ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI características naturais, especialmente aquelas conectadas à função materna” (ABRÃO, 2009, p. 27). A organização familiar, considerando este contexto, é o modelo tradicional nuclear, composta por um homem e uma mulher, que determina funções distintas para cada um. É nesta instância da vida privada que se revelam de forma mais distinta das desigualdades entre os sexos. Portanto, nesta mesma perspectiva, Zirbel (2007, p. 119) explica que o patriarcado legitima a dominação do homem sobre a mulher de diversas maneiras, como caracteriza a autora: Um sistema sexuado de poder e dominação no qual os homens possuem privilégios e controle sobre a sociedade e o corpo das mulheres, utilizando-se dos mais diversos meios para este fim (pornografia, estupro, violência doméstica, assédio sexual, leis restritivas sobre a contracepção, esterilização e aborto, etc.). A diferença de hierarquia entre os gêneros estabeleceu a necessidade de domesticação da sexualidade feminina por meio da imposição de padrões morais de virtudes (ABRÃO, 2009, p. 19) e do controle sobre o corpo da mulher. É na família patriarcal que se situa “no âmbito das relações privadas e do controle masculino, exige- se das mulheres um padrão de sexualidade que reforce esses domínios” (OLIVIO, 2015, p. 96-97). Ou seja, para as mulheres impõe-se limites quanto ao uso do corpo, mas para os homens mantém-se a liberdade; assim, observa-se como as relações sociais são permeadas pelas relações de poder que a figura masculina detém sobre a família e a sociedade. De uma forma mais ampla, o patriarcado “não designa o poder do pai, mas o poder dos homens (ou do masculino), enquanto categoria social, atribuindo, dentre outras coisas, um valor maior às atividades masculinas em detrimento das femininas” (ZIRBEL, 2007, p. 119). Assim, As relações patriarcais não são, portanto, familiares, ainda que atravessem também esta instituição. São relações sociais que atravessam todos os espaços da organização social, nomeiam as relações sociais de sexo e determinam uma forma e uma posição de “ser homem” e uma forma de “ser mulher” hegemônica, que contribuem enormemente à (re)produção da sociedade capitalista. (OLIVIO, 2015, p. 81). 3177
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O discurso conservador de submissão da mulher ainda se encontra presente na contemporaneidade ao definir o “papel da mulher”: ser a responsável pelo lar. O patriarcado fundamenta-se nas relações de poder no âmbito doméstico ao designar ao homem/pai/marido o provedor da família. Uma das grandes consequências desta determinação é a violência contra a mulher. A violência é manifestada das mais diversas formas e é fruto de uma sociedade desigual que determina a submissão da mulher ao homem. O drama da violência abala a autonomia feminina, destrói a sua autoestima e diminui sua qualidade de vida, trazendo consequências à estruturação pessoal, familiar e social. Borges e Lucchesi (2015) apontam a violência, a partir da concepção do patriarcado como a expressão mais evidente da dominação masculina. A mentalidade patriarcal que preconiza o controle das mulheres e a rivalidade entre homens, está sempre presente nas agressões por ciúme, refletindo o medo da perda do objeto sexual e social (BLAY, 2003). Saffioti (2004) define a violência como uma ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja ela física, psíquica, sexual ou moral. É nesta ambiência que se encontra a violência contra a mulher, também tratada como violência de gênero que, de acordo com Piovesan e Pimentel (2002, p. 214), é: Qualquer conduta – ação ou omissão – de discriminação, agressão ou coerção, ocasionado pelo simples fato de a vítima ser mulher, e que cause danos, morte, constrangimento, limitação, sofrimento físico, sexual, moral, psicológico, social, político ou econômico ou perda patrimonial. Conforme os apontamentos, percebe-se que a violência contra o gênero feminino está diretamente ligada as relações de poder socialmente determinada na sociedade patriarcal que vivemos e manifesta-se, principalmente, no espaço doméstico. Assim, aborda-se no próximo item o conceito de violência contra a mulher e políticas de enfrentamento. 3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: CONTRIBUIÇÕES AO DEBATE A violência contra a mulher no âmbito doméstico, de acordo com Barus-Michel (2011), não possuem uma única forma e pode ocorrer no início da relação afetivo-sexual ou após anos de convivência, durante ou depois o rompimento da relação. Tais violências violam não só as mulheres, mas também aos filhos e a família extensa e 3178
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ocorrem por motivações secundárias distintas, como trabalho, bebida, ciúme, drogas, dentre outras, e podem ocorrer com intensidades e formas diferentes, sendo que a psicológica está presente em todas as ações de violência contra as mulheres. Como não há uma forma específica dos contextos destas violações, Saffioti e Almeida (1995, p. 35-36) afirmam que: A violência tende a descrever uma escala, começando com agressões verbais, passando para as físicas e/ou sexuais e podendo atingir a ameaça de morte e até mesmo o homicídio. Mas o êxito do agressor dependente das relações com a vítima. Assim a escala não acontece forçosamente. Como toda relação social, a relação de violência implica força - não necessariamente física, mas como capacidade de determinar o destino de outros. Assim, embora tendenciosamente haja uma escala da violência, ela pode estabilizar-se num certo nível, o que não elimina a elevação da tensão em certo momento, podendo ocorrer homicídio ou tentativa de homicídio. Para Langley e Levy (1980) as razões da violência doméstica contra a mulher são divididas em nove categorias: doença mental; álcool e drogas; aceitação da violência por parte do público; falta de comunicação; sexo; uma autoimagem vulnerável; frustração; mudanças; violência como recurso para resolver problemas. De acordo com o Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (2018, p. 25), no Brasil, em 2018, “cerca de 30% das mulheres que disseram ter sido agredidas pelo parceiro afirmam que foram vítimas tanto de violência física como de violência sexual”. O Mapa mostra que a violência ocorre com mais frequência entre as idades de 18 e 59 e que os “maiores agressores das mulheres ainda são os companheiros (namorados, ex, esposos) correspondendo a 58% dos casos de agressão. Os outros 42% ficam na conta dos pais, avôs, tios e padrastos” (COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER, 2018, p. 25). A violência doméstica contra a mulher não se caracteriza somente por aquilo que é visível e que é tipificado no Código Penal, como é o caso da lesão corporal e maus- tratos; vai muito mais do que isso, pois o hematoma, o arranhão e a ameaça que leva a mulher a pedir a ajuda, são muitas vezes apenas a ponta de um iceberg, como afirma Soares (2005). Dentre as ocorrências mais frequentes de agressão está a lesão corporal dolosa e os maus-tratos. A lesão corporal pode se apresentar de diversas maneiras: agressões físicas (socos, chutes, tapas, violência sexual) ou agressões com qualquer tipo de objeto que possa machucar ou prejudicar a saúde da pessoa (SOARES, 2005). 3179
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A violência doméstica coloca a mulher em uma situação de subordinação sendo obrigada a ceder ao seu agressor e manter uma relação de dependência financeira e emocional. É claro, levando em consideração todo o contexto em que a mulher está inserida (família, condições socioeconômicas, perfil do agressor, etc.), deve-se analisar que a violência doméstica funciona como um sistema circular, chamado ciclo da violência. Segundo Sousa (2007), o ciclo de violência está dividido em três fases: a violência psicológica, a violência física propriamente dita e a volta à fase da lua de mel, quando se passa uma borracha em tudo que está errado e recomeça o relacionamento novamente com novas promessas, desculpas e arrependimento. Este ciclo é frequente na vida da mulher que sofre com a violência doméstica, colocando a dificuldade que ela tem para acabar com a relação e manter distância do companheiro/agressor por uma série de questões, que vão de motivos financeiros a razões de cunho emocional. Por isso, Rocha (2007, p. 71), afirma que: A ruptura com a situação de violência conjugal se configura como um processo difícil, doloroso e, muitas vezes, lento, ao envolver a ruptura com o cônjuge violento. O que pode significar, dependendo das circunstancias, a ruptura com sua vida cotidiana: sua casa, seu emprego, amigos e outras perdas. Para a mulher é muito difícil romper com este ciclo, os momentos em que ela vive de constante crise emocional e psicológica com toda a certeza é muito intensa, levando em conta que se cria toda uma expectativa em torno de uma pessoa, muitos sonhos são colocados, tudo em prol de uma vida conjugal de sucesso (ROCHA, 2007). Ou seja, como ressalta Rocha (2007, p. 54), “essa representação do amor é alimentada bem mais pela mulher, que acrescenta à imagem do companheiro, a de pai de seus filhos, que fortalece a relação com ele e reforça a visão ideologizada de família a ser preservada”. Em muitos casos, a mulher só consegue desvincular-se do agressor com o suporte dos órgãos destinados a esses casos, daí a importância dos mesmos na questão da violência doméstica (ROCHA, 2007). O fato das mulheres não romperem com o ciclo demonstra cada vez mais a necessidade de ajuda de agentes externos. O enfretamento do ciclo de violência começou a partir dos anos 80 com as Delegacias de Atendimento à Mulher, em 1985, em São Paulo, sob pressão do 3180
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Movimento de Mulheres e do Conselho Estadual da Condição Feminina (SAFFIOTI, 1997). Posteriormente, houve a criação da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres e o Pacto Nacional de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher que traz a rede de enfrentamento a violência contra a mulher, que diz respeito à: Atuação articulada entre as instituições e serviços governamentais, não- governamentais e a comunidade, visando ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos, a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência (BRASIL, 2011, p. 8). Outra a grande conquista referente a essa questão foi a criação da a Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, intitulada Lei Maria da Penha que foi “a primeira lei federal dirigida à prevenção e ao combate à violência doméstica contra as mulheres” (ALMEIDA, 2011, p. 48). Atualmente, a rede de atendimento à mulher vítima de violência conta com outras políticas que trabalham em redes, como a Política de Assistência Social, Saúde, a justiça, dentre outras. No entanto, ressalte-se que o combate a violência contra a mulher, deve ser feita todos os dias. Sabe-se que a luta ainda é muito grande, pois nem todas as instituições e serviços funcionam como deveriam, os processos são demorados e, mediante os casos que são vistos todo os dias, é importante evidenciar os serviços de combate a violência contra a mulher e dialogar para enfrentamento das desigualdades socialmente impostas, para que a vítima possa se reconhecer naquele contexto, fazer a denúncia e, assim, sair do ciclo de violência. 4 CONCLUSÃO A violência contra mulher é um problema social grave e apresenta-se das mais diversas formas. No espaço doméstico este problema ainda é mais potencializado, pois as vítimas mantém uma relação muito próxima com seu agressor e, muitas vezes, sentem-se reprimidas e culpadas. Quando estas mulheres não percebem-se como vítima, torna-se mais difícil romper o ciclo de violência. O enfrentemanto desta questão começou nos anos 1980 com a criação das primeiras delegacias e, posteriormente, com a organização de políticas públicas em diversos setores que estão articuladas. No enquanto, percebe-se que esta problemática 3181
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI não é nova, mas ainda é muito recorrente na sociedade patriarcal em que estamos inseridos. Diante disso, conclui-se que discutir sobre a desconstrução dos papeis sociais atribuidos aos gêneros, sobre violência contra as mulheres e fortalecer a rede de enfrentamento é fundamental para se construir uma sociedade mais justa e igual. REFERÊNCIAS ABRÃO, Larissa Guimarães Martins. A participação política da mulher: uma análise do ponto de vista psicológico. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília. ALMEIDA, Janaiky Pereira de. As multifaces do patriarcado: uma análise das relações de gênero nas famílias homoafetivas. 2010. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. A violência contra as mulheres no Brasil – leis, políticas públicas e estatísticas. In: ABREU, Maria Aparecida (Org.). Redistribuição, reconhecimento e representação: diálogos sobre igualdade de género. Brasília: Ipea, 2011. p. 17-46. BARUS-MICHEL, J. A violência complexa, paradoxal e multívoca. In: M. Souza, F. Martins, & J. N. G. Araújo (Eds.). Dimensões da violência: conhecimento, subjetividade e sofrimento psíquico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. BLAY, Eva Alterman. Violência contra a mulher e políticas públicas. In: Revista Estudos Avançados. [online]. v,17, n.49, p. 87-98. 2003. BORGES, Clara Maria Roman; LUCCHESI, Guilherme Brenner. O machismo no banco dos réus: uma análise feminista crítica da política criminal brasileira de combate à violência contra a mulher. In: Revista da Faculdade de Direito. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 60, n. 3, set./dez. 2015. BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília: SPM, 2011. Disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/rede-deenfrentamento. Acessado em: 01.06.2020. CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2018. CISNE, Mirla; SANTOS, Silvana Mara Moraes dos. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018. (Biblioteca básica do Serviço Social; v.8) 3182
