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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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Lima Barretotriste fim de policarpo quarema Romance

TRISTE FIM DEPOLICARPO QUARESMA Lima Barreto

MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca NacionalDepartamento Nacional do Livro Versão para eBook por eBookCult.com.br

AJoão Luiz Ferreira Engenheiro Civil

Le grand inconvénient de la vie réelleet ce qui la rend insupportable à l'hommesupérieur, c'est que, si l'on y transporte lesprincipes de l'idéal, les qualités deviennentdes défauts, si bien que fort souventl'homme accompli y réussit moins bien quecelui qui a pour mobiles l'égoïsme ou laroutine vulgaire. Renan, Marc-Auréle

PRIMEIRA PARTE

I A Lição de Violão Como de hábito, Policarpo Quaresma,mais conhecido por Major Quaresma,bateu em casa às quatro e quinze datarde. Havia mais de vinte anos que issoacontecia. Saindo do Arsenal de Guerra,onde era subsecretário, bongava pelasconfeitarias algumas frutas, comprava umqueijo, às vezes, e sempre o pão dapadaria francesa. Não gastava nesses passos nemmesmo uma hora, de forma que, às três equarenta, por aí assim, tomava o bonde,sem erro de um minuto, ia pisar a soleirada porta de sua casa, numa rua afastadade São Januário, bem exatamente àsquatro e quinze, como se fosse a apariçãode um astro, um eclipse, enfim umfenômeno matematicamente determinado,previsto e predito. A vizinhança já lhe conhecia oshábitos e tanto que, na casa do CapitãoCláudio, onde era costume jantar-se aípelas quatro e meia, logo que o viampassar, a dona gritava à criada: \"Alice, 7

olha que são horas; o Major Quaresma jápassou.\" E era assim todos os dias, há quasetrinta anos. Vivendo em casa própria etendo outros rendimentos além do seuordenado, o Major Quaresma podia levarum trem de vida superior aos seusrecursos burocráticos, gozando, por parteda vizinhança, da consideração e respeitode homem abastado. Não recebia ninguém, vivia numisolamento monacal, embora fosse cortêscom os vizinhos que o julgavam esquisito emisantropo. Se não tinha amigos naredondeza, não tinha inimigos, e a únicadesafeição que merecera fora a do DoutorSegadas, um clínico afamado no lugar,que não podia admitir que Quaresmativesse livros: \"Se não era formado, paraquê? Pedantismo!\" O subsecretário não mostrava oslivros a ninguém, mas acontecia que,quando se abriam as janelas da sala desua livraria, da rua poder-se-iam ver asestantes pejadas de cima a baixo. Eram esses os seus hábitos;ultimamente, porém, mudara um pouco; eisso provocava comentários no bairro.Além do compadre e da filha, as únicas 8

pessoas que o visitavam até então, nosúltimos dias, era visto entrar em sua casa,três vezes por semana e em dias certos,um senhor baixo, magro, pálido, com umviolão agasalhado numa bolsa decamurça. Logo pela primeira vez o casointrigou a vizinhança. Um violão em casatão respeitável! Que seria? E, na mesma tarde, uma das maislindas vizinhas do major convidou umaamiga, e ambas levaram um tempoperdido, de cá pra lá, a palmilhar opasseio, esticando a cabeça, quandopassavam diante da janela aberta doesquisito subsecretário. Não foi inútil a espionagem. Sentadono sofá, tendo ao lado o tal sujeito,empunhando o \"pinho\" na posição detocar, o major, atentamente, ouvia: \"Olhe,major, assim.\" E as cordas vibravamvagarosamente a nota ferida; em seguida,o mestre aduzia: \"É 'ré', aprendeu?\" Mais não foi preciso pôr na carta; avizinhança concluiu logo que o majoraprendia a tocar violão. Mas que cousa?Um homem tão sério metido nessasmalandragens! Uma tarde de sol – sol de março, fortee implacável – aí pelas cercanias das 9

quatro horas, as janelas de uma erma ruade São Januário povoaram-se rápida erepentinamente, de um e de outro lado.Até da casa do general vieram moças àjanela! Que era? Um batalhão? Umincêndio? Nada disto: o Major Quaresma,de cabeça baixa, com pequenos passos deboi de carro, subia a rua, tendo debaixo dobraço um violão impudico. É verdade que a guitarra vinhadecentemente embrulhada em papel, maso vestuário não lhe escondia inteiramenteas formas. À vista de tão escandaloso fato,a consideração e o respeito que o MajorPolicarpo Quaresma merecia nosarredores de sua casa diminuíam umpouco. Estava perdido, maluco, diziam.Ele, porém, continuou serenamente nosseus estudos, mesmo porque nãopercebeu essa diminuição. Quaresma era um homem pequeno,magro, que usava pince-nez, olhavasempre baixo, mas, quando fixava alguémou alguma cousa, os seus olhos tomavam,por detrás das lentes, um forte brilho depenetração, e era como se ele quisesse irà alma da pessoa ou da cousa que fixava. Contudo, sempre os trazia baixos,como se se guiasse pela ponta do 10

cavanhaque que lhe enfeitava o queixo.Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, oude cinza, de pano listrado, mas sempre defraque, e era raro que não se cobrisse comuma cartola de abas curtas e muito alta,feita segundo um figurino antigo de que elesabia com precisão a época. Quando entrou em casa, naquele dia,foi a irmã quem lhe abriu a porta,perguntando: – Janta já? – Ainda não. Espere um pouco oRicardo que vem jantar hoje conosco. – Policarpo, você precisa tomar juízo.Um homem de idade, com posição,respeitável, como você é, andar metidocom esse seresteiro, um quase capadócio– não é bonito! O major descansou o chapéu-de-sol –um antigo chapéu-de-sol com a hasteinteiramente de madeira, e um cabo devolta, incrustado de pequenos losangos demadrepérola – e respondeu: – Mas você está muito enganada,mana. É preconceito supor-se que todo ohomem que toca violão é umdesclassificado. A modinha é a maisgenuína expressão da poesia nacional e oviolão é o instrumento que ela pede. Nós é 11

