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TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Published by rafilho59, 2017-10-05 09:45:39

Description: TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

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– Mas, Senhor Policarpo, disse-lhe ocompadre, é possível que isto seja muitobrasileiro, mas é bem triste, compadre. – Decerto, padrinho, acrescentou amoça com vivacidade; parece até agouro... Este seu compadre era italiano denascimento. A história das suas relaçõesvale a pena contar. Quitandeiro ambulante,fora fornecedor da casa de Quaresma hávinte e tantos anos. O major já tinha assuas idéias patrióticas, mas nãodesdenhava conversar com o quitandeiro eaté gostava de vê-lo suado, curvado aopeso dos cestos, com duas rosasvermelhas nas faces muito brancas deeuropeu recém-chegado. Mas um belo dia,ia Quaresma pelo Largo do Paço, muitodistraído, a pensar nas maravilhasarquitetônicas do chafariz do MestreValentim, quando veio a encontrar-se como mercador ambulante. Falou-lhe comaquela simplicidade d'alma que era bemsua, e notou que o rapaz tinha algumapreocupação séria. Não só, de onde emonde, soltava exclamações sem ligaçãoalguma com a conversa atual, comotambém cerrava os lábios, rilhava osdentes e crispava raivosamente ospunhos. Interrogou-o e veio a saber que 51

tivera uma questão de dinheiro com umseu colega, estando disposto a matá-lo,pois perdera o crédito e em breve estariana miséria. Havia na sua afirmação uma talenergia e um grande e estranho acento deferocidade, que fizeram empregar o majortoda a sua doçura e persuasão paradissuadi-lo do propósito. E não ficou nistosó: emprestou-lhe também dinheiro.Vicente Coleoni pôs uma quitanda, ganhouuns contos de réis, fez-se logo empreiteiro,enriqueceu, casou, veio a ter aquela filha,que foi levada à pia pelo seu benfeitor.Inútil é dizer que Quaresma não notou acontradição entre as suas idéias patrióticase o seu ato. É verdade que ele não as tinha aindamuito firmes, mas já flutuavam na suacabeça e reagiam sobre a sua consciênciacomo tênues desejos, veleidades de rapazde pouco mais de vinte anos, veleidadesque não tardariam tomar consistência e sóesperavam os anos para desabrochar ematos. Fora, pois, ao seu compadre Vicente eà sua afilhada Olga que ele recebera como mais legítimo cerimonial guaitacás, e, senão envergara o traje de rigor de tãointeressante povo, motivo não foi o não tê- 52

lo. Estava até à mão, mas faltava-lhetempo para despir-se. – Lê-se muito, padrinho? perguntou-lhe a afilhada, deitando sobre ele os seusolhos muito luminosos. Havia entre os dous uma grandeafeição. Quaresma era um tanto reservadoe o vexame de mostrar os seussentimentos faziam-no econômico nasdemonstrações afetuosas. Adivinhava-se,entretanto, que a moça ocupava-lhe nocoração o lugar dos filhos que não tiveranem teria jamais. A menina vivaz,habituada a falar alto edesembaraçadamente, não escondia a suaafeição tanto mais que sentiaconfusamente nele alguma coisa desuperior, uma ânsia de ideal, umatenacidade em seguir um sonho, umaidéia, um vôo enfim para as altas regiõesdo espírito que ela não estava habituada aver em ninguém do mundo quefreqüentava. Essa admiração não lhe vinhada educação. Recebera a comum àsmoças de seu nascimento. Vinha de umpendor próprio, talvez das proximidadeseuropéias do seu nascimento, que afizeram um pouco diferente das nossasmoças. 53

Fora com um olhar luminoso eperscrutador que ela perguntara aopadrinho: – Então, padrinho, lê-se muito? – Muito, minha filha. Imagina quemedito grandes obras, uma reforma, aemancipação de um povo. Vicente fora com Dona Adelaide parao interior da casa e os dous conversavama sós na sala dos livros. A afilhada notouque Quaresma tinha alguma cousa demais. Falava agora com tanta segurança,ele que antigamente era tão modesto,hesitante mesmo no falar – que diabo!Não, não era possível... Mas, quem sabe?E que singular alegria havia nos seusolhos – uma alegria de matemático queresolveu um problema, de inventor feliz! – Não se vá meter em algumaconspiração, disse a moça gracejando. – Não te assustes por isso. A cousavai naturalmente, não é precisoviolências... Nisto Ricardo Coração dos Outrosentrou com o seu longo e rabudo fraque desarja e o seu violão encapotado emcamurça. O major fez as apresentações. – Já o conhecia de nome, SenhorRicardo, disse Olga. 54

Coração dos Outros encheu-se de umalvissareiro contentamento. A suafisionomia minguada dilatou-se ao brilhodo seu olhar satisfeito; e a sua cútis, queera ressecada e de tom de velho mármore,como que ficou macia e jovem. Aquelamoça parecia rica, era fina e bonita,conhecia-o – que satisfação! Ele que erasempre um tanto parvo e atrapalhado,quando se encontrava diante das moças,fossem de que condição fossem, animava-se, soltava a língua, amaciava a voz eficava numeroso e eloqüente. – Leu então os meus versos, não é,minha senhora? – Não tive esse prazer, mas li, hámeses, uma apreciação sobre um trabalhoseu. – No Tempo, não foi? – Foi. – Muito injusta! acrescentou Ricardo.Todos os críticos se atêm a essa questãode metrificação. Dizem que os meusversos não são versos... São, sim; massão versos para violão. Vossa Excelênciasabe que os versos para música têmalguma cousa de diferente dos comuns,não é? Não há, portanto, nada a admirarque os meus versos, feitos para violão, 55

sigam outra métrica e outro sistema, nãoacha? – Decerto, disse a moça. Mas parece-me que o Senhor faz versos para a músicae não música para os versos. E ela sorriu devagar,enigmaticamente, deixando parado o seuolhar luminoso, enquanto Ricardo,desconfiado, lhe sondava a intenção comos olhinhos vivos e miúdos decamundongo. Quaresma, que até ali se conservavacalado, interveio: – O Ricardo, Olga, é um artista...Tenta e trabalha para levantar o violão. – Eu sei, padrinho. Eu sei... – Entre nós, minha senhora, falouCoração dos Outros, não se levam a sérioessas tentativas nacionais, mas, naEuropa, todos respeitam e auxiliam...Como é que se chama, major, aquelepoeta que escreveu em francês popular? – Mistral, acudiu Quaresma, mas nãoé francês popular; é o provençal, umaverdadeira língua. – Sim, é isso, confirmou Ricardo. Poiso Mistral não é considerado, respeitado?Eu, no tocante ao violão, estou fazendo omesmo. 56

