduras douradas, furiosos retratos aóleo de Albernaz e da mulher; um espelhooval e alguns quadrinhos, e a decoraçãoestava completa. Da mobília não se podiajulgar, tinha sido retirada, para dar maisespaço aos dançantes. A noiva e o noivoestavam no sofá sentados a presidir afesta. Havia um ou outro decote, poucascasacas, algumas sobrecasacas e muitosfraques. Por entre as cortinas de uma 179

janela, Ricardo pôde ver a rua. A calçadadefronte estava cheia. A casa era alta etinha jardim; só de lá os curiosos, os\"serenos\", podiam ver alguma cousa dafesta. Lalá, no vão de uma sacada,conversava com o Tenente Fontes. Ogeneral contemplou-os e abençoou-os comum olhar aprovador... A moça, a famosa filha do Lemos,dispôs-se a cantar. Foi ao piano, colocou apartitura e começou. Era uma romanzaitaliana que ela cantou com a perfeição e omau gosto de uma moça bem-educada.Acabou. Palmas gerais, mas frias, soaram. O Doutor Florêncio que ficara atrás dogeneral, comentou: – Tem uma bela voz esta moça. Quemé? – É a filha do Lemos, o Doutor Lemosda Higiene, respondeu o general. – Canta muito bem. – Está no último ano do Conservatório,observou ainda Albernaz. Chegou a vez de Ricardo. Ele ocupouum canto da sala, agarrou o vilão, afinou-o,correu a escala; em seguida, tomou o artrágico de quem vai representar o Édipo-Rei e falou com voz grossa: \"Senhoritas,senhores e senhoras.\" Parou. Concertou a 180

voz e continuou: \"Vou cantar 'Os teusbraços'. Modinha de minha composição,música e versos. É uma composição terna,decente e de uma poesia exaltada.\" Seusolhos, por aí, quase saíam das órbitas.Emendou: \"Espero que nenhum ruído seouça, porque senão a inspiração se evola.É o violão instrumento muito... mui... to 'dê-li-cá-do'. Bem.\" A atenção era geral. Deu começo.Principiou brando, gemebundo, macio elongo, como soluço de onda; depois,houve uma parte rápida, saltitante, em queo violão estalava. Alternando umandamento e outro, a modinha acabou. Aquilo tinha ido ao fundo de todos,tinha acudido ao sonho das moças e aosdesejos dos homens. As palmas foramininterruptas. O general abraçou-o,Genelício levantou-se e deu-lhe a mão.Quinota, no seu imaculado vestido denoiva, também. Para fugir aos cumprimentos, Ricardocorreu à sala de jantar. No corredorchamavam-no: \"Senhor Ricardo, SenhorRicardo!\" Voltou-se. \"Que ordena minhasenhora?\" Era uma moça que lhe pediauma cópia da modinha. 181

– Não se esqueça, dizia ela commeiguice, não se esqueça. Gosto tanto dassuas modinhas... São tão ternas, tãodelicadas... Olhe: dê aqui a Ismênia parame entregar. A noiva de Cavalcanti aproximava-see, ouvindo falar em seu nome perguntou: – Que é Dulce? A outra explicou-se. Ela aceitou aincumbência e, por sua vez, perguntou aRicardo com a sua voz dolente: – \"Seu\" Ricardo, quando é que osenhor pretende estar com DonaAdelaide? – Depois de amanhã, espero eu. – Vai lá? – Vou. – Pois então diga-lhe que me escreva.Eu queria tanto receber uma carta... E limpou os olhos furtivamente, com oseu pequenino lenço rendado. *** 182

III Golias No sábado da semana seguinteàquela em que a filha do general receberacomo marido o grave e giboso Genelício,glória e orgulho do nosso funcionalismopúblico, Olga casara-se. A cerimôniacorrera com a pompa e a riquezaacostumada em pessoas de sua camada.Houve uns arremedos parisienses decorbeille de noiva e outros pequenosdetalhes chics, que não a aborreceram,mas que não a encheram lá de satisfaçãomaior que as noivas comuns. Talvez nemmesmo essa ela tivesse. Não foi para a igreja em virtude deuma determinação certa de sua vontade.Continuava a não encontrar dentro de simotivo para aquele ato, mas,aparentemente, nenhuma vontadeestranha à sua influíra para isso. O maridoé que estava contente. Não seria muitocom a noiva, mas com a volta que a suavida ia tomar. Ficando rico e sendomédico, cheio de talento nas notas erecompensas escolares, via diante de siuma larga estrada de triunfos nas posições 183

