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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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Quaresma, e o comandante, Bustamente,que, por modéstia, se fez simplesmentetenente-coronel. Tem quarenta praças o destacamentoque Quaresma comanda, três alferes, doustenentes; mas os oficiais pouco aparecem.Estão doentes ou licenciados e só ele, oantigo agricultor do \"Sossego\", e umalferes, Polidoro, este mesmo só à noite,estão a postos. Um soldado entrou: – Senhor comandante, posso iralmoçar? – Pode. Chama-me o cabo Ricardo. A praça saiu capengando em cima degrandes botinas; o pobre homem usavaaquela peça protetora como um castigo.Assim que se viu no mato, que levava asua casa, tirou-as e sentiu pelo rosto osopro da liberdade. O comandante chegou à janela. Acerração se ia dissipando. Já se via o solque brilhava como um disco de ouro fosco. Ricardo Coração dos Outrosapareceu. Estava engraçado dentro do seufardamento de caporal. A blusa eracurtíssima, sungada; os punhos lheapareciam inteiramente; e as calças eramcompridíssimas e arrastavam no chão. – Como vais, Ricardo? 301

– Bem. E o senhor, major? – Assim. Quaresma deitou sobre o inferior eamigo aquele seu olhar agudo edemorado: – Andas aborrecido, não é? O trovador sentiu-se alegre com ointeresse do comandante: – Não... Para que dizer, major, quesim... Se a coisa for assim até ao fim, nãoé mau... O diabo é quando há tiro... Umacoisa, major; não se poderia, assim, aípelas horas em que não há que fazer, irnas mangueiras, cantar um pouco... O major coçou a cabeça, alisou ocavanhaque e disse: – Eu, não sei... É... – O senhor sabe que isso de cantarbaixo é remar em seco... Dizem que noParaguai... – Bem. Cante lá; mas não grite, hein? Calaram-se um pouco; Ricardo iapartir quando o major recordou: – Manda-me trazer o almoço. Quaresma jantava e almoçava alimesmo. Não era raro também dormir. Asrefeições eram-lhe fornecidas por um\"frege\" próximo e ele dormia em um quartodaquela edificação imperial. Porque a casa 302

em que se acantonara o destacamento erao pavilhão do imperador, situado na antigaQuinta da Ponta do Caju. Ficavam nelatambém a estação da estrada de ferro doRio Douro e uma grande e barulhentaserraria. Quaresma veio até à porta, olhoua praia suja e ficou admirado que oimperador a quisesse para banhos. Acerração se ia dissipando inteiramente. As formas das cousas saíammodeladas do seio daquela massa denévoa pesada; e, satisfeitas, como se opesadelo tivesse passado. Primeirosurgiam as partes baixas, lentamente; epor fim, quase repentinamente, as altas. À direita, havia a Saúde, a Gamboa,os navios de comércio: galeras de trêsmastros, cargueiros a vapor, altaneirosbarcos à vela – que iam saindo da bruma,e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar depaisagem holandesa; à esquerda, era osaco da Raposa, o Retiro Saudoso, aSapucaia horrenda, a ilha do Governador,os Órgãos azuis, altos de tocar no céu; emfrente, a ilha dos Ferreiros, com os seusdepósitos de carvão; e, alongando a vistapelo mar sossegado, Niterói, cujasmontanhas acabavam de recortar-se nocéu azul, à luz daquela manhã atrasada. 303

A neblina foi-se e um galo cantou. Eracomo se a alegria voltasse à terra; era umaaleluia. Aqueles chiados, aqueles apitos,os guinchos tinham um acento festivo decontentamento. Chegou o almoço e o sargento veiodizer a Quaresma que havia duasdeserções. – Mais duas? fez admirado o major. – Sim, senhor. O cento e vinte e cincoe o trezentos e vinte não responderamhoje a revista. – Faça a parte. Quaresma almoçava. O TenenteFontes, o homem do canhão, chegou.Quase nunca dormia ali; pernoitava emcasa, e, durante o dia, vinha ver as cousascomo iam. Uma madrugada, ele não estava. Atreva ainda era profunda. O soldado devigia viu lá ao longe um vulto que se moviadentro da sombra, resvalando sobre aságuas do mar. Não trazia luz alguma: só omovimento daquela mancha escurarevelava uma embarcação, e também aligeira fosforescência das águas. Osoldado deu rebate; o pequenodestacamento pôs-se a postos eQuaresma apareceu. 304

– O canhão! Já! Avante! ordenou ocomandante. E em seguida, nervoso,recomendou: – Esperem um pouco. Correu a casa e foi consultar os seuscompêndios e tabelas. Demorou-se e alancha avançava, os soldados estavamtontos e um deles tomou a iniciativa:carregou a peça e disparou-a. Quaresma reapareceu correndo,assustado, e disse, entrecortado peloresfolegar: – Viram bem... a distância... a alça... oângulo... É preciso ter sempre em vista aeficiência do fogo. Fontes veio e sabendo do caso no diaseguinte riu-se muito: – Ora, major, você pensa que está emum polígono, fazendo estudos práticos...Fogo para diante! E assim era. Quase todas as tardeshavia bombardeio, do mar para asfortalezas, e das fortalezas para o mar; e,tanto os navios como os fortes saíamincólumes de tão terríveis provas. Lá vinha uma ocasião, porém, queacertavam, então os jornais noticiavam:\"Ontem, o forte Acadêmico fez ummaravilhoso disparo. Com o canhão tal, 305

meteu uma bala no 'Guanabara'.\" No diaseguinte, o mesmo jornal retificava, apedido da bateria do cais Pharoux, que eraa que tinha feito o disparo certeiro.Passavam-se dias e a cousa já estavaesquecida, quando aparecia uma carta deNiterói, reclamando as honras do tiro paraa fortaleza de Santa Cruz. O Tenente Fontes chegou e esteveexaminando o canhão com o faro deentendedor. Havia uma trincheira de fardode alfafa e a boca da peça saía por entreos fiapos de palha, como as goelas de umanimal feroz oculto entre ervas. Olhava o horizonte, depois de exameatento ao canhão, e considerava a ilha dasCobras, quando ouviu o gemer do violão euma voz que dizia: Prometo pelo Santíssimo Sacramento... Dirigiu-se para o local donde partiamos sons e se lhe derrapou este lindíssimoquadro: à sombra de uma grande árvore,os soldados deitados ou sentados emcírculo, em torno de Ricardo Coração dosOutros, que entoava endechas magoadas. As praças tinham acabado de almoçare beber a pinga, e estavam tão 306

embevecidas na canção de Ricardo quenão deram pela chegada do jovem oficial. – Que é isto? disse ele severamente. Os soldados levantaram-se todos, emcontinência; e Ricardo, com a mão direitano gorro, perfilado, e a esquerda,segurando o violão, que repousava nochão, desculpou-se: – \"Seu\" tenente, foi o major quempermitiu. Vossa Senhoria sabe que se nósnão tivéssemos ordem, não iríamosbrincar. – Bem. Não quero mais isto, disse ooficial. – Mas, objetou Ricardo, o SenhorMajor Quaresma... – Não temos aqui Major Quaresma.Não quero, já disse! Os soldados debandaram e o TenenteFontes seguiu para a velha casa imperial,ao encontro do major do \"Cruzeiro do Sul\".Quaresma continuava no seu estudo, umrolar de Sísifo, mas voluntário, para agrandeza da pátria. Fontes foi entrando edizendo: – Que é isto, \"Seu\" Quaresma! Entãoo senhor permite cantorias nodestacamento? 307