Olhou triunfante para um e outrocircunstante; e Olga dirigindo-se a eledisse: – Continue na tentativa, SenhorRicardo, que é digno de louvor. – Obrigado. Fique certa, minhasenhora, que o violão é um beloinstrumento e tem grandes dificuldades.Por exemplo... – Qual! interrompeu Quaresmaabruptamente. Há outros mais difíceis. – O piano? perguntou Ricardo. – Que piano! O maracá, a inúbia. – Não conheço. – Não conheces? É boa! Osinstrumentos mais nacionais possíveis, osúnicos que o são verdadeiramente;instrumentos dos nossos antepassados,daquela gente valente que se bateu eainda se bate pela posse desta linda terra.Os caboclos! – Instrumento de caboclo, ora! disseRicardo. – De caboclo! Que é que tem? O Lérydiz que são muito sonoros e agradáveis deouvir... Se é por ser de caboclo, o violãotambém não vale nada – é um instrumentode capadócio. 57

– De capadócio, major! Não digaisso... E os dous ainda discutiramacaloradamente diante da moça, surpresa,espantada, sem atinar, sem explicaçãopara aquela inopinada transformação degênio do seu padrinho, até ali tãosossegado e tão calmo. *** 58

III A Notícia do Genelício – Então quando se casa, DonaIsmênia? – Em Março. Cavalcanti já estáformado e... Afinal a filha do general pôderesponder com segurança à pergunta quese lhe vinha fazendo há quase cinco anos.O noivo finalmente encontrara o fim docurso de dentista e marcara o casamentopara daí a três meses. A alegria foi grandena família; e, como em tal caso, umaalegria não podia passar sem baile, umafesta foi anunciada para o sábado que seseguia ao pedido da pragmática. As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Laláe Vivi, estavam mais contentes que a irmãnubente. Parecia que ela lhes ia deixar ocaminho desembaraçado, e fora a irmãquem até ali tinha impedido que secasassem. Noiva havia quase cinco anos,Ismênia já se sentia meio casada. Essesentimento junto à sua natureza pobre fê-la não sentir um pouco mais de alegria.Ficou no mesmo. Casar, para ela, não era 59

negócio de paixão, nem se inseria nosentimento ou nos sentidos: era uma idéia,uma pura idéia. Aquela sua inteligênciarudimentar tinha separado da idéia decasar o amor, o prazer dos sentidos, umatal ou qual liberdade, a maternidade, até onoivo. Desde menina, ouvia a mamãedizer: \"Aprenda a fazer isso, porquequando você se casar\"... ou senão \"Vocêprecisa aprender a pregar botões, porquequando você se casar\"... A todo instante e a toda a hora, lávinha aquele – \"porque quando você secasar\"... – e a menina foi-se convencendode que toda a existência só tendia para ocasamento. A instrução, as satisfaçõesíntimas, a alegria, tudo isso era inútil; avida se resumia numa cousa: casar. De resto, não era só dentro de suafamília que ela encontrava aquelapreocupação. No colégio, na rua, em casadas famílias conhecidas, só se falava emcasar. \"Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se; não fez grande negócio, pois pareceque o noivo não é lá grande cousa\"; ouentão: \"A Zezé está doida para arranjarcasamento, mas é tão feia, meu Deus!\"... A vida, o mundo, a variedade intensados sentimentos, das idéias, o nosso 60

próprio direito à felicidade, foramparecendo ninharias para aquelecerebrozinho; e, de tal forma casar-se selhe representou cousa importante, umaespécie de dever, que não se casar, ficarsolteira, \"tia\", parecia-lhe um crime, umavergonha. De natureza muito pobre, semcapacidade para sentir qualquer cousaprofunda e intensamente, sem quantidadeemocional para a paixão ou para umgrande afeto, na sua inteligência a idéia de\"casar-se\" incrustou-se teimosamentecomo uma obsessão. Ela não era feia; amorenada, com osseus traços acanhados, o narizinhomalfeito, mas galante, não muito baixanem muito magra e a sua aparência debondade passiva, de indolência de corpo,de idéia e de sentidos – era até um bomtipo das meninas a que os namoradoschamam – \"bonitinhas\". O seu traço debeleza dominante, porém, eram os seuscabelos: uns bastos cabelos castanhos,com tons de ouro, sedoso até ao olhar. Aos dezenove anos arranjou namorocom o Cavalcanti, e à fraqueza de suavontade e ao temor de não encontrar 61

marido não foi estranha a facilidade comque o futuro dentista a conquistou. O pai fez má cara. Ele andava semprea par dos namoros das filhas: \"Diga-mesempre, Maricota – dizia ele – quem são.Olho vivo!... É melhor prevenir que curar...Pode ser um valdevinos e...\" Sabendo queo pretendente à Ismênia era um dentista,não gostou muito. Que é um dentista?perguntava ele de si para si. Um cidadãosemiformado, uma espécie de barbeiro.Preferia um oficial, tinha montepio e meiosoldo; mas a mulher convenceu-o de queos dentistas ganham muito, e ele acedeu. Começou então Cavalcanti afreqüentar a casa na qualidade de noivo\"paisano\", isto é, que não pediu, não éainda \"oficial\". No fim do primeiro ano, tendo notíciadas dificuldades com que o futuro genrolutava para acabar os estudos, o generalfoi generosamente em seu socorro. Pagou-lhe taxas de matrículas, livros e outrascousas. Não era raro que após uma longaconversa com a filha, Dona Maricotaviesse ao marido e dissesse: \"Chico,arranja-me vinte mil-réis que o Cavalcantiprecisa comprar uma Anatomia.\" 62

O general era leal, bom e generoso; anão ser a sua pretensão marcial, não haviano seu caráter a mínima falha. Demais,aquela necessidade de casar as filhasainda o fazia melhor quando se tratava dosinteresses delas. Ele ouvia a mulher, coçava a cabeça edava o dinheiro; e até para evitar despesasao futuro genro, convidou-o a jantar emcasa todo o dia; e assim o namoro foicorrendo até ali. Enfim – dizia Albernaz à mulher, nanoite do pedido, quando já recolhidos – acousa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos descontar estaletra. A satisfação resignada do general eraporém falsa; ao contrário: ele estavaradiante. Na rua, se encontrava umcamarada, no primeiro momento azado, ládizia ele: – É um inferno, esta vida! Imagina tu,Castro, que ainda por cima tenho quecasar uma filha! Ao que Castro interrogava: – Qual delas? – A Ismênia, a segunda, respondiaAlbernaz e logo acrescentava: tu é que ésfeliz: só tiveste filhos. 63