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI COMISSÃO DE DEFESA DOS DIREITOS DA MULHER. Mapa da Violencia Contra a Mulher. Brasilia, 2018. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/comissao-de-defesa-dos-direitos-da- mulher-cmulher/arquivos-de-audio-e-video/MapadaViolenciaatualizado200219.pdf. Acessado em 05/06/2020. LANGLEY, Roger. LEVY, Richard. Mulheres espancadas: fenômeno invisível. São Paulo: Editora Hucitec, 1980. MONTEIRO, Angélica; LEAL, Guaraciara Barros. Mulher: da luta e dos direitos. Brasília, 1998. (Coleção Brasil, 3) OLIVIO, Maria Cecilia. “Das fragilidades de viver o tempo presente”: capitalismo, patriarcado e a vigência da exploração-dominação masculina. 2015. Dissertação (Mesntrado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. PIOVESAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. CEDAW: Relatório nacional brasileiro: Protocolo facultativo. Brasília: Ministério da Justiça, 2002. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. ROCHA, Lurdes Maria Leitão Nunes. Políticas públicas, violência doméstica e a relação público/privado. In: Casas-abrigo: no enfrentamento da violência de gênero. São Paulo, Veras editora, 2007. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Violência de gênero: lugar da práxis na construção da subjetividade. Lutas Sociais. São Paulo: PUC, 1997. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo (Coleção Brasil Urgente), 2004 SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987 SAFFIOTI, Heleieth I. B.; ALMEIDA, Suely Souza. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter, 1995. SOARES, B. M. Enfrentando a Violência contra a Mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. SOUSA, Maria Clara de. O papel da mulher nos novos arranjos sociais da família brasileira: o desafio de garantir direitos. Minicurso do CRESS 7º região STEARNS, Peter. História das relações de gênero. São Paulo: Editora Contexto, 2007. ZIRBEL, Ilze. Estudos Feministas e Estudos de Gênero no Brasil: Um Debate. 2007. Dissertação (Mestre em Sociologia Política) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 3183
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS PERCEPÇÃO DA IDENTIDADE ALIMENTAR: uma análise sob a ótica do consumidor em um mercado público de Teresina, PI. PERCEPTION OF FOOD IDENTITY: an analysis from the perspective of the consumer in a public market in Teresina, PI. Bianca Lourrany dos Santos Silva1 Monique da Silva Rocha2 Martha Teresa Siqueira Marques Melo3 Cecilia Maria Resende Gonçalves de Carvalho4 RESUMO A alimentação está envolta por diversos significados, questões socioculturais, experiências pessoais. O estudo objetivou descrever o perfil do indivíduo que consome alimentos habitualmente em um mercado público da capital teresinense e conhecer as principais motivações que os levam a fazer suas refeições nesse espaço. Trata-se de uma pesquisa de campo transversal, de natureza quantitativa, com aspectos qualitativos. O mercado é um local frequentado por um público diversificado, representado em maior parte por adultos jovens, em maioria do sexo masculino, casados ou solteiros, pardos, com pelo menos o ensino médio e com prevalência de baixa renda. Sabor, tempo e preço foram valores destacados pelos entrevistados, mostrando que a gastronomia local contribui para a motivação da escolha alimentar. Ficou evidenciado que a comida do mercado é dotada de simbolismo e o espaço é um replicador da cultura local, uma vez que fornece à população produtos e pratos típicos da região. Palavras-Chaves: Alimentação Coletiva. Comportamento Alimentar. Tradições Alimentares. 1 Estudante de Graduação do 9° período do Curso de Nutrição na Universidade Federal do Piauí – UFPI. Bolsista do PET Integração (UFPI). E-mail: [email protected]. 2 Estudante de Graduação do 8° período do Curso de Nutrição na Universidade Federal do Piauí – UFPI. Bolsista do PET Integração (UFPI). E-mail: [email protected]. 3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Alimentos e Nutrição, Docente na Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected]. 4 Tutora do PET Integração, Doutora e Professora do Departamento de Nutrição da UFPI. E-mail: [email protected]. 3184
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ABSTRACT Food is surrounded by different meanings, socio-cultural issues, personal experiences. The study aimed to describe the profile of the individual who normally consumes food in a public market in the Teresian capital and to know the main motivations that lead them to eat in this space. It is a cross-sectional field research, of a quantitative nature, with qualitative aspects. The market is a place frequented by a diverse audience, represented mostly by young adults, mostly male, married or single, brown, with at least high school and with a low income prevalence. Flavor, time and price were values highlighted by the interviewees, showing that local cuisine contributes to the motivation of food choice. It became evident that the food on the market is endowed with symbolism and the space is a replicator of the local culture, since it provides the population with typical products and dishes from the region. Keywords: Collective Feeding. Feeding Behavior. Food Traditions. INTRODUÇÃO A alimentação é uma necessidade fisiológica básica, um direito humano e um ato sujeito a tabus culturais, crenças e diferenças no âmbito social, étnico, filosófico, religioso e regional. O ato de alimentar-se incorpora tanto a satisfação das necessidades do organismo, como também oportuniza a integração de pessoas e união de costumes, representando assim, um ótimo método de socialização. Destacam-se os hábitos alimentares como sendo atos concebidos pelos indivíduos onde há seleção, utilização e consumo de alimentos disponíveis (MEZOMO, 2015). Os diferentes significados da comida e suas representações indicam a necessidade de compreender as práticas alimentares como uma relação à qual os fatores fisiológicos, simbólicos e culturais da alimentação podem estar atrelados (LEONELL; MENASCHE, 2017). Em vista disso, as formas de alimentação, o sentido imaginário e simbólico atribuído pelos indivíduos ao consumir alimentos tradicionais e os novos alimentos elaborados e introduzidos, necessitam ser discutidos e compreendidos à luz da ciência. Dessa forma, o entendimento dessas questões complexas e repletas de significados poderá melhor conduzir as tradições culinárias, não apenas nos aspectos voltados ao simbolismo que a alimentação representa, mas também, com a certificação e garantia de qualidade atendendo aos princípios da Segurança Alimentar e Nutricional 3185
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI (SAN). Frente a isso, a temática sobre SAN abrange vários aspectos, envolvendo desde a produção, desenvolvimento, armazenamento e comercialização, ou seja, compreende todo o processamento dos alimentos (BURLANDY; MAGALHÃES, 2013; LEÃO, 2013; BRASIL, 2013). No âmbito biológico, por uma questão de sobrevivência, a alimentação constitui- se como fator imprescindível à manutenção da vida de todos os seres humanos. Relaciona-se diretamente a aspectos como vitalidade do indivíduo, necessidade fisiológica de ingestão e absorção de nutrientes, a fim de possibilitar a manutenção do funcionamento corporal, sendo sob essa perspectiva, uma reação relativa à natureza humana. Quais alimentos ingerir, bem como quantidades a serem ingeridas de modo a suprir as necessidades individuais, variam conforme fatores como idade, peso, altura, tipo de atividade realizada, situação clínica, dentre outros (LIMA; NETO; FARIAS, 2015). Como um dos espaços públicos que possibilitam essa prática do comer, têm-se os Mercados, locais constituintes do ambiente urbano, onde os indivíduos se encontram cotidianamente movidos por interesses comuns e/ou diferentes. Consequentemente, esses espaços possuem uma centralidade que atrai pessoas, objetos, signos, estabelecendo entre esses elementos relações de trocas, seja econômica, seja simbólica, as quais sustentam os processos de interação social (XAVIER, 2016). A aproximação que se teve com o tema a partir de um projeto de tese de doutorado propiciou aos pesquisadores a formular as seguintes questões: qual o valor percebido pelo consumidor em relação à comida consumida em mercado público e quais os significados atribuídos pelos comensais sobre a comida no referido local. Diante disso, o presente estudo objetivou descrever o perfil do indivíduo que consome alimentos habitualmente no mercado; bem como conhecer as principais motivações que os levam a fazer suas refeições nesse espaço. 2 MÉTODOS Trata-se do recorte de um trabalho de iniciação científica voluntária em andamento (2019 – 2020; ICV/CNPq) realizado no âmbito da Universidade Federal do Piauí (UFPI), sendo este configurado com um estudo de campo transversal, com abordagem quantitativa e aspectos qualitativos. A pesquisa está inserida em um projeto 3186
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI maior, uma tese de doutorado intitulada “Avaliação das preparações culinárias tradicionais piauienses: um diagnóstico sob a ótica gastronômica e da segurança alimentar e nutricional em mercado público”, do Programa de Pós-Graduação em Alimentos e Nutrição (PPGAN-UFPI). O cenário do estudo abrangeu os restaurantes distribuídos na praça de alimentação do Mercado Municipal da Piçarra, localizado em Teresina. O referido ambiente foi escolhido por ser um mercado antigo e que faz parte da cultura local, com aspectos importantes no que diz respeito à simbologia e tradição culinária; o mesmo possui um espaço amplo de alimentação constituído por 22 boxes de produção e comercialização de refeições, onde diariamente são fornecidas preparações típicas e populares, logo, esse mercado caracteriza-se por ser o único a receber o título de Patrimônio Histórico e Cultural da capital teresinense. Para a identificação do perfil da clientela do setor de alimentação desse mercado, usou-se um questionário que investigou os dados referentes ao sexo, idade, estado civil, escolaridade e renda, no universo de 108 participantes da pesquisa. Ressalta-se que o instrumento de coleta somente foi aplicado após a realização de vários testes no sentido de obter respostas confiáveis. Os dados quantitativos foram codificados, digitados, tabulados e analisados no Software Excel 2013, onde se obteve somatórias e médias das categorias pesquisadas, sendo essa técnica usada para a obtenção do perfil dos comensais. No que consiste a abordagem qualitativa, foram feitas observações diretas juntamente com a produção de diários de campo e entrevistas semiestruturadas, ou seja, com perguntas abertas e fechadas, realizadas individualmente entre aqueles que consumiam refeições habitualmente nesses restaurantes, a fim de se identificar as diferentes motivações atribuídas ao consumo da comida de mercado e que contribuíram para a compreensão do objeto de estudo. A autorização para participar da pesquisa foi expressa por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido recomendado para pesquisas com seres humanos pela Resolução CNS Nº 466/12, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí (parecer n. 2.139.962), cadastrado na Pró-Reitoria de Pesquisa (Cadastro n.26/2017). 3187
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO O mercado público da Piçarra funciona diariamente, no horário de 04 a 15 horas, inclusive nos feriados, atendendo diariamente 600 indivíduos. No local são preparados e comercializados o café da manhã e o almoço, compostos por uma culinária tradicional característica da região piauiense (MOURA; CARVALHO, 2019; MELO et al., 2020). Em geral, o público que frequenta as unidades produtoras de alimentação é diverso, com idades variadas, provenientes de vários locais da cidade e do interior do estado. O perfil dos indivíduos que fazem suas refeições no mercado está descrito na tabela 1 e figura 1. Foram entrevistados 108 indivíduos, dos quais 78,7% correspondiam ao sexo masculino. Com relação à faixa etária, o maior percentual encontrado mostrou que a maioria dos comensais tinha idade igual ou superior a 18 anos e inferior a 40 anos (55,6%). No que diz respeito à raça ou etnia, a cor parda foi a mais autorreferida. A clientela do mercado era constituída por indivíduos casados e solteiros. Esses indivíduos tinham renda entre 1 a 2 SM. Quanto ao nível de escolaridade, predominou o ensino médio completo (47,2%), seguido de indivíduos com formação superior (20,4%). (Tabela 1). Analisando-se os dados da tabela 1, observa-se que as características dos participantes da pesquisa estão de acordo com outros estudos (BEYDOUN; POWELL; WANG, 2009; ORFANOS, 2007; BEZERRA, 2010; BEZERRA, 2017), os quais mostram que adultos jovens, do sexo masculino e com maior escolaridade são os que apresentam maior frequência de alimentação fora do domicílio. Nesse sentido, vale destacar dados apontados pelo Anuário Brasileiro da Alimentação de 2011, no qual estima que em menos de uma década o brasileiro poderá gastar em torno de 50% das despesas com alimentação em refeições fora do lar. O estudo afirma que a tendência é o indivíduo expandir o consumo de uma refeição diária para duas, incluindo o hábito de tomar o café da manhã, o lanche da tarde ou jantar fora de casa (ANUÁRIO, 2011). 3188
