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EIXO 7 - Direitos Humanos, Violência e Políticas Públicas

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2021-01-22 22:38:03

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ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI que concorre com a desqualificação profissional, perdendo-se a dinâmica coletiva, a coletivização das demandas individuais. Porém, sem perder de vista a lógica que organiza o espaço sócio-ocupacional do Tribunal de Justiça, tampouco sua interface com a área do Direito e as determinações mais amplas que incidem sobre o trabalho profissional, novamente cabe perguntar: a serviço do que nos colocamos nesse espaço sócio-ocupacional? Qual o nosso direcionamento e intencionalidade? Não podemos fugir das requisições, mas podemos ampliá-las, não só respondê- las de forma automática e mecânica. É importante, pois, pensar outras lentes para que o profissional possa recompor a totalidade da questão social, sem cair no engodo da segmentação. Daí, a importância também da teoria crítica, e de não perder de vista a dimensão de totalidade, negação e historicidade. Pois, como nos diz Guerra: Independente de qualquer manifestação retórica, ao não superar a intervenção tópica, focalista, pontual e emergencial, apelando para o “sentimento do direito” em detrimento de fornecer instrumentos necessários à aquisição da consciência do direito, o que só será possível se este tiver efetividade real e concreta na vida dos sujeitos, toda intervenção profissional permanecerá, tenhamos consciência ou não, na perspectiva de controle, posto que o discurso acaba sendo o limite, e, como tal, limitador da efetividade do direito (GUERRA, 2013, p.51). Assim, há que se superar, “os postulados legalistas formais, ou seja, formas sem conteúdo que produzem uma suposta justiça formal em contraponto à justiça substantiva” (Guerra, 2013, p.51). Cuja influência idealista pauta-se na ideia de famílias capazes, protetivas, mas com uma funcionalidade no atual padrão de reprodução social. Há que sair do automático, refletir e fortalecer a dimensão analítica e teórica das histórias e vidas por nós acessadas para que nos registros profissionais não desapareceram as pessoas, suas relações e as histórias por trás das identidades atribuídas. Pois como nos lembra Martinelli (2019, p. 29), “[...] se queremos conhecer modos de vida, temos que conhecer as pessoas”. REFERÊNCIAS AGUINSKY, B.G.; ALENCASTRO, E.H. de. Judicialização da questão social: rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder Judiciário. In: Revista Katálysis. Florianópolis/SC, v.9, n.1, jan./jun. de 2006, p.19-26. 3377

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BARROCO, M.L.S. A dimensão ético-política do ensino e da pesquisa em Serviço Social. In: Temporalis. N.19, ABEPSS, 2010. _________. A historicidade dos Direitos Humanos. In: FORTI, V; GUERRA, Y. (orgs). Ética e Direitos: ensaios críticos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. [Coletânea Nova de Serviço Social]. BERNARDI, D.C.F. A Construção de um saber psicológico na esfera do Judiciário Paulista: um lugar falante. In: FÁVERO, E.T.; MELÃO, M.J.R.; JORGE, M.R.T. (orgs). O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário: construindo saberes, conquistando direitos. 4ªed. São Paulo, Cortez, 2011. BORGIANNI, E. Para entender o Serviço Social na área sociojurídica. In: Revisita Serviço Social e Sociedade, nº115, p.407-442, jul./set de 2013. CARDOSO. G.F. de L. (Re) Produção de famílias “incapazes”: Paradoxos à convivência familiar de crianças e adolescentes institucionalizados. Dissertação (Mestrado em Serviço Social). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, 2017. FÁVERO. E.T. Questão Social e Perda do Poder Familiar. São Paulo: Veras Editora, 2007. (Série Temas nº5). _________. Barbárie Social e Exercício Profissional: apontamentos com base na realidade de mães e pais destituídos do poder familiar. In: FÁVERO, E; GOIS, D.A. de. (org.). Serviço Social e Temas Sociojurídicos: Debates e Experiências. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris. 2014. [Coletânea Nova de Serviço Social]. _______. Mãe (E Pais) em situação de abandono: Quando a pobreza é fator condicionante do rompimento dos vínculos do Pátrio Poder. Tese (Doutorado em Serviço Social). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP, 2001. _________. O Serviço Social no Judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista. Serviço Social e Sociedade, nº115, São Paulo, jul/set de 2013. FONSECA, C. Caminhos da Adoção. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2002. GUERRA, Y. Transformações societárias, Serviço Social e cultura profissional: mediações sócio-históricas e ético-políticas. In: MOTA, A.E.; AMARAL, A. (org.). Cenário, Contradições e Pelejas no Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016. p. 83-110. ________. Direitos Sociais e Sociedade de Classes: o Discurso do Direito a Ter Direitos. In: FORTI, V; GUERRA, Y (orgs.). Ética e Direitos: ensaios críticos. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 3378