O major não se lembrava mais dacousa e ficou espantado com o ar severo eríspido do moço. Ele repetiu: – Então o senhor permite que osinferiores cantem modinhas e toquemviolão, em pleno serviço? – Mas que mal faz? Ouvi dizer que emcampanha... – E a disciplina? E o respeito? – Bem, vou proibir, disse Quaresma. – Não é preciso. Já proibi. Quaresma não se deu por agastado,não percebeu motivo para agastamento edisse com doçura: – Fez bem. Em seguida perguntou ao oficial omodo de extrair a raiz quadrada de umafração decimal; o rapaz ensinou-lhe e elesestiveram cordialmente conversando sobrecousas vulgares. Fontes era noivo de Lalá,a terceira filha do general Albernaz, eesperava acabar a revolta para efetuar ocasamento. Durante uma hora a conversaentre os dous versou sobre este pequeninofato familiar a que estavam ligados aquelesestrondos, aqueles tiros, aquela solenedisputa entre duas ambições. Subitamente,a corneta feriu o ar com a sua voz 308

metálica. Fontes assestou o ouvido; omajor perguntou: – Que toque é? – Sentido. Os dous saíram. Fontes perfeitamentefardado; e o major apertando o talim, semencontrar jeito, tropeçando na espadavenerável que teimava em se lhe meterentre as pernas curtas. Os soldados jáestavam nas trincheiras, armas à mão; ocanhão tinha ao lado a muniçãonecessária. Uma lancha avançavalentamente, com a proa alta assestadapara o posto. De repente, saiu de suaborda um golfão de fumaça espessa:Queimou! – gritou uma voz. Todos seabaixaram, a bala passou alto, zunindo,cantando, inofensiva. A lancha continuavaa avançar impávida. Além dos soldados,havia curiosos, garotos, a assistir o tiroteio,e fora um destes que gritara: queimou! E assim sempre. Às vezes eleschegavam bem perto à tropa, àstrincheiras, atrapalhando o serviço; emoutras, um cidadão qualquer chegava aooficial e muito delicadamente pedia: Osenhor dá licença que dê um tiro? O oficialacedia, os serventes carregavam a peça eo homem fazia a pontaria e um tiro partia. 309

Com o tempo, a revolta passou a seruma festa, um divertimento da cidade...Quando se anunciava um bombardeio,num segundo, o terraço do PasseioPúblico se enchia. Era como se fosse umanoite de luar, no tempo em que era do tomapreciá-las no velho jardim de Dom Luísde Vasconcelos, vendo o astro solitáriopratear a água e encher o céu. Alugavam-se binóculos e tanto osvelhos como as moças, os rapazes comoas velhas, seguiam o bombardeio comouma representação de teatro: \"QueimouSanta Cruz! Agora é o 'Aquidabã'! Lá vai!\"E dessa maneira a revolta ia,familiarmente, entrando nos hábitos e noscostumes da cidade. Nos cais Pharoux, os pequenosgarotos, vendedores de jornais,engraxates, quitandeiros ficavam atrás dasportadas, dos urinários, das árvores, a ver,a esperar a queda das balas; e quandoacontecia cair uma, corriam todos em bolo,a apanhá-la como se fosse uma moeda ouguloseima. As balas ficaram na moda. Eramalfinetes de gravata, berloques de relógios,lapiseiras, feitas com as pequenas balasde fuzis; faziam-se também coleções das 310

médias e com os seus estojos de metal,areados, polidos, lixados, ornavam osconsolos, os dunkerques das casasmédias; as grandes, os \"melões\" e as\"abóboras\", como chamavam, guarneciamos jardins, como vasos de faiança ouestátuas. A lancha continuava a atirar; Fontesfez um disparo. O canhão vomitou oprojétil, recuou um pouco e logo foi postoem posição. A embarcação respondeu e orapazote gritou: queimou! Eram sempre esses garotos queanunciavam os tiros do inimigo. Mal viam ofuzilar breve e a fumaça, lá longe, nonavio, jorrar devagar, muito pesada,gritavam: queimou! Houve um em Niterói que teve o seuquarto de hora de celebridade.Chamavam-no \"Trinta-Réis\"; os jornais dotempo ocuparam-se com ele, fizeram-sesubscrições a seu favor. Um herói! Passoua revolta e foi esquecido, tanto ele como a\"Luci\", uma bela lancha que chegou fazer-se entidade na imaginação da urbs, ainteressá-la, a criar inimigos eadmiradores. A embarcação deixou de provocar afúria do posto do Caju, e Fontes deu 311

instruções ao seu chefe da peça, e foi-seembora. Quaresma recolheu-se ao seu quartoe continuou os seus estudos guerreiros.Os mais dias que passou naquele extremoda cidade não eram diferentes deste. Osacontecimentos eram os mesmos e aguerra caía na banalidade da repetiçãodos mesmos episódios. A espaços, quando o aborrecimentolhe vinha, saía. Descia a cidade e deixavao posto entregue a Polidoro ou a Fontes,se estava. Raras vezes o fazia de dia, porquePolidoro, o mais assíduo, marceneiro deprofissão e em atividade numa fábrica demóveis, só vinha à noite. No centro da cidade, a noite era alegree jovial. Havia muito dinheiro, o governopagava soldos dobrados, e, às vezes,gratificações, além do que havia também amorte sempre presente; e tudo issoestimulava o divertir-se. Os teatros eramfreqüentados e os restaurants noturnostambém. Quaresma, porém, não se metianaquele ruído de praça semi-sitiada. Ia àsvezes ao teatro, à paisana, e, logo 312

acabado o espetáculo, voltava para oquarto da cidade ou para o posto. Em outras tardes, logo que Polidorochegava, saía a pé, pelas ruas dosarredores, pelas praias até o Campo deSão Cristóvão. Ia vendo aquela sucessão decemitérios, com as suas campas alvas quesobem montanhas, como carneirostosquiados e limpos a pastar; aquelesciprestes meditativos que as vigiam; ecomo que se lhe representava que aquelaparte da cidade era feudo e senhorio damorte. As casas tinham um aspecto fúnebre,recolhidas e concentradas; o marmarulhava lugubremente na ribanceiralodosa; as palmeiras ciciavam doridas; eaté o tilintar da campainha dos bondes eratriste e lúgubre. A paisagem se impregnara da Morte eo pensamento de quem passava ali maisainda, para fazer sentir nela tão forteaspecto funéreo. Foi vindo até ao Campo; aí deu-lhevontade de ver a sua antiga casa e afinalentrou na residência do General Albernaz.Devia-lhe aquela visita e aproveitou oensejo. 313