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Tabela 1 – Perfil sociodemográfico e econômico dos consumidores de refeições do mercado. Teresina, 2019. VARIÁVEIS nº % Sexo 85 78,7 Masculino 23 21,3 Feminino Idade (anos) 60 55,6 18 e <40 42 38,9 40 e <60 6 5,5 60 14 13,0 Raça/Etnia 21 19,4 72 66,7 Branca 1 0,9 Preta Parda 46 42,6 53 49,0 Amarela 9 8,4 Situação Conjugal 1 0,9 Solteiro 11 10,2 Casado/ União Estável 16 14,8 Separado/divorciado/Viúvo 51 47,2 Escolaridade 22 20,4 7 6,5 Sem escolaridade Ensino Fundamental Incompleto 7 6,4 51 47,2 Ensino Fundamental 28 26,0 Ensino médio 12 11,1 9 8,3 Ensino Superior 1 1,0 Pós-Graduação 108 100,0 Renda em Salários Mínimos (SM) Menos de 1 SM De 1 a 2 SM De 2 a 5 SM Mais de 5 SM Não possui renda NS/NR* Total Fonte: dados da pesquisa, 2019. *Não sabe/Não sabe responder. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) realizada em 2008-2009 (IBGE, 2010), também aponta uma maior aquisição de alimentos fora do domicílio pela população masculina, conforme também foi verificado no mercado estudado. A escolaridade configura-se como um importante marcador do nível socioeconômico dentre os participantes. De acordo com Barros (2017), estudos sobre fatores socioeconômicos indicam que a escolaridade influencia a escolha dos alimentos, estando inclusive relacionada ao maior acesso à informação, assim como a renda, possibilitando escolhas mais variadas e saudáveis. Em relação à renda média dos comensais, observou-se maior frequência de indivíduos assalariados, cuja renda variou entre 1 e 2 salários-mínimos (47,2%), evidenciando, portanto, um menor poder aquisitivo entre esses indivíduos. 3189
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Por outro lado, no âmbito das principais motivações que levaram os entrevistados a se alimentarem no Mercado da Piçarra, evidenciou-se um destaque ao sabor (45%) e à praticidade (27%), seguidos de falta de tempo (15%) e preço acessível (9%), dentre outras motivações menos frequentes, conforme expressas na figura 1. Pelos relatos, o apelo sensorial (sabor) apresentados pela maioria dos participantes conduz a reflexão de que a gastronomia tradicional deve contribuir como motivação para a escolha alimentar. As manifestações dos entrevistados refletem a importância de manter a tradição nas preparações culinárias já que aspectos da cultura e dos hábitos locais permanecem (MOURA, 2019; MELO et al., 2020). Dentre os pratos típicos relatados pelos entrevistados destacam-se aqueles feitos com molho envolvendo carnes bovina, suína e ovina, vísceras, tripas e aves (MELO et al., 2020). Figura 1 – Motivações do indivíduo para fazer refeições no mercado. Teresina, 2019. 50 45 45 40 35 27 30 nº 25 20 15 15 9 55 10 11 5 0 Características das escolhas Fonte: Dados da pesquisa, 2019. Para Cavalcante (2017), as construções simbólicas referentes à alimentação e a representação em torno do alimento orientam as escolhas alimentares no senso comum. As comidas de mercado são popularmente conhecidas como “pesadas”, ou seja, que são aquelas com alta densidade energética. Desse modo, acredita-se que o elevado teor de gordura e a alta palatabilidade da maioria das preparações servidas, justificam o sabor como o principal motivo para o consumo de refeições nesse espaço. Pressupõe-se que praticidade e falta de tempo se devem ao pequeno intervalo para almoço dos que trabalham nas redondezas do estabelecimento. A respeito do preço, 3190
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI geralmente as comidas servidas em mercados são populares, cujo custo é menor quando comparadas a outros tipos de locais que fornecem refeições. Por outra ótica, os mercados populares se apresentam como potencial turístico no tocante a reunião de vários aspectos culturais que dão ao visitante, a possibilidade de conhecer a cultura local de forma presencial, vivenciando a singularidade de cada aspecto. Nesse ponto, a gastronomia se apresenta como marca da identidade local a partir da representação e da degustação dos sabores e cheiros da região (BRANDÃO; LUCENA FILHO, 2012). 4 CONCLUSÃO O mercado constitui-se como um local frequentado por um público diversificado, todavia, o perfil sociodemográfico e econômico dos comensais pôde ser caracterizado por adultos jovens, em grande parte do sexo masculino, casados ou solteiros pardos, com pelo menos o nível médio e baixa renda. Diante do exposto, é notável que os mercados públicos, em particular o mercado da Piçarra, é um espaço dotado de simbolismo e replicador da cultura local, uma vez que fornece à população produtos e pratos típicos da região. Além disso, são favorecedores da socialização e comensalidade entre os usuários dos seus serviços de alimentação, que dentre diversos atributos são atraídos principalmente pelo sabor das preparações servidas, pela falta de tempo, praticidade em encontrar o alimento pronto para o consumo e pelo baixo custo das refeições. APOIO: FNDE/MEC. REFERÊNCIAS ANUÁRIO BRASILEIRO DA ALIMENTAÇÃO. Os números da alimentação fora do lar. p.10-19, 2011. Disponível em: <http://www.alimentacaoforadolar.com.br/default.asp>. Acesso em: 15 mai. 2020. BARROS, F. A. G. Avaliação do impacto da informação nutricional nas escolhas dos consumidores do refeitório de profissionais de uma unidade hospitalar. Repositório Aberto, 2017. 3191
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BRANDÃO, P. C. R., FILHO, S. A. L. O Mercado Público Central de João Pessoa como Pólo Gastronômico e Turístico. Anais do VII Seminário de Pesquisa em Turismo do Mercosul. Universidade Federal da Paraíba – UFPB, 2012. BRASIL. Direito à alimentação adequada. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. ______. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Brasília: Diário Oficial da União, 2012. BEYDOUN, M. A.; POWELL, L. M.; WANG, Y. Reduced away-from-home food expenditure and better nutrition knowledge and belief can improve quality of dietary intake among US adults. Public Health Nutrition, v. 12, n. 3, p. 369-381, 2009. BEZERRA, I. N. et al. Consumo de alimentos fora do lar no Brasil segundo locais de aquisição. Revista de Saúde Pública, v. 51, n.15, p.1-8, 2017. BEZERRA, I. N.; SICHIERI, R. Características e gastos com alimentação fora do domicílio no Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 44, p. 221-229, 2010. BRANDÃO, P. C. R.; LUCENA FILHO, S. A. O Mercado Público Central de João Pessoa como Polo Gastronômico e Turístico. Anais do VII Seminário de pesquisa em turismo do Mercosul. Universidade Federal da Paraíba, Brasil, 2012. BURLANDY, C. R.; MAGALHÃES, L. R. Segurança Alimentar E Nutricional: Perspectivas, Aprendizados e Desafios para as Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. 225 p. CAVALCANTE, C. M. B. As comidas que alimentam o meu povo do Alto Oeste Potiguar. Orientador: Célia Márcia Medeiros de Morais. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Nutrição) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte, 2017. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa de Orçamentos familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 2010. LEÃO, M. O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília: ABRANDH, 2013. LEONELL, A.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação – Revista Comportamento, Cultura e Sociedade, v. 5, n.2, p. 1-11, 2017. 3192
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI LIMA, R. S.; NETO, J. A. F.; FARIAS, R. C. P. Alimentação, comida e cultura: o exercício da comensalidade. DEMETRA: Alimentação, Nutrição & Saúde, v. 10, n. 3, p. 507-522, 2015. MELO, M. T. M.; MOURA, A. C. C; SANTOS, M. D. C.; SILVA, B. L. S.; NUNES, I. F. O. C.; BARRETO, S. C. S.; SANTOS, M. M.; PAZ, S. M. R. S.; CARVALHO, C. M. R. G. Public Market Breakfast: a food tradition. Journal of Food and Nutrition Research, v.8, n.2, p.74-79, 2020. MELO, M. T. M.; MOURA, A. C. C.; SILVA, B. L. S.; SANTOS, M. D. C.; PAZ, S. M. R. S.; SANTOS, M. M.; CARVALHO, C. M. R. G. Nutritional Characterization of teh typical food menu offered in the public market and its reflection on the health. Journal of Culinary Science & Technology, v.35, n.2, 2020. MEZOMO, I. F. B. Os serviços de alimentação: planejamento e administração. 6. ed. Barueri (SP): Manole, 2015. MOURA, A. C. C. O mercado público de Teresina: a lógica das escolhas alimentares determinantes no comportamento do consumidor do mercado da Piçarra. Orientadora: CARVALHO, C. M. R. G. 2019. Dissertação (Mestrado em Alimentos e Nutrição). Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2019. ORFANOS, P. et al. Eating out of home and its correlates in 10 European countries. The European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC) study. Public Health Nutrition, v. 10, n. 12, p. 1515-1525, 2007. XAVIER, A. E. V. A Revitalização do Mercado Público de Pelotas e sua Ressignificação Social. RELACult-Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, v. 2, n. 4, p. 72-89, 2016. . 3193
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NO BRASIL: determinantes históricos e expressões na atualidade STRUCTURAL VIOLENCE IN BRAZIL: historical determinants and expressions today Natália de Faria1 Flávia B. S. Garcia2 Débora Ruviaro3 RESUMO Este artigo objetiva evidenciar as expressões da violência estrutural na sociabilidade brasileira, considerando a violência enquanto elemento medular que perdura desde o período de formação sócio-histórica do país. Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa. Mesmo não afirmando a existência de uma relação mecânica entre a violência estrutural e atos individuais de violência, nota-se que as políticas de opressão e controle social do Estado se constituem enquanto mecanismos de produção, reprodução e intensificação deste fenômeno na sociedade. Palavras-Chaves: Violência Estrutural. Estado. Opressão. ABSTRACT This article aims to highlight the expressions of structural violence in Brazilian sociability, considering violence as a core element that has persisted since the period of socio-historical formation in the country. For this purpose, a qualitative bibliographic research was carried out. Even not affirming the existence of a mechanical relationship between structural violence and individual acts of violence, it is noted that the policies of oppression and social control of the State are constituted as mechanisms of production, reproduction and intensification of this phenomenon in society. Keywords: Structural Violence. State. Oppression. 1 Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Assistente Social, Graduada em Serviço Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social – PPGSS. E-mail: [email protected] 2 Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Assistente Social, Mestre em Estudos Africanos. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social - PPGSS. E-mail: [email protected] 3 Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Assistente Social, Mestre em Serviço Social. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social - PPGSS. PPGSS. E-mail: [email protected] 3194
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é evidenciar as expressões da violência estrutural na sociabilidade brasileira, considerando a violência enquanto elemento estrutural que perdura desde o período de formação sócio-histórica do país. Neste sentido, propomos uma reflexão sobre o contexto de violência estrutural, a qual está inserida cotidianamente na vida da classe trabalhadora e tem como alvo principal a população negra e pobre. Sob a perspectiva do Estado, a violência é imprescindível para manutenção da ordem econômica-social, tornando-se elemento estruturante e legítimo na sociabilidade brasileira. Para tanto, no debate acerca deste fenômeno serão indicadas diferentes expressões e formas de manifestação da violência estrutural, pois ela pode advir tanto da omissão do Estado, como por meio de ações diretas e indiretas, de modo explícito ou de forma velada. O presente artigo, construído a partir de uma pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, está dividido em duas partes, sendo que a primeira aborda a violência estrutural a partir da apresentação do conceito e de acontecimentos da história brasileira marcados pela violência; e a segunda apresenta as expressões da violência estrutural na atualidade, demonstrando dados estatísticos e analisando como o Estado produz a violência presente nesta sociabilidade. 2 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: conceito e determinantes na história brasileira Podendo ser considerado um fenômeno multicausal, a violência é um processo de vitimização que se expressa em atos com intenção de prejudicar, subtrair, subestimar e subjugar outrem. Tratando-se de um tema relevante, é desafiador conceituá-lo tendo em vista sua característica de ser multifacetado. Não obstante, apresentaremos concepções acerca desta problemática. Assim sendo, considerando a complexidade do fenômeno, iniciamos o debate pautando-nos na definição de Pinheiro e Almeida (2003), os quais pontuam que o substantivo “violência” tem origem no latim “violentia”, que significa “veemência” e 3195
