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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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o efeito não se dissipasse, virava com amão direita o grande anelão \"simbólico\", otalismã, que cobria a falange do dedoindicador esquerdo, ao jeito de marquise. Conversaram muito. O jovem parcontou a agitação política do Rio, a revoltada fortaleza de Santa Cruz; DonaAdelaide, a epopéia da mudança, móveisquebrados, objetos partidos. Pela meia-noite todos foram dormir com uma alegriaparticular, enquanto os sapos levantavamno riacho defronte o seu grave hino àtranscendente beleza do céu negro,profundo e estrelado. Acordaram cedo. Quaresma não foilogo para o trabalho. Tomou café e esteveconversando com o doutor. O correiochegou e trouxe-lhe um jornal. Rasgou acinta e leu o título. Era o O Município,órgão local, hebdomadário, filiado aopartido situacionista. O doutor se haviaafastado; ele aproveitou a ocasião para lero jornaleco. Pôs o pince-nez, recostou-sena cadeira de balanço e descobriu o jornal.Estava na varanda; o terral soprava nosbambus que se inclinavam molemente.Começou a leitura. O artigo de fundointitulava-se \"Intrusos\" e consistia em umatremenda descompostura aos não 201

nascidos no lugar que moravam nele –\"verdadeiros estrangeiros que se vinhamintrometer na vida particular e política dafamília curuzuense, perturbando-lhe a paze a tranqüilidade\". Que diabo queria dizer aquilo? Iadeitar fora o jornaleco, quando lhe pareceuler seu nome entre versos. Procurou o lugar e deu com estasquadrinhas: POLÍTICA DE CURUZU Quaresma, meu bem, Quaresma! Quaresma do coração! Deixa as batatas em paz Deixa em paz o feijão. Jeito não tens para isso Quaresma, meu cocumbi! Volta à mania antiga De redigir em tupi. Olho vivo. 202

O major ficou estuporado. Que vinha aser aquilo? Por quê? Quem era? Nãoatinava, não achava o motivo e o fundo desemelhante ataque. A irmã aproximara-seacompanhada da afilhada. Quaresmaestendeu-lhe o jornal com o braçotremendo: \"Lê isto, Adelaide.\" A velha senhora viu logo aperturbação do irmão e leu com pressa esolicitude. Ela tinha aquela amplamaternidade das solteironas; pois pareceque a falta de filhos reforça e alarga ointeresse da mulher pelas dores dosoutros. Enquanto ela lia, Quaresma dizia:mas que fiz eu? que tenho com política? Ecoçava os cabelos já bastanteencanecidos. Dona Adelaide disse entãodocemente: – Sossega, Policarpo. Por isso só?...Ora! A afilhada leu também os versos eperguntou ao padrinho: – O senhor se meteu algum dia nessapolítica daqui? – Eu nunca!... Vou até declarar que... – Está doido! exclamaram as duasmulheres a um tempo, ajuntando a irmã: 203

– Isto seria uma covardia... Umasatisfação... Nunca! O doutor e Ricardo chegavam de forae encontraram os três nessasconsiderações. Notaram a alteração deQuaresma. Estava pálido, tinha os olhosúmidos e coçava sucessivamente acabeça. – Que há, major? indagou o troveiro. As senhoras explicaram o caso ederam-lhe as quadrinhas a ler. Ricardodepois contou o que ouvira na vila.Acreditavam todos que o major viera paraali no intuito de fazer política, tanto assimque dava esmolas, deixava o povo fazerlenha no seu mato, distribuía remédioshomeopáticos... O Antonino afirmava quehavia de desmascarar semelhante tartufo. – E não desmentiste? perguntouQuaresma. Ricardo afirmou que sim, mas oescrivão não quisera acreditar nele ereiterara os seus propósitos de ataque. O major ficou profundamenteimpressionado com tudo; mas, de acordocom seu gênio, incubou nos primeirostempos a impressão, e, enquantoestiveram com ele os seus amigos, nãodemonstrou preocupação. 204

Olga e o marido passaram no\"Sossego\" cerca de quinze dias. O marido,ao fim de uma semana, já pareciacansado. Os passeios não eram muitos.Em geral, os nossos lugarejos célebres,assim como na Europa cada aldeia tem asua curiosidade histórica. Em Curuzu, o passeio afamado era oCarico, uma cachoeira distante duasléguas da casa de Quaresma, para asbandas das montanhas que lhe barravamo horizonte fronteiro. O Doutor Campos játravara relações com o major e, graças aele, houve cavalos e silhão que tambémpermitisse à moça ir à cachoeira. Foram de manhã, o presidente daCâmara, o doutor, sua mulher e a filha deCampos. O lugar não era feio. Umapequena cachoeira, de uns quinze metrosde altura, despenhava-se em três partes,pelo flanco da montanha abaixo. A águaestremecia na queda, como que seenrodilhava e vinha pulverizar-se numagrande bacia de pedra, mugindo eroncando. Havia muita verdura e como quetoda a cascata vivia sob uma abóboda deárvores. O sol coava-se dificilmente evinha faiscar sobre a água ou sobre aspedras em pequenas manchas, redondas 205

ou oblongas. Os periquitos, de um verdemais claro, pousados nos galhos eramcomo as incrustações daquele salãofantástico. Olga pôde ver tudo isso bem àvontade, andando de um para outro lado,porque a filha do presidente era de umsilêncio de túmulo e o pai desta tomavacom o seu marido informações sobrenovidades medicinais: Como se cura hojeerisipela? Ainda se usa muito o tártaroemético? O que mais a impressionou no passeiofoi a miséria geral, a falta de cultivo, apobreza das casas, o ar triste, abatido dagente pobre. Educada na cidade, ela tinhados roceiros idéia de que eram felizes,saudáveis e alegres. Havendo tanto barro,tanta água, por que as casas não eram detijolos e não tinham telhas? Era sempreaquele sapê sinistro e aquele \"sopapo\" quedeixava ver a trama de varas, como oesqueleto de um doente. Por que ao redordessas casas não havia culturas, umahorta, um pomar? Não seria tão fácil,trabalho de horas? E não havia gado, nemgrande nem pequeno. Era raro uma cabra,um carneiro. Por quê? Mesmo nasfazendas, o espetáculo não era mais 206