Acabavam de jantar e jantara com ogeneral, além do Tenente Fontes e oAlmirante Caldas, o comandante deQuaresma, o Tenente-Coronel InocêncioBustamante. Bustamante era um comandante ativo,mas dentro do quartel. Não havia quemcomo ele se interessasse pelos livros, pelaboa caligrafia com que eram escritos oslivros mestres, as relações de mostra, osmapas de companhia e outrosdocumentos. Com auxílio deles, aorganização do seu batalhão erairrepreensível; e, para não deixar de vigiara escrituração, aparecia de onde em ondenos destacamentos do seu corpo. Havia dez dias que Quaresma o nãovia. Após os cumprimentos, ele logoperguntou ao major: – Quantas deserções? – Até hoje, nove, disse Quaresma. Bustamante coçou a cabeçadesesperado e refletiu: – Eu não sei o que tem essa gente... Éum desertar sem nome... Falta-lhespatriotismo! – Fazem muito bem... Ora! disse oalmirante. 314

Caldas andava aborrecido, pessimista.O seu processo ia mal e até agora ogoverno não lhe tinha dado cousa alguma.O seu patriotismo se enfraquecia com odiluir-se da esperança de ser algum diavice-almirante. É verdade que o governoainda não organizara a sua esquadra;entretanto, pelo rumor que corria, ele nãocomandaria nem uma divisão. Umainiqüidade! Era velho um pouco, éverdade; mas, por não ter nuncacomandado, nessa matéria ele podiadespender toda uma energia moça. – O almirante não deve falar assim... Apátria está logo abaixo da humanidade. – Meu caro tenente, o senhor émoço... Eu sei o que são essas cousas... – Não se deve desesperar... Nãotrabalhamos para nós, mas para os outrose para os vindouros, continuou Fontespersuasivo. – Que tenho eu com eles? fezagastado Caldas. Bustamente, o general e Quaresmaassistiam à pequena discussão calados eos dous primeiros um tanto sorridentescom a fúria de Caldas, que não se cansavade dançar a perna e alisar os longosfavoritos brancos. O tenente respondeu: 315

– Muito, almirante. Nós todosdevemos trabalhar para que surjamépocas melhores, de ordem, de felicidadee evolução moral. – Nunca houve e nunca haverá! dissede um jato Caldas. – Eu também penso assim,acrescentou Albernaz. – Isto há de sempre ser o mesmo,aduziu ceticamente Bustamante. O major nada disse; pareciadesinteressado da conversa. Fontes, emface daquelas contestações, ao contráriodos seus congêneres de seita, não seagastou. Ele era magro e chupado,moreno carregado e a oval do seu rostoestava amassada aqui e ali. Com a sua voz arrastada e nasal,agitando a mão direita no jeito favorito dossermonários, depois de ouvir todos, faloucom unção: – Houve já um esboço: a Idade Média. Ninguém ali lhe podia contestar.Quaresma só sabia história do Brasil e osoutros nenhuma. E a sua afirmação fez calar todos,embora no íntimo duvidosos. É umacuriosa Idade Média, essa de elevaçãomoral, que a gente não sabe onde fica, em 316

que ano? Se a gente diz: \"No tempo deClotário, ele próprio, com suas mãos,atacou fogo na palhoça em que encerravao seu filho Crame mais a mulher deste efilhos\" – o positivista objeta: \"Ainda nãoestava perfeitamente estabelecido oascendente da igreja.\" \"São Luís\", diremoslogo nós, \"quis executar um senhor feudalporque mandou enforcar três crianças quetinham morto um coelho nas suas matas.\"Objeta o fiel: \"Você não sabe que a nossaIdade Média vai até o aparecimento daDivina Comédia? São Luís já era adecadência\"... Citam-se as epidemias demoléstias nervosas, a miséria doscampônios, as ladroagens à mão armadados barões, as alucinações do milênio, ascruéis matanças que Carlos Magno fez aossaxões; eles respondem: uma hora queainda não estava perfeitamenteestabelecido o ascendente moral da igreja;outra que ele já tinha desaparecido. Nada disso foi objetado ao positivistae a conversa resvalou para a revolta. Oalmirante criticava severamente o governo. Não tinha plano algum, levava a dartiros à toa; na sua opinião, já devia ter feitotodo o esforço para ocupar a ilha dasCobras, embora isso custasse rios de 317

sangue. Bustamente não tinha opiniãoassentada; mas Quaresma e Fontesjulgavam que não: seria uma aventuraarriscada e de uma improficuidade patente.Albernaz ainda não tinha dado o seu aviso,e veio a fazê-lo assim: – Mas nós reconhecemos Humaitá, epor pouco! – Entretanto, não a tomaram, disseFontes. As condições naturais eram outrase assim mesmo o reconhecimento foiperfeitamente inútil... O senhor sabe,esteve lá! – Isto é... Adoeci e vim um poucoantes para o Brasil, mas o Camisão disse-me que foi arriscado. Quaresma voltara ao silêncio. Eleprocurava ver Ismênia. Fontes lhe tinhainteirado do seu estado e o major se sentiapor qualquer cousa preso à moléstia damoça. Viu todos: Dona Maricota, sempreativa e diligente; Lalá, a arrancar, com oolhar, o noivo da conversa interminável, eas outras que vinham, de quando emquando, da sala de visitas à sala de jantaronde ele estava. Por fim, não se conteve,perguntou. Soube que estava em casa dairmã casada e ia pior, cada vez maisabismada na sua mania, enfraquecendo-se 318

de corpo. O general contou tudo comfranqueza a Quaresma e quando acaboude narrar aquela sua desgraça íntima,disse com um longo suspiro: – Não sei, Quaresma... Não sei. Eram dez horas quando o major sedespediu. Voltou de bonde para a Pontado Caju. Saltou e recolheu-se logo a seuquarto. Vinha cheio da perturbaçãoespecial que põe em nós o luar que estavalindo, terno e leitoso, naquela noite. É umaemoção de desafogo do corpo, dedelíquio; parece que nos tiram o envoltóriomaterial e ficamos só alma, envolvidosnuma branda atmosfera de sonhos equimeras. O major não colhia bem asensação transcendente, mas sofria semperceber o efeito da luz pálida e fria doluar. Deitou-se um pouco, vestido, não porsono, mas em virtude daquela doceembriaguez que o astro lhe tinha posto nossentidos. Dentro em pouco Ricardo veio chamá-lo: o marechal estava aí. Era seu hábitosair à noite, às vezes, de madrugada, e irde posto em posto. O fato se espalhoupelo público que o apreciavaextraordinariamente, e o Presidente teve 319