– Ah! meu amigo! falava o outro cheiode malícia, aprendi a receita. Por que nãofizeste o mesmo? Despedindo-se, o velho Albernazcorria aos armazéns, às lojas de louça,comprava mais pratos, mais compoteiras,um centro de mesa, porque a festa deviaser imponente e ter um ar de abundância eriqueza que traduzisse o seu grandecontentamento. Na manhã do dia da festacomemorativa do pedido, Dona Maricotaamanheceu cantando. Era raro que ofizesse; mas nos dias de grande alegria,ela cantarolava uma velha ária, uma cousado seu tempo de moça e as filhas quesentiam nisto sinal certo de alegria corriama ela, pedindo-lhe isto ou aquilo. Muito ativa, muito diligente, não haviadona-de-casa mais econômica, maispoupada e que fizesse render mais odinheiro do marido e o serviço das criadas.Logo que despertou, pôs tudo ematividade, as criadas e as filhas. Vivi eQuinota foram para os doces; Lalá e Ziziauxiliaram as raparigas na arrumação dassalas e dos quartos, enquanto ela eIsmênia iam arrumar a mesa, dispô-la commuito gosto e esplendor. O móvel ficaria 64

assim galhardo desde as primeiras horasdo dia. A alegria de Dona Maricota eragrande; ela não compreendia que umamulher pudesse viver sem estar casada.Não eram só os perigos a que se achavaexposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feioe desonroso para a família. A suasatisfação não vinha do simples fato de terdescontado uma letra, como ela dizia.Vinha mais profundamente dos seussentimentos maternos e de família. Ela arrumava a mesa, nervosa ealegre; e a filha fria e indiferente. – Mas, minha filha, dizia ela, atéparece que não é você quem se vai casar!Que cara! Você parece aí uma \"mosca-morta\". – Mamãe, que quer que eu faça? – Não é bonito rir-se muito, andar aícomo uma sirigaita, mas também assimcomo você está! Eu nunca vi noiva assim. Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas logo lhetornava toda a pobreza de sua natureza,incapaz de vibração sentimental, e onatural do seu temperamento vencia-a enão tardava em cair naquela doentialassidão que lhe era própria. 65

Veio muita gente. Além das moças eas respeitáveis mães, acudiram ao convitedo general o Contra-Almirante Caldas, oDoutor Florêncio, engenheiro das Águas, oMajor honorário Inocêncio Bustamante, oSenhor Bastos, guarda-livros, aindaparente de Dona Maricota, e outraspessoas importantes. Ricardo não foraconvidado porque o general temia aopinião pública sobre a presença dele emfesta séria; Quaresma o fora, mas nãoviera; e Cavalcanti jantara com os futurossogros. Às seis horas, a casa já estava cheia.As moças cercavam Ismênia,cumprimentando-a, não sem um pouco deinveja no olhar. Irene, uma alourada e alta,aconselhava: – Eu, se fosse você, comprava tudo noParque. Tratava-se do enxoval. Todas elas,embora solteiras, davam conselhos,sabiam as casas barateiras, as peças maisimportantes e as que podiam serdispensadas. Estavam a par. A Armanda indicava com um requebrofeiticeiro nos olhos: 66

– Eu, ontem, vi na Rua daConstituição um dormitório de casal, muitobonito, você por que não vai ver, Ismênia?Parece barato. A Ismênia era a menos entusiasmada,quase não respondia às perguntas; e, seas respondia, era por monossílabos.Houve um momento em que sorriu quasecom alegria e abandono. Estefânia, adoutora, normalista, que tinha nos dedosum anel, com tantas pedras que nem umajoalheria, num dado momento, chegou aboca carnuda aos ouvidos da noiva e fezuma confidência. Quando deixou desegredar-lhe assim como se quisesseconfirmar o dito, dilatou muito os seusolhos maliciosos e quentes, e disse alto: – Eu quero ver isso... Todas dizemque não... Eu sei... Ela aludia à resposta que, à suaconfidência, Ismênia tinha dado comparcimônia: qual o quê! Todas elas, conversando, tinham osolhos no piano. Os rapazes e uma partedos velhos rodeavam Cavalcanti, muitosolene, dentro de um grande fraque preto. – Então, Doutor, acabou, hein? diziaeste a jeito de um cumprimento. 67

– É verdade! Trabalhei. Os senhoresnão imaginam os tropeços, os embargos –fui de um heroísmo!... – Conhece o Chavantes? perguntavaum outro. – Conheço. Um crônico, umpândego... – Foi seu colega? – Foi, isto é, ele é do curso deMedicina. Matriculamo-nos no mesmo ano. Cavalcanti ainda não tinha tido tempode atender a este e já era obrigado a ouvira observação de outro. – É muito bonito ser formado. Se eutivesse ouvido meu pai, não estava agoraa quebrar a cabeça no Deve e Haver.Hoje, torço a orelha e não sai sangue. – Atualmente, não vale nada, meucaro senhor, dizia modestamenteCavalcanti. Com essas academias livres...Imaginem que já se fala numa AcademiaLivre de Odontologia! É o cúmulo! Umcurso difícil e caro, que exige cadáveres,aparelhos, bons professores, como é queparticulares poderão mantê-lo? Se ogoverno mantém mal... – Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns. Digo-lhe o que disse 68

ao meu sobrinho, quando se formou: váfurando! – Ah! Seu sobrinho é formado?inquiria delicadamente Cavalcanti. – Em engenharia. Está no Maranhão,na Estrada de Caxias. – Boa carreira. Nos intervalos da conversa, todos elesolhavam o novel dentista como se fosseum ente sobrenatural. Para aquela gente toda, Cavalcantinão era mais um simples homem, erahomem e mais alguma cousa sagrada e deessência superior; e não juntavam àimagem que tinham dele atualmente ascousas que porventura ele pudesse saberou tivesse aprendido. Isto não entrava nelade modo algum; e aquele tipo, para alguns,continuava a ser vulgar, comum, naaparência, mas a sua substância tinhamudado, era outra diferente da deles e foraungido de não sei que cousa vagamentefora da natureza terrestre, quase divina. Para o lado de Cavalcanti, que seachava na sala de visitas, vieram osmenos importantes. O general ficara nasala de jantar, fumando, cercado dos maistitulados e dos mais velhos. Estavam comele o Contra-Almirante Caldas, o Major 69