que temos abandonado o gênero, mas elejá esteve em honra, em Lisboa, no séculopassado, com o Padre Caldas que teve umauditório de fidalgas. Beckford, um inglês,muito o elogia. – Mas isso foi em outro tempo;agora... – Que tem isso, Adelaide? Convémque nós não deixemos morrer as nossastradições, os usos genuinamentenacionais... – Bem, Policarpo, eu não querocontrariar você; continue lá com as suasmanias. O major entrou para um aposentopróximo, enquanto sua irmã seguia emdireitura ao interior da casa. Quaresmadespiu-se, lavou-se, enfiou a roupa decasa, veio para a biblioteca, sentou-se auma cadeira de balanço, descansando. Estava num aposento vasto, comjanelas para uma rua lateral, e todo ele eraformado de estantes de ferro. Havia perto de dez, com quatroprateleiras, fora as pequenas com os livrosde maior tomo. Quem examinassevagarosamente aquela grande coleção delivros havia de espantar-se ao perceber oespírito que presidia a sua reunião. 12

Na ficção, havia unicamente autoresnacionais ou tidos como tais: o BentoTeixeira, da Prosopopéia; o Gregório deMatos, o Basílio da Gama, o Santa RitaDurão, o José de Alencar (todo), oMacedo, o Gonçalves Dias (todo), além demuitos outros. Podia-se afiançar que nemum dos autores nacionais ounacionalizados de oitenta pra lá faltava nasestantes do major. De História do Brasil, era farta amesse: os cronistas, Gabriel Soares,Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente doSalvador, Armitage, Aires do Casal,Pereira da Silva, Handelmann (Geschichtevon Brasilien), Melo Moraes, Capistrano deAbreu, Southey, Varnhagen, além deoutros mais raros ou menos famosos.Então no tocante a viagens e explorações,que riqueza! Lá estavam Hans Staden, oJean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, oPríncipe de Neuwied, o John Mawe, o vonEschwege, o Agassiz, Couto deMagalhães e se se encontravam tambémDarwin, Freycinet, Cook, Bougainville e atéo famoso Pigafetta, cronista da viagem deMagalhães, é porque todos esses últimosviajantes tocavam no Brasil, resumida ouamplamente. 13

Além destes, havia livros subsidiários:dicionários, manuais, enciclopédias,compêndios, em vários idiomas. Vê-se assim que a sua predileção pelapoética de Porto Alegre e Magalhães nãolhe vinha de uma irremediável ignorânciadas línguas literárias da Europa; aocontrário, o major conhecia bemsofrivelmente francês, inglês e alemão; ese não falava tais idiomas, lia-os etraduzia-os correntemente. A razão tinhaque ser encontrada numa disposiçãoparticular de seu espírito, no fortesentimento que guiava sua vida. Policarpoera patriota. Desde moço, aí pelos vinteanos, o amor da pátria tomou-o todointeiro. Não fora o amor comum, palrador evazio; fora um sentimento sério, grave eabsorvente. Nada de ambições políticas ouadministrativas; o que Quaresma pensou,ou melhor: o que o patriotismo o fezpensar foi num conhecimento inteiro doBrasil, levando-o a meditações sobre osseus recursos, para depois então apontaros remédios, as medidas progressivas,com pleno conhecimento de causa. Não se sabia bem onde nascera, masnão fora decerto em São Paulo, nem noRio Grande do Sul, nem no Pará. Errava 14

quem quisesse encontrar nele qualquerregionalismo: Quaresma era antes de tudobrasileiro. Não tinha predileção por esta ouaquela parte de seu país, tanto assim queaquilo que o fazia vibrar de paixão nãoeram só os pampas do Sul com o seugado, não era o café de São Paulo, nãoeram o ouro e os diamantes de Minas, nãoera a beleza da Guanabara, não era aaltura da Paulo Afonso, não era o estro deGonçalves Dias ou o ímpeto de AndradeNeves – era tudo isso junto, fundido,reunido, sob a bandeira estrelada doCruzeiro. Logo aos dezoito anos quis fazer-semilitar; mas a junta de saúde julgou-oincapaz. Desgostou-se, sofreu, mas nãomaldisse a Pátria. O ministério era liberal,ele se fez conservador e continuou maisdo que nunca a amar a \"terra que o viunascer\". Impossibilitado de evoluir-se sobos dourados do Exército, procurou aadministração e dos seus ramos escolheuo militar. Era onde estava bem. No meio desoldados, de canhões, de veteranos, depapelada inçada de quilos de pólvora, denomes de fuzis e termos técnicos deartilharia, aspirava diariamente aquele 15

hálito de guerra, de bravura, de vitória, detriunfo, que é bem o hálito da Pátria. Durante os lazeres burocráticos,estudou, mas estudou a Pátria, nas suasriquezas naturais, na sua história, na suageografia, na sua literatura e na suapolítica. Quaresma sabia as espécies deminerais, vegetais e animais, que o Brasilcontinha; sabia o valor do ouro, dosdiamantes exportados por Minas, asguerras holandesas, as batalhas doParaguai, as nascentes e o curso de todosos rios. Defendia com azedume e paixão aproeminência do Amazonas sobre todos osdemais rios do mundo. Para isso ia até aocrime de amputar alguns quilômetros aoNilo e era com este rival do \"seu\" rio queele mais implicava. Ai de quem o citassena sua frente! Em geral, calmo e delicado,o major ficava agitado e malcriado, quandose discutia a extensão do Amazonas emface da do Nilo. Havia um ano a esta parte que sededicava ao tupi-guarani. Todas asmanhãs, antes que a \"Aurora, com seusdedos rosados abrisse caminho ao louroFebo\", ele se atracava até ao almoço como Montoya, Arte y diccionario de la lenguaguaraní ó más bien tupí, e estudava o 16