mais esse documento para firmar a suafama de estadista consumado. Quaresma veio ao seu encontro.Floriano vestia chapéu de feltro mole, abaslargas, e uma curta sobrecasaca surrada.Tinha um ar de malfeitor ou de exemplarchefe de família em aventurasextraconjugais. O major cumprimentou-o e esteve adar-lhe notícias do ataque que fora feito aoseu posto, há dias passados. O marechalrespondia por monossílabos preguiçosos eolhava ao redor. Quase ao despedir-se,falou mais, dizendo vagarosamente,lentamente: – Hei de mandar pôr um holofote aqui. Quaresma veio acompanhá-lo até aobonde. Atravessaram o velho sítio derecreio dos imperadores. Um poucoafastada da estação uma locomotiva,semi-acesa, resfolegava. Semelhavaroncar, dormindo; os carros, pequenos,banhados pelo luar, muito quietos,sossegados como que dormiam. Asanosas mangueiras, com falta de galhosaqui e ali, pareciam polvilhadaspreciosamente de prata. O luar estavamagnífico. Os dous andavam, o marechalperguntou: 320

– Quantos homens tem você? – Quarenta. O marechal mastigou um: \"não émuito\"; e voltou ao mutismo. Num dadomomento, Quaresma viu-lhe o rostoinundado pela luz da lua. Pareceu-lhe maissimpática a fisionomia do ditador. Se lhefalasse... Preparou a pergunta; mas não tevecoragem de pronunciá-la. Continuaram aandar. O major pensou: que é que tem?não há desrespeito algum. Aproximaram-se do portão. Num dado momento comoque houve uma bulha atrás. Quaresmavoltou-se, mas Floriano quase não o fez. Os edifícios da serraria pareciamcobertos de neve, tanto era o branco luar.O major continuou a mastigar a suapergunta; urgia, era indispensável; oportão estava a dous passos. Tomoucoragem, ousou e falou: – Vossa Excelência já leu o meumemorial, marechal? Floriano respondeu lentamente, quasesem levantar o lábio pendente: – Li. Quaresma entusiasmou-se: – Vê Vossa Excelência como é fácilerguer este país. Desde que se cortem 321

todos aqueles empecilhos que eu apontei,no memorial que Vossa Excelência teve abondade de ler; desde que se corrijam oserros de uma legislação defeituosa einadaptável às condições do país, VossaExcelência verá que tudo isto muda, que,em vez de tributários, ficaremos com anossa independência feita... Se VossaExcelência quisesse... À proporção que falava, maisQuaresma se entusiasmava. Ele não podiaver bem a fisionomia do ditador, encobertoagora como lhe estava o rosto pelas abasdo chapéu de feltro; mas, se a visse, teriade esfriar, pois havia na sua máscarasinais do aborrecimento mais mortal.Aquele falatório de Quaresma, aqueleapelo à legislação, a medidasgovernamentais, iam mover-lhe opensamento, por mais que não quisesse.O presidente aborrecia-se. Num dadomomento, disse: – Mas, pensa você, Quaresma, que euhei de pôr a enxada na mão de cada umdesses vadios?! Não havia exército quechegasse... Quaresma espantou-se, titubeou, masretorquiu: 322

– Mas, não é isso, marechal. VossaExcelência, com o seu prestígio e poder,está capaz de favorecer, com medidasenérgicas e adequadas, o aparecimentode iniciativas, de encaminhar o trabalho,de favorecê-lo e torná-lo remunerador...Bastava, por exemplo... Atravessavam o portão da velhaquinta de Pedro I. O luar continuava lindo,plástico e opalescente. Um grande edifícioinacabado que havia na rua pareciaterminado, com vidraças e portas feitascom a luz da lua. Era um palácio de sonho. Floriano já ouvia Quaresma muitoaborrecido. O bonde chegou; ele sedespediu do major, dizendo com aquelasua placidez de voz: – Você, Quaresma, é um visionário... O bonde partiu. A lua povoava osespaços, dava fisionomia às cousas, fazianascer sonhos em nossa alma, enchia avida, enfim, com a sua luz emprestada... *** 323

III ...E Tornaram Logo Silenciosos... – Eu tenho experimentado tudo,Quaresma, mas não sei... não há meio! – Já a levou a um médicoespecialista? – Já. Tenho corrido médicos, espíritas,até feiticeiros, Quaresma! E os olhos do velho se orvalhavam porbaixo do pince-nez. Os dous se haviamencontrado na pagadoria da Guerra evinham pelo campo de Sant'Anna, a pé,andando a pequenos passos econversando. O general era mais alto queQuaresma, e enquanto este tinha a cabeçasobre um pescoço alto, aquele a tinhametida entre os ombros proeminentes,como cotos de asas. Albernaz reatou: – E remédios! Cada médico receitauma cousa; os espíritas são os melhores,dão homeopatia; os feiticeiros tisanas,rezas e defumações... Eu não sei,Quaresma! E levantou os olhos para o céu, queestava um tanto plúmbeo. Não sedemorou, porém, muito nessa postura; o 324

pince-nez não permitia, já começava acair. Quaresma abaixou a cabeça e andouassim um pouco olhando as granulaçõesdo granito do passeio. Levantou o olhar aofim de algum tempo, e disse: – Por que não a recolhe a uma casade saúde, general? – Meu médico já me aconselhou isso...A mulher não quer e agora mesmo, noestado em que a menina está, não vale apena... Falava da filha, da Ismênia, que,naqueles últimos meses, pioravasensivelmente, não tanto da sua moléstiamental, mas da saúde comum, vivendo decama, sempre febril, enlanguescendo,definhando, marchando a passos largospara o abraço frio da morte. Albernaz dizia a verdade; para curá-latanto de sua loucura como da atualmoléstia intercorrente, lançara mão detodos os recursos, de todos os conselhosapontados por quem quer que fosse. Era de fazer refletir ver aquelehomem, general, marcado com um cursogovernamental, procurar médiuns efeiticeiros, para sarar a filha. 325