e na indústria clínica. Não tinha fortunaalguma, mas julgava o seu banal título umforal de nobreza, equivalente àqueles comque os autênticos fidalgos da Europabrunem o nascimento das filhas dossalchicheiros yankees. Apesar de ser seupai um importante fazendeiro por aí, emalgum lugar deste Brasil, o sogro lhe deratudo e tudo ele aceitara sem pejo, com odesprezo de um duque, duque deplenamentes e medalhas, a receberhomenagens de um vilão que não \"roçouos bancos de uma Academia\". Julgava que a noiva o aceitara peloseu maravilhoso título, o pergaminho; éverdade que foi, não tanto pelo título, maspela sua simulação de inteligência, deamor à ciência, de desmedidos sonhos desábio. Tal imagem que dele fizera, durarainstantes em Olga; depois foi a inércia dasociedade, a sua tirania e a timidez naturalda moça em romper que a levaram aocasamento. Tanto mais que ela, de si parasi, pensava que se não fosse este, seriaoutro a ele igual, e o melhor era não adiar. Era por isso que ela não ia para aigreja, em virtude de uma determinaçãocerta de sua vontade, embora sem 184

perceber o constrangimento de umcomando fora dela. Apesar da pompa, esteve longe de seruma noiva majestosa. Não obstante asorigens puramente européias era pequena,muito mesmo, ao lado do noivo, alto,erecto, com uma fisionomia irradiante defelicidade; e, desse modo, ela desapareciadentro do vestido, dos véus e daquelesatavios obsoletos com que se arreiam asmoças que se vão casar. De resto, a suabeleza não era a grande beleza – aquelaque nós exigimos das noivas ricas,segundo o modelo das estampasclássicas. No seu rosto, nada de grego, dessegrego autêntico ou de pacotilha, outambém dessa majestade de ópera lírica.Havia nos seus traços muita irregularidade,mas a sua fisionomia era profunda eprópria. Não só a luz dos seus grandesolhos negros, que quase cobriam toda acavidade orbitária, fazia fulgurar o seurosto móbil, como a sua pequena boca, deum desenho fino, exprimia bondade,malícia e o seu ar geral era de reflexão ecuriosidade. 185

Ao contrário do costume, não saíramda cidade e foram morar em casa doantigo empreiteiro. Quaresma não fora à festa, mandara oleitão e o peru da tradição e escreverauma longa carta. O sítio empolgara-o, ocalor ia passar, vinha a época das chuvas,das semeaduras, e não queria afastar-sede suas terras. A viagem seria breve, masmesmo assim, perdendo um dia ou dous,era como se começasse a desertar dabatalha. O pomar estava todo limpo e jáestavam preparados os canteiros da horta.A visita de Ricardo veio distraí-lo umpouco, sem desviá-lo contudo dos seusafazeres agrícolas. Passou um mês com o major, e foi umtriunfo. A fama do seu nome precedia-o, deforma que todo o município o disputava efestejava. O seu primeiro trabalho foi ir à vila.Ficava a quatro quilômetros adiante dacasa de Quaresma e a estrada de ferrotinha uma estação lá. Ricardo dispensou aestrada e foi a pé, pela estrada derodagem, se assim se pode chamar umtrilho, cheio de caldeirões, que subia edescia morros, cortava planícies e rios em 186

toscas pontes. A vila!... Tinha duas ruasprincipais: a antiga, determinada pelovelho caminho de tropas, e a nova, cujaorigem veio da ligação da velha com aestrada de ferro. Elas se encontravam emT, sendo o braço vertical o caminho daestação. As outras partiam delas, as casasjuntavam-se urbanamente no começo,depois iam espaçando, espaçando, atéacabar em mato, em campo. A antigachamava-se Marechal Deodoro, ex-Imperador; e a nova, Marechal Floriano,ex-Imperatriz. De uma das extremidadesda Rua Marechal Deodoro, partia a daMatriz, que ia ter à igreja, ao alto de umacolina, feia e pobre no seu estilo jesuítico.À esquerda da estação, num campo, aPraça da República, a que ia dar uma ruamal esboçada por espaçadas casas, ficavaa Câmara Municipal. Era um grande paralelepípedo detijolo, cimalha, janela com sacadas degrade de ferro, puro estilo mestre-de-obras. Compungia essa pobreza de gostoa quem se lembrasse dos edifícios damesma natureza das pequenas comunasfrancesas e belgas da Idade Média. 187