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI “impetuosidade”; a palavra deriva também do latim “vis”, que significa “força”. A partir disto, Chauí (2011, p. 379) aponta cinco sentidos para o termo violência: 1) tudo o que age usando força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. Conforme a conceituação da autora, a violência é um ato e enquanto ato, exige a existência de um sujeito que o realize. Este sujeito pode ser um indivíduo singular, um grupo de indivíduos ou uma instituição. Em todo caso, para ocorrência de um ato de violência, sempre haverá um sujeito violentador e um objeto violentado, ambos em relação. Esta relação pode se dar diretamente - quando há contato imediato -, ou pode ser indireta, quando se introduzem as condições para a ocorrência da violência. Ao se estabelecer um ato de violência, institui-se uma relação de poder, já que não há a possibilidade de um ato violento ser pautado por uma relação de igualdade. Tomar a violência a partir deste ponto de vista, ainda de acordo com Chauí (2011), implica visualizá-la como uma ação que se opõe ao conteúdo ético do gênero humano, ou seja, violentar alguém significa, em última instância, retirar sua humanidade, torná-lo coisa ou objeto. Sob esta ótica, é possível compreender por exemplo a construção de regimes fascistas, nazistas e autoritários que justificam sua violência a partir da desumanização do outro e da negação deste outro como um igual. Contudo, a autora também alerta para o processo de desumanização advindo da vitimização daquele que sofre a violência, quando somente se admite a efetivação da justiça por agentes exteriores que não foram objeto direto dela, retirando o protagonismo daquele que foi violentado, desumanizando-o duplamente. De modo geral, as manifestações de resistência ao sistema são consideradas como violência não legítima, pois a sociedade parece não reconhecer o protagonismo dos sujeitos injustiçados. No Brasil, é o caso de manifestações como as dos black-blocs, ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Estes movimentos, assim como outros, são geralmente 3196
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI identificados como reações violentas e não de resposta à uma violência perpetrada anteriormente. A violência pode ser observada como um fenômeno presente nas relações sociais desde a ordenação das primeiras formas de sociabilidade humana, pois historicamente, a humanidade se utilizou da violência objetivando o alcance de suas necessidades primárias e mesmo da reprodução da espécie (HARARI, 2020). Há também o conteúdo subjetivo da raiva enquanto emoção humana, a qual pode levar à prática de atos violentos singulares e que aparentemente pouco tem a ver com o contexto sócio- histórico de inserção dos sujeitos. Entretanto, admitimos como válida a premissa de que os processos de sociabilidade do sistema capitalista intensificam as violências de forma exorbitante, materializando-as por meio do uso da força física, ideológica e simbólica nos diferentes espaços das relações humanas. A partir desta caracterização, no que concerne aos objetivos restritos deste artigo, propõe-se o estudo acerca da violência estrutural e suas expressões existentes na sociedade capitalista atual. Compreende-se por violência estrutural aquela que se aplica tanto às estruturas organizadas e institucionalizadas da família como aos sistemas econômicos, culturais e políticos que conduzem à opressão de grupos, classes, nações e indivíduos, aos quais são negadas conquistas da sociedade, tornando-os mais vulneráveis que outros ao sofrimento e à morte (MINAYO, 1994, p.8). Ou seja, é o tipo de violência produzida direta ou indiretamente pelo sistema de organização social, econômico e político. Ela é estrutural porque se constitui enquanto base de fundação deste sistema, sendo elemento fundamental para seu desenvolvimento. A violência estrutural é evidenciada, assim, nos mais variados espaços, independente de classe social, raça, etnia, faixa etária, condição socioeconômica, escolaridade ou orientação sexual. Conforme Ianni (2004, p. 174) explica, a violência está presente e evidente, escondida e latente, em muitos lugares, nos mais diversos setores da vida social, envolvendo indivíduos e coletividades, objetividades e subjetividades. É um fenômeno eminentemente histórico, no sentido de que se constitui no curso dos modos de organização social e técnica do trabalho e da produção, das formas de sociabilidade e dos jogos de forças sociais. 3197
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Contudo, ela não é igualmente percebida pelos diferentes sujeitos sociais, nem as respostas a ela são uniformes. Enquanto uma sociedade de classes, as desigualdades sociais são reafirmadas cotidianamente pela violência estrutural, voltada para as classes subalternas, a partir de sua posição determinada de subordinação nos âmbitos econômico, político, social e ideológico. Isto é, passam a ser objeto da violência, de forma direta, justamente pela condição de subalternidade na sociedade de classes. A exemplo do Brasil, observamos que o uso da força, na tentativa de exclusão do outro ou do exercício do poder por parte do Estado, fez-se e se faz presente na trajetória da sociedade brasileira desde que a civilização europeia aqui se estabeleceu. Referimo- nos ao genocídio dos povos originários de toda a América e à escravidão imposta aos povos africanos - processo que se iniciou com a captura destas pessoas, seguida de seu padecimento no interior dos navios negreiros, culminando no trabalho forçado e constantes atos brutais de violência sofridos. Posteriormente, temos o constante apagamento e silenciamento das insurreições organizadas contra os governos imperial e republicano, a exemplo de Canudos (Bahia) e Contestado (Santa Catarina). Em se tratando de abusos de autoridade por parte do Estado, este é um lastro de todos os governos brasileiros, independente do regime atribuído. Mais recentemente, pode-se citar a Ditadura Militar de 1964 como um período especialmente repressivo, considerando o desaparecimento de muitas pessoas contrárias ao regime, bem como prisões arbitrárias, casos de tortura, etc. Uma das expressões mais significativas da violência estrutural brasileira na atualidade é o encarceramento em massa de jovens negros nas penitenciárias, questão que será abordada mais detidamente adiante. Diante do exposto, podemos afirmar que o Estado incorporou a violência desde o processo de constituição da sociabilidade brasileira, tornando-a o elemento estrutural predominante no modus operandi das organizações estatais. Neste sentido, a violência estrutural pode ser entendida enquanto um conjunto de ações que se produzem e reproduzem na vida cotidiana, mas que em grande parte não são nem mesmo vistas como ações violentas, pois em alguns casos não causam reações de perplexidade e sim de conformidade. Isto ocorre porque, em geral, a violência só é percebida como tal em situações que envolvam morte, sangue, abuso sexual, assaltos, roubos, etc. A violência estrutural se torna perigosa justamente porque está naturalizada nas relações sociais, fazendo parte do cotidiano de milhões de pessoas, tirando delas a possibilidade de 3198
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI exercerem sua condição de seres humanos livres. É preciso salientar que a fome é uma violência tão perversa quanto um tiro de “bala perdida”. O não acesso à alimentação de qualidade, saneamento básico e à saúde, também mata. A diferença é que a impossibilidade de acesso aos direitos humanos básicos mata aos poucos e não entra na estatística de homicídios. Nesta seara, Cruz Neto e Moreira (1999, p. 36) afirmam que a essência da violência estrutural versa sobre [...] uma sociedade democrática aparente que, apesar de conjugar participação e institucionalização e advogar a liberdade e a igualdade dos cidadãos não garante a todos o pleno acesso a seus direitos, pois o Estado volta sua atenção para atender aos interesses das classes privilegiadas. Sendo assim, entendemos que o Estado tem se eximido historicamente de sua responsabilidade no que tange à garantia de acesso aos direitos e às respostas eficazes no trato das expressões da questão social, ampliando as formas e a incidência das violências. Desta maneira, não se pode dissociar a violência na contemporaneidade e sua relação com o Estado, pois é no âmbito das carências e ausências desta instituição que ela se perpetua (DORNELLES, 2012). Cabe ressaltar ainda que, além da omissão do Estado com relação aos aspectos apontados acima, ele também cultiva a violência por meio do uso da sua força física legitimada. Neste sentido, podemos citar as ações violentas da polícia, por exemplo, que costumeiramente se direciona contra as classes pauperizadas, com enfoque na população negra, criminalizando a pobreza e colocando em prática a necropolítica (MBEMBE, 2018), que objetiva provocar a destruição máxima de pessoas tendo como estrutura questões raciais. Ressalta-se que não é possível estabelecer uma relação linear entre a violência estrutural e outras formas de violência. Entretanto, ao aprofundar a discussão acerca do tema, é possível perceber relações indiretas neste processo, visto que não existe uma relação mecânica entre estes fenômenos. Ainda que não seja possível desconsiderar atitudes individuais absolutamente condenáveis, todos os atos são realizados em determinadas condições, não sendo possível limitá-los a condutas unicamente pessoais. Neste sentido, é necessário pontuar que a violência estrutural se manifesta por meio de recursos que produzem e reproduzem atos de violência, os quais estruturam a 3199
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sociabilidade. Para ilustrar como isso ocorre na sociedade brasileira, abordaremos na próxima seção as expressões da violência estrutural. 3 AS EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NA ATUALIDADE Diante do cenário atual brasileiro, propostas de contrarreformas neoliberais se encontram em curso, resultando no aprofundamento das desigualdades sociais e da discriminação de raça/etnia, gênero, sexualidade e classe. As clássicas contradições do capitalismo estão se exacerbando a partir das relações de exploração do trabalho e suas opressões. Trata-se de uma sociedade devastada pelo aprofundamento do neoliberalismo, que vivencia severamente a violência estrutural. O projeto em curso objetiva o congelamento dos investimentos nas políticas públicas, o desmonte de políticas sociais garantindo a transferência do fundo público para a privatização e o avanço nas contrarreformas, colocando em prática ações que permitem ao capital seguir com seu fluxo destrutivo. As atrocidades deste sistema condenam a sobrevivência de uma parcela da população e trazem consigo uma ideologia que naturaliza a violência contra os/as mais pauperizados/as da classe trabalhadora, em especial a população negra. Se para alguns o sistema é operado de forma satisfatória, respondendo aos seus interesses classistas, para outros se torna uma penúria constante. Esta condição é aperfeiçoada a partir de uma perspectiva que preza pela ordem do capital e, consequentemente, acentua as expressões da questão social as quais são resultado das contradições intrínsecas do sistema capitalista, tais como: violência, miséria, desigualdade social, desemprego; resultado de um processo de acumulação e reprodução do capital (SANTOS, 2010). O Estado comete violência diretamente na forma de agressão física por meio de seus agentes e indiretamente por meio da sua organização institucional, ambas atreladas à manutenção e funcionamento do seu aparato. A disseminação da violência estrutural se revela culturalmente, a partir da reprodução de comportamentos e atitudes discriminatórias, mesmo diante de normas que preconizam os direitos humanos. De modo geral, as violências são justificadas pela necessidade de manutenção da ordem social em favor da nação, todavia, aqueles/as que não se conformam com as condutas definidas pelo Estado se tornam alvos de violência direta (ALMEIDA, 2018). A 3200
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI manutenção da ordem garante que a exploração que fundamenta nossa sociabilidade ocorra de modo regular. Porém, mesmo que a violência seja perpetrada com este objetivo, a população negra e/ou pobre se rebela reproduzindo “pequenas explosões e caóticas resistências que vão desde o enlouquecimento e a miserabilidade que se torna incomodamente visível, até o crime” (IASI, 2013, n.p). Assim, a violência se torna um ciclo. Sob a ótica de Iasi (2013), o Estado legitima a opressão de uma classe sobre a outra, utilizando da coerção e do consenso para organizar a violência de uma forma institucionalizada. O autor afirma ainda que a violência resulta “da contradição inconciliável que fundamenta nossa sociabilidade e, portanto, ela é cotidiana, onipresente e inevitável.” A violência se apresenta disfarçadamente “de formas não explícitas como nos consensuais procedimentos legais e fundamentos jurídicos, como valores morais ou formas aceitas de ser e comportar-se” (IASI, 2013, n.p). Atualmente, atos de opressão e violência pautados em fatores raciais e sociais são evidenciados por meio de mídias sociais e telejornais, deixando de contextualizar a realidade sócio-histórica de subalternidade desta população. A violência estrutural é utilizada como forma de opressão social, afetando determinados grupos étnicos de forma explícita, como demonstram os dados estatísticos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019). A estrutura social discrimina e é racista, pois faz com que parte da população viva em condições subalternas, sofra a ausência dos direitos historicamente conquistados, seja compreendida como incapaz ou coibida pelo controle de instituições estatais a partir de uma seletividade cromática. O sistema repressor efetiva a violência estrutural contra grupos específicos, exige “o joelho no pescoço”, cabeça baixa, o que vem sendo rotina nos momentos de determinadas operações programadas ou até mesmo em abordagens pontuais direcionadas a alguns indivíduos. A polícia é violenta, prende, mata com “bala perdida”, invade residências involuntariamente, atuando de forma truculenta e arbitrária. Agentes operam a violência rotineiramente, batem e/ou chutam o rosto, sufocam até a morte e fazem revistas vexatórias pelo fato de a população ser negra e/ou pobre. A postura autoritária de representantes do Estado encoraja alguns indivíduos a realizar ações criminosas neofascistas, a reproduzir linguagens violentas proliferando ódio e desprezo por determinadas raças/etnias, sendo estas expressões da violência 3201