Às vezes até levava-os em casa. Osmédiuns chegavam perto da moça, davamum estremeção, ficam com uns olhosdesvairados, fixos, gritavam: \"Sai, irmão!\"– e sacudiam as mãos, do peito para amoça, de lá para cá, rapidamente,nervosamente, no intuito de descarregarsobre ela os fluidos milagrosos. Os feiticeiros tinham outros passes eas cerimônias para entrar no conhecimentodas forças ocultas que nos cercam eramdemoradas, lentas e acabadas. Em geral,eram pretos africanos. Chegavam,acendiam um fogareiro no quarto, tiravamde um cesto um sapo empalhado ou outracousa esquisita, batiam com feixes deervas, ensaiavam passos de dança epronunciavam palavras ininteligíveis. Oritual era complicado e tinha a sua demora. Na saída, a pobre Dona Maricota, umtanto já diminuída da sua atividade ediligência, olhando ternamente aquelegrande rosto negro do mandingueiro, ondea barba branca punha mais veneração ecerta grandeza, perguntava: – Então, titio? O preto considerava um instante,como se estivesse recebendo as últimascomunicações do que não se vê nem se 326

percebe, e dizia com a sua majestade deafricano: – Vô vê, nhãnhã... Tô crotandomandinga... Ela e o general tinham assistido àcerimônia e o amor de pais e também essefundo de superstição que há em todos nóslevavam a olhá-la com respeito, quasecom fé. – Então foi feitiço que fizeram à minhafilha? perguntava a senhora. – Foi, sim, nhanhã. – Quem? – Santo não qué dizê. E o preto obscuro, velho escravo,arrancado há um meio século dos confinsda África, saía arrastando a sua velhice edeixando naqueles dous corações umaesperança fugaz. Era uma singular situação, a daquelepreto africano, ainda certamente poucoesquecido das dores do seu longocativeiro, lançando mão dos resíduos desuas ingênuas crenças tribais, resíduosque tão a custo tinham resistido ao seutransplante forçado para terras de outrosdeuses – e empregando-os na consolaçãodos seus senhores de outro tempo. Comoque os deuses de sua infância e de sua 327

raça, aqueles sanguinários manipansos daÁfrica indecifrável, quisessem vingá-lo àlegendária maneira do Cristo dosEvangelhos... A doente assistia a tudo aquilo semcompreender e se interessar por aquelestrejeitos e passes de tão poderososhomens que se comunicavam, que tinhamàs suas ordens os seres imateriais, asexistências fora e acima da nossa. Andando, ao lado de Quaresma, ogeneral lembrava-se de tudo isso e teveum pensamento amargo contra a ciência,contra os espíritos, contra os feitiços,contra Deus que lhe ia tirando a filha aospoucos sem piedade e comiseração. O major não sabia o que dizer diantedaquela imensa dor de pai e parecia-lhetoda e qualquer palavra de consolo parvae idiota. Afinal disse: – General, o senhor permite que eu afaça ver por um médico? – Quem é? – É o marido de minha afilhada... osenhor conhece... É moço, quem sabe lá!Não acha? Pode ser, não é? O general consentiu e a esperança dever curada a filha lhe afagou as facesenrugadas. Cada médico que consultava, 328

cada espírita, cada feiticeiro reanimava-o,pois de todos eles esperava o milagre.Nesse mesmo dia, Quaresma foi procuraro Doutor Armando. A revolta já tinha mais de quatromeses de vida e as vantagens do governoeram problemáticas. No Sul, a insurreiçãochegava às portas de São Paulo, e só aLapa resistia tenazmente, uma das poucaspáginas dignas e limpas de todo aqueleenxurro de paixões. A pequena cidadetinha dentro de suas trincheiras o CoronelGomes Carneiro, uma energia, umavontade, verdadeiramente isso, porque erasereno, confiante e justo. Não sedesmanchou em violências de apavoradoe soube tornar verdade a gasta frasegrandiloqüente: resistir até à morte. A ilha do Governador tinha sidoocupada e Magé tomado; os revoltosos,porém, tinham a vasta baía e a barraapertada, por onde saíam e entravam, semtemer o estorvo das fortalezas. As violências, os crimes que tinhamassinalado esses dous marcos deatividade guerreira do governo, chegavamao ouvido de Quaresma e ele sofria. Da ilha do Governador fez-se umaverdadeira mudança de móveis, roupas e 329

outros haveres. O que não podia sertransplantado, era destruído pelo fogo epelo machado. A ocupação deixou lá a maisexecranda memória e até hoje os seushabitantes ainda se recordamdolorosamente de um capitão, patriótico ouda guarda nacional, Ortiz, pela suaferocidade e insofrido gosto pelo saque eoutras vexações. Passava um pescador,com uma tampa de peixe, e o capitãochamava o pobre homem: – Venha cá! O homem aproximava-seamedrontado e Ortiz perguntava: – Quanto quer por isso? – Três mil-réis, capitão. Ele sorria diabolicamente efamiliarmente regateava: – Você não deixa por menos?... Estácaro... Isso é peixe ordinário... Carapebas!Ora! – Bem, capitão vá lá por dous equinhentos. – Leve isso lá dentro. Ele falava na porta de casa. Opescador voltava e ficava um tempo empé, demonstrando que esperava o 330

dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e diziaescarninho: – Dinheiro! hein? Vá cobrar aoFloriano. Entretanto, Moreira César deixou boasrecordações de si e ainda hoje há lá quemse lembre dele, agradecido por este ouaquele benefício que o famoso coronel lheprestou. As forças revoltosas pareciam não terenfranquecido; tinham, porém, perdidodous navios, sendo um destes o \"Javari\",cuja reputação na revolta era das maisaltas e consideradas. As forças de terradetestavam-no particularmente. Era ummonitor, chato, raso com a água, umaespécie de sáurio ou quelônio de ferro, deconstrução francesa. A sua artilharia eratemida; mas o que sobremodo enraiveciaos adversários, era ele não ter quaseborda acima d'água, ficar quase ao níveldo mar e fugir assim aos tiros incertos deterra. As suas máquinas não funcionavame a grande tartaruga vinha colocar-se emposição de combate com auxílio de umrebocador. Um dia em que estava nasproximidades de Villegaignon, foi a pique.Não se soube e até hoje não foi 331

esclarecido por que foi. Os legalistasafirmaram que foi uma bala de Gragoatá;mas os revoltosos asseguraram que foi aabertura de uma válvula ou um outroacidente qualquer. Como o do seu irmão, o \"Solimões\",que desapareceu nas costas de caboPolônio, o fim do \"Javari\" ainda estáenvolvido no mistério. Quaresma permanecia de guarniçãono Caju, e viera receber dinheiro. Deixaralá Polidoro, pois os outros oficiais estavamdoentes ou licenciados, e Fontes, que,sendo uma espécie de inspetor-geral, aocontrário de seus hábitos, dormira aquelanoite no pequeno pavilhão imperial e iaficar até à tarde. Ricardo Coração dos Outros, desde odia da proibição de tocar violão, andavamacambúzio. Tinham-lhe tirado o sangue,o motivo de viver, e passava os diastaciturno, encostado a um tronco de árvoremaldizendo no fundo de si aincompreensão dos homens e oscaprichos do destino. Fontes notara a suatristeza; e, para minorar-lhe o desgosto,obrigara a Bustamante a fazê-lo sargento.Não foi sem custo, porque o antigoveterano do Paraguai encarecia muito 332