Inocêncio, o Doutor Florêncio e o Capitãode Bombeiros Segismundo. Inocêncio aproveitou a ocasião parafazer uma consulta a Caldas sobre assuntode legislação militar. O contra-almiranteera interessantíssimo. Na Marinha, porpouco que não fazia pendant comAlbernaz no Exército. Nunca embarcara, anão ser na guerra do Paraguai, mas assimmesmo por muito pouco tempo. A culpa,porém, não era dele. Logo que se viuprimeiro-tenente, Caldas foi aos poucos semetendo consigo, abandonando a rodados camaradas, de forma que, semempenhos e sem amigos nos altoslugares, se esqueciam dele e não lhedavam comissões de embarque. É curiosaessa cousa das administrações militares:as comissões são merecimento, mas só seas dá aos protegidos. Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em MatoGrosso. Nomearam-no para comandar ocouraçado \"Lima Barros\". Ele lá foi, mas,quando se apresentou ao comandante daflotilha, teve notícia de que não existia norio Paraguai semelhante navio. Indagoudaqui e dali e houve quem aventurasseque podia ser que o tal \"Lima Barros\" 70

fizesse parte da esquadrilha do Alto-Uruguai. Consultou o comandante. – Eu, no seu caso, disse-lhe osuperior, partia imediatamente para aflotilha do Rio Grande. Ei-lo a fazer malas para o Alto-Uruguai, onde chegou enfim, depois deuma penosa e fatigante viagem. Mas aítambém não estava o tal \"Lima Barros\".Onde estaria então? Quis telegrafar para oRio de Janeiro, mas teve medo de sercensurado, tanto mais que não andava emcheiro de santidade. Esteve assim um mêsem Itaqui, hesitante, sem receber soldo esem saber que destino tomar. Um dia lheveio na intenção de ir ao extremo norte equando passou pelo Rio, conforme apraxe, apresentou-se às altas autoridadesda Marinha. Foi preso e submetido aconselho. O \"Lima Barros\" tinha ido a pique,durante a guerra do Paraguai. Embora absolvido, nunca mais entrouem graça dos ministros e dos seusgenerais. Todos o tinham na conta deparvo, de um comandante de opereta queandava à cata do seu navio pelos quatropontos cardeais. Deixaram-no \"encostado\",como se diz na gíria militar, e ele levou 71

quase quarenta anos para chegar deguarda-marinha a capitão-de-fragata.Reformado no posto imediato, comgraduação do seguinte, todo o seuazedume contra a Marinha se concentrounum longo trabalho de estudar leis,decretos, alvarás, avisos, consultas, quese referisse a promoções de oficiais.Comprava repertórios de legislação,armazenava coleções de leis, relatórios, eencheu a casa de toda essa enfadonha efatigante literatura administrativa. Osrequerimentos, pedindo a modificação desua reforma, choviam sobre os ministrosda Marinha. Corriam meses o infinitorosário de repartições e eram sempreindeferidos, sobre consultas do ConselhoNaval ou do Supremo Tribunal Militar.Ultimamente constituíra advogado junto àjustiça federal e lá andava ele de cartórioem cartório, acotovelando-se commeirinhos, escrivães, juízes e advogados –esse poviléu rebarbativo do foro queparece ter contraído todas as misérias quelhe passam pelas mãos e pelos olhos. Inocêncio Bustamante também tinha amesma mania demandista. Era renitente,teimoso, mas servil e humilde. Antigovoluntário da pátria, possuindo honras de 72

major, não havia dia em que não fosse aoquartel-general ver o andamento do seurequerimento e de outros. Num pediainclusão no Asilo dos Inválidos, noutrohonras de tenente-coronel, noutro tal ouqual medalha; e, quando não tinhanenhum, ia ver a dos outros. Não se pejou mesmo de tratar dopedido de um maníaco que, por sertenente honorário e também da GuardaNacional, requereu lhe fosse passada apatente de major, visto que dous galõesmais outros dous fazem quatro – o quequer dizer: major. Conhecedor dos estudos meticulososdo almirante, Bustamante fez a suaconsulta. – Assim de pronto, não sei. Não é aminha especialidade o Exército, mas vouver. Isto também anda tão atrapalhado! Acabando de responder coçava umdos seus favoritos brancos, que lhe davamum ar de \"comodoro\" ou de chacareiroportuguês, pois era forte nele o tipolusitano. – Ah! meu tempo, observou Albernaz.Quanta ordem! Quanta disciplina! – Não há mais gente que preste, disseBustamante. 73

Segismundo por aí aventurou tambéma sua opinião, dizendo: – Eu não sou militar, mas... – Como não é militar? fez Albernazcom ímpeto. Os senhores é que são osverdadeiros: estão sempre com o inimigona frente, não acha Caldas? – Decerto, decerto, fez o almirantecofiando os favoritos. – Como ia dizendo, continuouSegismundo, apesar de não ser militar, eume animo a dizer que a nossa força estámuito por baixo. Onde está um PortoAlegre, um Caxias? – Não há mais, meu caro, confirmoucom voz tênue o Doutor Florêncio. – Não sei por quê, pois tudo hoje nãovai pela ciência? Fora Caldas quem falara, tentando aironia. Albernaz indignou-se e retrucou-lhecom certo calor: – Eu queria ver esses meninosbonitos, cheios de \"xx\" e \"yy\" em Curupaiti,hein, Caldas? hein, Inocêncio? O Doutor Florêncio era o únicopaisano da roda. Engenheiro e empregadopúblico, os anos e o sossego da vida lhetinham feito perder todo o saber queporventura pudesse ter tido ao sair da 74

escola. Era mais um guarda deencanamentos do que mesmo umengenheiro. Morando perto de Albernaz,era raro que não viesse toda a tarde jogaro solo com o general. O Doutor Florêncioperguntou: – O senhor assistiu, não foi, general? O general não se deteve, não seatrapalhou, não gaguejou e disse com amáxima naturalidade: – Não assisti. Adoeci e vim para oBrasil nas vésperas. Mas tive muitosamigos lá: o Camisão, o Venâncio... Todos se calaram e olharam a noiteque chegava. Da janela da sala ondeestavam, não se via nem um monte. Ohorizonte estava circunscrito aos fundosdos quintais das casas vizinhas com assuas cordas de roupa a lavar, suaschaminés e o piar de pintos. Umtamarineiro sem folhas lembravatristemente o ar livre, as grandes vistassem fim. O sol já tinha desaparecido dohorizonte e as tênues luzes dos bicos degás e dos lampiões familiares começavama acender-se por detrás das vidraças. Bustamante quebrou o silêncio: – Este país não vale mais nada.Imaginem que o meu requerimento, 75