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI estrutural. Desgovernos reacionários viram notícia ao incitarem a violência e ao produzirem materiais com informações falsas sobre a realidade - chamadas fake news, enquanto a opinião pública parabeniza práticas policiais que resultam em chacinas nas comunidades periféricas. Estas chacinas são veiculadas como confrontos de pacificação armada, por vezes justificadas pela “guerra às drogas”. A “guerra às drogas” no país aumentou consideravelmente os índices de violência policial, especialmente nas comunidades periféricas, onde historicamente esta população faz morada. Cabe destacar ainda que, nesta lógica, aqueles que não entram para as estatísticas de homicídio, ingressam no sistema penitenciário. Para tanto, o Estado se utiliza de instrumentos ideológicos em alusão a paz para conquistar a opinião pública e o senso comum, sustentando ao mesmo tempo ações violentas das políticas de Estado. Tais ações não podem ser consideradas como uma guerra, mas sim como uma política de exclusão e de punição que está em curso. Sendo assim, o Estado tende seu fortalecimento por meio de ações brutais, sustentado por sua política hegemônica marcada pela punição e exclusão (FRANCO, 2014). Mesmo que a violência estrutural se apresente de forma tão explícita, ainda assim, o Estado se encontra “protegido pela muralha da universalidade abstrata, no cotidiano da sociedade civil burguesa onde se estraçalham as particularidades pode-se sempre acusar o erro humano, o desvio de conduta, a corrupção” (IASI, 2013, n.p). Diante o exposto, utilizaremos dados estatísticos para mensurar a violência estrutural que se apresenta cotidianamente na sociabilidade brasileira. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), a incidência de homicídios é marcada por desigualdades no tocante a grupos etários, classe social, raça e gênero. No ano de 2018, com relação às intervenções policiais, 11 a cada 100 mortes violentas intencionais foram provocadas por policiais, o que representa 17 pessoas mortas por dia. Do total de 6.220 vítimas, destes 99,3% eram homens, 77,9 % tinham idade entre 15 e 29 anos e 75,4% eram negros. Sendo assim, podemos considerar um perfil das pessoas vítimas da violência em decorrência de intervenções policiais. Tratando-se do quesito raça/cor, as mortes em decorrência de intervenções policiais, entre 2017 e 2019 representaram 0,2% de amarelos, 24,4% de brancos e 75,4% de negros. Observamos como a 3202
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI desigualdade se materializa socialmente, pois os dados estatísticos apresentam quem são os alvos a partir da cor de pele, faixa etária e gênero. Assim, identificamos que a violência no Brasil possui um viés racial, uma vez que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) a população negra no país representa cerca de 54% dos/as brasileiros/as, enquanto 75,4% são mortos pela polícia. Deste modo, podemos afirmar que há seletividade neste mecanismo de violência letal da produção da morte. Neste sentido, Cerqueira e Coelho (2017) evidenciam que a população negra do Rio de Janeiro, por exemplo, possui 23,5% mais chances de sofrer um homicídio do que um indivíduo não negro. Os dados demonstram ainda que no Brasil as ações letais da polícia ocorrem em territórios de baixa renda e atingem homens jovens e não estão aleatoriamente distribuídas, vitimando mais negros. Quanto a questão de gênero, as mulheres representam 0,7% e os homens 99,3% das mortes a partir das intervenções policiais. Com relação ao aprisionamento, este se apresenta num crescente, se expandindo de forma considerável. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019) o Brasil no ano de 2017 passou a ter um contingente superior a 720 mil presos, sendo considerado o terceiro país do mundo a ter a maior população prisional. Ao final do ano de 2017 o Brasil apresentou um total de 349,8 presos por cem mil habitantes. No período entre os anos de 2000 e 2017, o número de presos no país teve um crescimento exponencial representando 212%, ou seja, nos últimos 17 anos a população encarcerada aumentou abruptamente se comparada ao crescimento populacional geral que foi de 21,6%. Ainda neste mesmo período, houve um aumento na abertura de vagas em unidades prisionais, sem que fossem atendidas as reais necessidades apresentadas. Neste universo de pessoas presas, 95% eram homens e 5% mulheres, o que equivalia a 686 mil homens presos e 38 mil mulheres presas. Sendo assim, observamos que o aprisionamento é uma política violenta do Estado, pois aqueles que não foram assassinados pela polícia tiveram a liberdade privada pelo cárcere e, mesmo nestas condições, continuam a sofrer a violência deste sistema. Demonstrar os dados sobre as ações policiais e o aprisionamento é um importante mecanismo de mensuração da violência estrutural, haja vista que as 3203
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI estatísticas nos oferecem elementos para analisar este fenômeno na sociabilidade. A exemplo dos dois casos, o Estado escolhe quem ele vai matar e quem ele vai encarcerar, por meio de ações coercitivas, pautadas em ideologias de raça e classe social. Por acaso, estaria o passado da escravidão se manifestando em pleno século XXI? Semelhanças desta época histórica se materializam quando afirmamos que dentro da grande massa populacional, há segmentos que são majoritariamente afetados neste processo de violência estrutural por parte do Estado brasileiro. Isto significa que na organização desta sociabilidade a violência denuncia o racismo estrutural que serve de alicerce para a subalternização de uma raça sobre a outra, tornando-se um elemento que integra a ordem econômica, política e social. 4 CONCLUSÃO A partir do que foi levantado neste artigo, percebe-se que a violência estrutural se manifesta de diferentes formas em determinados contextos, podendo ser evidenciada em meio a ausências, omissões ou brutalidades. Caracterizando a violência como um ato de desumanização do outro, para além da violência física direta, é possível compreender que o não acesso aos direitos historicamente conquistados e a escassez de políticas públicas também são formas de violência. Conforme os dados estatísticos apresentados, os atos de violência contra a população negra e pobre demonstram que para a manutenção do racismo, a violência se torna um instrumento de garantia dos privilégios de uma classe social. Portanto, enquanto a violência for um elemento estrutural na sociedade, a desigualdade social estará presente e o racismo continuará sendo evidenciado com a produção do extermínio de determinados grupos sociais, a partir da seletividade cromática. Além disto, os índices de mortalidade e encarceramento continuarão sendo alarmantes. Neste sentido, a sociedade se manterá no ciclo vicioso da violência que se apresenta também como forma de controle social, sendo que sua ruptura somente é possível a partir da construção de outra forma de sociabilidade que não seja pautada numa hierarquia social e racial. 3204
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo Santa Cruz. Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida. Textos para discussão, IPEA. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2017. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7383/1/td_2267.pdf. Acesso em: 12 jun. 2020. CHAUÍ, Marilena. Ética e violência no Brasil. Revista Bioethikos, 2011, v. 5, n. 4. Disponível em: http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A3.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. CRUZ NETO, Otávio; MOREIRA, Marcelo Rasga. A concretização das políticas públicas em direção à prevenção da violência estrutural. Ciênc. saúde coletiva, vol. 4, n. 1, p.33-52, 1999. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csc/v4n1/7129.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020. DORNELLES, João Ricardo Wanderley. Globalização neoliberal, direitos humanos e a violência na realidade contemporânea. In: Direitos Humanos e Serviço Social: polêmicas, debates e embates. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. FRANCO, Marielle. UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da Política de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro. 133 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Administração, Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/2166/1/Marielle%20Franco.pdf. Acesso em: 09 jun. 2020. HARARI, Yuval Noah. Sapiens - Uma breve história da humanidade. 50 ed. Porto Alegre: L&PM, 2020. IANNI, Octavio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. IASI, Mauro. O Estado e a Violência. Blog da Boitempo. São Paulo, 16 out. 2013. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2013/10/16/o-estado-e-a-violencia/. Acesso em: 09 jun. 2020. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução Renata Santini. São Paulo: n-1 Edições, 2018. MINAYO, Maria Cecília de S. A violência social sob a perspectiva da saúde pública. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, n. 10, p. 7-18, 1994. 3205
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI PINHEIRO, Paulo Sérgio; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Violência urbana. São Paulo: Publifolha, 2003. SANTOS, Josiane Soares. Particularidades da “questão social” no Brasil: elementos para o debate. Temas & Matizes, vol. 9, n. 17, p. 125-150, primeiro semestre 2010. Disponível em: http://e- revista.unioeste.br/index.php/temasematizes/article/view/4707/3633. Acesso em: 02 jun. 2020. 3206
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ENCARCERAMENTO E MONOPARENTALIDADE FEMININA NA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Samuel Vinhas Quadros1 Rosilene Marques Sobrinho de França2 RESUMO O artigo intitulado “Encarceramento e monoparentalidade feminina na realidade brasileira contemporânea”3 analisa o sistema prisional brasileiro e a condição feminina na contemporaneidade, discutindo-se os aspectos que perpassam os processos de encarceramento, e os desafios da monoparentalidade feminina em face das expressões da questão social engendrada no contexto do capital. Com base em estudo bibliográfico e documental, os resultados mostraram que, apesar das garantias legais formalmente asseguradas, a realidade brasileira contemporânea tem sido marcada pela violação aos direitos das mulheres, sobretudo pobres, negras e moradoras da periferia dos centros urbanos. De modo que é preciso discutir os processos de desencarceramento, de forma a ampliar a ação do Estado por meio das políticas públicas, no sentido de estar favorecendo o enfrentamento das expressões da questão social que afetam as mulheres, historicamente invisibilizadas em suas subjetividades, identidades e demandas. Palavras-Chaves: Sistema Prisional. Encarceramento Feminino. Monoparentalidade Feminina. 1 Graduando em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí- UFPI. Discente do Programa de Iniciação Científica Voluntária (ICV/UFPI). E-mail: [email protected]. 2 Orientadora da pesquisa. Professora doutora do Departamento de Serviço Social (DSS) e do Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas (PPGPP) da Universidade Federal do Piauí (UFPI); mestre e doutora em políticas públicas (UFPI); graduada em Serviço Social, Direito e História; especialista em Direito e Processo Civil, em História do Brasil e em Gestão de Cidades (Fundação Getúlio Vargas/RJ); pesquisadora membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, Adolescência e Juventude e do Núcleo de Pesquisa sobre Questão Social e Serviço Social. Coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos e Pesquisa Sociedade, Direitos e Políticas Públicas (NUSDIPP). Áreas de interesse de pesquisa: políticas públicas, assistência social, direitos, violência, família e gerações. E-mail: [email protected]. 3 O trabalho é resultado da pesquisa (em andamento) intitulada “A ação do Estado no âmbito do sistema de segurança pública e de justiça para a população carcerária no Piauí”, coordenada pela Profa. Dra. Rosilene Marques Sobrinho de França, docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI). 3207
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ABSTRACT The article entitled “Female incarceration and single parenting in contemporary Brazilian reality” analyzes the Brazilian prison system and the female condition in contemporary times, discussing the aspects that go through the processes of incarceration, and the challenges of female single parenting in the face of the expressions of the social issue engineered in the context of capital. Based on a bibliographic and documentary study, the results showed that, despite the legal guarantees formally ensured, the contemporary Brazilian reality has been marked by the violation of the rights of women, especially poor, black and residents of the periphery of urban centers. So it is necessary to discuss the processes of extrication, in order to expand the State's action through public policies, in the sense of favoring the confrontation of the expressions of the social issue that affect women, historically invisible in their subjectivities, identities and demands. Keywords: Female Incarceration. Prison System. Social Issues. INTRODUÇÃO O artigo intitulado “Encarceramento e monoparentalidade feminina na realidade brasileira contemporânea” analisa o sistema prisional brasileiro e a condição feminina na contemporaneidade, discutindo-se os aspectos que perpassam os processos de encarceramento, e os desafios da monoparentalidade feminina em face das expressões da questão social engendrada no contexto do capital. Na sociedade brasileira, os debates sobre violência, criminalidade e segurança pública sempre são permeados por polêmicas e preconceitos, principalmente quando se tratam de discussões a respeito da garantia dos direitos dos sujeitos envolvidos, no caso, aqueles que perderam a liberdade. Tais questões, geralmente, chegam à população, enviesadas por ideologias e valores moralistas e conservadores. Tanto é assim, que nos últimos anos temos assistido a uma significativa emersão desses debates no seio da sociedade brasileira, inclusive, vale considerar que os argumentos utilizados serviram, nas últimas eleições, como proposta e plano de governo, que contribuiu para alimentar e legitimar tais discursos, sem embasamento teórico e legal, e atrelado à defesa de punições mais incisivas e “menos direitos para bandidos”. No que se refere às prisões, punições e penas, pode-se afirmar que se tratam de práticas antigas que nascem a partir da necessidade de organização de grupos coletivos, uma vez que esses grupos se formatam dentro de regras estatuídas, nesse caso, para 3208