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI IAMAMOTO, M.V. Questão social, família e juventude: desafios do trabalho do assistente social na área sociojurídica. In: SALES, M. A.; MATOS, M. C.; LEAL, M. C. (Org.). Política social, família e juventude: uma questão de direitos. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 261-298. IAMAMOTO, M. CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 37ª ed. São Paulo: Cortez, 2012. MARTINELLI, M. L. Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Identidade. São Paulo: PUC-SP, 2015. (Mestrado em Serviço Social, PEPGSS, Anotações de aula). ___________. História Oral: exercício democrático da palavra. In: MARTINELLI, M. L. (et.al.). A História Oral na pesquisa em Serviço Social: da palavra ao texto. São Paulo, Cortez, 2019. NETTO, J. P. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. RIZZINI, I. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. 3379

EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS SELETIVIDADE PUNITIVA RACIALIZADA EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO AUTORITÁRIO: reflexos no sistema de justiça juvenil Kelly Murat Duarte1 RESUMO Este artigo tem por objetivo refletir sobre o processo de seletividade que vem sendo imposto pelo Sistema de Justiça Juvenil brasileiro à infância e juventude empobrecida. Para dialogar com este debate, foram apresentados os últimos relatórios do SINASE, MDS e CNJ que divulgam quem são os jovens que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto e fechado e as condições sociais em que vivem, denunciando um padrão neste perfil. Apesar do avanço da legislação de proteção integral de crianças e adolescentes, percebe-se uma atuação do Estado pautada pela criminalização dos mais pobres, revelando uma atuação com viés punitiva e racista, acirrada em tempos de neoliberalismo autoritário. Palavras-Chaves: Sistema de Justiça Juvenil. Seletividade. Punição. ABSTRACT This article aims to reflect on the selectivity process that has been imposed by the Brazilian Youth Justice System on impoverished childhood and youth. In order to dialogue with this debate, the latest reports from SINASE, MDS and CNJ were presented, which divulge who are the young people who fulfill socio-educational measures in an open and closed environment and the social conditions in which they live, denouncing a pattern in this profile. Despite the advancement of the legislation for the comprehensive protection of children and adolescents, there is a state action guided by the criminalization of the poorest, revealing an action with a punitive and racist bias, fierce in times of authoritarian neoliberalism. Keywords: Juvenile Justice System. Selectivity. Punishment. 1 Assistente Social do Centro de Apoio Operacional as Promotorias da Infância e Juventude - MPRJ. Mestra em Política Social (UFF) e Doutoranda em Serviço Social (PUC Rio). 3380

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo refletir sobre o processo de seletividade punitiva imposta a um determinado segmento de crianças e adolescentes pelo Sistema de Justiça Juvenil brasileiro. Composto pela política de Segurança Pública, Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário e Órgãos executivos das medidas socioeducativas2, o Sistema de Justiça Juvenil deve ter por objetivo garantir a proteção e a promoção dos direitos de crianças e adolescentes, tendo elas infracionado ou não. Entretanto, o que vem sendo observado é que, a depender do perfil deste jovem, o tratamento parece caminhar na contramão de todos os avanços da legislação nacional e dos Tratados Internacionais pactuados até o presente momento. Os dados nacionais denunciam o alto percentual de crianças e adolescentes pobres, negras, pardas e moradoras de favelas, violentadas e violadas em seus direitos cotidianamente. Uma realidade que demonstra a manutenção de uma cultura menorista, aprofundada em uma conjuntura de acirramento da política neoliberal, de corte no orçamento das políticas de proteção social e no aumento no investimento das políticas repressivas. Políticas estas que atuam em determinados territórios, incrementando os índices de encarceramento e de homicídios, sob o discurso de garantia da lei e da ordem para a “população de bem”. Dito isto, o problema a ser enfrentado por esta pesquisa é: Como vem se materializando a atuação do Sistema de Justiça Juvenil brasileiro? A partir dos dados sistematizados e analisados, o presente estudo pretende investigar a hipótese de que muitos profissionais do Sistema de Justiça Juvenil vêm mantendo uma atuação compatível com uma lógica seletiva, punitiva e racista em detrimento de uma perspectiva proteção integral, conforme previsto pela legislação vigente. A metodologia utilizada parte de análise documental dos relatórios: Levantamento do Sistema Nacional Socioeducativo/ SINASE (BRASIL, 2018); Pesquisa de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (MDS, 2018) e do Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação (CNJ, 2012). 2 Para além dos tratados neste artigo, fazem parte do Sistema de Justiça Juvenil: Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares e os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (SOUZA, 2018, p. 29- 30). 3381