Ricardo entrou num barbeiro na RuaMarechal Deodoro, Salão Rio de Janeiro, efez a barba. O fígaro deu-lhe informaçõessobre a vila e ele se deu a conhecer. Haviacertos circunstantes, um deles tomou-o aseu cargo e daí em pouco estavarelacionado. Quando voltou para a casa do major játinha convite para o baile do DoutorCampos, presidente da Câmara, festa queteria lugar na quarta-feira próxima. Chegara sábado e fora passear à viladomingo. Tinha havido missa e o trovadorassistiu à saída. A concorrência nunca égrande na roça, mas Ricardo pôde veralgumas daquelas moças do interior,linfáticas e tristes, ataviadinhas, cheias delaços, descendo silenciosas a colina emque se erguia a igreja, espalhando-se pelarua e logo entrando para as casas, ondeiriam passar uma semana de reclusão etédio. Foi na saída da missa que lheapresentaram o Doutor Campos. Era o médico do lugar, morava,porém, fora, na sua fazenda, e viera de\"aranha\" com a sua filha, Nair, assistir oofício religioso. 188

O trovador e o médico estiveram uminstante conversando, enquanto a filha,muito magra, pálida, com uns longosbraços descarnados, olhava com umvexame fingido o solo poeirento da rua.Quando eles partiram, ainda Ricardoconsiderou um pouco aquele rebento dosares livres do Brasil.À festa do Doutor Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a honra desua presença e a alegria da sua voz.Quaresma não o acompanhava, masgozava a sua vitória. Se bem que o majortivesse abandonado o violão, aindacontinuava a prezar aquele instrumentoessencialmente nacional. Asconseqüências desastrosas do seu re–querimento em nada tinham abalado assuas convicções patrióticas. Continuavamas suas idéias profundamente arraigadas,tão-somente ele as escondia, para nãosofrer com a incompreensão e maldadedos homens.Gozava, portanto, a fulminante vitóriade Ricardo, que indicava bem naquelapopulação a existência de um resíduo forteda nossa nacionalidade a resistir àsinvasões das modas e gostos estrangeiros. 189

Ricardo recebia todas as honras,todos os favores, por parte de todos ospartidos. O Doutor Campos, Presidente daCâmara, era quem mais o cumulava dehomenagens. Naquela manhã atéesperava um dos cavalos do edil, para darum passeio ao Carico; e, esperando, foidizendo a Quaresma, que ainda não tinhapartido para o eito: – Major, foi uma boa idéia vir para aroça. Vive-se bem e pode-se subir... – Não tenho nenhum desejo disso.Você sabe como me são estranhas todasessas cousas. – Sei... É... Não digo que se peça,mas, quando nos oferecem, não devemosrejeitar, não acha? – Conforme, meu caro Ricardo. Eunão podia aceitar encargo de comandaruma esquadra. – Até aí não vou. Olhe, major: eugosto muito de violão, mesmo dedico aminha vida ao seu levantamento moral eintelectual, entretanto, se amanhã oPresidente dissesse: \"Seu Ricardo, vocêvai ser deputado\", o senhor pensa que eunão aceitava, sabendo perfeitamente quenão podia mais desferir os trenos do 190

instrumento? Ora, se não! Não se deveperder vaza, major. – Cada um tem as suas teorias. – Decerto. Outra cousa, major:conhece o Doutor Campos? – De nome. – Sabe que ele é presidente daCâmara? Quaresma olhou um instante paraRicardo com uma ligeira desconfiança. Omenestrel não notou o gesto do amigo eemendou: – Mora daqui a uma légua. Já lhetoquei em casa e hoje vou a cavalopassear com ele. – Fazes bem. – Ele quer conhecê-lo. Posso trazê-loaqui? – Podes. Um camarada do Doutor Campos,neste instante, entrava pela porteiratrazendo o cavalo prometido. Ricardomontou e Quaresma seguiu para a roça aoencontro dos seus dous empregados.Eram agora dous, pois, além do Anastácio,que não era bem um empregado, masagregado, admitira o Felizardo. 191

Era manhã de verão, mas as chuvascontinuadas dos dias anteriores tinhamatenuado a temperatura. Havia uma grande profusão de luz eos ares estavam doces. Quaresma foicaminhando por entre aquele rumor devida, rumor que vinha do farfalhar do matoe do piar das aves e pássaros.Esvoaçavam tiés-vermelhos, bandos decoleiros; anuns voavam e punhampequenas manchas negras no verdor dasárvores. Até as flores, essas tristes floresdos nossos campos, no momento, pareceque tinham saído à luz, não somente paraa fecundação vegetal mas também para abeleza. Quaresma e seus empregadostrabalhavam agora longe, faziam umroçado, e fora para auxiliar esse serviçoque contratou o Felizardo. Era este umcamarada magro, alto, de longos braços,longas pernas, como um símio. Tinha aface cor de cobre, a barba rala e, sob umaaparência de fraqueza muscular, não havianinguém mais valente que ele a roçar.Com isto era um tagarela incansável. Demanhã, quando chegava, aí pelas seishoras, já sabia todas as intriguinhas domunicípio. 192