jargão caboclo com afinco e paixão. Narepartição, os pequenos empregados,amanuenses e escreventes, tendo notíciadesse estudo do idioma tupiniquim, deramnão se sabe por que em chamá-lo –Ubirajara. Certa vez, o escreventeAzevedo, ao assinar o ponto, distraído,sem reparar quem lhe estava às costas,disse em tom chocarreiro: \"Você já viu quehoje o Ubirajara está tardando?\" Quaresma era considerado noArsenal: a sua idade, a sua ilustração, amodéstia e honestidade de seu viverimpunham-no ao respeito de todos.Sentindo que a alcunha lhe era dirigida,não perdeu a dignidade, não prorrompeuem doestos e insultos. Endireitou-se,concentrou o pince-nez, levantou o dedoindicador no ar e respondeu: – Senhor Azevedo, não seja leviano.Não queira levar ao ridículo aqueles quetrabalham em silêncio, para a grandeza e aemancipação da Pátria. Nesse dia, o major pouco conversou.Era costume seu, assim pela hora do café,quando os empregados deixavam asbancas, transmitir aos companheiros ofruto de seus estudos, as descobertas quefazia, no seu gabinete de trabalho, de 17

riquezas nacionais. Um dia era o petróleoque lera em qualquer parte, como sendoencontrado na Bahia; outra vez, era umnovo exemplar de árvore de borracha quecrescia no rio Pardo, em Mato Grosso;outra, era um sábio, uma notabilidade, cujabisavó era brasileira; e quando não tinhadescoberta a trazer, entrava pelacorografia, contava o curso dos rios, a suaextensão navegável, os melhoramentosinsignificantes de que careciam para seprestarem a um franco percurso da foz àsnascentes. Ele amava sobremodo os rios;as montanhas lhe eram indiferentes.Pequenas talvez... Os colegas ouviam-no respeitosos eninguém, a não ser esse tal Azevedo, seanimava na sua frente a lhe fazer a menorobjeção, a avançar uma pilhéria, um dito.Ao voltar as costas, porém, vingavam-seda cacetada, cobrindo-o de troças: \"EsteQuaresma! Que cacete! Pensa que somosmeninos de tico-tico... Arre! Não tem outraconversa.\" E desse modo ele ia levando a vida,metade na repartição, sem sercompreendido, e a outra metade em casa,também sem ser compreendido. No dia emque o chamaram de Ubirajara, Quaresma 18

ficou reservado, taciturno, mudo, e só veiofalar porque, quando lavavam as mãosnum aposento próximo à secretária e sepreparavam para sair, alguém suspirando,disse: \"Ah! Meu Deus! Quando poderei ir àEuropa!\" O major não se conteve: levantouo olhar, concertou o pince-nez e faloufraternal e persuasivo: \"Ingrato! Tens umaterra tão bela, tão rica, e queres visitar ados outros! Eu, se algum dia puder, hei depercorrer a minha de princípio ao fim!\" O outro objetou-lhe que por aqui sóhavia febres e mosquitos; o majorcontestou-lhe com estatísticas e atéprovou exuberantemente que o Amazonastinha um dos melhores climas da terra. Eraum clima caluniado pelos viciosos que delá vinham doentes... Era assim o Major PolicarpoQuaresma que acabava de chegar à suaresidência, às quatro e quinze da tarde,sem erro de um minuto, como todas astardes, exceto aos domingos, exatamente,ao jeito da aparição de um astro ou de umeclipse. No mais, era um homem como todosos outros, a não ser aqueles que têmambições políticas ou de fortuna, porqueQuaresma não as tinha no mínimo grau. 19

Sentado na cadeira de balanço, bemao centro de sua biblioteca, o major abriuum livro e pôs-se a lê-lo à espera doconviva. Era o velho Rocha Pita, oentusiástico Rocha Pita da História daAmérica Portuguesa. Quaresma estavalendo aquele famoso período: \"Emnenhuma outra região se mostra o céumais sereno, nem madrugada mais bela aaurora; o sol em nenhum outro hemisfériotem os raios mais dourados...\" mas nãopôde ir ao fim. Batiam à porta. Foi abri-laem pessoa. – Tardei, major? perguntou o visitante. – Não. Chegaste à hora. Acabava de entrar em casa do MajorQuaresma o Senhor Ricardo Coração dosOutros, homem célebre pela suahabilidade em cantar modinhas e tocarviolão. Em começo, a sua fama estiveralimitada a um pequeno subúrbio da cidade,em cujos \"saraus\" ele e seu violãofiguravam como Paganini e a sua rabecaem festas de duques; mas, aos poucos,com o tempo, foi tomando toda a extensãodos subúrbios, crescendo, solidificando-se,até ser considerada como cousa própria aeles. Não se julgue, entretanto, queRicardo fosse um cantor de modinhas aí 20

qualquer, um capadócio. Não: RicardoCoração dos Outros era um artista afreqüentar e a honrar as melhores famíliasdo Méier, Piedade e Riachuelo. Rara era anoite em que não recebesse um convite.Fosse na casa do Tenente Marques, doDoutor Bulhões ou do \"Seu\" Castro, a suapresença era sempre requerida, instada eapreciada. O Doutor Bulhões, até, tinhapelo Ricardo uma admiração especial, umdelírio, um frenesi e, quando o trovadorcantava, ficava em êxtase. \"Gosto muitode canto\", dizia o doutor no trem certa vez,\"mas só duas pessoas me enchem asmedidas: o Tamagno e o Ricardo.\" Essedoutor tinha uma grande reputação nossubúrbios, não como médico, pois quenem óleo de rícino receitava, mas comoentendido em legislação telegráfica, porser chefe de seção da Secretaria dosTelégrafos. Dessa maneira, Ricardo Coração dosOutros gozava da estima geral da altasociedade suburbana. É uma altasociedade muito especial e que só é altanos subúrbios. Compõe-se em geral defuncionários públicos, de pequenosnegociantes, de médicos com algumaclínica, de tenentes de diferentes milícias, 21

nata essa que impa pelas ruasesburacadas daquelas distantes regiões,assim como nas festas e nos bailes, commais força que a burguesia de Petrópolis eBotafogo. Isto é só lá, nos bailes, nasfestas e nas ruas, onde se algum dos seusrepresentantes vê um tipo mais ou menos,olha-o da cabeça aos pés,demoradamente, assim como quem diz:aparece lá em casa que te dou um pratode comida. Porque o orgulho daaristocracia suburbana está em ter todo odia jantar e almoço, muito feijão, muitacarne-seca, muito ensopado – aí, julga ela,é que está a pedra de toque da nobreza,da alta linha, da distinção. Fora dos subúrbios, na Rua doOuvidor, nos teatros, nas grandes festascentrais, essa gente míngua, apaga-se,desaparece, chegando até as suasmulheres e filhas a perder a beleza comque deslumbram, quase diariamente, oslindos cavalheiros dos intermináveis bailesdiários daquelas redondezas. Ricardo, depois de ser poeta e ocantor dessa curiosa aristocracia,extravasou e passou à cidade,propriamente. A sua fama já chegava aSão Cristóvão e em breve (ele o esperava) 22

Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais jáfalavam no seu nome e discutiam oalcance de sua obra e da sua poética... Mas que vinha ele fazer ali, na casade pessoas de propósitos tão altos e tãoseveros hábitos? Não é difícil atinar.Decerto, não vinha auxiliar o major nosseus estudos de geologia, de poética, demineralogia e histórias brasileiras. Como bem supôs a vizinhança, oCoração dos Outros vinha ali tão-somenteensinar o major a cantar modinhas e atocar violão. Nada mais e é simples. De acordo com a sua paixãodominante, Quaresma estivera muitotempo a meditar qual seria a expressãopoético-musical característica da almanacional. Consultou historiadores,cronistas e filósofos e adquiriu certeza queera a modinha acompanhada pelo violão.Seguro dessa verdade, não teve dúvidas:tratou de aprender o instrumentogenuinamente brasileiro e entrar nossegredos da modinha. Estava nisso tudo aquo, mas procurou saber quem era oprimeiro executor e cantor da cidade etomou lições com ele. O seu fim eradisciplinar a modinha e tirar dela um fortemotivo original de arte. 23

Ricardo vinha justamente dar-lhe lição,mas antes disso, por convite especial dodiscípulo, ia compartilhar o seu jantar; efora por isso que o famoso trovadorchegou mais cedo à casa dosubsecretário. – Já sabe dar o \"ré\" sustenido, major?perguntou Ricardo logo ao sentar-se. – Já. – Vamos ver. Dizendo isto, foi desencapotar o seusagrado violão; mas não houve tempo.Dona Adelaide, a irmã de Quaresma,entrou e convidou-os a irem jantar. A sopajá esfriava na mesa, que fossem! – O Senhor Ricardo há de nosdesculpar, disse a velha senhora, apobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazerum frango com petit-pois, mas Policarponão deixou. Disse-me que esse tal petit-pois é estrangeiro e que eu o substituíssepor guando. Onde é que se viu frango comguando? Coração dos Outros aventou quetalvez fosse bom, seria uma novidade enão fazia mal experimentar. – É uma mania de seu amigo, SenhorRicardo, esta de só querer cousas 24

nacionais, e a gente tem que ingerir cadadroga, chi! – Qual, Adelaide, você tem certasojerizas! A nossa terra, que tem todos osclimas do mundo, é capaz de produzir tudoque é necessário para o estômago maisexigente. Você é que deu para implicar. – Exemplo: a manteiga que fica logorançosa. – É porque é de leite, se fosse comoessas estrangeiras aí, fabricadas comgorduras de esgotos, talvez não seestragasse... É isto, Ricardo! Não queremnada da nossa terra... – Em geral é assim, disse Ricardo. – Mas é um erro... Não protegem asindústrias nacionais... Comigo não hádisso: de tudo que há nacional, eu não usoestrangeiro. Visto-me com pano nacional,calço botas nacionais e assim por diante. Sentaram-se à mesa. Quaresmaagarrou uma pequena garrafa de cristal eserviu dous cálices de parati. – É do programa nacional, fez a irmã,sorrindo. – Decerto, e é um magnífico aperitivo.Esses vermutes por aí, drogas! Isto éálcool puro, bom, de cana, não é debatatas ou milho... 25

Ricardo agarrou o cálice comdelicadeza e respeito, levou-o aos lábios efoi como se todo ele bebesse o licornacional. – Está bom, hein? indagou o major. – Magnífico, fez Ricardo, estalando oslábios. – É de Angra. Agora tu vais ver quemagnífico vinho do Rio Grande temos...Qual Borgonha! Qual Bordeaux! Temos noSul muito melhores... E o jantar correu assim, nesse tom.Quaresma exaltando os produtosnacionais: a banha, o toucinho e o arroz; airmã fazia pequenas objeções e Ricardodizia: \"é, é, não há dúvida\" – rolando nasórbitas os olhos pequenos, franzindo atesta diminuta que se sumia no cabeloáspero, forçando muito a sua fisionomiamiúda e dura a adquirir uma expressãosincera de delicadeza e satisfação. Acabado o jantar foram ver o jardim.Era uma maravilha; não tinha nem umaflor... Certamente não se podia tomar portal míseros beijos-de-frade, palmas-de-santa-rita, quaresmas lutulentas, manacásmelancólicos e outros belos exemplaresdos nossos campos e prados. Como emtudo o mais, o major era em jardinagem 26

essencialmente nacional. Nada de rosas,de crisântemos, de magnólias – floresexóticas; as nossas terras tinham outrasmais belas, mais expressivas, maisolentes, como aquelas que ele tinha ali. Ricardo ainda uma vez concordou eos dous entraram na sala, quando ocrepúsculo vinha devagar, muito vagarosoe lento, como se fosse um longo adeussaudoso do sol ao deixar a terra, pondonas cousas a sua poesia dolente e a suadeliqüescência. Mal foi aceso o gás, o mestre deviolão empunhou o instrumento, apertou ascravelhas, correu a escala, abaixando-sesobre ele como se o quisesse beijar. Tiroualguns acordes, para experimentar; edirigiu-se ao discípulo, que já tinha o seuem posição: – Vamos ver. Tire a escala, major. Quaresma preparou os dedos, afinoua viola, mas não havia na sua execuçãonem a firmeza, nem o dengue com que omestre fazia a mesma operação. – Olhe, major, é assim. E mostrava a posição do instrumento,indo do colo ao braço esquerdo estendido,seguro levemente pelo direito; e emseguida acrescentou: 27