essa graduação e só a dava comorecompensa excepcional ou quandorequerida por pessoas importantes. A vida do pobre menestrel era assimde um melro engaiolado; e, de quando emquando, ele se afastava um pouco eensaiava a voz, para ver se ainda a tinha enão fugira com o fumo dos disparos. Quaresma sabendo que dessamaneira o posto estava bem entregue,resolveu demorar-se mais, e, apósdespedir-se de Albernaz, encaminhou-separa a casa do seu compadre, a fim decumprir a promessa que fizera ao general. Coleoni ainda não decidira a suaviagem à Europa. Hesitava, esperando ofim da rebelião que não parecia estarpróximo. Ele nada tinha com ela; até ali,não dissera a ninguém a sua opinião; e, seera muito instado, apelava para a suacondição de estrangeiro e metia-se numareserva prudente. Mas, aquela exigênciade passaporte, tirado na chefatura depolícia, dava-lhe susto. Naqueles tempos,toda a gente tinha medo de tratar comautoridades. Havia tanta má vontade comos estrangeiros, tanta arrogância nosfuncionários que ele não se animava a irobter o documento, temendo que uma 333

palavra, que um olhar, que um gesto,interpretados por qualquer funcionáriozeloso e dedicado, não o levassem asofrer maus quartos de hora. Verdade é que ele era italiano e aItália já fizera ver ao ditador que era umagrande potência, mas no caso de que selembrava, tratava-se de um marinheiro, porcuja vida, extinta por uma descarga dasforças legais, Floriano pagara a quantia decem contos. Ele, Coleoni, porém, não eramarinheiro e não sabia, caso fosse preso,se os representantes diplomáticos de seupaís tomariam interesse pela sualiberdade. De resto, não tendo protestado mantera sua nacionalidade, quando o governoprovisório expediu o famoso decreto denaturalização, era bem possível que umaou outra parte se ativessem a isso, paradesinteressar-se dele ou mantê-lo nafamosa galeria nº 7, da Casa de Correição,transformada, por uma penada mágica, emprisão de Estado. A época era de susto e temor, e todosesses que ele sentia, só os comunicava àfilha, porque o genro cada vez mais sefazia florianista e jacobino, de cuja boca 334

muita vez ouvia duras invectivas aosestrangeiros. E o doutor tinha razão; já obtivera umagraça governamental. Fora nomeadomédico do Hospital de Santa Bárbara, navaga de um colega, demitido a bem doserviço público como suspeito por ter idovisitar um amigo na prisão. Como ohospital, porém, ficasse no ilhéu do mesmonome, dentro da baía, em frente à Saúde ea Guanabara ainda estivesse em mão dosrevoltosos, ele nada tinha que fazer, poisaté agora o governo não aceitara os seusoferecimentos de auxiliar o tratamento dosferidos. O major foi encontrar pai e filha emcasa; o doutor tinha saído, ido dar voltapela cidade, dar arras de sua dedicação àcausa legal, conversando com os maisexaltados jacobinos do Café do Rio, nãoesquecendo também de passear peloscorredores do Itamarati, fazendo-se verpelos ajudantes-de-ordens, secretários eoutras pessoas influentes no ânimo deFloriano. A moça viu entrar Quaresma comaquele sentimento estranho que o seupadrinho lhe causava ultimamente, e essesentimento mais agudo se tornava quando 335

o via contar os casos guerreiros do seudestacamento, a passagem de balas, asdescargas das lanchas, naturalmente,simplesmente, como se fossem feições deuma festa, de uma justa, de umdivertimento qualquer em que a morte nãoestivesse presente. Tanto mais que o via apreensivo,deixando perceber numa frase e noutra odesânimo e desesperança. Na verdade o major tinha um espinhon'alma. Aquela recepção de Floriano àssuas lembranças de reformas nãoesperavam nem o seu entusiasmo esinceridade nem tampouco a idéia que elefazia do ditador. Saíra ao encontro deHenrique IV e de Sully e vinha esbarrarcom um presidente que o chamava devisionário, que não avaliava o alcance dosseus projetos, que os não examinavasequer, desinteressado daquelas altascousas de governo como se não o fosse!...Era pois para sustentar tal homem quedeixara o sossego de sua casa e searriscava nas trincheiras? Era, pois, poresse homem que tanta gente morria? Quedireito tinha ele de vida e de morte sobreos seus concidadãos, se não seinteressava pela sorte deles, pela sua vida 336

feliz e abundante, pelo enriquecimento dopaís, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural? Pensando assim, havia instantes quelhe vinha um mortal desespero, uma raivade si mesmo; mas em seguidaconsiderava: o homem está atrapalhado,não pode agora; mais tarde com certezaele fará a cousa... Vivia nessa alternativa dolorosa e eraela que lhe trazia apreensões, desânimo edesesperança, notados por sua afilhada nasua fisionomia já um pouco acabrunhada. Não tardou, porém, que, abandonandoos episódios da sua vida militar, Quaresmaexplicasse o motivo de sua visita. – Mas qual delas? perguntou aafilhada. – A segunda, a Ismênia. – Aquela que estava para casar com odentista? – Esta mesmo. – Ahn!... Ela pronunciou este \"ahn\" muito longoe profundo, como se pusesse nele tudoque queria dizer sobre o caso. Via bem oque fazia o desespero da moça, mas viamelhor a causa, naquela obrigação queincrustam no espírito das meninas, que 337

elas se devem casar a todo o custo,fazendo do casamento o pólo e fim davida, a ponto de parecer uma desonra,uma injúria, ficar solteira. O casamento já não é mais amor, nãoé maternidade, não é nada disso: ésimplesmente casamento, uma coisavazia, sem fundamento nem na nossanatureza nem nas nossas necessidades. Graças à frouxidão, à pobrezaintelectual e fraqueza de energia vital deIsmênia, aquela fuga do noivo setransformou em certeza de não casar maise tudo nela se abismou nessa idéiadesesperada. Coleoni enterneceu-se muito einteressou-se. Sendo bom de fundo,quando lutava pela fortuna se fez duro eáspero, mas logo que se viu rico, perdeu adureza de que se revestira, pois percebiabem que só se pode ser bom quando se éforte de algum modo. Ultimamente o major tinha diminuídoum pouco o interesse pela moça; andavaatormentado com o seu caso deconsciência, entretanto, se não tinha umconstante e particular pensamento peladesdita da filha de Albernaz, abrangia-a 338