O roçado tinha por fim ganhar terrenoao mato, no lado norte do sítio, que ocapão invadira. Obtido ele, o majorplantaria obra de meio alqueire ou poucomais de milho, e nos intervalos batatas-inglesas, cultura nova em que depositavagrandes esperanças. Já se fizera aderrubada e o aceiro estava aberto;Quaresma, porém, não lhe quisera atearfogo. Evitava assim calcinar o terreno,eliminando dele os princípios voláteis aofogo. Agora o seu trabalho era separar ospaus mais grossos, para aproveitar comolenha; os galhos miúdos e folhas, eleremovia para longe, onde então queimariaem coivaras pequenas. Isso levava tempo, custava tombos aoseu corpo mal habituado aos cipós e tocos;mas prometia dar um rendimento maior aoplantio. Durante o trabalho, Felizardo iacontando as suas novidades para sedistrair. Há quem cante, ele falava e poucose incomodava que lhe dessem ou nãoatenção. – Essa gente anda acesa por aí, disseFelizardo logo que o major chegou. Certas vezes Quaresma fazia-lheperguntas, atendia-lhe a conversa, raras 193

não. Anastácio era silencioso e grave.Nada dizia: trabalhava e, de quando emquando, parava, considerava, numapostura hierática de uma pintura muraltebana. O major perguntou ao Felizardo: – Que é que há, Felizardo? O camarada descansou o grossotronco de camará no monte, limpou o suorcom os dedos e respondeu com a sua falabranda e chiante: – Negócio de política... \"Seu\" TenenteAntonino quase briga ontem com \"seu dotôCampo\". – Onde? – Na estação. – Por quê? – Negócio de partido. Pelo que ouvi:\"seu\" Tenente Antonino é pelo \"governadô\"e \"seu dotô Campo\" é pelo \"senadô\"... Um\"sarcero\", patrão! – E você, por quem é? Felizardo não respondeu logo.Apanhou a foice e acabou de cortar umgalho que enleava o tronco a remover.Anastácio estava de pé e considerou uminstante a figura do companheiro palrador.Respondeu afinal: 194

– Eu! Sei lá... Urubu pelado não semete no meio dos coroados. Isso é bompro \"sinhô\". – Eu sou como você, Felizardo. – Quem me dera, meu \"sinhô\". Inda\"trasantonte\" ouvi \"dizê\" que o patrão éamigo do \"marechá\". Afastou-se com o pau; e, quandovoltou, Quaresma indagou assustado: – Quem disse? – Não sei, não \"sinhô\". Ouvi a modode \"dizê\" lá na venda do espanhol, tantoassim que \"doutô Campo tá\" inchado quenem sapo com a sua amizade. – Mas é falso, Felizardo. Eu não souamigo cousa alguma... Conheci-o... Enunca disse isso aqui a ninguém... Qualamigo! – \"Quá!\" fez Felizardo com um risolargo e duro. O patrão \"tá\" é varrendo atestada. Apesar de todo o esforço deQuaresma, não houve meio de tirardaquela cabeça infantil a idéia de que elefosse amigo do Marechal Floriano.\"Conheci-o no meu emprego\" – dizia omajor; Felizardo sorria grosso e por umavez dizia: \"Quá! o patrão é fino que nemcobra.\" 195

Tal teimosia não deixou deimpressionar Quaresma. Que queria dizeraquilo? Demais, as palavras de Ricardo,as suas insinuações pela manhã... Eletinha o trovador em conta de homem leal eamigo fiel, incapaz de lhe estar armandolaços para passar maus momentos; osentusiasmos dele, entretanto, junto àvontade de ser bom amigo, podiam iludi-loe fazê-lo instrumento de algum perverso.Quaresma ficou um instante pensativo,deixando de remover os galhos cortados;em breve, porém, esqueceu-se e apreocupação dissipou-se. À tarde, quandofoi jantar, já nem mais se lembrava daconversa e a refeição correu natural, nemmuito alegre, nem muito triste, mas semsombra alguma de cogitações por partedele. Dona Adelaide, sempre com a suamatinée creme e saia preta, sentava-se àcabeceira; Quaresma à direita e àesquerda, Ricardo. Era a velha quemsempre puxava a língua do trovador. – Gostou muito do passeio, SenhorRicardo? Não havia meio dela dizer \"seu\". A suaeducação de \"senhora\" de outros temposnão lhe permitia usar esse plebeísmo 196