– Major, o violão é o instrumento dapaixão. Precisa de peito para falar... Épreciso encostá-lo, mas encostá-lo commacieza e amor, como se fosse a amada,a noiva, para que diga o que sentimos... Diante do violão, Ricardo ficavaloquaz, cheio de sentenças, todo elefremindo de paixão pelo instrumentodesprezado. A lição durou uns cinqüenta minutos.O major sentiu-se cansado e pediu que omestre cantasse. Era a primeira vez queQuaresma lhe fazia esse pedido; emboralisonjeado, quis a vaidade profissional queele, a princípio, se negasse. – Oh! Não tenho nada novo, umacomposição minha. Dona Adelaide obtemperou então: – Cante uma de outro. – Oh! Por Deus, minha senhora! Eu sócanto as minhas. O Bilac – conhecem? –quis fazer-me uma modinha, eu nãoaceitei; você não entende de violão, \"seu\"Bilac. A questão não está em escrever unsversos certos que digam cousas bonitas; oessencial é achar-se as palavras que oviolão pede e deseja. Por exemplo: se eudissesse, como em começo quis, n' \"O Pé\"uma modinha minha: \"o teu pé é uma folha 28

de trevo\" – não ia com o violão. Queremver? E ensaiou em voz baixa,acompanhado pelo instrumento: o - teu -pé – é - uma - fo - lha - de - tre - vo. – Vejam, continuou ele, como não dá.Agora reparem: o - teu - pé - é - uma - uma- ro - sa - de - mir - ra. É outra cousa, nãoacham? – Não há dúvida, disse a irmã deQuaresma. – Cante esta, convidou o major. – Não, objetou Ricardo. Está velha,vou cantar a \"Promessa\", conhecem? – Não, disseram os dous irmãos. – Oh! Anda por aí como as \"Pombas\"do Raimundo. – Cante lá, Senhor Ricardo, pediuDona Adelaide. Ricardo Coração dos Outros por fimafinou ainda uma vez o violão e começouem voz fraca: Prometo pelo Santíssimo Sacramento Que serei tua paixão... – Vão vendo, disse ele num intervalo,quanta imagem, quanta imagem! 29

E continuou. As janelas estavamabertas. Moças e rapazes começaram a seamontoar na calçada para ouvir omenestrel. Sentindo que a rua seinteressava, Coração dos Outros foiapurando a dicção, tomando um ar ferozque ele supunha ser de ternura eentusiasmo; e, quando acabou, as palmassoaram do lado de fora e uma moça entrouprocurando Dona Adelaide. – Senta-te Ismênia, disse ela. – A demora é pouca. Ricardo aprumou-se na cadeira, olhouum pouco a moça e continuou a dissertarsobre a modinha. Aproveitando umapausa, a irmã de Quaresma perguntou àmoça: – Então, quando te casas? Era a pergunta que se lhe faziasempre. Ela então curvava do lado direitoa sua triste cabecinha, coroada demagníficos cabelos castanhos, com tonsde ouro, e respondia: – Não sei... Cavalcanti forma-se no fimdo ano e então marcaremos. Isto era dito arrastado, com umapreguiça de impressionar. Não era feia a menina, a filha dogeneral, vizinho de Quaresma. Era até 30

bem simpática, com a sua fisionomia depequenos traços mal desenhados ecobertos de umas tintas de bondade. Aquele seu noivado durava há anos; onoivo, o tal Cavalcanti, estudava paradentista, um curso de dous anos, mas queele arrastava há quatro, e Ismênia tinhasempre que responder à famosa pergunta:– \"Então quando se casa?\" – \"Não sei...Cavalcanti forma-se para o ano e...\" Intimamente ela não se incomodava.Na vida, para ela, só havia uma cousaimportante: casar-se; mas pressa nãotinha, nada nela a pedia. Já agarrara umnoivo, o resto era questão de tempo. Após responder a Dona Adelaide,explicou o motivo da visita. Viera, em nome do pai, convidarRicardo Coração dos Outros a cantar emcasa dela. – Papai, disse Dona Ismênia, gostamuito de modinhas... É do Norte; asenhora sabe, Dona Adelaide, que a gentedo Norte aprecia muito. Venham. E para lá foram. *** 31

II Reformas Radicais Havia bem dez dias que o MajorQuaresma não saía de casa. Na suameiga e sossegada casa de SãoCristóvão, enchia os dias da forma maisútil e agradável às necessidades do seuespírito e do seu temperamento. Demanhã, depois da toilette, e do café,sentava-se no divã da sala principal e liaos jornais. Lia diversos, porque sempreesperava encontrar num ou noutro umanotícia curiosa, a sugestão de uma idéiaútil à sua cara pátria. Os seus hábitosburocráticos faziam-no almoçar cedo; e,embora estivesse de férias, para os nãoperder, continuava a tomar a primeirarefeição de garfo às nove e meia damanhã. Acabado o almoço, dava umas voltaspela chácara em que predominavam asfruteiras nacionais, recebendo a pitanga eo cambuim os mais cuidadosostratamentos aconselhados pela pomologia,como se fossem bem cerejas ou figos. O passeio era demorado e filosófico.Conversando com o preto Anastácio, que 32

lhe servia há trinta anos, sobre cousasantigas – o casamento das princesas, aquebra do Souto e outras – o majorcontinuava com o pensamento preso aosproblemas que o preocupavamultimamente. Após uma hora ou menos,voltava à biblioteca e mergulhava nasrevistas do Instituto Histórico, no FernãoCardim, nas cartas de Nóbrega, nos anaisda Biblioteca, no von den Stein e tomavanotas sobre notas, guardando-as numapequena pasta ao lado. Estudava osíndios. Não fica bem dizer estudava,porque já o fizera há tempos, não só notocante à língua, que já quase falava,como também nos simples aspectosetnográficos e antropológicos. Recordava(é melhor dizer assim), afirmava certasnoções dos seus estudos anteriores, vistoestar organizando um sistema decerimônias e festas que se baseasse noscostumes dos nossos silvícolas eabrangesse todas as relações sociais. Para bem compreender o motivodisso, é preciso não esquecer que o major,depois de trinta anos de meditaçãopatriótica, de estudos e reflexões, chegavaagora ao período da frutificação. Aconvicção que sempre tivera de ser o 33