pedindo honras de tenente-coronel, estáno ministério há seis meses! – Uma desordem, exclamaram todos. Era noite. Dona Maricota chegou atéonde eles estavam, muito ativa, muitodiligente e com o rosto aberto de alegria. – Estão rezando? E logo ajuntou: dãolicença que diga uma cousa ao Chico,sim? Albernaz saiu fora da roda dos amigose foi até a um canto da sala, onde a mulherlhe disse alguma cousa em voz baixa.Ouviu a mulher, depois voltou aos amigose, no meio do caminho, falou alto, nestestermos: – Se não dançam é porque nãoquerem. Estou pegando alguém? Dona Maricota aproximou-se dosamigos do marido e explicou: – Os senhores sabem: se a gente nãoanimar, ninguém tira par, ninguém toca.Estão lá tantas moças, tantos rapazes, éuma pena! – Bem; eu vou lá, disse Albernaz. Deixou os amigos e foi à sala devisitas dar começo ao baile. – Vamos, meninas! Então o que éisso? Zizi, uma valsa! 76

E ele mesmo em pessoa ia juntandoos pares: \"Não, general, já tenho par\",dizia uma moça. \"Não faz mal\", retrucavaele, \"dance com o Raimundinho; o outroespera.\" Depois de ter dado início ao baile, veiopara a roda dos amigos, suando, mascontente. – Isto de família! Qual! A gente atéparece bobo, dizia. Você é que fez bem,Caldas; não se quis casar! – Mas tenho mais filhos que você. Sósobrinhos, oito; e os primos? – Vamos jogar o solo, convidouAlbernaz. – Somos cinco, como há de ser?observou Florêncio. – Não, eu não jogo, disse Bustamante. – Então jogamos os quatro degarrancho? lembrou Albernaz. As cartas vieram e também umapequena mesa de tripeça. Os parceirossentaram-se e tiraram a sorte para verquem dava. Coube a Florêncio dar.Começaram. Albernaz tinha um ar atentoquando jogava: a cabeça lhe caía sobre ascostas e os seus olhos tomavam umagrande expressão de reflexão. Caldasaprumava o busto na cadeira e jogava com 77

a serenidade de um lorde-almirante numapartida de whist. Segismundo jogava comtodo o cuidado, com o cigarro no canto daboca e a cabeça do lado para fugir àfumaça. Bustamante fora à sala ver asdanças. Tinham começado a partida, quandoDona Quinota, uma das filhas do general,atravessou a sala e foi beber água.Caldas, coçando um dos favoritos,perguntou à moça: – Então, Dona Quinota, quedê oGenelício? A moça virou o rosto com faceirice,deu um pequeno muxoxo e respondeucom falso mau humor: – Ué! Sei lá! Ando atrás dele? – Não precisa zangar-se, DonaQuinota; é uma simples pergunta, advertiuCaldas. O general, que examinavaatentamente as cartas recebidas,interrompeu a conversa com voz grave: – Eu passo. Dona Quinota retirou-se. EsteGenelício era o seu namorado. Parenteainda de Caldas, tinha-se como certo oseu casamento na família. A suacandidatura era favorecida por todos. Dona 78

Maricota e o marido enchiam-no de festas.Empregado do Tesouro, já no meio dacarreira, moço de menos de trinta anos,ameaçava ter um grande futuro. Não havianinguém mais bajulador e submisso doque ele. Nenhum pudor, nenhumavergonha! Enchia os chefes e ossuperiores de todo o incenso que podia.Quando saía, remancheava, lavava três ouquatro vezes as mãos, até poder apanharo diretor na porta. Acompanhava-o,conversava com ele sobre o serviço, davapareceres e opiniões, criticava este ouaquele colega, e deixava-o no bonde, se ohomem ia para casa. Quando entrava umministro, fazia-se escolher como intérpretedos companheiros e deitava um discurso;nos aniversários de nascimento, era umsoneto que começava sempre por –\"Salve\" – e acabava também por – \"Salve!Três vezes Salve!\" O modelo era sempre o mesmo; ele sómudava o nome do ministro e punha adata. No dia seguinte, os jornais falavam doseu nome, e publicavam o soneto. Em quatro anos, tinha tido duaspromoções e agora trabalhava para ser 79

aproveitado no Tribunal de Contas, a sefundar, num posto acima. Na bajulação e nas manobras parasubir, tinha verdadeiramente gênio. Não selimitava ao soneto, ao discurso; buscavaoutros meios, outros processos. No intuitode anunciar aos ministros e diretores quetinha uma erudição superior, de quandoem quando desovava nos jornais longosartigos sobre contabilidade pública. Erammeras compilações de bolorentosdecretos, salpicadas aqui e ali comcitações de autores franceses ouportugueses. Interessante é que os companheiros orespeitavam, tinham em grande conta oseu saber e ele vivia na seção cercado dorespeito de um gênio, um gênio dopapelório e das informações. Acresce queGenelício juntava à sua segura posiçãoadministrativa um curso de direito aacabar; e tantos títulos juntos não podiamdeixar de impressionar favoravelmente àspreocupações casamenteiras do casalAlbernaz. Fora da repartição, tinha umempertigamento que o seu pobre físicofazia cômico, mas que a convicção do alto 80

auxílio que prestava ao Estado mantinha esustentava. Um empregado modelo! O jogo continuava silenciosamente e anoite avançava. No fim das \"mãos\" fazia-se um breve comentário ou outro, e nocomeço ouviam-se unicamente as \"falas\"sacramentais do jogo: \"solo, bolo, melhoro,passo\". Feitas elas, jogava-se em silêncio;da sala, porém, vinha o ruído festivo dasdanças e das conversas. – Olhem quem está aí! – O Genelício, fez Caldas. Ondeestiveste, rapaz? Deixou o chapéu e a bengala numacadeira e fez os cumprimentos. Pequeno,já um tanto curvado, chupado de rosto,com um pince-nez azulado, todo ele traía aprofissão, os seus gostos e hábitos. Eraum escriturário. – Nada, meus amigos! Estou tratandodos meus negócios. – Vão bem? perguntou Florêncio. – Quase garantido. O ministroprometeu... Não há nada, estou bem\"cunhado\"! – Estimo muito, disse o general. – Obrigado. Sabe de uma cousa,general? – O que é? 81