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A partir da coleta de dados, o artigo foi organizado de forma a apresentar quem são os jovens que infracionam, suas infrações, as medidas socioeducativas que cumprem e em que condições sociais vivem. As informações encontradas serão confrontadas com o referencial teórico que trata do controle social punitivo, pautado na seletividade, racismo e criminalização da pobreza, acirrado em tempos de neoliberalismo autoritário. 2 CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E SELETIVIDADE PUNITIVA RACIALIZADA EM TEMPOS DE POLÍTICA NEOLIBERAL E ESTADO PENAL A ideologia neoliberal pressupõe como premissa, a redução da intervenção do Estado na economia, com cortes de gastos no orçamento das políticas de proteção social como forma de reduzir custos para o Estado. Para Harvey, o Estado neoliberal atua na proteção do capital financeiro em detrimento dos direitos sociais e “favorecem a integridade do sistema financeiro e a solvência das instituições financeiras e não o bem estar da população ou a qualidade ambiental” (HARVEY, 2014, p. 81). Com o desenvolvimento deste ideário produz-se uma nova demanda pela garantia da lei e da ordem, além do controle do tempo livre dos trabalhadores (as) e juventude, principalmente pobre. Para dar conta de tal questão, a depender do território, o Estado se impõe através do monopólio do uso da força, no qual “estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais [são] requeridas para garantir os direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados” (HARVEY, 2014, p. 12). Ou seja, a objetivo se pauta no controle da população considerada supérflua para o mercado, a fim de que nada atrapalhe o ciclo de acumulação do capital. Estudos de Wacquant (2002) demonstram que desde a crise do petróleo de 1973 e da retração do Welfare State, os Estados Unidos iniciaram a formação de um Estado penal. A partir de ações de tolerância zero, trabalhadores expulsos do mercado de trabalho e residentes de espaços de maior vulnerabilidade social do país começaram a ser vigiados e controlados com maior rigidez, sempre sob o discurso da proteção e da garantia da moralidade. Sobre a real motivação para esse encarceramento em massa da população norte-americana, Wacquant (2002, p. 68) destaca que o controle da 3382

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI criminalidade e o encarceramento tinham por objetivo “governar a ralé” que incomodava à época, no qual os presos devem “expiar seu erro através do sofrimento” (WACQUANT, 2002, p. 93). Neste contexto, Souza apresenta “cinco tendências da emergência do Estado Penal” (SOUZA, 2018, p. 125): aumento no encarceramento; ampliação do controle penal; investimento no orçamento para o sistema penal; privatização do sistema penitenciário e a imposição de uma seletividade punitiva racializada. Uma seletividade que vem escurecendo a população prisional, como substituição do gueto que “põe na gaiola um grupo desprovido de honra e amputa gravemente as chances de vida de seus membros a fim de assegurar ao grupo dominante monopolização dos bens e das oportunidades materiais e espirituais”, a fim de “conter sob coação uma população legalmente estigmatizada” (SOUZA, 2018, p. 132). O cárcere passa a substituir o gueto como estratégia de contenção das classes populares, ditas perigosas, consumidores falhos aos olhos da sociedade de consumo. Este panorama contribui para pontuar que a emergência do Estado Penal não constitui um acontecimento apenas nos EUA. Igualmente permite a reflexão para vislumbrar os desdobramentos da penalidade neoliberal nos países periféricos, ofertando elementos de análise imprescindíveis para pensar o caso brasileiro (SOUZA, 2018, p. 133). O Brasil, sem nem ter conseguido implementar um Estado de Bem-Estar Social, inicia uma política neoliberal imposta pelo capital internacional, pactuada no Consenso de Washington. No início da década de 1990, passa a importar dos EUA o modelo de “tolerância zero”, vendida pela grande mídia, a partir da ideia de que a cidade de Nova York, de “paraíso do crime” transformou-se em “modelo de cidade segura” (SOUZA, 2018, p. 133). O sociólogo francês Christian Laval3 chama atenção para o desenvolvimento de um novo neoliberalismo autoritário que se expande em escala mundial que “explora o ódio e o medo de diferentes frações da população e os direciona contra os ‘bodes expiatórios’”. Ou seja, implementa um “neoliberalismo hiperautoritário, nacionalista e racista, que viola abertamente os princípios da democracia liberal” e que “anima uma lógica de guerra”. 3 Disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/brasil-debate/democratas-de-todo-o-mundo-estao- avisados-bolsonaro-e-um-fascista Acesso em: 26/10/2018. 3383