animador. Todas soturnas, baixas, quasesem o pomar olente e a horta suculenta. Anão ser o café e um milharal, aqui e ali, elanão pôde ver outra lavoura, outra indústriaagrícola. Não podia ser preguiça só ouindolência. Para o seu gasto, para usopróprio, o homem tem sempre energiapara trabalhar relativamente. Na África, naÍndia, na Cochinchina, em toda a parte, oscasais, as famílias, as tribos, plantam umpouco algumas cousas para eles. Seria aterra? Que seria? E todas essas questõesdesafiavam a sua curiosidade, o seudesejo de saber, e também a sua piedadee simpatia por aqueles párias,maltrapilhos, mal alojados, talvez comfome, sorumbáticos!... Pensou em ser homem. Se o fossepassaria ali e em outras localidades mesese anos, indagaria, observaria e comcerteza havia de encontrar o motivo e oremédio. Aquilo era uma situação docamponês da Idade Média e começo danossa: era o famoso animal de La Bruyèreque tinha face humana e voz articulada... Como no dia seguinte fosse passearao roçado do padrinho, aproveitou aocasião para interrogar a respeito otagarela Felizardo. A faina do roçado ia 207

quase no fim; o grande trato da terraestava quase inteiramente limpo e subiaum pouco em ladeira a colina que formavaa lombada do sítio. Olga encontrou o camarada cáembaixo, cortando a machado as madeirasmais grossas; Anastácio estava no alto, naorla do mato, juntando, a ancinho, asfolhas caídas. Ela lhe falou: – Bons-dias, \"sá dona\". – Então trabalha-se muito, Felizardo? – O que se pode. – Estive ontem no Carico, bonitolugar... Onde é que você mora, Felizardo? – É doutra banda, na estrada da vila. – É grande o sítio de você? – Tem alguma terra, sim, senhora, \"sádona\". – Você por que não planta para você? – \"Quá, sá dona!\" O que é que a gentecome? – O que plantar ou aquilo que aplantação der em dinheiro. – \"Sá dona tá\" pensando uma cousa ea cousa é outra. Enquanto planta cresce, eentão? \"Quá, sá dona\", não é assim. Deu uma machadada; o troncoescapou; colocou-o melhor no picador e,antes de desferir o machado, ainda disse: 208

– Terra não é nossa... E \"frumiga\"?...Nós não \"tem\" ferramenta... isso é bompara italiano ou \"alamão\", que o governodá tudo... Governo não gosta de nós... Desferiu o machado, firme, seguro; e orugoso tronco se abriu em duas partes,quase iguais, de um claro amarelado, ondeo cerne escuro começava a aparecer. Ela voltou querendo afastar do espíritoaquele desacordo que o camaradaindicara, mas não pôde. Era certo. Pelaprimeira vez notava que o self-help doGoverno era só para os nacionais; para osoutros todos os auxílios e facilidades, nãocontando com a sua anterior educação eapoio dos patrícios. E a terra não era dele? Mas de quemera então, tanta terra abandonada que seencontrava por aí? Ela vira até fazendasfechadas, com as casas em ruínas... Porque esse acaparamento, esses latifúndiosinúteis e improdutivos? A fraqueza de atenção não lhepermitiu pensar mais no problema. Foivindo para casa, tanto mais que era horade jantar e a fome lhe chegava. Encontrou o marido e o padrinho aconversar. Aquele perdera um pouco dasua morgue; havia mesmo ocasião em que 209

era até natural. Quando ela chegou, opadrinho exclamava: – Adubos! É lá possível que umbrasileiro tenha tal idéia! Pois se temos asterras mais férteis do mundo! – Mas se esgotam, major, observou odoutor. Dona Adelaide, calada, seguia comatenção o crochet que estava fazendo;Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; eOlga intrometeu-se na conversa: – Que zanga é essa, padrinho? – É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam deadubos... Isto é até uma injúria! – Pois fique certo, major, se eu fosse osenhor, aduziu o doutor, ensaiava unsfosfatos... – Decerto, major, obtemperou Ricardo.Eu, quando comecei a tocar violão, nãoqueria aprender música... Qual música!Qual nada! A inspiração basta!... Hoje vejoque é preciso... É assim, resumia ele. Todos se entreolharam, excetoQuaresma que logo disse com toda a forçad'alma: – Senhor doutor, o Brasil é o país maisfértil do mundo, é o mais bem-dotado e as 210

suas terras não precisam \"empréstimos\"para dar sustento ao homem. Fique certo! – Há mais férteis, major, avançou odoutor. – Onde? – Na Europa. – Na Europa! – Sim, na Europa. As terras negras daRússia, por exemplo. O major considerou o rapaz durantealgum tempo e exclamou triunfante: – O senhor não é patriota! Essesmoços... O jantar correu mais calmo. Ricardofez ainda algumas considerações sobre oviolão. À noite, o menestrel cantou a suaúltima produção: \"Os Lábios da Carola.\"Suspeitava-se que Carola fosse umacriada do Doutor Campos; mas ninguémaludiu a isso. Ouviram-no com interesse eele foi muito aclamado. Olga tocou novelho piano de Dona Adelaide; e, antesdas onze horas, estavam todos recolhidos. Quaresma chegou a seu quarto,despiu-se, enfiou a camisa de dormir e,deitado, pôs-se a ler um velho elogio dasriquezas e opulências do Brasil. A casa estava em silêncio; do lado defora, não havia a mínima bulha. Os sapos 211

tinham suspendido um instante a suaorquestra noturna. Quaresma lia; elembrava-se que Darwin escutava comprazer esse concerto dos charcos. Tudo nanossa terra é extraordinário! pensou. Dadespensa, que ficava junto a seuaposento, vinha um ruído estranho. Apurouo ouvido e prestou atenção. Os saposrecomeçaram o seu hino. Havia vozesbaixas, outras mais altas e estridentes;uma se seguia à outra, num dado instantetodas se juntaram num uníssonosustentado. Suspenderam um instante amúsica. O major apurou o ouvido; o ruídocontinuava. Que era? Eram uns estalostênues; parecia que quebravam gravetos,que deixavam outros cair ao chão... Ossapos recomeçaram; o regente deu umamartelada e logo vieram os baixos e ostenores. Demoraram muito; Quaresmapôde ler umas cinco páginas. Osbatráquios pararam; a bulha continuava. Omajor levantou-se, agarrou o castiçal e foià dependência da casa donde partia oruído, assim mesmo como estava, emcamisa de dormir. Abriu a porta; nada viu. Ia procurarnos cantos, quando sentiu uma ferroadano peito do pé. Quase gritou. Abaixou a 212

vela para ver melhor e deu com umaenorme saúva agarrada com toda a fúria àsua pele magra. Descobriu a origem dabulha. Eram formigas que, por um buracono assoalho, lhe tinham invadido adespensa e carregavam as suas reservasde milho e feijão, cujos recipientes tinhamsido deixados abertos por inadvertência. Ochão estava negro, e carregadas com osgrãos, elas, em pelotões cerrados,mergulhavam no solo em busca da suacidade subterrânea. Quis afugentá-las. Matou uma, duas,dez, vinte, cem; mas eram milhares e cadavez mais o exército aumentava. Veio uma,mordeu-o, depois outra, e o forammordendo pelas pernas, pelos pés,subindo pelo seu corpo. Não pôdeagüentar, gritou, sapateou e deixou a velacair. Estava no escuro. Debatia-se paraencontrar a porta; achou e correu daqueleínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo àluz radiante do sol, o visse distintamente... *** 213