generalizado. Vira os pais, gente aindafortemente portuguesa, dizer \"senhor\" econtinuava a dizer, sem fingimento,naturalmente. – Muito. Que lugar! Uma catadupa...Que maravilha! Aqui, na roça, é que setem inspiração. E ele tomava aquela atitude dearroubo; uma fisionomia de máscara detrágico grego e uma voz cavernosa querolava como uma trovoada abafada. – Tens composto muito, Ricardo?indagou Quaresma. – Hoje acabei uma modinha. – Como se chama? indagou DonaAdelaide. – \"Os lábios da Carola\". – Bonito! Já fez a música? Era ainda a irmã de Quaresma aperguntar. Ricardo levava agora o garfo àboca; deixou-o suspenso entre os lábios eo prato e respondeu com toda a convicção: – A música, minha senhora, é aprimeira cousa que faço. – Hás de no-la cantar logo. – Pois não, major. Após o jantar, Quaresma e Coraçãodos Outros saíram a passear no sítio. Foraessa a única concessão que ao amigo 197

fizera Policarpo, no tocante ao regime deseus trabalhos agrícolas. Levava sempre opedaço de pão, que esfarelava emmigalhas no galinheiro, para ver a atrozdisputa entre as aves. Acabando, ficavaum instante a considerar aquelas vidas,criadas, mantidas e protegidas parasustento da sua. Sorria para os frangos,agarrava os pintinhos, ainda implumes,muito vivos e ávidos, e demorava-se aapreciar a estupidez do peru, imponente,fazendo roda, a dar estouros presunçosos.Em seguida ia ao chiqueiro; assistiaAnastácio dar a ração, despejando-a noscochos. O enorme cevado de grandesorelhas pendentes levantava-se,dificilmente, e solenemente vinhamergulhar a cabeça na caldeira; noutrocompartimento os bacorinhos grunhiam egrunhindo vinham com a mãe chafurdar-sena comida.A avidez daqueles animais eradeveras repugnante, mas os seus olhostinham uma longa doçura bem humanaque os fazia simpáticos.Ricardo apreciava pouco aquelasformas inferiores de vida, mas Quaresmaficava minutos esquecidos a contemplá-lasnuma demorada interrogação muda. 198

Sentavam-se a um tronco de árvore; eQuaresma olhava o céu alto, enquantoCoração dos Outros contava qualquerhistória. A tarde ia adiantada. A terra jácomeçava a amolecer, pelo fim daquelebeijo ardente e demorado do sol. Osbambus suspiravam; as cigarras ciciavam;as rolas gemiam amorosamente. Ouvindopassos, o major voltou-se. Padrinho! Olga! Mal se viram, abraçaram-se, e quandose separaram ficaram ainda a olhar umpara o outro, com as mãos presas. Evieram aquelas estúpidas e tocantes frasesde encontros satisfeitos: Quandochegaste? Não esperava... É longe...Ricardo olhava embevecido com a ternurados dous; Anastácio tirara o chapéu eolhava a \"sinhazinha\", com o seu terno evazio olhar de africano. Passada a emoção, a moça sedebruçou sobre o chiqueiro, depois passoua vista pelos quatro pontos e Quaresmaperguntou: – Quedê teu marido? – O doutor?... Está lá dentro. O marido tinha resistido muito emacompanhá-la até ali. Não lhe parecia bemaquela intimidade com um sujeito sem 199

título, sem posição brilhante e sem fortuna.Ele não compreendia como o seu sogro,apesar de tudo um homem rico, de outraesfera, tinha podido manter e estreitarrelações com um pequeno empregado deuma repartição secundária, e até fazê-loseu compadre! Que o contrário se desse,era justo; mas como estava a cousaparecia que abalava toda a hierarquia dasociedade nacional. Mas, em definitivo,quando Dona Adelaide o recebeu cheia deum imenso respeito, de uma particularconsideração, ele ficou desarmado e todasas suas pequenas vaidades foramtrocadas e satisfeitas. Dona Adelaide, mulher velha, dotempo em que o Império armava essanobreza escolar, possuía em si umaparticular reverência, um culto pelodoutorado; e não lhe foi, pois, difícildemonstrá-lo quando se viu diante doDoutor Armando Borges, de cujas notas eprêmios ela tinha exata notícia. Quaresma mesmo recebeu-o com asmaiores marcas de admiração e o doutor,gozando aquele seu sobre-humanoprestígio, ia conversando pausadamente,sentenciosamente, dogmaticamente; e, àproporção que conversava, talvez para que 200


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