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI aqueles que “desobedecem” ao estatuto, sansões são tomadas a fim de garantir a adequação ou não do indivíduo. Por muito tempo as práticas punitivas e as penas, geralmente baseavam-se em torturas, exílios, e até mesmo em pena de morte. Somente com a ascensão da sociedade moderna é que a prisão passa a ter a fundamentação na perda da liberdade por tempo determinado e dependendo do julgamento de um poder hierarquizado. A partir da organização do Estado Moderno, foi possível ainda, pensar em uma forma mais racional de aplicar as penas, surge a necessidade de pensar as unidades prisionais como local para a “reeducação” das pessoas que praticaram alguma “delinquência”. No Brasil, o Estado adotou tardiamente reformas em seu sistema penitenciário, por muito tempo, as penas adotadas para a punição de atos considerados criminosos, ainda eram pautadas em penas de ataque ao corpo, por meio de torturas, forca, esquartejamento e outras. Somente com o processo de industrialização é que reformas mais profundas foram realizadas no sistema penitenciário. No entanto, mesmo com as reformas, investimentos, e apesar do amplo arcabouço jurídico, permanece no país “o quadro de descompasso entre a lei e a realidade, que acompanha desde sempre o processo de implementação da reforma prisional no Brasil” (MACHADO, 2015, p. 400). Ao recorrer a uma análise histórica do sistema prisional brasileiro, nota-se que a situação das mulheres nas prisões e sobre os tipos de punições a que estavam sujeitas são pouco mencionadas. Nos estudos sobre o encarceramento feminino, é corrente a afirmação de que a história do aprisionamento feminino é marcada por diversas lacunas que limitam e impossibilitam uma análise mais aprofundada acerca da discussão. Com base em estudo bibliográfico e documental, busca-se analisar a realidade enfrentada pelas mulheres nos presídios, discutindo-se como as condições encontradas articulam-se com as expressões da questão social, convergindo ainda com outros determinantes sociais que demarcam a opressão e a dominação que as mulheres enfrentam na sociedade moderna, além de examinar a forma com as desigualdades se agudizam a partir do encarceramento. É importante, porém, que ao destacar o que se conhece da história das mulheres nos presídios brasileiros, seja possível uma apreensão das relações sociais profundamente determinadas pelas dimensões de gênero e da raça/etnia, atravessadas 3209
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI duramente pelas relações de classe social, considerando o lugar reservado às mesmas nas relações de produção e reprodução do capital. O trabalho está dividido em duas partes. A primeira, analisa o sistema prisional brasileiro e a condição feminina na contemporaneidade, e, a segunda, discute os processos de encarceramento, examinando-se as violações a direitos que perpassam a monoparentalidade feminina em face das expressões da questão social engendrada no contexto do capital. 2 O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO E A CONDIÇÃO FEMININA NA CONTEMPORANEIDADE As lutas antiprisionais voltadas para a defesa de direitos e a efetivação dos processos de desencarceramento, tem se apresentado na contemporaneidade como um importante elemento, em face das diretrizes ultraneoliberais e autoritárias que tem ensejado abordagens e violências, sobretudo, na periferia dos centros urbanos, marcados pela histórica segregação e marginalização social da pobreza. Apesar dos avanços dessas discussões, é corrente, na opinião pública, o discurso da incapacidade do poder público em gerir e dar resultados que satisfaçam às diversas demandas e o forte desejo da população em ter resolutividade no que diz respeito ao controle da criminalidade e a garantia da segurança pública, uma vez que na sociedade moderna o apelo por segurança é cada vez mais presente. Em meio a tantas discussões, dois discursos têm se destacado: de um lado, os que insistem por um sistema prisional, policial e judiciário mais rigoroso e autoritário, capaz de punir de forma mais dura a delinquência, a criminalidade e qualquer tipo de ofensa criminal; de outro, os que defendem um sistema prisional que se pretenda enquanto espaço de ressocialização das pessoas privadas de liberdade. Com o aumento da criminalidade urbana, as demandas da população têm sido, principalmente, voltadas para a garantia do funcionamento da Política de Segurança Pública, com intervenções mais rigorosas e o desenvolvimento de ações punitivas “mais eficazes” no controle da criminalidade. As demandas principais giram em torno do aumento do policiamento, das prisões e também por medidas mais autoritárias. Junto com o apelo pelo aumento da segurança pública tem crescido, também, os casos de 3210
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI violência policial, não apenas dentro dos presídios, mas também nas comunidades e bairros periféricos dos centros urbanos. Adorno (1991, p. 70) revela que a apesar dos “propósitos reformadores e ressocializadores embutidos nas falas dos governantes e na convicção de homens aos quais está incumbida a tarefa de administrar as massas carcerárias, a prisão não consegue dissimular seu avesso: o de ser o aparelho exemplarmente punitivo”, dessa forma, os presídios brasileiros desvirtuam-se da sua proposta de ressocialização e humanização, tornando-se um espaço de “escola do crime”, pois as condições inadequadas e insalubres a que estão expostos os homens e mulheres aprisionados, caracterizam desumanização e barbárie. [...] a perda da liberdade determinada pela sansão judiciária pode significar, como não raro significa, a perda do direito à vida e a submissão à regras arbitrárias de convivência coletiva, que não excluem maus-tratos, espancamentos, torturas humilhações, a par do ambiente físico e social degradado e degradante que constrange os tutelados pela justiça criminal à desumanização (ADORNO, 1991, p. 70). Mesmo considerando as diversidades regionais, o autor afirma que os presídios brasileiros apresentam alguns traços comuns, a saber: superlotação, condições sanitárias rudimentares; alimentação deteriorada; precária assistência judiciária e social, educacional e profissional, violência incontida permeando as relações entre as pessoas encarceradas, entre estas e os agentes de controle institucional e entre os próprios agentes institucionais. Anualmente um número significativo de indivíduos entra e sai do sistema de justiça criminal sem a devida rede de proteção social, por meio das políticas sociais, e sem o respectivo acesso à justiça. De acordo com Soares; Guindani (2007) o sistema de justiça criminal brasileiro tem primado pela “criminalização” dos pobres, negros, particularmente os jovens. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciária, de junho de 2017, a maior parte das pessoas privadas de liberdade no Brasil é composta por jovens, sendo que “29,9% possuem entre 18 a 24 anos, seguido de 24,1% entre 25 a 29 anos”, dessa forma cerca de 54% das pessoas privadas de liberdade são jovens. O mesmo levantamento aponta que, em relação ao dado sobre a cor ou etnia da população prisional brasileira, “46,2% das pessoas privadas de liberdade no Brasil são de cor/etnia parda, seguido de 35,4% da população carcerária de cor/etnia branca e 17,3% de 3211
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI cor/etnia preta”. Assim, somados, “pessoas presas de cor/etnia pretas e pardas totalizam 63,6% da população carcerária nacional” (BRASIL, 2017a, p. 30-31). Quanto às mulheres privadas de liberdade, o Relatório Temático sobre Mulheres Privadas de Liberdade, de junho de 2017, aponta que 25,22% das mulheres privadas de liberdade possuem entre 18 a 24 anos e 22,11% entre 25 a 29 anos. No que diz respeito à cor ou etnia, 48,04% das mulheres privadas de liberdade são de cor/etnia pardas, seguido de 35,59% da população carcerária de cor/etnia branca e 15,51% de cor/etnia preta. Somadas, as mulheres presas de cor/etnia pretas e pardas totalizam 63,55% da população carcerária nacional (BRASIL, 2017b, p. 29-32). No Brasil, as informações sobre o encarceramento feminino são muito escassas, por isso nas pesquisas e produções acadêmicas há uma grande carência, principalmente quando se trata das penas e punições a que eram submetidas, e ainda sobre os espaços em que eram encarceradas em diversos períodos históricos, inclusive em datas mais recentes, como por exemplo, o início do século XX. Angotti (2018), em seus estudos, afirma que o encarceramento feminino passou a ser tratado como preocupação, por parte dos penitenciaristas, a partir de 1920, período em que algumas reformas prisionais eram pensadas e executadas e os Conselhos Penitenciários, do Distrito Federal e de alguns estados, tornaram-se órgãos ativos. Em seguida, é promulgado o Código Penal em 1940 e o Código do Processo Penal em 1941, claramente, “havia um projeto de cárcere modelo bem definido, que previa a pena individualizada com a função principal de ressocialização” (ANGOTTI, 2018, p. 137-138). Assim, de acordo com Angotti (2018), o cárcere para mulheres surgiu, assim como outras instituições, a partir de transformações profundas na sociedade brasileira que inaugura um novo tempo penitenciário. No entanto, de acordo com Borges (2018, p. 58), a situação das mulheres nos presídios brasileiros sofre com uma dupla invisibilidade, “tanto pela invisibilidade da prisão quanto pelo fato de serem mulheres”. Somente a partir de 1930 é que começam a surgir, no Brasil, os primeiros estabelecimentos penitenciários exclusivos para o acolhimento de mulheres. Para Angotti e Salla (2018), a preocupação com o encarceramento feminino se dava principalmente devido às péssimas condições a que as mulheres estavam expostas nas penitenciárias brasileiras, uma vez que ocupavam os mesmos espaços que os homens e ainda sujeitas aos diversos tipos de violências. 3212
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No ano de 1937 foi criado, em Porto Alegre, o Reformatório de Mulheres Criminosas, posteriormente chamado de Instituto Feminino de Readaptação Social, primeira instituição prisional brasileira voltada unicamente para o aprisionamento de mulheres. Em 1941, o decreto 12.116, de 11 de agosto, criou o Presídio de Mulheres de São Paulo, instalado na antiga residência dos diretores no terreno da Penitenciária do Estado, no bairro do Carandiru. O decreto previa adaptações ao imóvel para abrigar as mulheres. Já em 08 de novembro de 1942 foi inaugurada no Rio de Janeiro a Penitenciária de Mulheres do Distrito Federal, criada pelo decreto 3.971, de 24 de dezembro de 1941. Foi o primeiro prédio no país construído para ser uma penitenciária feminina (ANGOTTI; SALLA, 2018, p. 14). A administração dos presídios femininos também foi objeto dos penitenciaristas e do governo. Nos estudos de Angotti (2018), a pesquisadora destaca que, em meio às discussões e aos interesses de determinados grupos, a administração dos primeiros presídios femininos foi colocada sob a responsabilidade do Instituto Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’Angers, inicialmente a partir de um acordo realizado entre a Congregação e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, sendo que posteriormente, as irmãs também assumiram a administração de outros presídios em outros estados do Brasil. A principal missão do Instituto Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor d’ Angers é a “salvação das almas” e a “cura moral” de meninas e mulheres em estado de abandono material e moral. “Cooperar com Deus na salvação das almas” é a vocação primeira das Irmãs que fazem voto de pobreza ao vestir o hábito e prometem se dedicar à reeducação e reabilitação das “desafortunadas” por meio da moral cristã (ANGOTTI, 2018, p. 143). Nesse sentido, as primeiras unidades com fins de privação da liberdade de mulheres consideradas delinquentes foram criadas, no Brasil, a partir de 1937, sob a ótica da cura moral imposta pelos dogmas cristãos e ainda na tentativa de reeducar as mulheres para que permanecessem executando o comportamento esperado pela sociedade, o papel da mulher relegada ao ambiente doméstico, obediente ao esposo e virtuosa para a criação dos filhos. Assim, o encarceramento feminino é pensado a partir da moral, totalmente distanciado de qualquer princípio de política pública que considere as condições sociais dessas mulheres e que garanta seus direitos. 3 ENCARCERAMENTO, MONOPARENTALIDADE FEMININA E AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NA REALIDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA Quando tratamos das desigualdades sociais e econômicas na sociedade capitalista, devemos considerar que a repressão e a criminalização da pobreza se 3213