IV \"Peço Energia, Sigo Já\" Dona Adelaide, a irmã de Quaresma,tinha uns quatro anos mais que ele. Erauma bela velha, com um corpo médio, umatez que começava a adquirir aquela pátinada grande velhice, uma espessa cabeleirajá inteiramente amarelada e um olhartranqüilo, calmo e doce. Fria, semimaginação, de inteligência lúcida epositiva, em tudo formava um grandecontraste com o irmão; contudo, nuncahouve entre eles uma separação profundanem tampouco uma penetração perfeita.Ela não entendia nem procurava entendera substância do irmão, e sobre ele emnada reagia aquele ser metódico,ordenado e organizado, de idéias simples,médias e claras. Ela já atingira aos cinqüenta e ele paralá marchava; mas ambos tinham arsaudável, poucos achaques, e prometiamainda muita vida. A existência calma, docee regrada que tinham levado até aliconcorrera muito para a boa saúde deambos. Quaresma incubou as suas manias 214

até depois dos quarenta e ela nunca tiveraqualquer. Para Dona Adelaide, a vida era cousasimples, era viver, isto é, ter uma casa,jantar e almoço, vestuário, tudo modesto,médio. Não tinha ambições, paixões,desejos. Moça, não sonhara príncipes,belezas, triunfos, nem mesmo um marido.Se não casou foi porque não sentiunecessidade disso; o sexo não lhe pesavae de alma e corpo ela sempre se sentiucompleta. O seu aspecto tranqüilo e o sossegodos seus olhos verdes, de um brilho lunarde esmeralda, emolduravam e realçavamnaquele interior familiar a agitação e ainquietude, o alanceado do irmão. Não se vá supor que Quaresmaandasse transtornado como um doido.Felizmente não. Na aparência até poder-se-ia imaginar que nada conturbava suaalma; porém, se mais vagarosamente seexaminassem os seus hábitos, gestos eatitudes logo se havia de ver que osossego e a placidez não moravam no seupensamento. Ocasiões havia em que ficava a olhar,durante minutos seguidos, ao longe ohorizonte, perdido em cisma; outras, isso 215

quando no trabalho da roça, em quesuspendia todos os movimentos, fincava oolhar no chão, demorava-se assim uminstante, coçando uma mão com a outra,dava depois um muxoxo, continuava otrabalho; e mesmo momentos surgiam emque não reprimia uma exclamação ou umafrase. Anastácio, em tais instantes, olhavapor baixo dos olhos o patrão. O antigoescravo não os sabia mais fixar, e nadadizia; Felizardo continuava a contar a fugada filha do Custódio com o Manduca davenda; e o trabalho marchava. Inútil é dizer que a irmã não faziareparo nisso, mesmo porque, a não ser nojantar e nas primeiras horas do dia, elesviviam separados. Quaresma na roça, nasplantações, e ela superintendendo oserviço doméstico. As outras pessoas de suas relaçõesnão podiam também notar aspreocupações absorventes do major, pelosimples motivo de que estavam longe. Ricardo havia seis meses que não lhevisitara e da afilhada e do compadre asúltimas cartas que recebera datavam deuma semana, não vendo aquela há tantotempo, quanto ao trovador, e aquele desde 216

quase um ano, isto é, o tempo em queestava no \"Sossego\". Durante esse tempo, Quaresma nãocessou de se interessar peloaproveitamento de suas terras. Os seushábitos não foram mudados e a suaatividade continuava sempre a mesma. Éverdade que deixara de parte osinstrumentos de meteorologia. O higrômetro, o barômetro e os outroscompanheiros não eram mais consultadose as observações registradas numcaderno. Dera-se mal com eles. Fosseinexperiência e ignorância das basesteóricas deles, fosse porque fosse, o certoé que toda a previsão que Quaresma fazia,baseada em combinações dos seus dados,saía errada. Se esperava tempo seguro, lávinha chuva; se esperava chuva, lá vinhaseca. Assim perdeu muita semente eFelizardo mesmo sorria dos seusaparelhos, com aquele grosso e cavernososorriso de troglodita: – \"Quá\" patrão! Isso de chuva vemquando Deus \"qué\". O barômetro aneróide continuava aum canto a dançar o seu ponteiro sem serpercebido; o termômetro de máxima e 217

mínima, legítimo Casella, jazia penduradona varanda sem receber um olhar amigo; acaçamba do pluviômetro estava nogalinheiro e servia de bebedouro às aves;só o anemômetro continuavateimosamente a rodar, a rodar, já sem fio,no alto do mastro, como se protestassecontra aquele desprezo pela ciência queQuaresma representava. Quaresma vivia assim, sentindo que acampanha que lhe tinham movido, emboratendo deixado de ser pública, lavravaocultamente. Havia no seu espírito e noseu caráter uma vontade de acabá-la devez, mas como? Se não o acusavam, senão articulavam nada contra elediretamente? Era um combate comsombras, com aparências, que seriaridículo aceitar. De resto, a situação geral que ocercava, aquela miséria da populaçãocampestre que nunca suspeitara, aqueleabandono de terras à improdutividadeencaminhavam sua alma de patriotameditativo a preocupações angustiosas. Via o major com tristeza não existirnaquela gente humilde sentimento desolidariedade, de apoio mútuo. Não seassociavam para cousa alguma e viviam 218

separados, isolados, em famíliasgeralmente irregulares, sem sentir anecessidade de união para o trabalho daterra. Entretanto, tinham bem perto oexemplo dos portugueses que, unidos aosseis e mais, conseguiam em sociedadecultivar a arado roças de certa importância,lucrar e viver. Mesmo o velho costume do\"moitirão\" já se havia apagado. Como remediar isso? Quaresma desesperava... A tal afirmação de falta de braçospareceu-lhe uma afirmação de má fé ouestúpida, e estúpido ou de má fé era oGoverno que os andava importando aosmilhares, sem se preocupar com os que jáexistiam. Era como se no campo em quepastavam mal meia dúzia de cabeças degado, fossem introduzidas mais três, paraaumentar o estrume!... Pelo seu caso, ele via bem asdificuldades, os óbices de toda a sorte quehavia para fazer a terra produtiva eremunerada. Um fato veio mostrar-lhe comeloqüência um dos aspectos da questão.Vencendo a erva-de-passarinho, os maus-tratos e o abandono de tantos anos, osabacateiros de suas terras conseguiramfrutificar, fracamente é verdade, mas de 219