Brasil o primeiro país do mundo e o seugrande amor à pátria eram agora ativos eimpeliram-no a grandes cometimentos. Elesentia dentro de si impulsos imperiosos deagir, de obrar e de concretizar suas idéias.Eram pequenos melhoramentos, simplestoques, porque em si mesma (era a suaopinião), a grande pátria do Cruzeiro sóprecisava de tempo para ser superior àInglaterra. Tinha todos os climas, todos os frutos,todos os minerais e animais úteis, asmelhores terras de cultura, a gente maisvalente, mais hospitaleira, mais inteligentee mais doce do mundo – o que precisavamais? Tempo e um pouco de originalidade.Portanto, dúvidas não flutuavam mais noseu espírito, mas no que se referia àoriginalidade de costumes e usanças, nãose tinham elas dissipado, antes setransformaram em certeza após tomarparte na folia do \"Tangolomango\", numafesta que o general dera em casa. Caso foi que a visita do Ricardo e doseu violão ao bravo militar veio despertarno general e na família um gosto pelasfestanças, cantigas e hábitosgenuinamente nacionais, como se diz poraí. Houve em todos um desejo de sentir, 34

de sonhar, de poetar à maneira populardos velhos tempos. Albernaz, o general,lembrava-se de ter visto tais cerimônias nasua infância; Dona Maricota, sua mulher,até ainda se lembrava de uns versos deReis; e os seus filhos, cinco moças e umrapaz, viram na cousa um pretexto defestas e, portanto, aplaudiram oentusiasmo dos progenitores. A modinhaera pouco; os seus espíritos pediam cousamais plebéia, mais característica eextravagante. Quaresma ficou encantado, quandoAlbernaz falou em organizar umachegança, à moda do Norte, por ocasiãodo aniversário de sua praça. Em casa dogeneral era assim: qualquer aniversáriotinha a sua festa, de forma que havia bemumas trinta por ano, não contandodomingos, dias feriados e santificados emque se dançava também. O major pensara até ali pouco nessascousas de festas e danças tradicionais,entretanto viu logo a significação altamentepatriótica do intento. Aprovou e animou ovizinho. Mas quem havia de ensaiar, dedar os versos e a música? Alguém lembroua tia Maria Rita, uma preta velha, quemorava em Benfica, antiga lavadeira da 35

família Albernaz. Lá foram os dous, oGeneral Albernaz e o Major Quaresma,alegres, apressados, por uma linda ecristalina tarde de abril.O general nada tinha de marcial, nemmesmo o uniforme que talvez nãopossuísse. Durante toda a sua carreiramilitar, não viu uma única batalha, nãotivera um comando, nada fizera quetivesse relação com a sua profissão e oseu curso de artilheiro. Fora sempreajudante-de-ordens, assistente,encarregado disso ou daquilo, escriturário,almoxarife, e era secretário do ConselhoSupremo Militar, quando se reformou emgeneral. Os seus hábitos eram de um bomchefe de seção e a sua inteligência nãoera muito diferente dos seus hábitos. Nadaentendia de guerras, de estratégia, detática ou de história militar; a suasabedoria a tal respeito estava reduzida àsbatalhas do Paraguai, para ele a maior e amais extraordinária guerra de todos ostempos.O altissonante título de general, quelembrava cousas sobre-humanas dosCésares, dos Turennes e dos GustavosAdolfos, ficava mal naquele homemplácido, medíocre, bonachão, cuja única 36

preocupação era casar as cinco filhas earranjar \"pistolões\" para fazer passar ofilho nos exames do Colégio Militar.Contudo, não era conveniente que seduvidasse das suas aptidões guerreiras.Ele mesmo, percebendo o seu ar muitocivil, de onde em onde, contava umepisódio de guerra, uma anedota militar.\"Foi em Lomas Valentinas\", dizia ele... Sealguém perguntava: \"O general assistiu abatalha?\" Ele respondia logo: \"Não pude.Adoeci e vim para o Brasil, nas vésperas.Mas soube pelo Camisão, pelo Venâncio,que a cousa esteve preta.\" O bonde que os levava até à velhaMaria Rita percorria um dos trechos maisinteressantes da cidade. Ia peloPedregulho, uma velha porta da cidade,antigo término de um picadão que ia ter aMinas, se esgalhava para São Paulo eabria comunicações com o Curato deSanta Cruz. Por aí em costas de bestas vieram terao Rio o ouro e o diamante de Minas eainda ultimamente os chamados gênerosdo país. Não havia ainda cem anos que ascarruagens d'El Rei Dom João VI, pesadascomo naus, a balouçarem-se sobre asquatro rodas muito separadas, passavam 37

por ali para irem ter ao longínquo SantaCruz. Não se pode crer que a cousa fosselá muito imponente; a Corte andava emapuros de dinheiro e o rei era relaxado.Não obstante os soldados remendados,tristemente montados em \"pangarés\"desanimados, o prestígio devia ter a suagrandeza, não por ele mesmo, mas pelashumilhantes marcas de respeito que todostinham que dar à sua lamentávelmajestade. Entre nós tudo é inconsciente,provisório, não dura. Não havia ali nadaque lembrasse esse passado. As casasvelhas, com grandes janelas, quasequadradas, e vidraças de pequenos vidroseram de há bem poucos anos, menos decinqüenta. Quaresma e Albernaz atravessaramtudo aquilo sem reminiscências e foramaté ao ponto. Antes perlustraram a zona doturfe, uma pequena porção da cidade ondese amontoam cocheiras e coudelarias deanimais de corridas, tendo grandesferraduras, cabeça de cavalos, panópliasde chicotes e outros emblemas hípicos,nos pilares dos portões, nas almofadasdas portas, por toda parte onde taisdistintivos fiquem bem e dêem na vista. 38