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Este “estado de guerra permanente”, nos termos de Netto (2012) é fomentado pelo aumento nos investimentos na política de Segurança Pública. Segundo o relatório Custos Econômicos da Criminalidade no Brasil: “Entre 1996 e 2015, houve um aumento nos gastos reais em segurança pública em todos os níveis de governo, de um agregado de 32 bilhões de reais a 90 bilhões de reais por ano” (BRASIL, 2018a, p. 21). Souza (2018) relata que vem sendo construída uma “criminologia da vida cotidiana”, em que a política de “tolerância zero” garante uma repressão generalizada para prevenir o crime e uma “criminologia do outro” - visto como perigoso, em que se pode matar em nome da segurança pública que intimida, pune, neutraliza e atua sem remorso. Batista (2003) demonstra como o medo pode ser construído no imaginário social e fortalecido através da manipulação midiática, reforçando a ideia de Alexander (2017, p. 156), de que “o inimigo é definido racialmente”. Nessa rejeição ao outro, não sensibilização e estranhamento, somado a sensação de insegurança e aumentada pela mídia promovem uma ideia do outro violento, no qual a morte ou a prisão se apresentam como estratégias de proteção para a população “de bem”. Atualmente, personificado na figura do traficante de drogas, a ideia do inimigo produz na população um clamor por “justiça”, muitas vezes travestido de vingança, no qual o “inimigo” não deve apenas ser encarcerado, mas deve pagar por seus atos através da imposição do sofrimento. Nestes casos: Em lugar da investigação criminal bem feita e aplicável a todos os casos, uma evidente adesão à profecia do pobre perigoso, do menino carente monstruoso, faz da atitude policial orientada por teorias criminológicas ultrapassadas um fator a mais na repetição da criminalidade (ZALUAR, 1994, p.63). Neste caso, as políticas de Assistência Social, de Segurança Pública e o Poder Judiciário ganham destaque, não por promover a igualdade de direitos, mas por pautar suas ações com bases racistas, higienistas e de criminalização da pobreza das chamadas “classes perigosas”. Segundo Netto (2012, 429): A articulação orgânica de repressão às ‘classes perigosas’ e a assistencialização minimalista das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da “questão social” constitui uma das faces contemporâneas mais evidentes da barbárie atual. 3384

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Como resultado, sofrem os mais jovens, pobres, negros, moradores de favelas que não conseguem desfrutar do Estado democrático de direito, pois não tem acesso a segurança, ao direito de ir e vir, têm suas aulas suspensas por conta da política de invasão e confronto e são mortos pelos grupos armados ou pela ação da polícia. Uma realidade que não contribui para seu desenvolvimento pleno, não garante uma educação de qualidade, os expulsam do mercado de trabalho e os criminalizam por sua cor de pele, condição social e território em que residem. 3 OS JOVENS ALVOS DO SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL O Sistema de Justiça Juvenil, através de suas respectivas instituições e atores são responsáveis por conduzir os casos de envolvimento com atos infracionais cometidos por adolescentes. Em caso de infração penal, o adolescente apreendido pela polícia é conduzido à Vara da Infância e Juventude para, em caso de comprovação da infração, receber uma medida socioeducativa que poderá ser cumprida em meio fechado ou aberto4. Os jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e suas infrações O último Levantamento Nacional do Sistema Socioeducativo (BRASIL, 2018)5, referente ao ano 2016, divulgou um total de 26.450 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas privativas de liberdade: 70% em medida de internação; 8% em regime de semiliberdade; 20% em internação provisória (de até 45 dias para a determinação da medida socioeducativa); 334 em atendimento inicial e 187 em internação sanção. Cabe ressaltar que, segundo o CNJ (2012), 27% dos adolescentes foram internados em instituições sem atividades externas, podendo chegar a 67% no Centro-Oeste6. 4 Lei nº. 8.069/ 1990 - ECA, Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. 5 “Os dados sistematizados se referem à situação do atendimento em 30 de novembro de 2016, conforme metodologia adotada pelo Levantamento Anual desde 2009” (BRASIL, 2018, p. 4). 6 Segundo o relatório, “percebe-se que a atividade externa, ao contrário do que pode supor o senso comum, é um fator que inibe a evasão”. Vale lembrar que: “A realização de atividades externas no decorrer da jornada pedagógica diária da instituição é uma forma que o estabelecimento socioeducativo tem de oferecer aos adolescentes o desenvolvimento e a interiorização do processo de reinserção social” (CNJ, 2012, p. 29). 3385