forma superior às necessidades de suacasa. A sua alegria foi grande. Pela primeiravez, ia passar-lhe pelas mãos dinheiro quelhe dava a terra, sempre mãe e semprevirgem. Tratou de vender, mas como? aquem? No lugar havia um ou outro que osqueria comprar por preços ínfimos. Comdecisão foi ao Rio procurar comprador.Andou de porta em porta. Não queriam,eram muitos. Ensinaram-lhe queprocurasse um tal Senhor Azevedo noMercado, o rei das frutas. Lá foi. – Abacates! Ora! Tenho muitos...Estão muito baratos! – Entretanto, disse Quaresma, aindahoje indaguei em uma confeitaria epediram-me pela dúzia cinco mil-réis. – Em porção, o senhor sabe que... Éisso... Enfim, se quer mande-os... Depois, tilintou a pesada corrente deouro, pôs uma das mãos na cava do coletee quase de costas para o major: – É preciso vê-los... O tamanho influi... Quaresma os mandou e, quando lheveio o dinheiro, teve a satisfação orgulhosade quem acaba de ganhar uma grandebatalha imortal. Acariciou uma por umaaquelas notas encardidas, leu-lhes bem o 220

número e a estampa, arrumou-as todasuma ao lado da outra sobre uma mesa emuito tempo levou sem ânimo de trocá-las. Para avaliar o lucro, descontou o frete,de estrada de ferro e carroça, o custo doscaixões, o salário dos auxiliares e, apósesse cálculo que não era laborioso, teve aevidência de que ganhara mil e quinhentosréis, nem mais nem menos. O SenhorAzevedo tinha-lhe pago pelo tanto aquantia com que se compra uma dúzia. Assim mesmo o seu orgulho nãodiminuiu e ele viu naquele ridículo lucroobjeto para maior contentamento do quese recebesse um avultado ordenado. Foi, portanto, com redobrada atividadeque se pôs ao trabalho. Para o ano, o lucroseria maior. Tratava-se agora de limpar asfruteiras. Anastácio e Felizardocontinuavam ocupados nas grandesplantações; contratou um outro empregadopara ajudá-lo no tratamento das velhasflores frutíferas. Foi, pois, com o Mané Candeeiro queele se pôs a serrar os galhos das árvores,os galhos mortos e aqueles em que a ervadaninha segurava as suas raízes. Eraárduo e difícil o trabalho. Tinham às vezesque subir às grimpas para a extirpação do 221

galho atingido; os espinhos rasgavam asroupas e feriam as carnes; e em muitasocasiões estiveram em risco de vir ao chãoserrote e Quaresma ou o camarada. Mané Candeeiro falava pouco, a nãoser que se tratasse de cousas de caça;mas cantava que nem passarinho. Estavaa serrar, estava a cantar trovas roceiras,ingênuas, onde com surpresa o major nãovia entrar a fauna, a flora locais, oscostumes das profissões roceiras. Eramvaporosamente sensuais e muito ternas,melosas até; por acaso lá vinha uma emque um pássaro local entrava; então omajor escutava: Eu vou dar a despedida Como deu o bacurau, Uma perna no caminho Outra no galho de pau. Este bacurau que entrava aí satisfaziaparticularmente às aspirações deQuaresma. A observação popular jácomeçava a interessar-se pelo espetáculoambiente, já se emocionava com ele e anossa raça deitava, portanto, raízes nagrande terra que habitava. Ele a copiou emandou ao velho poeta de São Cristóvão. 222

Felizardo dizia que Mané Candeeiro eraum mentiroso, pois todas aquelas caçadasde caititus, jacus, onças eram patranhas;mas, respeitava o seu talento poético,principalmente no desafio: o moleque ébom! Ele era claro e tinha umas feiçõesregulares, cesarianas, duras e fortes, umtanto amolecidas pelo sangue africano. Quaresma procurou descobrir neleaquela odiosa catadura que Darwin achounos mestiços; mas, sinceramente, não aencontrou. Com auxílio de Mané Candeeiro foique Quaresma conseguiu acabar de limparas fruteiras daquele velho sítioabandonado há quase dez anos. Quandoo serviço ficou pronto, ele viu com tristezaaquelas velhas árvores amputadas,mutiladas, com folhas aqui e sem folhasali... Parecia sofrer e ele se lembrou dasmãos que as tinham plantado há vinte outrinta anos, escravos, talvez, banzeiros edesesperançados! ... Mas não tardou que os botõesrebentassem e tudo reverdecesse, e orenascimento das árvores como que trouxeo contentamento das aves e do passaredosolto. De manhã, esvoaçavam os tiés- 223

vermelhos, com o seu pio pobre, espéciede ave tão inútil e tão bela de plumas queparece ter nascido para os chapéus dasdamas; as rolas pardas e caboclas embando, mariscando, no chão capinado;pelo correr do dia, eram os sanhaçus acantar nos galhos altos, os papa-capins, asnuvens de coleiros; e de tarde como quetodos eles se reuniam, piando, cantando,chilreando, pelas altas mangueiras, peloscajueiros, pelos abacateiros, entoandolouvores ao trabalho tenaz e fecundo dovelho Major Quaresma. Não durou muito essa alegria. Uminimigo apareceu inopinadamente, com arapidez ousadíssima de um generalconsumado. Até ali ele se mostrara tímido,parecia que somente mandavaesclarecedores. Desde aquele ataque às provisões deQuaresma, logo afugentadas, não mais asformigas reapareceram; mas, naquelamanhã, quando contemplou o seu milharal,foi como se lhe tirassem a alma, e ficousem ação e as lágrimas lhe vieram aosolhos. O milho que já tinha repontado, muitoverde, pequenino, com uma timidez decriança, crescera cerca de meio palmo 224