– O Quaresma está doido. – Mas... o quê? Quem foi que tedisse? – Aquele homem do violão. Já está nacasa de saúde... – Eu logo vi, disse Albernaz, aquelerequerimento era de doido. – Mas não é só, general, acrescentouGenelício. Fez um ofício em tupi e mandouao ministro. – É o que eu dizia, fez Albernaz. – Quem é? perguntou Florêncio. – Aquele vizinho, empregado doArsenal; não conhece? – Um baixo, de pince-nez? – Este mesmo, confirmou Caldas. – Nem se podia esperar outra cousa,disse o Doutor Florêncio. Aqueles livros,aquela mania de leitura... – Pra que ele lia tanto? indagouCaldas. – Telha de menos, disse Florêncio. Genelício atalhou com autoridade: – Ele não era formado, para quemeter-se em livros? – É verdade, fez Florêncio. – Isto de livros é bom para os sábios,para os doutores, observou Segismundo. 82

– Devia até ser proibido, disseGenelício, a quem não possuísse um título\"acadêmico\" ter livros. Evitavam-se assimessas desgraças. Não acham? – Decerto, disse Albernaz. – Decerto, fez Caldas. – Decerto, disse Segismundo. Calaram-se um instante, e asatenções convergiram para o jogo. – Já saíram todos os trunfos? – Contasse, meu amigo. Albernaz perdeu e lá na sala fez-sesilêncio. Cavalcanti ia recitar. Atravessou asala triunfantemente, com um largo sorrisona face e foi postar-se ao lado do piano.Zizi acompanhava. Tossiu e, com a suavoz metálica, apurando muito os finais em\"s\", começou: A vida é uma comédia sem sentido, Uma história de sangue e de poeira Um deserto sem luz... E o piano gemia. *** 83

IV Desastrosas Conseqüências de um Requerimento Os acontecimentos a que aludiam osgraves personagens reunidos em torno damesa de solo, na tarde memorável da festacomemorativa do pedido de casamento deIsmênia, se tinham desenrolado comrapidez fulminante. A força de idéias esentimentos contidos em Quaresma sehavia revelado em atos imprevistos comuma seqüência brusca e uma velocidadede turbilhão. O primeiro fato surpreendeu,mas vieram outros e outros, de forma queo que pareceu no começo umaextravagância, uma pequena mania, seapresentou logo em insânia declarada. Justamente algumas semanas antesdo pedido de casamento, ao abrir-se asessão da Câmara, o secretário teve queproceder à leitura de um requerimentosingular e que veio a ter uma fortuna depublicidade e comentário pouco usual emdocumentos de tal natureza. O burburinho e a desordem quecaracterizam o recolhimento indispensávelao elevado trabalho de legislar não 84

permitiram que os deputados o ouvissem;os jornalistas, porém, que estavampróximo à Mesa, ao ouvi-lo, prorromperamem gargalhadas, certamenteinconvenientes à majestade do lugar. Oriso é contagioso. O secretário, no meio daleitura, ria-se, discretamente; pelo fim, jária-se o presidente, ria-se o oficial da ata,ria-se o contínuo – toda a Mesa e aquelapopulação que a cerca riram-se da petição,largamente, querendo sempre conter oriso, havendo em alguns tão fraca alegriaque as lágrimas vieram. Quem soubesse o que uma tal folhade papel representava de esforço, detrabalho, de sonho generoso edesinteressado, havia de sentir umapenosa tristeza, ouvindo aquele ririnofensivo diante dela. Merecia raiva, ódio,um deboche de inimigo talvez, odocumento que chegava à Mesa daCâmara, mas não aquele recebimentohilárico, de uma hilaridade inocente, semfundo algum, assim como se se estivessea rir de uma palhaçada, de uma sorte decirco de cavalinhos ou de uma careta declown. Os que riam, porém, não lhe sabiam acausa e só viam nele um motivo para riso 85

franco e sem maldade. A sessão daqueledia fora fria; e, por ser assim, as seçõesdos jornais referentes à Câmara, no diaseguinte, publicaram o seguinterequerimento e glosaram-no em todos ostons. Era assim concebida a petição: \"Policarpo Quaresma, cidadãobrasileiro, funcionário público, certo de quea língua portuguesa é emprestada aoBrasil; certo também de que, por esse fato,o falar e o escrever em geral, sobretudo nocampo das letras, se vêem na humilhantecontingência de sofrer continuamentecensuras ásperas dos proprietários dalíngua; sabendo, além, que, dentro donosso país, os autores e os escritores,com especialidade os gramáticos, não seentendem no tocante à correçãogramatical, vendo-se, diariamente, surgirazedas polêmicas entre os mais profundosestudiosos do nosso idioma – usando dodireito que lhe confere a Constituição, vempedir que o Congresso Nacional decrete otupi-guarani como língua oficial e nacionaldo povo brasileiro. 86

O suplicante, deixando de parte osargumentos históricos que militam emfavor de sua idéia, pede vênia paralembrar que a língua é a mais altamanifestação da inteligência de um povo, éa sua criação mais viva e original; e,portanto, a emancipação política do paísrequer como complemento e conseqüênciaa sua emancipação idiomática. Demais, Senhores Congressistas, otupi-guarani, língua originalíssima,aglutinante, é a única capaz de traduzir asnossas belezas, de pôr-nos em relaçãocom a nossa natureza e adaptar-seperfeitamente aos nossos órgãos vocais ecerebrais, por ser criação de povos queaqui viveram e ainda vivem, portantopossuidores da organização fisiológica epsicológica para que tendemos, evitando-se dessa forma as estéreis controvérsiasgramaticais, oriundas de uma difíciladaptação de uma língua de outra região ànossa organização cerebral e ao nossoaparelho vocal – controvérsias que tantoempecem o progresso da nossa culturacientífica e filosófica. Seguro de que a sabedoria doslegisladores saberá encontrar meios pararealizar semelhante medida e cônscio de 87

que a Câmara e o Senado pesarão o seualcance e utilidade P. e E. deferimento.\" Assinado e devidamenteestampilhado, este requerimento do majorfoi durante dias assunto de todas aspalestras. Publicado em todos os jornais,com comentários facetos, não havia quemnão fizesse uma pilhéria sobre ele, quemnão ensaiasse um espírito à custa dalembrança de Quaresma. Não ficaramnisso; a curiosidade malsã quis mais.Indagou-se quem era, de que vivia, se eracasado, se era solteiro. Uma ilustraçãosemanal publicou-lhe a caricatura e omajor foi apontado na rua. Os pequenos jornais alegres, essessemanários de espírito e troça, então!eram de um encarniçamento atroz com opobre major. Com uma abundância quemarcava a felicidade dos redatores emterem encontrado um assunto fácil, o textovinha cheio dele: o Major Quaresma disseisso; o Major Quaresma fez aquilo. Um deles, além de outras referências,ocupou uma página inteira com o assuntoda semana. Intitulava-se a ilustração: \"Omatadouro de Santa Cruz, segundo o 88