A casa da velha preta ficava além doponto, para as bandas da estação daestrada de ferro Leopoldina. Lá foram ter.Passaram pela estação. Sobre um largoterreiro, negro de moinha de carvão depedra, medas de lenha e imensas tulhasde sacos de carvão-vegetal seacumulavam; mais adiante um depósito delocomotivas e sobre os trilhos algumasmanobravam e outras arfavam sobpressão. Apanharam afinal o carreiro ondeficava a casa da Maria Rita. O tempoestivera seco e por isso se podia andar porele. Para além do caminho, estendia-se avasta região de mangues, uma zonaimensa, triste e feia, que vai até ao fundoda baía e, no horizonte, morre ao sopé dasmontanhas azuis de Petrópolis. Chegaramà casa da velha. Era baixa, caiada ecoberta com as pesadas telhasportuguesas. Ficava um pouco afastada daestrada. À direita havia um monturo: restosde cozinha, trapos, conchas de mariscos,pedaços de louça caseira – um sambaquia fazer-se para gáudio de arqueólogo defuturo remoto; à esquerda, crescia ummamoeiro e bem junto à cerca, no mesmolado, havia um pé de arruda. Bateram. 39

Uma pretinha moça apareceu na janelaaberta. – Que desejam? Disseram o que queriam eaproximaram-se. A moça gritou para ointerior da casa: – Vovó estão aí dous \"moços\" quequerem falar com a senhora. Entrem,façam o favor – disse ela depois, dirigindo-se ao general e ao seu companheiro. A sala era pequena e de telha-vã.Pelas paredes, velhos cromos defolhinhas, registros de santos, recortes deilustrações de jornais baralhavam-se esubiam por elas acima até dous terços daaltura. Ao lado de uma Nossa Senhora daPenha, havia um retrato de Vítor Emanuelcom enormes bigodes em desordem; umcromo sentimental de folhinha – umacabeça de mulher em posição de sonho –parecia olhar um São João Batista ao lado.No alto da porta que levava ao interior dacasa, uma lamparina, numa cantoneira,enchia de fuligem a Conceição de louça. Não tardou vir a velha. Entrou emcamisa de bicos de rendas, mostrando opeito descarnado, enfeitado com um colarde miçangas de duas voltas. Capengavade um pé e parecia querer ajudar a 40

marcha, com a mão esquerda pousada naperna correspondente. – Boas-tardes, tia Maria Rita, disse ogeneral. Ela respondeu, mas não deu mostrasde ter reconhecido quem lhe falava. Ogeneral atalhou: – Não me conhece mais? Sou oGeneral, o Coronel Albernaz. – Ah! É sô coroné!... Há quanto tempo!Como está nhã Maricota? – Vai bem. Minha velha, nósqueríamos que você nos ensinasse umascantigas. – Quem sou eu, ioiô! – Ora! Vamos, tia Maria Rita... vocênão perde nada... você não sabe o\"Bumba-meu-Boi\"? – Quá, ioiô, já mi esqueceu. – E o \"Boi Espácio\"? – Cousa véia, do tempo do cativeiro –pra que sô coroné qué sabê disso? Ela falava arrastando as sílabas, comum doce sorriso e um olhar vago. – É para uma festa... Qual é a quevocê sabe? A neta que até ali ouvia calada aconversa animou-se a dizer alguma cousa, 41

deixando perceber rapidamente a fiadareluzente de seus dentes imaculados: – Vovó já não se lembra. O general, que a velha chamavacoronel, por tê-lo conhecido nesse posto,não atendeu a observação da moça einsistiu: – Qual esquecida, o quê! Deve saberainda alguma cousa, não é, titia? – Só sei o \"Bicho Tutu\", disse a velha. – Cante lá! – Ioiô sabe! Não sabe? Quá, sabe! – Não sei, cante. Se eu soubesse nãovinha aqui. Pergunte aqui ao meu amigo, oMajor Policarpo, se sei. Quaresma fez com a cabeça sinalafirmativo e a preta velha, talvez comgrandes saudades do tempo em que eraescrava e ama de alguma grande casa,farta e rica, ergueu a cabeça, como paramelhor recordar-se, e entoou: É vem tutu Por detrás do murundu Pra cumê sinhozinho Cum bucado de angu. 42

– Ora! Fez o general com enfado, issoé cousa antiga de embalar crianças. Vocênão sabe outra? – Não, sinhô. Já mi esqueceu. Os dous saíram tristes. Quaresmavinha desanimado. Como é que o povonão guardava as tradições de trinta anospassados? Com que rapidez morriamassim na sua lembrança os seus folgares eas suas canções? Era bem um sinal defraqueza, uma demonstração deinferioridade diante daqueles povostenazes que os guardam durante séculos!Tornava-se preciso reagir, desenvolver oculto das tradições, mantê-las semprevivazes nas memórias e nos costumes... Albernaz vinha contrariado. Contavaarranjar um número bom para a festa queia dar, e escapava-lhe. Era quase aesperança de casamento de uma dasquatro filhas que se ia, das quatro, porqueuma delas já estava garantida, graças aDeus! O crepúsculo chegava e eles entraramem casa mergulhados na melancolia dahora. A decepção, porém, demorou dias.Cavalcanti, o noivo de Ismênia, informouque nas imediações morava um literato, 43

teimoso cultivador dos contos e cançõespopulares do Brasil. Foram a ele. Era umvelho poeta que teve sua fama aí pelossetenta e tantos, homem doce e ingênuoque se deixara esquecer em vida, comopoeta, e agora se entretinha em publicarcoleções, que ninguém lia, de contos,canções, adágios e ditados populares. Foi grande a sua alegria quandosoube o objeto da visita daquelessenhores. Quaresma estava animado efalou com calor; e Albernaz também,porque via na sua festa, com um númerode folklore, meio de chamar a atençãosobre sua casa, atrair gente e... casar asfilhas. A sala em que foram recebidos eraampla; mas estava tão cheia de mesas,estantes, pejadas de livros, pastas, latas,que mal se podia mover nela. Numa latalia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta:São Bonifácio do Cabresto. – Os senhores não sabem, disse ovelho poeta, que riqueza é a nossa poesiapopular! Que surpresas ela reserva!...Ainda há dias recebi uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Queremver? 44