acima da terra; o major até mandarabuscar o sulfato de cobre para a soluçãoem que ia lavar a batata-inglesa a plantarnos intervalos dos pés. Toda a manhã, ele ia lá e já via omilharal crescido com o seu pendãobranco e as suas espigas de coma cor devinho, oscilando ao vento; naquela, elenão viu nada mais. Até os tenros colmostinham sido cortados e levados para longe!\"A modo que é obra de gente\" disseFelizardo; entretanto, tinham sido assaúvas, os terríveis himenópteros, piratasínfimos que lhe caíam em cima do trabalhocom uma rapacidade turca... Era precisocombatê-los. Quaresma pôs-se logo emcampo, descobriu as aberturas principaisdo formigueiro e em cada uma queimou oformicida mortal. Passaram-se dias; osinimigos pareciam derrotados, mas, certanoite, indo ao pomar para melhor apreciara noite estrelada, Quaresma ouviu umabulha esquisita, como se alguémesmagasse as folhas mortas das árvores...Um estalido... E era perto... Acendeu umfósforo e o que viu, meu Deus! Quasetodas as laranjeiras estavam negras deimensas saúvas. Havia delas às centenas,pelos troncos e pelos galhos acima e 225

agitavam-se, moviam-se, andavam comoem ruas transitadas e vigiadas apopulação de uma grande cidade: umassubiam, outras desciam; nada deatropelos, de confusão, de desordem. Otrabalho como que era regulado a toquesde corneta. Lá em cima umas cortavam asfolhas pelo pecíolo; cá embaixo, outrasserravam-nas em pedaços e afinal eramcarregadas por terceiras, levantando-asacima da descomunal cabeça, em longasfileiras pelo trilho limpo, aberto entre a ervarasteira. Houve um instante de desânimo naalma do major. Não tinha contato comaquele obstáculo nem o supusera tão forte.Agora via bem que era a uma sociedadeinteligente, organizada, ousada e tenazcom quem se tinha de haver. Veio-lheentão à lembrança aquela frase de Saint-Hilaire: se nós não expulsássemos asformigas, elas nos expulsariam. O major não estava lembrado ao certose eram essas as palavras, mas o sentidoera, e ficou admirado que só agora ela lheocorresse. No dia seguinte, tinha recobrado oânimo. Comprou ingredientes e ei-lo maiso Mané Candeeiro a abrir picadas, a fazer 226

esforços de sagacidade, para descobrir osredutos centrais, as \"panelas\" dos insetosterríveis. Então era como se osbombardeassem: o sulfeto queimava,estourava em tiros seguidos, mortíferos,letais! E daí em diante, foi uma batalha semtréguas. Se aparecia uma abertura, um\"olho\", logo se lhe aplicava o formicida,pois, do contrário, nenhuma plantação erapossível, tanto mais que extintos os dassuas terras, não tardariam os formigueirosdas vizinhanças ou dos logradourospúblicos a deitar canículos para o seuterreno. Era um suplício, um castigo, umaespécie de vigilância a dique holandês eQuaresma viu bem que só uma autoridadecentral, um governo qualquer, ou umacordo entre os cultivadores, podia levar aefeito a extinção daquele flagelo pior que asaraiva, que a geada, que a seca, semprepresente, inverno ou verão, outono ouprimavera. Não obstante essa luta diária, o majornão desanimou e pôde colher algunsprodutos das plantações que tinha feito.Se por ocasião das frutas, a sua alegria foigrande, mais expressiva e mais profunda 227

ela foi quando viu partir para a estação, emsucessivas carretas, as abóboras, osaipins, as batatas-doces, em cestoscobertos com sacos cosidos. Os frutos, emparte, eram de outras mãos; as árvoresnão tinham sido plantadas por ele; masaquilo não, vinha do seu suor, da suainiciativa, do seu trabalho! Ele ainda foi ver aqueles cestos naestação, com a ternura de um pai que vêpartir seu filho para a glória e para avitória. Recebeu o dinheiro dias depois,contou-o e esteve deduzindo os lucros. Não foi à roça nesse dia; o trabalho deguarda-livros roubou o de cultivador. A suaatenção, já um tanto gasta, não lhefavorecia a tarefa das cifras, e só pelomeio-dia, pôde dizer à irmã: – Sabes qual foi o lucro, Adelaide? – Não. Menor do que o dos abacates? – Um pouco mais. – Então... Quanto? – Dous mil quinhentos e setenta réis,respondeu Quaresma, destacando sílabapor sílaba. – O quê? – Foi isso. Só de frete paguei cento equarenta e dous mil e quinhentos. 228

Dona Adelaide esteve algum tempocom os olhos baixos, seguindo a costuraque fazia, depois, levantando o olhar: – Homem, Policarpo, o melhor édeixares isso... Tens gasto muitodinheiro... Só com as formigas! – Ora, Adelaide! Pensas que querofazer fortuna? Faço isso para dar exemplo,levantar a agricultura, aproveitar as nossasterras feracíssimas... – É isto... Queres sempre ser aabelha-mestra... Já viste os grandesfazerem esses sacrifícios?... Vê lá sefazem! Histórias... Metem-se no café quetem todas as proteções... – Mas, faço eu. A irmã prestou mais atenção àcostura, Policarpo levantou-se, foi até ajanela que dava para o galinheiro. Faziaum dia fosco e irritante. Ele concertou opince-nez, esteve olhando e de lá falou: – Oh! Adelaide! Aquilo não é umagalinha morta?... A velha senhora ergueu-se com acostura, foi até à janela e verificou com avista: – É... É já a segunda que morre hoje. Após esta leve conversa, Quaresmavoltou à sua sala de estudos. Meditava 229

grandes reformas agrícolas. Mandarabuscar catálogos e ia examiná-los. Tinha jáem mente uma charrua dupla, umcapinador mecânico, um semeador, umdestocador, grades, tudo americano, deaço, dando o rendimento efetivo de vintehomens. Até então, não quisera essasinovações; as terras mais ricas do mundonão precisavam desses processos, que lhepareciam artificiais, para produzir; estava,porém, agora disposto a empregá-loscomo experiência. Aos adubos, entretanto,o seu espírito resistia. Terra virada, diziaFelizardo, terra estrumada; parecia aQuaresma uma profanação estar aempregar nitratos, fosfatos ou mesmoestrume comum, numa terra brasileira...Uma injúria! Quando se convencesse de que eramnecessários, parecia-lhe que todo o seusistema de idéias ia por terra e os móveisde sua vida desapareceriam. Estavamassim a escolher arados e outros\"Planets\", \"Bajacs\" e \"Brabants\" de váriosfeitios, quando o seu pequeno copeiro lheanunciou a visita do Doutor Campos. O edil entrou com a sua jovialidade, asua mansidão e o seu grande corpo. Eraalto e gordo, pançudo um pouco, tinha os 230

olhos castanhos, quase à flor do rosto,uma testa média e reta; o nariz, malfeito.Um tanto trigueiro, cabelos corridos e jágrisalhos, era o que se chama por aí umcaboclo, embora o seu bigode fossecrespo. Não nascera em Curuzu, era daBahia ou de Sergipe, habitava, porém, olugar há mais de vinte anos, onde casara eprosperara, graças ao dote da mulher e àsua atividade clínica. Com esta, nãogastava grande energia mental: tendo decor uma meia dúzia de receitas, ele, desdemuito, conseguira enquadrar as moléstiaslocais no seu reduzido formulário. Presidente da Câmara, era daspessoas mais consideráveis de Curuzu, eQuaresma o estimava particularmente pelasua familiaridade, pela sua afabilidade esimplicidade. – Ora viva, major! Como vai isto poraí? Muita formiga? Lá em casa já não hámais. Quaresma respondeu com menosentusiasmo e jovialidade, mas contentecom a alegria comunicativa do doutor. Elecontinuava a falar com desembaraço enaturalidade: 231