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Entre os atos infracionais cometidos, 47% foram classificados como roubo (acrescido de 1% de tentativa de roubo); 22% por tráfico de drogas e 10% por homicídio, acrescido de 3% de tentativa de homicídio. Dentre estes jovens, 96% são do sexo masculino; 57% possuem entre 16 e 17 anos e 59% de pretos e pardos (mais 16,5% sem informação, o que pode aumentar esse resultado). Nas medidas socioeducativas em meio aberto, a pesquisa realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social (MDS, 2018)7, divulgou um total de 117.207 adolescentes no ano de 2017. Do total apresentado, 95.158 cumpriam medida de Liberdade Assistida e 69.930 de Prestação de Serviço à Comunidade. Há de se destacar que há uma prática entre os magistrados de imputar estas medidas de meio aberto de forma acumulada, apesar desta possibilidade não estar contemplada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Como a soma das medidas de L.A. e PSC ultrapassa o total de adolescentes encontrados nesta pesquisa, pode-se chegar à conclusão que 47.881 adolescentes receberam medidas socioeducativas de meio aberto acumuladas. Dentre as infrações perpetradas: 20% cumpriam medida por tráfico de drogas; 15 % por roubo; 10% por furto e 1% por homicídio ou tentativa. Deste universo, 88% eram do sexo masculino e 46% possuíam entre 16 e 17 anos; além de 949 adolescentes assassinados durante o período de acompanhamento da medida e 19 cometeram suicídio. A condição social em que vivem os jovens considerados infratores Os últimos relatórios apresentados pelo SINASE e pelo MDS não trouxeram dados sobre a realidade social que estes jovens estão submetidos com suas famílias. Entretanto, informações mais recentes podem ser obtidas através de um estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano 2012, divulgados no relatório “Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação” (CNJ, 2012). A pesquisa encontrou esta realidade sobre a vida dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas no Brasil: 43% foram criados apenas pela mãe, 4% pelo pai sem a presença da mãe, 38% foram criados por ambos; 14% têm pelo 7 O questionário foi disponibilizado para todos os municípios do país e obteve resposta de 5.405 (97,03%). 3386