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI constituem enquanto mecanismos de garantir a dominação e a produção e reprodução do capital. Essas desigualdades incidem profundamente na realidade do encarceramento e agudizam as expressões da questão social engendrada no contexto do capital (SANTOS, 2019) e que perpassam as vidas das pessoas que sobrevivem nessas unidades de privação da liberdade. Nesse sentido, não somente as desigualdades de classe atingem as mulheres encarceradas, mas também, a histórica dominação masculina e opressão de raça. Com a consolidação da sociedade burguesa e a afirmação de antigos modelos de dominação e opressão, a situação da mulher permaneceu praticamente a mesma. No âmbito doméstico a regra permaneceu a da família tradicional, pautado em um modelo de família nuclear, caracterizada pela composição pai, mãe e filhos, sendo que a figura patriarcal continua sendo a dominante, enquanto as mulheres permanecem sob o cárcere da dominação masculina. No interior dessa composição, espera-se que os componentes executem atividades diferentes, organizadas de forma hierárquica e com bases na moral conservadora. Nessa divisão de papéis, a mulher mantém-se relegada ao âmbito doméstico sendo responsável pela realização das atividades domésticas e, principalmente, incumbida de realizar a educação dos filhos; mesmo quando a mulher está inserida no mercado de trabalho, esta ainda exerce a jornada de trabalho doméstica. Esse modelo nuclear da família cumpria um objetivo claro, o de garantir a dominação masculina. Atualmente o modelo de família nuclear permanece sendo aclamado e invocado como o único capaz de garantir a permanência de valores defendidos por grupos conservadores. No entanto, este modelo coexiste com uma diversidade de outros tipos de modelos familiares, a exemplo das famílias monoparentais, homoafetivas, recompostas e reconstituídas (CÚNICO; ARPINI, 2014). Ao analisar a formação da sociedade burguesa, podemos afirmar que há muito tempo o modelo de família monoparental tem coabitado com a tradicional família nuclear e patriarcal, uma vez que diversas mulheres, em diversas épocas, tiveram que assumir sozinhas a manutenção do lar, bem como a educação dos(as) filhos(as) e outros parentes. 3214
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI De acordo com Cúnico; Arpini (2014) as famílias monoparentais femininas não necessariamente são decorrentes de um divórcio ou de uma separação conjugal. Também podem ser compostas por mulheres solteiras, viúvas ou ainda por mulheres que coabitam com os(as) filhos(as), parentes e outros agregados. Além disso, podem ser provenientes de uma gravidez precoce ou não planejada, instabilidade familiar e/ou abandono; e não, necessariamente, pela adoção deste modelo de relações familiares. Para Angotti (2018), ao tratar sobre a situação das mulheres, que no período da industrialização brasileira, buscavam ocupar postos de trabalho, abandonando o âmbito doméstico, afirma que tal atitude abria margem para os julgamentos da sociedade que permanecia glorificando um padrão de família e defendendo a permanência da mulher no lar. Sair do ambiente doméstico poderia significar falar de tabus relacionados ao adultério, à virgindade, à prostituição e ao casamento, e questionar instituições sólidas como a família. Assim, o fato de as mulheres passarem a ocupar o cenário urbano, seja para o trabalho, seja para o lazer, não significa que as exigências sociais sobre elas afrouxaram e que os “olhares” da sociedade citadina seriam mais brandos que os do patriarca (ANGOTTI, 2018, p. 72). Dessa forma, para Angotti (2018) os antigos modelos sociais permaneciam intactos e continuavam exigindo da mulher um “dever ser” condizente com o padrão de mulher esperado, ou seja, a mulher deveria permanecer sob a clausura doméstica. Dessa forma, os desvios do comportamento esperado para as mulheres eram censurados, atestando assim, o forte controle, não somente por parte do marido/homem, mas também pelo Estado. Nas prisões, mesmo que institucionalmente se defenda um tratamento particular para as mulheres, estas vivenciam realidades muito parecidas com a dos homens no que diz respeito à precariedade da assistência médica, social e judiciária. Somam-se a essas violações a invisibilidade da condição feminina nos presídios, visto que “nas prisões de mulheres, a quase totalidade da violação de direitos está relacionada ao não atendimento das especificidades do sexo feminino” (SILVA, 2015, p. 182). Quando direcionamos nosso olhar especificamente para a situação da mulher encarcerada, estudos apontam que a privação de liberdade não atinge apenas as mulheres, mas também, toda a família principalmente os filhos destas, “a maternidade 3215
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ganha expressivo destaque, tanto no que diz respeito à gestação e parto atrás das grades, quanto à situação dos filhos das mulheres presas” (SILVA, 2015, p. 182). De acordo com Silva (2015) é difundido o pensamento de que a mulher, ao delinquir, não está mais apta a exercer a maternidade, pois não conseguirá passar bons exemplos aos filhos. No entanto, mesmo privada da liberdade, ronda sobre ela o espectro do comportamento socialmente definido pela sociedade patriarcal, mesmo que muitas dessas mulheres, antes mesmo de ingressar ao sistema penitenciário, já vivenciam o modelo de família monoparental, sendo elas, praticamente, as únicas responsáveis pelos(as) filhos(as). Alinhado a essa situação, “há a incisiva e constante culpabilização da mulher, juntamente com a desresponsabilização do homem enquanto pai e partícipe da manutenção e educação das crianças” (SILVA, 2015, p. 183). A reclusão masculina é acompanhada da certeza de um responsável pelos cuidados dos filhos – que na, grande maioria, este cargo é ocupado pela mãe das crianças [...]. Já o encarceramento feminino é caracterizado pela imprecisão quanto ao destino dos filhos, uma vez que o pai não se responsabiliza pelo cuidado dos mesmos, ou não tem como fazê-lo por também estar em situação de aprisionamento, com isso, juntamente com a reclusão da mulher, inicia-se um processo de inquietude e preocupação quanto ao estabelecimento de redes de proteção social ou de solidariedade para abrigar estas crianças enquanto perdurar a reclusão materna (SILVA, 2015, p. 184). A entrada das mulheres no cárcere não atinge somente elas, mas também as famílias, em especial o cotidiano dos(as) filhos(as) destas. É importante afirmar que, ao atingir as famílias, atinge também, na maioria das vezes, outras mulheres que, na falta da mãe privada de liberdade, acabam responsabilizando-se pelos filhos(as) daquelas, sendo que geralmente essa função é assumida pelas mães das presas e também por irmãs e amigas. Quanto à prole, o cotidiano do cárcere materno, além de prejudicar o desenvolvimento das crianças/adolescentes, também contribui para a manutenção das desigualdades estruturais que assolam a realidade das classes subalternas. 4 CONCLUSÃO O sistema prisional brasileiro por muito tempo manteve práticas de penas e punições bastante desumanas, marcadas principalmente pela necessidade de aplicação da pena sobre o corpo através de algum tipo de sofrimento. O sistema prisional que conhecemos hoje permanece mantendo diversos ranços estruturalmente apensos à 3216
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI realidade do cárcere, mesmo que atualmente se defenda outra postura do sistema prisional, policial e judiciário frente aos direitos garantidos aos indivíduos, principalmente àqueles que estão sob privação de liberdade. Monteiro; Cardoso (2013, p. 101) afirmam que o sistema prisional brasileiro que se tornou um “aspirador social”, no qual o aumento de sua população deve-se mais a uma política de repressão e de criminalização à pobreza, do que a uma política capaz de diminuir as ocorrências criminais. No que se refere especificamente à condição das mulheres nos presídios pode- se afirmar que estas, além de enfrentarem as desigualdades econômicas postas às classes subalternas, também enfrentam as questões desiguais relacionadas ao gênero e às questões de raça/etnia. Do ponto de vista do gênero, as mulheres são vítimas do modelo construído e imposto a elas por uma sociedade machista e patriarcal, tendo que responder moralmente pela condição em que se encontram. Vale lembrar que somente na segunda metade do século XX o Estado entendeu a necessidade de construir espaços específicos para que as mulheres cumprissem suas penas, ou seja, por muito tempo o encarceramento feminino permaneceu invisibilizado pelo Estado, restando às mulheres permanecerem aprisionadas junto com homens e sendo vítimas de diversas violências nos presídios. No entanto, mesmo em presídios específicos, as expressões da questão social, próprias do modelo de sociedade em que vivemos, agudizam-se cada vez mais, sendo ainda atingidas duramente por ideologias, que são dominantes e opressoras, materializadas nas relações raciais e de gênero. Posterior a isso, as mulheres encarceradas também estão envoltas em outras problemáticas relacionadas, principalmente, ao fato de serem mães e, uma vez que a monoparentalidade tem sido frequente nos vínculos familiares a que estão ligadas, o encarceramento feminino se apresenta como o retrato da desproteção de crianças e adolescentes, bem como do abandono que muitas mulheres vivenciam antes, durante e depois do cárcere. Apesar das garantias legais formalmente asseguradas, a realidade brasileira contemporânea tem sido marcada pela violação aos direitos das mulheres, sobretudo pobres, negras e moradoras da periferia dos centros urbanos. De modo que é preciso discutir os processos de desencarceramento, de forma a ampliar a ação do Estado por meio das políticas públicas, no sentido de estar favorecendo o enfrentamento das 3217
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI expressões da questão social que afetam as mulheres, historicamente invisibilizadas em suas subjetividades, identidades e demandas. REFERÊNCIAS ADORNO, Sérgio. Sistema penitenciário no Brasil: problemas e desafios. Revista USP, São Paulo, n. 9, Mar./Mai., 1991. ANGOTTI, Bruna. Entre as leis da Ciência, do Estado e de Deus: o surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2 ed. San Miguel de Tucumán: Universidad Nacional de Tucumán. Instituto de Investigaciones Históricas Leoni Pinto, 2018. ANGOTTI, Bruna; SALLA, Fernando. Apontamentos para uma história dos presídios de mulheres no Brasil. Revista de História de las Prisiones, San Miguel de Tucumán, n. 6, Jan./Jun., 2018. BORGES, Juliana. O que é encarceramento em massa?. Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2018. BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Consultor: Marcos Vinícius Moura Silva. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Atualização - Junho de 2017, Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2017a. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Marcos Vinícius Moura Silva (Org.). Relatório temático sobre mulheres privadas de liberdade – junho de 2017. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen. Acesso em 18 de junho de 2020. CÚNICO, Sabrina Daiana; ARPINI, Dorian Mônica. Família e monoparentalidade feminina sob a ótica de mulheres chefes de família. Aletheia, v. 43, n. 44, Jan./Ago., 2014. MACHADO, Gustavo Gomes. Crime e castigo: escorço histórico da prisão no Brasil. In: RESENDE, Antônio Jose C. de. Poder legislativo e cidadania. Belo Horizonte: Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Escola do Legislativo, Núcleo de Estudos e Pesquisas, 2015. MONTEIRO, Felipe Mattos; CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária. um debate oportuno. Civitas, Porto Alegre, v. 13, n. 1, Jan./Abr., 2013. SANTOS, Josiane Soares. O enfrentamento conservador da “questão social” e desafios para o Serviço Social no Brasil. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 136, p. 484-496, set./dez. 2019. 3218
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI SILVA, Amanda Daniele. Mãe/mulher atrás das grades: a realidade imposta pelo cárcere à família monoparental feminina. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. SOARES, Luiz Eduardo; GUINDANI, Miriam. A violência do Estado e da Sociedade no Brasil contemporâneo. Nueva Sociedad, Buenos Aires, Argentina, n. 208, Mar./Abr., 2007. 3219
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER EM TEMPOS DE PANDEMIA THE CONFRONT DOMESTIC VIOLENCE AGAINST WOMEN IN TIMES OF PANDEMIC Adrieli de Sousa Lima1 Izabel Herika Gomes Matias Cronemberger 2 RESUMO O presente trabalho se propõe a analisar a violência cometida contra as mulheres no espaço intrafamiliar em tempos de pandemia. O estudo, trata-se de uma revisão bibliográfica de literatura, é realizado através de um olhar sobre a cultura machista e patriarcal brasileira que demonstra uma postura de legitimação e banalização de tais violências. Ademais o texto também demonstra os fatores que contribuíram para esse aumento, os principais desafios e quais as medidas estão sendo utilizadas para o enfrentamento, prevenção e o combate desses casos. Palavras-Chaves: Violência Contra Mulher. Covid-19. Pandemia. ABSTRACT This paper aims to analyze the violence committed against women in the intra-family space in times of pandemic. The study is bibliografy review carried out through a look at the sexyst and patriarchal Brazilian culture that demonstrates a position of legitimization and trivialization of such violence. In addition, the text also shows the factors that contributed to this increase, the main challenges and what measures are being used to face, prevent and combat these cases. Keywords: Violence Against Women. Covid-19. Pandemic. 1 Assistente Social. Residente Multiprofissional em Saúde da família e comunidade. E-mail: <[email protected]>. 2 Assistente Social. Especialista em Administração de Recursos Humanos; Mestre e Doutora em Políticas Públicas (UFPI). Docente do Centro Universitário Santo Agostinho (UNIFSA). Preceptora da categoria de Serviço Social do PRMSFC E-mail: <[email protected]>. 3220