– Sabe o que me traz aqui, major?Não sabe, não é? Preciso de um pequenoobséquio seu.O major não se espantou; simpatizavacom o homem e abriu-se emoferecimentos.– Como o major sabe...Agora a sua voz era doce, flexível,sutil; as palavras caíam-lhe da bocaadocicadas, dobravam-se, coleavam-se:– Como o major sabe, as eleições sedevem realizar por estes dias. A vitória é\"nossa\". Todas as mesas estão conosco,exceto uma... Aí mesmo, se o majorquiser...– Mas, como? se eu não sou eleitor,não me meto, nem quero meter-me empolítica? perguntou Quaresmaingenuamente.– Exatamente por isso, disse o doutorcom voz forte; e em seguida brandamente:a seção funciona na sua vizinhança, é ali,na escola, se...– E daí?– Tenho aqui uma carta do Neves,dirigida ao senhor. Se o major querresponder (é melhor já) que não houveeleição... Quer? 232

Quaresma olhou o doutor comfirmeza, coçou um instante o cavanhaquee respondeu claramente, firmemente: – Absolutamente não. O doutor não se zangou. Pôs maisunção e macieza na voz, aduziuargumentos: que era para o partido, oúnico que pugnava pelo levantamento dalavoura. Quaresma foi inflexível; disse quenão, que lhe eram absolutamenteantipáticas tais disputas, que não tinhapartido e mesmo que tivesse não iriaafirmar uma cousa que ele não sabia aindase era mentira ou verdade. Campos não deu mostras deaborrecimento, conversou um pouco sobrecousas banais e despediu-se com o aramável, com a jovialidade mais sua queera possível. Isto se passou na terça-feira, naqueledia de luz fosca e irritante. À tarde houvetrovoada, choveu muito. O tempo sólevantou na quinta-feira, dia em que omajor foi surpreendido com a visita de umsujeito com um uniforme velho elamentável, portador de um papel oficialpara ele, proprietário do \"Sossego\",conforme mesmo disse o tal homemfardado. 233

Em virtude das posturas e leismunicipais, rezava o papel, o SenhorPolicarpo Quaresma, proprietário do sítio\"Sossego\", era intimado, sob as penas dasmesmas posturas e leis, a roçar e capinaras testadas do referido sítio queconfrontavam com as vias públicas. O major ficou um tempo pensando.Julgava impossível uma tal intimação.Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo opapel, viu a assinatura do Doutor Campos.Era certo... Mas que absurda intimaçãoesta de capinar e limpar estradas naextensão de mil e duzentos metros, poisseu sítio dava de frente para um caminho ede um dos lados acompanhava outro naextensão de oitocentos metros – erapossível! ? A antiga corvéia!... Um absurdo! Antesconfiscassem-lhe o sítio. Consultando airmã, ela lhe aconselhou que falasse aoDoutor Campos. Contou-lhe entãoQuaresma a conversa que tivera com eledias antes. – Mas és tolo, Policarpo. Foi elemesmo... A luz se lhe fez no pensamento...Aquela rede de leis, de posturas, decódigos e de preceitos, nas mãos desses 234

regulotes, de tais caciques, setransformava em potro, em polé, eminstrumento de suplícios para torturar osinimigos, oprimir as populações, crestar-lhe a iniciativa e a independência,abatendo-as e desmoralizando-as. Pelos seus olhos passaram numinstante aquelas faces amareladas echupadas que se encostavam nos portaisdas vendas preguiçosamente; viu tambémaquelas crianças maltrapilhas e sujas,d'olhos baixos, a esmolar disfarçadamentepelas estradas; viu aquelas terrasabandonadas, improdutivas, entregues àservas e insetos daninhos; viu ainda odesespero de Felizardo, homem bom, ativoe trabalhador, sem ânimo de plantar umgrão de milho em casa e bebendo todo odinheiro que lhe passava pelas mãos –este quadro passou-lhe pelos olhos com arapidez e o brilho sinistro do relâmpago; esó se apagou de todo, quando teve que lera carta que a sua afilhada lhe mandara. Vinha viva e alegre. Contavapequenas histórias de sua vida, a viagempróxima do papai à Europa, o desesperodo marido no dia em que saiu sem anel,pedia notícias do padrinho, de DonaAdelaide e, sem desrespeito, recomendava 235

à irmã de Quaresma que tivesse muitocuidado com o manto de arminho da\"Duquesa\". A \"Duquesa\" era uma grande patabranca, de penas alvas e macias ao olhar,que, pela lentidão e majestade do andar,com o pescoço alto e o passo firme,merecera de Olga esse apelido nobre. Oanimal tinha morrido havia dias. E quemorte! Uma peste que lhe levara duasdúzias de patos, levara a \"Duquesa\"também. Era uma espécie de paralisia quetomava as pernas, depois o resto do corpo.Três dias levou a agonizar. Deitada sobreo peito, com o bico colado ao chão,atacada pelas formigas, o animal só davasinal de vida por uma lenta oscilação dopescoço em torno do bico, espantando asmoscas que a importunavam na sua últimahora. Era de ver como aquela vida tãoestranha à nossa, naquele instantepenetrava em nós e sentíamos-lhe osofrimento, a agonia e a dor. O galinheiro ficou como uma aldeiadevastada; a peste atacou galinhas, perus,patos; ora sobre uma forma, ora sobreoutra, foi ceifando, matando, até reduzir asua população a menos de metade. 236