Major Quaresma\", e o desenhorepresentava uma fila de homens emulheres a marchar para o choupo que sevia à esquerda. Um outro referia-se aocaso pintando um açougue, \"O açougueQuaresma\"; legenda: a cozinheiraperguntava ao açougueiro: – O senhor tem língua de vaca? O açougueiro respondia: – Não, sótemos língua de moça, quer? Com mais ou menos espírito, oscomentários não cessavam e a ausênciade relações de Quaresma no meio de quesaíam fazia com que fossem de umaconstância pouco habitual. Levaram duassemanas com o nome do subsecretário. Tudo isso irritava profundamenteQuaresma. Vivendo há trinta anos quasesó, sem se chocar com o mundo, adquirirauma sensibilidade muito viva e capaz desofrer profundamente com a menor cousa.Nunca sofrera críticas, nunca se atirou àpublicidade, vivia imerso no seu sonho,incubado e mantido vivo pelo calor dosseus livros. Fora deles, ele não conhecianinguém; e, com as pessoas com quemfalava, trocava pequenas banalidades,ditos de todo o dia, cousas com que a suaalma e o seu coração nada tinham de ver. 89

Nem mesmo a afilhada o tirava dessareserva, embora a estimasse mais que atodos. Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de estranho a tudo, àscompetições, às ambições, pois nadadessas cousas que fazem os ódios e aslutas tinha entrado no seu temperamento. Desinteressado de dinheiro, de glóriae posição, vivendo numa reserva desonho, adquirira a candura e a purezad'alma que vão habitar esses homens deuma idéia fixa, os grandes estudiosos, ossábios, e os inventores, gente que ficamais terna, mais ingênua, mais inocenteque as donzelas das poesias de outrasépocas. É raro encontrar homens assim, masos há e, quando se os encontra, mesmotocados de um grão de loucura, a gentesente mais simpatia pela nossa espécie,mais orgulho de ser homem e maisesperança na felicidade da raça. A continuidade das troças feitas nosjornais, a maneira com que o olhavam narua, exasperavam-no e mais forte seenraizava nele a sua idéia. À medida queengolia uma troça, uma pilhéria, vinha-lhemeditar sobre a sua lembrança, pesar-lhe 90

todos os aspectos, examiná-ladetidamente, compará-la a cousassemelhantes, recordar os autores eautoridades; e, à proporção que fazia isso,a sua própria convicção mostrava ainanidade da crítica, a ligeireza da pilhéria,e a idéia o tomava, o avassalava, oabsorvia cada vez mais. Se os jornais tinham recebido orequerimento com facécias de fundoinofensivo e sem ódio, a repartição ficoufuriosa. Nos meios burocráticos, umasuperioridade que nasce fora deles, que éfeita e organizada com outros materiaisque não os ofícios, a sabença de textos deregulamentos e a boa caligrafia, é recebidacom a hostilidade de uma pequena inveja. É como se se visse no portador dasuperioridade um traidor à mediocridade,ao anonimato papeleiro. Não há só umaquestão de promoção, de interessepecuniário; há uma questão de amor-próprio, de sentimentos feridos, vendoaquele colega, aquele galé como eles,sujeito aos regulamentos, aos caprichosdos chefes, às olhadelas superiores dosministros, com mais títulos à consideração,com algum direito a infringir as regras e ospreceitos. 91

Olha-se para ele com o ódiodissimulado com que o assassino plebeuolha para o assassino marquês que matoua mulher e o amante. Ambos sãoassassinos, mas, mesmo na prisão, aindao nobre e o burguês trazem o ar do seumundo, um resto da sua delicadeza e umainadaptação que ferem o seu humildecolega de desgraça. Assim, quando surge numa secretariaalguém cujo nome não lembra sempre otítulo de sua nomeação, aparecem aspequeninas perfídias, as maledicênciasditas ao ouvido, as indiretas, todo oarsenal do ciúme invejoso de uma mulherque se convenceu de que a vizinha seveste melhor do que ela. Amam-se ou antes suportam-semelhor aqueles que se fazem célebres nasinformações, na redação, na assiduidadeao trabalho, mesmo os doutores, osbacharéis, do que os que têm nomeada efama. Em geral, a incompreensão da obraou do mérito do colega é total e nenhumdeles se pode capacitar que aquele tipo,aquele amanuense, como eles, façaqualquer cousa que interesse os estranhose dê que falar a uma cidade inteira. 92

A brusca popularidade de Quaresma,o seu sucesso e nomeada efêmerairritaram os seus colegas e superiores. Jáse viu! dizia o secretário. Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma cousa!Pretensioso! O diretor, ao passar pelasecretaria, olhava-o de soslaio e sentiaque o regulamento não cogitasse do casopara lhe infligir uma censura. O colegaarquivista era o menos terrível, maschamou-o logo de doido.O major sentia bem aquele ambientefalso, aquelas alusões e isso maisaumentava o seu desespero e a teimosiana sua idéia. Não compreendia que o seurequerimento suscitasse tantastempestades, essa má vontade geral; erauma cousa inocente, uma lembrançapatriótica que merecia e devia ter oassentimento de todo o mundo; emeditava, voltava à idéia, e a examinavacom mais atenção.A extensa publicidade, que o fatotomou, atingiu o palacete de RealGrandeza, onde morava o seu compadreColeoni. Rico com os lucros dasempreitadas de construções de prédios,viúvo, o antigo quitandeiro retirara-se dosnegócios e vivia sossegado na ampla casa 93

que ele mesmo edificara e tinha todos osremates arquitetônicos do seu gostopredileto: compoteiras na cimalha, umimenso monograma sobre a porta daentrada, dous cães de louça, nos pilaresdo portão da entrada e outros detalhesequivalentes. A casa ficava ao centro do terreno,elevava-se sobre um porão alto, tinha umrazoável jardim na frente, que avançavapelos lados, pontilhado de bolasmulticores; varanda, um viveiro, onde pelocalor os pássaros morriam tristemente. Erauma instalação burguesa, no gostonacional, vistosa, cara, pouco de acordocom o clima e sem conforto. No interior o capricho dominava, tudoobedecendo a uma fantasia barroca, a umecletismo desesperador. Os móveis seamontoavam, os tapetes, as sanefas, osbibelots e a fantasia da filha, irregular eindisciplinada, ainda trazia mais desordemàquela coleção de cousas caras. Viúvo, havia já alguns anos, era umavelha cunhada quem dirigia a casa e afilha, quem o encaminhava nas distraçõese nas festas. Coleoni aceitava de bomcoração esta doce tirania. Queria casar afilha, bem e ao gosto dela, não punha, 94