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO O novo coronavírus tem efeitos que extrapolam as questões de saúde, resultando, também, em impactos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos. A pandemia é responsável pela elevação das expressões da questão social em território nacional e internacional. Isso ocorre por uma série de motivos, entre eles, estão: a sensação de incerteza frente a esse novo cenário, o isolamento social e a suspensão de serviços públicos e privados a fim de reduzir o risco de contaminação. Com isso houve uma elevação das taxas de desemprego, e consequentemente, com o tempo bem maior de confinamento das famílias, de acordo com Dutra (2020), em alguns casos, amplia a tensão intrafamiliar elevando assim os casos de violência doméstica contra crianças, adolescentes, mulheres, idosos e outras minorias. A violência doméstica, segundo a Comissão de defesa dos direitos da Mulher (2018), é todo tipo de agressão praticada entre os membros que habitam um ambiente familiar em comum. Pode acontecer entre pessoas com laços consanguíneos, ou unidas de forma civil, como o casamento. Entre essas violações intrafamiliares, as cometidas dentro do lar contra mulheres em tempos de pandemia foi uma das que mais aumentou, em algumas cidades até dobrou o número de casos em relação ao mesmo período no ano anterior. Diante deste contexto, torna-se fundamental analisar esse aumento dos casos de violência doméstica no ano de 2020. Sendo o presente estudo relevante, pois por meio os fatores que contribuem para esse aumento, as novas medidas de enfrentamento e os desafios referentes à temática, implicando em novas possibilidades de atuação profissional na prevenção e no combate a esse tipo de violência. 2 GÊNERO, PODER E VIOLÊNCIA As mulheres ocuparam, tradicionalmente, um lugar secundário em nossa sociedade, pois de acordo, com os papeis sociais pré-definidos historicamente e culturalmente, aos homens era destinado o trabalho com a finalidade de garantir a subsistência familiar; conquanto as mulheres seriam responsáveis pelos cuidados dos filhos e a manutenção da casa. 3221
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Dessa educação diferenciada resultam as situações de violência contra mulher, principalmente, segundo Saffioti (1987) da relação hierárquica estabelecida entre os sexos, sacramentada ao longo da história pela diferença de papéis instituídos socialmente a homens e mulheres, fruto da educação diferenciada. Para uma melhor compreensão do aumento da violência contra mulher no cenário atual é imprescindível, mesmo que brevemente, realizar uma análise das relações de gênero e o patriarcado. Como afirma Paterman (1993), o patriarcado ou a dominação masculina é fraternal e atravessa toda a sociedade concentrando-se também nas esferas de poder. Inicialmente, as desigualdades de gênero eram naturalizadas pelos fatores biológicos, sendo estes os responsáveis pelas diferenças existentes na sociedade entre homens e mulheres. Dessa forma, a partir dos primeiros movimentos feministas surge o termo gênero que tinha por objetivos demonstrar que as diferenças entre homens e mulheres extrapolam o biológico e envolvem todo um processo social e cultural no qual as pessoas estão inseridas, ou seja, é fruto também de construções sociais. Rompendo, assim, com conceitos enraizados e naturalizados pela sociedade. Portanto, segundo Saffioti (1987), uma vez que se observa que meninos e meninas têm uma criação e educação diferente que coloca essa figura feminina em uma situação de desvantagem, uma vez que é ensinada para ser submissa, do lar, prendada, em face da relação de poder imposta a ela, cabendo ao homem ser o detentor de tal poder. O homem incorporar esse papel de superioridade ao ver essa mulher como um de suas propriedades, isso resulta em diferentes formas de violência contra a mulher, podendo ocorrer em espaços públicos, privados, intra ou extra familiares. Dessa forma, percebe-se que o gênero é intrínseco ao processo de construção e formação das pessoas, através de símbolos, interpretações sociais, da identidade subjetiva, entre outros, participando da legitimação da violência contra mulher por meio de fatores culturais. 3222
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3 A PANDEMIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA No final do ano de 2019 foi detectado um vírus na cidade de Wuhan, na china. Esse vírus faz parte da família dos coronavírus e provoca uma doença denominada COVID -19. Uma pessoa acometida por essa doença pode sentir desde sintomas leves, como: febre, tosse, dores no corpo. Mas, também pode evoluir para sintomas mais graves como falta de ar e levar a óbito. Os pesquisadores descobriram que a forma de contágio da doença ocorre de uma pessoa para outra por meio do contato com gotículas respiratórias, por isso há uma fácil capacidade de contágio, provocando o adoecimento em massa e consequentemente a superlotação dos sistemas de saúde. Para evitar a propagação da doença várias medidas foram tomadas, como: uso de máscaras, campanhas de lavagens de mãos e higienização de ambientes e alimentos, distanciamento social, isolamento social, quarentena e em alguns casos mais sérios a adoção do lockdown. Concorda-se que essas medidas são necessárias para os tempos de pandemia, porém, enquanto para alguns fica em casa é uma medida de segurança contra a doença para outros é sinônimo de medo. Visto que, passar mais tempo em casa resulta em uma aproximação dessas pessoas com os seus algozes, elevando os casos de violência doméstica intrafamiliar. A violência doméstica, segundo a Comissão de defesa dos direitos da Mulher (2018), é todo tipo de agressão praticada entre os membros que habitam um ambiente familiar em comum. Pode acontecer entre pessoas com laços de consanguíneos, ou unidas de forma civil, como o casamento. Dentre essas violações intrafamiliares, as cometidas dentro do lar contra mulheres em tempos de pandemia foram as que mais aumentaram, motivando a realização desse estudo. Segundo a Lei Maria da Penha é definida como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Brasil nº 11.340, 2006). Essa agressão, em alguns casos, pode evoluir para o femínicidio que é o assassinato de uma mulher, exclusivamente, por questões de gênero, ou seja, é a morte 3223
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de uma mulher simplesmente por ser mulher. O Brasil, segundo o portal de notícias UOL (2020), ocupa o 5º lugar no ranking nos casos de feminicídios. Portanto, percebe-se que apesar das medidas adotadas serem extremamente relevante elas colocam as mulheres em uma situação maior de risco prova disso é que, de acordo com a Comissão de defesa dos direitos da Mulher (2018), a maioria dos casos de violência doméstica cometidas contra a mulher ocorre na casa da vítima, além disso, no âmbito familiar 58% dos casos de agressão são dos companheiros e ex-companheiros e os outros 42% são violência dos pais, avôs, tios e padrastos. Importante ressalta nesse estudo quais foram os fatores que contribuíram para os aumentos dessa violência, pois a partir da compreensão do que gera o aumento dessa violência é possível a criação de mecanismos que coíbam ou atenuem esses casos de violação dos direitos. De acordo com Vieira e Et al (2020), um dos fatores é a suspensão dos serviços que acabaram por gerar um desemprego em massa, essa perda de recursos fere a figura do macho provedor, servindo de gatilho para comportamentos violentos. Além disso, Vieira e Et Al (2020), revela que o controle das finanças também torna-se mais acirrado, devido a presença mais próxima do homem em um ambiente que é mais comumente dominado pela mulher. A convivência forçada desses membros também acentua a sobrecarga do trabalho não remunerado dessa mulher no cuidado da casa. Vale destaca que essa sobrecarga sempre existiu, porém antes da pandemia a mulher poderia contar com mecanismo de apoio, como: as escolas, creches e a família extensa. Segundo Vieira (2020), infelizmente, a presença dos homens dentro do ambiente familiar não um aumento da cooperação ou distribuição harmônica das tarefas entre a família, mas sim o aumento do trabalho invisível e não remunerado das mulheres. As mulheres continuam sendo as mais afetadas pelo trabalho não- remunerado, principalmente em tempos de crise. Devido à saturação dos sistemas de saúde e ao fechamento das escolas, as tarefas de cuidado recaem principalmente sobre as mulheres, que, em geral, têm a responsabilidade de cuidar de familiares doentes, pessoas idosas e crianças (ONU MULHERES, 2020, p. 1). Por estarem nessa coexistência forçada em um espaço domiciliar, essas mulheres são frequentemente vigiadas pelos seus parceiros, isso acabando impedindo 3224
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sua comunicação com os familiares, colegas de trabalho e amigos, isso resulta aumenta a segurança do agressor em cometer os crimes, dando margem para as agressões e manipulações psicológicas. Muitas vezes o clima de tensão dentro da casa acaba se agravando e culminando em um dos tipos de violência citados anteriormente. Antes da pandemia as mulheres tinham dificuldade de denunciar os seus agressores, por medo de perder o sustento familiar e as possíveis retaliações que poderia sofrer desse agressor no futuro. Nesse momento, a situação se agrava, pois além do medo de denunciar que já existia, surgem outros empecilhos. O primeiro dele está na dificuldade de encontrar um local seguro para realizar essa denúncia, pois como citamos anteriormente, por está presa no mesmo espaço que o agressor fica difícil acionar os mecanismos de proteção, como o disque 180. Além da impossibilidade de acessar aos serviços por ligação, os serviços presenciais tiveram suas dinâmicas de funcionamento afetadas por conta da pandemia. Por isso, são necessárias novas estratégias para o atual cenário. 4 AS NOVAS ESTRATÉGIAS DE COMBATE As mulheres vítimas da violência enfrentam obstáculos para fugir das situações violentas ou acessar os mecanismos de proteção e/ou serviços essenciais devido a fatores como restrições ao movimento em quarentena. Por isso, reconhecendo a necessidade de adequação dos serviços foram traçadas algumas estratégias para atenuar essa problemática. Uma das estratégias encontradas pelo governo brasileiro, conforme o Portal de Notícias do Governo Federal (2020),foi a ampliação do Disque 100 e do Ligue 180, e as criações do aplicativo para smartphones “Direitos Humanos Brasil” e do portal exclusivo para denúncias envolvendo violência doméstica. Dessa forma, realizando a denúncia de modo mais ágil. Além disso, existe o projeto de lei n. 1368 de 2020, que traz uma série de medidas de enfrentamento, entre elas estão a obrigatoriedade das vítimas de abuso sexual serem atendidas presencialmente, e o texto ainda prevê que as medidas protetivas determinadas pela Justiça, como de afastamento do agressor, sejam prorrogadas enquanto durar a emergência de saúde pública (Agência Câmara de Notícias, 2020). 3225
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Além disso, em alguns países estão sendo criados códigos para que as vítimas que não podem sair de casa consigam avisar a população que está sendo vítima de violência, no caso da argentina o código é adotado ao ligar para a farmácia a vítima pede uma mascará de cor vermelha informando sobre a situação de violência. No Brasil, também circula pelas redes sociais um código feito com a mão que significa também esta mulher passando por essa situação. Além dessas medidas, Vieira Et Al. (2020) destaca a importância da expansão e o fortalecimento das redes de apoio, incluindo o funcionamento e ampliação do número de vagas nos abrigos para mulheres sobreviventes. O autor também destaca que as redes informais e virtuais de suporte social devem ser encorajadas, pois são meios auxiliam as mulheres a se sentirem conectadas e apoiadas desconstruindo a sensação de que estão completamente isoladas. Portanto, é fundamental nesse momento de crise garantir a continuidade dos serviços essenciais para proteção de mulheres e meninas vítimas de violência, prezando também pelo desenvolvimento de novas modalidades de prestação de serviços no atual contexto. 5 CONSIDERAÇÕES A pandemia, conforme já foi dito, causa o acirramento das expressões da questão social, por isso, nesse momento de calamidade pública e aumento das tensões sociais, torna-se imprescindível sua atuação para defesa intransigente dos direitos. Conclui-se que as medidas adotadas para o combate a doença, em especial a quarentena é, apesar de extremamente necessário, o maior responsável pelo aumento dos casos de violência, isso ocorre, pois o maior tempo de convivência gera maiores tensões o que traz à tona fatores e comportamentos machistas de dominação e poder dos homens para com suas parceiras e, ao mesmo tempo, causou também uma maior dificuldade no acesso aos serviços de apoio às vítimas, o que faz com que a situação de violência perdure. Para obtenção de resultados eficazes no que diz respeito ao combate à violência contra a mulher em contexto de pandemia, observou-se a necessidade do trabalho multidisciplinar, envolvendo todos os serviços que atendem situações de violência: 3226
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