E não havia quem soubesse curar.Numa terra cujo governo tinha tantasescolas que produziam tantos sábios, nãohavia um só homem que pudesse reduzircom as suas drogas ou receitas aqueleconsiderável prejuízo.Esses contratempos, essascontrariedades abateram muito o cultivadorentusiástico dos primeiros meses;entretanto não passara pela mente deQuaresma abandonar os seus propósitos.Adquiriu compêndios de veterinária e até játratava de comprar as máquinas agrícolasdescritas nos catálogos.Uma tarde, porém, estava à espera dajunta de bois que encomendara para otrabalho do arado, quando lhe apareceu àporta um soldado de polícia com um papeloficial. Ele se lembrou da intimaçãomunicipal. Estava disposto a resistir, nãose incomodou muito. Recebeu o papel e leu. Não vinhamais da municipalidade, mas da coletoria,cujo escrivão, Antonino Dutra, conformeestava no papel, intimava o SenhorPolicarpo Quaresma a pagar quinhentosmil-réis de multa, por ter enviado produtos 237

de sua lavoura sem pagamento dosrespectivos impostos. Viu bem o que havia nisso devingança mesquinha; mas o seupensamento voou logo para as cousasgerais, levado pelo seu patriotismoprofundo. A quarenta quilômetros do Rio,pagavam-se impostos para se mandar aomercado umas batatas? Depois de Turgot,da Revolução, ainda havia alfândegasinteriores? Como era possível fazer prosperar aagricultura, com tantas barreiras eimpostos? Se ao monopólio dosatravessadores do Rio se juntavam asexações do Estado, como era possível tirarda terra a remuneração consoladora? E o quadro que já lhe passara pelosolhos, quando recebeu a intimação damunicipalidade, voltou-lhe de novo, maistétrico, mais sombrio, mais lúgubre; eanteviu a época em que aquela gente teriade comer sapos, cobras, animais mortos,como em França os camponeses, emtempos de grandes reis. Quaresma veio a recordar-se do seutupi, do seu folklore, das modinhas, das 238

suas tentativas agrícolas – tudo isso lhepareceu insignificante, pueril, infantil. Era preciso trabalhos maiores, maisprofundos; tornava-se necessário refazer aadministração. Imaginava um governoforte, respeitado, inteligente, removendotodos esses óbices, esses entraves, Sullye Henrique IV, espalhando sábias leisagrárias, levantando o cultivador... Entãosim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz. Felizardo entregou-lhe o jornal quetoda a manhã mandava comprar àestação, e lhe disse: – Seu patrão, amanhã, não venho\"trabaiá\". – Por certo; é dia feriado... AIndependência. – Não é por isso. – Por que então? – Há \"baruio\" na Corte e dizem quevão \"arrecrutá\". Vou pro mato... Nada! – Que barulho? – \"Tá\" nas \"foias\", sim \"sinhô\". Abriu o jornal e logo deu com a notíciade que os navios da esquadra se haviaminsurgido e intimado ao Presidente a sairdo poder. Lembrou-se das suas reflexõesde instantes atrás; um governo forte, até à 239

tirania... Medidas agrárias... Sully eHenrique IV... Os seus olhos brilhavam deesperança. Despediu o empregado. Foi aointerior da casa, nada disse à irmã, tomouo chapéu, e dirigiu-se à estação. Chegou ao telégrafo e escreveu: \"Marechal Floriano, Rio. Peço energia.Sigo já. – Quaresma.\" *** 240

V O Trovador – Decerto, Albernaz, não é possívelcontinuar assim... Então, mete-se umsujeito num navio, assesta os canhões praterra e diz: sai daí \"seu\" presidente; e ohomem vai saindo?... Não! É preciso umexemplo... – Eu penso também da mesmamaneira, Caldas. A República precisa ficarforte, consolidada... Esta terra necessita degoverno que se faça respeitar... É incrível!Um país como este, tão rico, talvez o maisrico do mundo, é, no entanto, pobre, devea todo o mundo... Por quê? Por causa dosgovernos que temos tido que não têmprestígio, força... É por isso. Vinham andando, à sombra dasgrandes e majestosas árvores do parqueabandonado; ambos fardados e deespada. Albernaz, depois de um curtointervalo, continuou: – Você viu o imperador, o Pedro II...Não havia jornaleco, pasquim por aí, que onão chamasse de \"banana\" e outrascousas... Saía no carnaval... Um 241

desrespeito sem nome! Que aconteceu?Foi-se como um intruso. – E era um bom homem, observou oalmirante. Amava o seu país... Deodoronunca soube o que fez. Continuavam a andar. O almirantecoçou um dos favoritos e Albernaz olhouum instante para todos os lados, acendeuo cigarro de palha e retomou a conversa: – Morreu arrependido... Nem com afarda quis ir para a cova!... Aqui para nósque ninguém nos ouve: foi um ingrato; oimperador tinha feito tanto por toda afamília, não acha? – Não há dúvida nenhuma!...Albernaz, você quer saber de uma cousa:estávamos melhor naquele tempo, digamlá o que disserem... – Quem diz o contrário? Havia maismoralidade... Onde está um Caxias? umRio Branco? – E mais justiça mesmo, disse comfirmeza o almirante. O que eu sofri, não foipor causa do \"velho\", foi a canalha...Demais, tudo barato... – Eu não sei, disse Albernaz comparticular acento, como há ainda quem secase... Anda tudo pela hora da morte! 242

Eles olharam um instante as velhasárvores da Quinta Imperial, por ondevinham atravessando. Nunca as tinhamcontemplado; e, agora parecia-lhes quejamais tinham pousado os olhos sobreárvores tão soberbas, tão belas, tãotranqüilas e seguras de si, como aquelasque espalhavam sob os seus grandesramos uma vasta sombra, deliciosa emacia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra própria, delas, da qual nuncasairiam desalojadas a machado, paraedificação de casebres; e esse sentimentolhes havia dado muita força de vegetar euma ampla vontade de se expandirem. Osolo sobre o qual cresciam era delas eagradeciam à terra estendendo muito osseus ramos, cerrando e tecendo afolhagem, para dar à boa mãe frescura eproteção contra a inclemência do sol. As mangueiras eram as mais gratas;os ramos longos e cheios de folhas quasebeijavam o chão. As jaqueiras seespreguiçavam; os bambus se inclinavam,de um lado e outro da aléia, e cobriam aterra com uma ogiva verde... O velho edifício imperial se erguiasobre a pequena colina. Eles lhe viam ofundo, aquela parte de construção mais 243

antiga, joanina, com a torre do relógio umpouco afastada e separada do corpo doedifício. Não era belo o palácio, não tinhamesmo nenhum traço de beleza, era atépobre e monótono. As janelas acanhadasdaquela fachada velha, os andares depequena altura impressionavam mal; todoele, porém, tinha uma tal ou qualsegurança de si, um ar de confiança poucocomum nas nossas habitações, uma certadignidade, alguma cousa de quem sesente viver, não para um instante, maspara anos, para séculos... As palmeirascercavam-no, erectas, firmes, com os seusgrandes penachos verdes, muito altos,alongados para o céu... Eram como que a guarda da antigamoradia imperial, guarda orgulhosa do seumister e função. Albernaz interrompeu o silêncio: – Em que dará isto tudo, Caldas? – Sei lá. – O \"homem\" deve estar atrapalhado...Já tinha o Rio Grande, agora o Custódio...hum! – O poder é o poder, Albernaz. Vinham andando em demanda àestação de São Cristóvão. Atravessaram o 244