ainda na sua bondade geral, larga ehumana. Não se demorou muito na casa docompadre; ele queria, antes de voltar aoCaju, passar pelo quartel do seu batalhão.Ia ver se arranjava uma pequena licença,para visitar a irmã que deixara lá, no\"Sossego\", e de quem tinha notícias, porcarta, três vezes por semana. Eram elassatisfatórias, contudo ele tinhanecessidade de ver tanto ela como oAnastácio, fisionomias com quem seencontrava diariamente há tantos anos ecuja contemplação lhe fazia falta e talvezlhe restituísse a calma e a paz de espírito. Na última carta que recebera de DonaAdelaide, havia uma frase de que, nomomento, se lembrava sorrindo: \"Não teexponhas muito, Policarpo. Toma muitacautela.\" Pobre Adelaide! Estava a pensarque esse negócio de balas é assim como achuva?! ... O quartel ainda ficava no velho cortiçocondenado pela higiene, lá para as bandasda Cidade Nova. Assim que Quaresmaapontou na esquina, a sentinela deu umgrande berro, fez uma imensa bulha com aarma e ele entrou, tirando o chapéu dacabeça baixa, pois estava a paisana e 339

tinha abandonado a cartola com medo deque esse traje fosse ferir assusceptibilidades republicanas dosjacobinos. No pátio, o instrutor coxo adestravanovos voluntários e os seus majestosos edemorados gritos: ombroôô... armas! mei-ããã volta... volver! subiam no céu eecoavam longamente pelos muros daantiga estalagem. Bustamente estava no seu cubículo,mais conhecido por gabinete,irrepreensível no seu uniforme verde-garrafa, alamares dourados e vivos azul-ferrete. Com auxílio de um sargento,examinava a escrita de um livroquarteleiro. – Tinta vermelha, sargento! É comomandam as instruções de 1864. Tratava-se de uma emenda ou decousa semelhante. Logo que viu Quaresma entrar, ocomandante exclamou radiante: – O major adivinhou! Quaresma descansou placidamente ochapéu, bebeu um pouco d'água, e oCoronel Inocêncio explicou a alegria: – Sabe que temos de marchar? – Para onde? 340

– Não sei... Recebi ordem doItamarati. Ele não dizia nunca do quartel-general, nem mesmo do ministro daGuerra; era do Itamarati; do Presidente, dochefe supremo. Parecia que assim davamais importância a si mesmo e ao seubatalhão, fazia-o uma espécie de batalhãoda guarda, favorito e amado do ditador.Quaresma não se espantou, nem seaborreceu. Percebeu que era impossívelobter a licença e também necessáriomudar os seus estudos: da artilharia, tinhaque passar para a infantaria. – O major é que vai comandar ocorpo, sabia? – Não, coronel. E o senhor não vai? – Não, disse Bustamante, alisando ocavanhaque mosaico e abrindo a bocapara o lado esquerdo. Tenho que acabar aorganização da unidade e não posso...Não se assuste, mais tarde irei lá ter... Começava a tarde, quando Quaresmasaiu do quartel. O instrutor coxocontinuava, com força, majestade edemora, a gritar: om-brôôô... armas! Asentinela não pôde fazer a bulha daentrada, porque só viu o major quando jáia longe. Ele desceu até à cidade e foi ao 341

correio. Havia alguns tiros espaçados; noCafé do Rio, os levitas continuavam atrocar idéias para a consolidação definitivada República. Antes de chegar ao correio, Quaresmalembrou-se de sua partida. Correu a umalivraria e comprou livros sobre infantaria;precisava também dos regulamentos:arranjaria no quartel-general. Para onde ia? Para o Sul, para Magé,para Niterói? Não sabia... Não sabia... Ah!se isso fosse para realização dos seusdesejos e sonhos! Mas quem sabe?...Podia ser... talvez... Mais tarde... E passou o dia atormentado peladúvida do bom emprego de sua vida e desuas energias. O marido de Olga não fez nenhumaquestão em ir ver a filha do general. Elelevava a íntima convicção de que a suaciência toda nova pudesse fazer algumacousa; mas assim não se deu. A moça continuou a definhar, e, se amania parecia um pouco atenuada, o seuorganismo caía. Estava magra e fraca, aponto de quase não poder sentar-se nacama. Era sua mãe quem mais junto a elavivia; as irmãs se desinteressavam um 342

pouco, pois as exigências de suamocidade levavam-nas para outros lados. Dona Maricota, tendo perdido todoaquele antigo fervor pelas festas e bailes,estava sempre no quarto da filha, aconsolá-la, animá-la e, às vezes, quando aolhava muito, como que se sentia um tantoculpada pela sua infelicidade. A moléstia tinha posto mais firmezanos traços de Ismênia, tinha-lhe diminuídoa lassidão, tirado o mortiço dos olhos e osseu lindos cabelos castanhos, comreflexos de ouro, mais belos se faziamquando cercavam a palidez de sua face. Raro era falar muito; e assim foi que,naquele dia, se espantou muito DonaMaricota com a loquacidade da filha. – Mamãe, quando se casa Lalá? – Quando se acabar a revolta. – A revolta ainda não acabou? A mãe respondeu-lhe e ela esteve uminstante calada, olhando o teto, e, apósessa contemplação disse à mãe: – Mamãe... Eu vou morrer... As palavras saíram-lhe dos lábios,seguras, doce e naturais. – Não diga isso, minha filha, adiantou-se Dona Maricota. Qual morrer! Você vai 343

ficar boa; seu pai vai levar você paraMinas; você engorda, toma forças... A mãe dizia-lhe tudo isso devagar,alisando-lhe a face com a mão, como sese tratasse de uma criança. Ela ouvia tudocom paciência e voltou por sua vezserenamente: – Qual, mamãe! Eu sei: vou morrer epeço uma cousa à senhora... A mãe ficou espantada com aseriedade e firmeza da filha. Olhou emredor, deu com a porta semicerrada elevantou-se para fechá-la. Quis ainda verse a dissuadia daquele pensamento;Ismêndia, porém, continuava a repeti-lopacientemente, docemente, serenamente: – Eu sei, mamãe. – Bem. Suponho que é verdade: o queé que você quer? – Eu quero, mamãe, ir vestida denoiva. Dona Maricota ainda quis brincar,troçar; a filha, porém, voltou-se para ooutro lado, pôs-se a dormir, com um leverespirar espaçado. A mãe saiu do quarto,comovida, com lágrimas nos olhos e asecreta certeza de que a filha falava averdade. 344