O colecionador revolveu pastas eafinal trouxe de lá um papel onde leu: Se Deus enxergasse pobre Não me deixaria assim: Dava no coração dela Um lugarzinho pra mim. O amor que tenho por ela Já não cabe no meu peito; Sai-me pelos olhos afora Voa às nuvens direito. – Não é bonito?... Muito! Se ossenhores conhecessem então o ciclo domacaco, a coleção de histórias que o povotem sobre o símio?... Oh! Uma verdadeiraepopéia cômica! Quaresma olhava para o velho poetacom o espanto satisfeito de alguém queencontrou um semelhante no deserto; eAlbernaz, um momento contagiado pelapaixão do folclorista, tinha mais inteligênciano olhar com que o encarava. O velho poeta guardou a canção deUrubu-de-Baixo, numa pasta; e foi logo àoutra, donde tirou várias folhas de papel.Veio até junto aos dous visitantes e disse-lhes: 45

– Vou ler aos senhores uma pequenahistória do macaco, das muitas que o povoconta... Só eu já tenho perto de quarenta epretendo publicá-las, sob o título Históriasdo Mestre Simão. E, sem perguntar se os incomodavaou se estavam dispostos a ouvir, começou: \"O macaco perante o juiz de direito.Andava um bando de macacos em troça,pulando de árvore em árvore, nas bordasde uma grota. Eis senão quando um delesvê no fundo uma onça que lá caíra. Osmacacos se enternecem e resolvem salvá-la. Para isso, arrancaram cipós,emendaram-nos bem, amarraram a cordaassim feita à cintura de cada um deles eatiraram uma das pontas à onça. Com oesforço reunido de todos, conseguiram içá-la e logo se desamarraram, fugindo. Umdeles, porém, não pôde fazer a tempo e aonça segurou-o imediatamente. – Compadre Macaco, disse ela, tenhapaciência. Estou com fome e você vaifazer-me o favor de deixar-se comer. O macaco rogou, instou, chorou; masa onça parecia inflexível. Simão entãolembrou que a demanda fosse resolvidapelo juiz de direito. Foram a ele; o macacosempre agarrado pela onça. É juiz de 46

direito entre os animais o jabuti, cujasaudiências são dadas à borda dos rios,colocando-se ele em cima de uma pedra.Os dous chegaram e o macaco expôs assuas razões. O jabuti ouviu-o e no fim ordenou: – Bata palmas. Apesar de seguro pela onça, omacaco pôde assim mesmo bater palmas.Chegou a vez da onça, que também expôsas suas razões e motivos. O juiz, como daprimeira vez, determinou ao felino: – Bata palmas. A onça não teve remédio senão largaro macaco, que se escapou, e também ojuiz, atirando-se n'água.\" Acabando a leitura, o velho dirigiu-seaos dous: – Não acham interessante? Muito! Háno nosso povo muita intenção, muitacriação, verdadeiro material para fabliauxinteressantes... No dia em que aparecerum literato de gênio que o fixe numa formaimortal!... Ah! Então! Dizendo isto, brincava nas suas facesum demorado sorriso de satisfação e nosseus olhos abrolhavam duas lágrimasfurtivas. 47

– Agora, continuou ele, depois depassada a emoção, vamos ao que serve.\"O Boi Espácio\" ou o \"Bumba-meu-boi\"ainda é muita cousa para vocês... É melhorirmos devagar, começar pelo mais fácil...Está aí o \"Tangolomango\", conhecem? – Não, disseram os dous. – É divertido. Arranjem dez crianças,uma máscara de velho, uma roupaestrambólica para um dos senhores, queeu ensaio. O dia chegou. A casa do generalestava cheia. Cavalcanti viera; e ele e anoiva, à parte, no vão de uma janela,pareciam ser os únicos que não tinhaminteresse pela folia. Ele, falando muito,cheio de trejeitos no olhar; ela, meio fria,deitando de quando em quando, para onoivo, um olhar de gratidão. Quaresma fez o \"Tangolomango\", istoé, vestiu uma velha sobrecasaca dogeneral, pôs uma imensa máscara develho, agarrou-se a um bordão curvo, emforma de báculo, e entrou na sala. As dezcrianças cantaram em coro: 48

Uma mãe teve dez filhos Todos os dez dentro de um pote: Deu o Tangolomango nele Não ficaram senão nove. Por aí, o major avançava, batia com obáculo no assoalho, fazia hu! hu! hu!; ascrianças fugiam, afinal ele agarrava uma elevava para dentro. Assim ia executandocom grande alegria da sala, quando, pelaquinta estrofe, lhe faltou o ar, lhe ficou avista escura e caiu. Tiraram-lhe a máscara,deram-lhe algumas sacudidelas eQuaresma voltou a si. O acidente, entretanto, não lhe deunenhum desgosto pelo folklore. Comproulivros, leu todas as publicações a respeito,mas a decepção lhe veio ao fim dealgumas semanas de estudo. Quase todas as tradições e cançõeseram estrangeiras; o próprio\"Tangolomango\" o era também. Tornava-se, portanto, preciso arranjar algumacousa própria, original, uma criação danossa terra e dos nossos ares. Essa idéia levou-o a estudar oscostumes tupinambás; e, como uma idéiatraz outra, logo ampliou o seu propósito eeis a razão por que estava organizando um 49

código de relações, de cumprimentos, decerimônias domésticas e festas, calcadonos preceitos tupis. Desde dez dias que se entregava aessa árdua tarefa, quando (era domingo)lhe bateram à porta, em meio de seutrabalho. Abriu, mas não apertou a mão.Desandou a chorar, a berrar, a arrancar oscabelos, como se tivesse perdido a mulherou um filho. A irmã correu lá de dentro, oAnastácio também, e o compadre e a filha,pois eram eles, ficaram estupefatos nolimiar da porta. – Mas que é isso, compadre? – Que é isso, Policarpo? – Mas, meu padrinho... Ele ainda chorou um pouco. Enxugouas lágrimas e, depois, explicou com amaior naturalidade: – Eis aí! Vocês não têm a mínimanoção das cousas da nossa terra. Queriamque eu apertasse a mão. Isto não é nosso!Nosso cumprimento é chorar quandoencontramos os amigos, era assim quefaziam os tupinambás. O seu compadre Vicente, a filha eDona Adelaide entreolharam-se, semsaber o que dizer. O homem estaria doido?Que extravagância! 50


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