velho parque imperial transversalmente,desde o portão da Cancela até à linha daestrada de ferro. Era de manhã, e o diaestava límpido e fresco.Caminhavam com pequenos passosseguros, mas sem pressa. Pouco antes desaírem da quinta, deram com um soldadoa dormir numa moita. Albernaz tevevontade de acordá-lo: camarada!camarada! O soldado levantou-seestremunhado; e, dando com aqueles dousoficiais superiores, concertou-serapidamente, fez a continência que lhesera devida e ficou com a mão no boné, uminstante firme, mas logo bambeou.– Abaixe a mão, fez o general. Quefaz você aqui?Albernaz falou em tom ríspido e decomando. A praça, falando a medo,explicou que tinha estado de ronda aolitoral toda a noite. A força se recolheraaos quartéis; ele obtivera licença para irem casa, mas o sono fora muito edescansava ali um pouco.– Então como vão as cousas?perguntou o general.– Não sei, não \"sinhô\".– Os \"homens\" desistem ou não? 245

O general esteve um instanteexaminando o soldado. Era branco e tinhaos cabelos alourados, de um louro sujo edegradado; as feições eram feias: malaressalientes, testa óssea e todo ele angulosoe desconjuntado. – Donde você é? perguntou-lhe aindaAlbernaz. – Do Piauí, sim \"sinhô\". – Da capital? – Do sertão, de Paranaguá, sim\"sinhô\". O almirante até ali não interrogara osoldado que continuava amedrontado,respondendo tropegamente. Caldas, paraacalmá-lo, resolveu falar-lhe com doçura. – Você não sabe, camarada, quaissão os navios que \"eles\" têm? – O \"Aquidabã\"... A \"Luci\". – A \"Luci\" não é navio. – É verdade, sim \"sinhô\". O\"Aquidabã\"... Um \"bandão\" deles, sim,\"sinhô\". O general interveio então. Falou-lhecom brandura, quase paternal, mudando otratamento de você para tu, que parecemais doce e íntimo quando se fala aosinferiores: 246

– Bem, descansa, meu filho. É melhorires para casa... Podem furtar-te o sabre eestás na \"inácia\". Os dous generais continuaram o seucaminho e, em breve, estavam naplataforma da estação. A pequena estaçãotinha um razoável movimento. Um grandenúmero de oficiais, ativos, reformados,honorários moravam-lhe nas cercanias eos editais chamavam todos a seapresentar às autoridades competentes.Albernaz e Caldas atravessaram aplataforma no meio de continências. Ogeneral era mais conhecido, em virtude deseu emprego; o almirante, não. Quandopassavam, ouviam perguntar: \"Quem éeste almirante?\" Caldas ficava contente eorgulhava-se um pouco do seu posto e doseu incógnito. Havia uma única mulher na estação,uma moça. Albernaz olhou-a e lembrou-seum instante de sua filha Ismênia...Coitada!... Ficaria boa? Aquelas manias? Onde iria parar?Vieram-lhe as lágrimas, mas ele asconteve com força. Já a levara a uma meia dúzia demédicos e nenhum fazia parar aquele 247

escapamento do juízo que parecia fugiraos poucos do cérebro da moça. A bulha de um expresso, chocalhandoferragens com estrépito, apitando comfúria e deixando fumaça pesada pelos aresque rompia, afastou-o de pensar na filha.Passou o monstro, pejado de soldados, deuniformes e os trilhos, depois de terpassado, ainda estremeciam. Bustamante apareceu; morava nosarredores e vinha tomar o trem, paraapresentar-se. Trazia o seu velho uniformedo Paraguai, talhado segundo os moldesdos guerreiros da Criméia. A barretina eraum tronco de cone que avançava para afrente; e, com aquela banda roxa ecasaquinha curta, parecia ter saído, fugido,saltado de uma tela de Vítor Meireles. – Então por aqui?... Que é isto?indagou o honorário. – Viemos pela quinta, disse oalmirante. – Nada, meus amigos, esses bondesandam muito perto do mar... Não meimporta morrer, mas quero morrercombatendo; isso de morrer por aí, à toa,sem saber como, não vai comigo... O general falara um pouco alto e osjovens oficiais que estavam próximo 248

olharam-no com mal disfarçada censura.Albernaz percebeu e ajuntouimediatamente: – Conheço bem esse negócio debalas... Já vi muito fogo... Você sabe,Bustamante, que, em Curuzu... – A cousa foi terrível, acrescentouBustamante. O trem atracava na estação. Veiochegando manso, vagaroso; a locomotiva,muito negra, bufando, suandogordurosamente, com a sua grandelanterna na frente, um olho de ciclope,avançava que nem uma apariçãosobrenatural. Foi chegando; o comboioestremeceu todo e parou por fim. Estava repleto, muitas fardas deoficiais; a avaliar por ali o Rio devia teruma guarnição de cem mil homens. Osmilitares palravam alegres, e os civisvinham calados e abatidos, e mesmoapavorados. Se falavam, era cochichando,olhando com precaução para os bancos detrás. A cidade andava inçada de secretas,\"familiares\" do Santo Ofício Republicano, eas delações eram moedas com que seobtinham postos e recompensas. 249

Bastava a mínima crítica, para seperder o emprego, a liberdade, – quemsabe? – a vida também. Ainda estávamosno começo da revolta, mas o regime jápublicara o seu prólogo e todos estavamavisados. O chefe de polícia organizara alista dos suspeitos. Não havia distinção deposição e talentos. Mereciam as mesmasperseguições do governo um pobrecontínuo e um influente senador; um lentee um simples empregado de escritório.Demais surgiam as vingançasmesquinhas, a revide de pequenasimplicâncias... Todos mandavam; aautoridade estava em todas as mãos. Em nome do Marechal Floriano,qualquer oficial, ou mesmo cidadão, semfunção pública alguma, prendia e ai dequem caía na prisão, lá ficava esquecido,sofrendo angustiosos suplícios de umaimaginação dominicana. Os funcionáriosdisputavam-se em bajulação, emservilismo... Era um terror, um terror baço,sem coragem, sangrento, às ocultas, semgrandeza, sem desculpa, sem razão e semresponsabilidades... Houve execuções;mas não houve nunca um Fouquier-Tinville. 250


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