portanto, nenhum obstáculo ao programade Olga. Em começo, pensou em dá-la a seuajudante ou contramestre, uma espécie dearquiteto que não desenhava, masprojetava casas e grandes edifícios.Primeiro sondou a filha. Não encontrouresistência, mas não encontrou tambémassentimento. Convenceu-se de queaquela vaporosidade da menina, aqueleseu ar distante de heroína, a suainteligência, o seu fantástico não se dariambem com as rudezas e a simplicidadecampônias de seu auxiliar. Ela quer um doutor – pensava ele –que arranje! Com certeza, não terá ceitil,mas eu tenho e as cousas se acomodam. Ele se havia habituado a ver no doutornacional, o marquês ou o barão de suaterra natal. Cada terra tem a sua nobreza;lá, é visconde; aqui, é doutor, bacharel oudentista; e julgou muito aceitável comprara satisfação de enobrecer a filha comumas meias dúzias de contos de réis. Havia momentos que se aborrecia umtanto com os propósitos da menina.Gostando de dormir cedo, tinha que perdernoites e noites no Lírico, nos bailes;amando estar sentado em chinelas a fumar 95

cachimbo, era obrigado a andar horas ehoras pelas ruas, saltitando de casa emcasa de modas atrás da filha, para no fimdo dia ter comprado meio metro de fita,uns grampos e um frasco de perfume. Era engraçado vê-lo nas lojas defazendas cheio de complacência de paique quer enobrecer o filho, a dar opiniãosobre o tecido, achar este mais bonito,comparar um com outro, com uma falta desentimento daquelas cousas que seadivinhava até no pagá-las. Mas ele ia,demorava-se e esforçava-se por entrar nosegredo, no mistério, cheio de tenacidadee candura perfeitamente paternais. Até aí ele ia bem e calcava acontrariedade. Só o contrariavam bastanteas visitas, as colegas da filha, suas irmãs,com seus modos de falsa nobreza, os seusdesdéns dissimulados, deixando perceberao velho empreiteiro o quanto estava eledistante da sociedade das amigas e dascolegas de Olga. Não se aborrecia, porém, muitoprofundamente; ele assim o quisera e afizera, tinha que se conformar. Quasesempre, quando chegavam tais visitas,Coleoni afastava-se, ia para o interior dacasa. Entretanto, não lhe era sempre 96

possível fazer isso; nas grandes festas erecepções tinha que estar presente e eraquando mais sentia o velado pouco-casoda alta nobreza da terra que ofreqüentava. Ele ficara sempre empreiteiro,com poucas idéias além do seu ofício, nãosabendo fingir, de modo que não seinteressava por aquelas tagarelices decasamentos, de bailes de festas epasseios caros. Uma vez ou outra um mais delicadopropunha-lhe jogar o poker, aceitava esempre perdia. Chegou mesmo a formaruma roda em casa, de que fazia parte oconhecido advogado Pacheco. Perdeu emuito, mas não foi isso que o fezsuspender o jogo. Que perdia? Uns contos– uma ninharia! A questão, porém, é quePacheco jogava com seis cartas. Aprimeira vez que Coleoni deu com isso,pareceu-lhe simples distração do distintojornalista e famoso advogado. Um homemhonesto não ia fazer aquilo! E na segunda,seria também? E na terceira? Não era possível tanta distração.Adquiriu a certeza da trampolinagem,calou-se, conteve-se com uma dignidadenão esperada em um antigo quitandeiro, eesperou. Quando vieram a jogar outra vez 97

e o passe foi posto em prática, Vicenteacendeu o charuto e observou com amaior naturalidade deste mundo: – Os senhores sabem que há agora,na Europa, um novo sistema de jogar opoker? – Qual é? perguntou alguém. – A diferença é pequena: joga-se comseis cartas, isto é, um dos parceiros,somente. Pacheco deu-se por desentendido,continuou a jogar, e a ganhar, despediu-seà meia-noite cheio de delicadeza, fezalguns comentários sobre a partida e nãovoltou mais. Conforme o seu velho hábito, Coleonilia de manhã os jornais, com o vagar e alentidão de homem pouco habituado àleitura, quando se lhe deparou orequerimento do seu compadre do Arsenal. Ele não compreendeu bem orequerimento, mas os jornais faziam tantatroça, caíam tão a fundo sobre a cousa,que imaginou o seu antigo benfeitorenleado numa meada criminosa, tendopraticado, por inadvertência, alguma faltagrave. Sempre o tivera na conta do homemmais honesto deste mundo e ainda tinha, 98

mas daí quem sabe? Na última vez que ovisitou ele não veio com aqueles modosestranhos? Podia ser uma pilhéria... Apesar de ter enriquecido, Coleonitinha em grande conta o seu obscurocompadre. Havia nele não só a gratidão decamponês que recebeu um grandebenefício, como um duplo respeito pelomajor, oriundo da sua qualidade defuncionário e de sábio. Europeu, de origem humilde e aldeã,guardava no fundo de si aquele sagradorespeito dos camponeses pelos homensque recebem a investidura do Estado; e,como, apesar dos bastos anos de Brasil,ainda não sabia juntar o saber aos títulos,tinha em grande consideração a erudiçãodo compadre. Não é, pois, de estranhar que elevisse com mágoa o nome de Quaresmaenvolvido em fatos que os jornaisreprovavam. Leu de novo o requerimento,mas não entendeu o que ele queria dizer.Chamou a filha. – Olga! Ele pronunciava o nome da filha quasesem sotaque; mas, quando falavaportuguês, punha nas palavras umarouquidão singular, e salpicava as frases 99

de exclamações e pequenas expressõesitalianas. – Olga, que quer dizer isto? Noncapisco... A moça sentou-se a uma cadeirapróxima e leu no jornal o requerimento eos comentários. – Che! Então? – O padrinho quer substituir oportuguês pela língua tupi, entende osenhor? – Como? – Hoje, nós não falamos português?Pois bem: ele quer que daqui em diantefalemos tupi. – Tutti? – Todos os brasileiros, todos. – Ma che cousa! Não é possível? – Pode ser. Os tchecos têm umalíngua própria, e foram obrigados a falaralemão, depois de conquistados pelosaustríacos; os lorenos, franceses... – Per la madonna! Alemão é língua,agora esse acujelê, ecco! – Acujelê é da África, papai; tupi édaqui. – Per Bacco! É o mesmo... Está doido! – Mas não há loucura alguma, papai. 100


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