Não tardou muito a se verificar. ODoutor Armando a tinha visitado naquelamanhã pela quarta vez; ela parecia melhor,desde alguns dias, falava comdiscernimento, sentava-se à cama econversava com prazer. Dona Maricota teve que fazer umavisita e deixou a doente entregue às irmãs.Elas foram lá ao quarto várias vezes eparecia dormir. Distraíram-se. Ismênia despertou: viu, por entre aporta do guarda-vestidos meio aberto, oseu traje de noiva. Teve vontade de vê-lomais de perto. Levantou-se descalça eestendeu-o na cama para contemplá-lo.Chegou-lhe o desejo de vesti-lo. Pôs asaia; e, por aí, vieram recordações do seucasamento falhado. Lembrou-se do seunoivo, do nariz fortemente ósseo e dosolhos esgazeados de Cavalcanti; mas nãose recordou com ódio, antes como sefosse um lugar visto há muito tempo, e quea tivesse impressionado. De quem ela se lembrava com raivaera da cartomante. Iludindo sua mãe,acompanhada por uma criada, tinhaconseguido consultar Mme. Sinhá. Comque indiferença ela lhe respondeu: nãovolta! Aquilo doeu-lhe... Que mulher má! 345

Desde esse dia... Ah! Acabou de abotoar asaia em cima do corpinho, pois nãoencontrara colete; e foi ao espelho. Viu osseu ombros nus, o seu colo muitobranco...Surpreendeu-se. Era dela aquilotudo? Apalpou-se um pouco e depoiscolocou a coroa. O véu afagou-lhe asespáduas carinhosamente, como um adejode borboleta. Teve uma fraqueza, umacousa, deu um ai e caiu de costas nacama, com as pernas para fora... Quandoa vieram ver, estava morta. Tinha ainda acoroa na cabeça e um seio, muito branco eredondo, saltava-lhe do corpinho. O enterro foi feito no dia imediato e acasa de Albernaz esteve os dous diascheia, como nos dias de suas melhoresfestas. Quaresma foi ao enterro; ele nãogostava muito dessa cerimônia; mas veio,e foi ver a pobre moça, no caixão, cobertade flores, vestida de noiva, com um arimaculado de imagem. Pouco mudara,entretanto. Era ela mesma ali; era aIsmênida dolente e pobre de nervos, comos seus traços miúdos e os seus lindoscabelos, que estava dentro daquelasquatro tábuas. A morte tinha fixado a suapequena beleza e o seu aspecto pueril; e 346

ela ia para a cova com a insignificância,com a inocência e a falta de acento próprioque tinha tido em vida.Contemplando aqueles tristes restos,Quaresma viu o caixão do coche parar naporta do cemitério, atravessar pelas ruasde túmulos – uma multidão que trepava, setocava, lutava por espaço, na estreiteza davárzea e nas encostas das colinas.Algumas sepulturas como se olhavam comafeto e se queriam aproximar; em outras,transparecia repugnância por estaremperto. Havia ali, naquele mudo laboratóriode decomposições, solicitaçõesincompreensíveis, repulsões, simpatias eantipatias; havia túmulos arrogantes,vaidosos, orgulhosos, humildes, alegres etristes; e de muito, ressumava o esforço,um esforço extraordinário, para escapar aonivelamento da morte, ao apagamento queela traz às condições e às fortunas.Quaresma ainda contemplava ocadáver da moça e o cemitério surgia aosseus olhos com as esculturas que seamontoavam, com vasos, cruzes einscrições, em alguns túmulos; noutros,eram pirâmides de pedra tosca, retratos,caramanchões extravagantes,complicações de ornatos, cousas barrocas 347

e delirantes, para fugir ao anonimato dotúmulo, ao fim dos fins. As inscrições exuberam: são longas,são breves; têm nomes, têm datas,sobrenomes, filiações, toda a certidão deidade do morto que, lá embaixo, não sepode mais conhecer e é lama pútrida. E se sente um desespero em não sedeparar com um nome conhecido, nemuma celebridade, uma notabilidade, umdesses nomes que enchem décadas e, àsvezes, mesmo já mortos, parece quecontinuam a viver. Tudo é desconhecido;todos aqueles que querem fugir do túmulopara a memória dos vivos são anódinosfelizes e medíocres existências quepassaram pelo mundo sem ser notadas. E lá ia aquela moça por ali afora parao buraco escuro, para o fim, sem deixar navida um traço mais fundo de sua pessoa,de seus sentimentos, de sua alma! Quaresma quis afastar essa visãotriste e encaminhou-se para o interior dacasa. Ele estivera na sala de visitas, ondeDona Maricota também estava, cercada deoutras senhoras amigas que nada lhediziam. O Lulu, fardado do colégio, comfumo no braço, cochilava a uma cadeira.As irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, 348

estava o general silencioso, tendo ao ladoFontes e outros amigos. Caldas e Bustamante conversavambaixo, afastados; e quando Quaresmapassou, pôde ouvir o almirante dizer: – Qual! Os homens estão dentro empouco aqui... O governo está exausto. O major ficou na janela que dava parao quintal. O tecido do céu se tinhaadelgaçado; o azul estava sedoso e fino; etudo tranqüilo, sereno e calmo. A Estefânia, a doutora, a de olhosmaliciosos e quentes, passou, tendo aolado Lalá, que levava, de quando emquando, o lenço aos olhos já secos, aquem aquela dizia: – Eu, se fosse você, não compravalá... É caro! Vai ao \"Bonheur des Dames\"...Dizem que tem cousas boas e épechincheiro. O major voltou de novo a contemplar océu que cobria o quintal. Tinha umatranqüilidade quase indiferente. Genelícioapareceu demasiadamente fúnebre. Todode preto, ele tinha afivelado ao rosto amais profunda máscara de tristeza. O seupince-nez azulado também parecia de luto. 349

Não lhe fora possível deixar de irtrabalhar; um serviço urgente fizera-oindispensável na repartição. – É isto, general, disse ele, não está láo Doutor Genelício, nada se faz... Não hámeio da Marinha mandar os processoscertos... É um relaxamento... O general não respondeu; estavadeveras combalido. Bustamente e Caldascontinuavam a conversar baixo. Ouviu-se orodar de uma carruagem na rua. Quinotachegou à sala de jantar. – Papai, está aí o coche. O velho levantou-se a custo e foi paraa sala de visitas. Falou à mulher que seergueu com a face contraída, exprimindouma grande contensão. Os seus cabelos játinham muitos fios de prata. Não deu umpasso; esteve um instante parada e logocaiu na cadeira, chorando. Todos estavamvendo sem saber o que fazer; algunschoravam; Genelício tomou um partido: foiretirando os círios de ao redor do caixão. Amãe levantou-se, veio até ao esquife,beijou o cadáver: minha filha! Quaresma adiantou-se, foi saindo como chapéu na mão. No corredor, ainda ouviuEstefânia dizer a alguém: o coche é bonito. 350


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