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI menos um filho; 75% faziam uso de drogas consideradas ilícitas, chegando a 80% no Centro-Oeste; A maconha foi a droga mais citada dentre os adolescentes, seguida da cocaína. Na Região Nordeste, o crack foi a segunda substância mais utilizada; 8% são analfabetos, atingindo 20% no Nordeste; 57% dos jovens declararam que não frequentavam a escola; 86% dos adolescentes interromperam os estudos no ensino fundamental; 14 anos foi a média de idade que os adolescentes interromperam seus estudos (26% não tenham respondido a essa pergunta); dos que estavam matriculados, 28% declararam não freqüentar a escola diariamente antes da infração. Na região Norte este índice atingiu o percentual de 59%. 4 O ATO INFRACIONAL E O SISTEMA DE JUSTIÇA JUVENIL: ENTRE A PUNIÇÃO E A PROTEÇÃO INTEGRAL Longe da escola e da possibilidade de inserção no mundo do trabalho não precarizado e subalterno, muitos ingressam no tráfico de drogas, como forma de acessar o mundo do consumo, tão estimulado por todas as mídias e valorizado na sociedade do ter em detrimento do ser. A esse colapso da economia oficial corresponde o crescimento vertiginoso da economia informal, especialmente do tráfico de drogas. O comércio de narcóticos é, em muitas áreas do gueto, o único setor em expansão e o principal empregador de jovens sem trabalho – o único tipo de negócio que estes reconhecem de perto e para o qual podem começar a trabalhar a partir dos seis ou oito anos de idade. Além disso, é também o único setor em que a discriminação racial não é uma barreira (WACQUANT, 2008, p.42). Cabe ressaltar que a inserção de crianças e adolescentes na rede de tráfico de drogas é considerada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e por Decretos brasileiros, como uma das piores formas de exploração do trabalho infantil. A Convenção 182 da OIT de 19998; o Decreto nº. 3.597 de 20009 e o Decreto nº. 6.481, de 200810 vêm sendo pouco considerados pelo Poder Judiciário, gestores públicos e acadêmicos (GALDEANO; ALMEIDA, 2018, p. 15-16). 8 Sobre a proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua eliminação, de 1 de junho de 1999, realizada em Genebra e ratificada pelo Brasil. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/cpnvencoes/WCMS_236696/lang--pt/index.htm Acesso em: 20/10/2018. 9 Promulga a Convenção 182 e a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e a Ação Imediata para sua eliminação. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2000/decreto-3597-12-setembro-2000-371954-norma-pe.html Acesso em 20/10/2018. 10 Regulamenta os Artigos 3º, alínea “d”, e 4º da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), apresentando a Lista das piores formas de exploração do trabalho infantil. Disponível em: 3387

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Devendo inclusive, estas crianças e adolescentes serem incluídos no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e nos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) da Proteção Social Especial, ofertados nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social/ CREAS do Sistema Único de Assistência Social/ SUAS. Um conjunto de normativas que poderia orientar os juízes a compreender a relação dos jovens com o tráfico de drogas para além da infração penal. Sobre esta relação entre o “mundo do crime” e o “mundo do consumo”, vale uma reflexão sobre uma “sociedade de mercado repudia aqueles que cometem o ato infracional, ao mesmo tempo que sobrevive, deseja, anseia e estimula a multiplicação do dinheiro que eles obtêm” (CRUZ NETO, 2001, p. 145). Ou seja, uma vez inserido no ciclo do capital, pouco importa sua procedência. O crime, neste contexto, passa a ser apresentado como mercadoria midiática rentável, oferecido ao público como espetáculo, com apelo emocional, influenciando nos comportamentos da população e na agenda pública. Mercantilizadas conforme a conveniência do mercado, tais notícias entram na agenda política, contribuindo para que candidatos apresentem suas propostas de acordo com audiência midiática e reforçando a clientela do sistema penal “mediante um processo de seleção e condicionamento criminalizante orientado por estereótipos desenhados pelos meios de comunicação” (GOMES, 2015, p. 135). A partir deste momento, pode-se perceber uma diferença no trato entre as duas juventudes: a oriunda das classes mais abastadas e das famílias empobrecidas. Sobre esta diferenciação, o Ministro Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça apresenta seu parecer: Dizer-se que a internação é medida benéfica, data vênia, carece de amparo jurídico. Não compete, logicamente, ao Poder Judiciário ficar internando, em forma de medida de recuperação, todos os jovens desassistidos ou carentes, apresentando a ‘solução atacada como ideal e necessária. A aceitação deste tipo de pensamento leva à tão criticada seleção daqueles que são excluídos da verdadeira e desejada assistência do Estado. Jovem pobre é internado. Adulto pobre é recolhido ao sistema prisional. Data vênia, a legislação não permite que assim se atue nem com pretexto ou finalidade de resolver problema social. A questão é saber, também, se os delinquentes jovens de classe privilegiadas, que por muito maiores razões não poderiam praticar http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/2008/decreto-6481-12-junho-2008576432-publicacaooriginal- 99613-pe.html Acesso em 20/10/2018. 3388

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI infrações, têm merecido o mesmo tratamento. Na verdade, são entregues aos pais. O ECA, certo ou não, compõe um sistema legal que deve ser aplicado e obedecido (FISCHER apud GARCIA; PEREIRA, 2014, p. 144). Carvalho (2014) reflete que estas discriminações raciais e sociais fazem parte de uma “negação da dignidade humana”, no qual se gesta a chamada subcidadania. Uma “gestão da miséria e da exclusão” que se materializam nos índices de encarceramento e genocídio da juventude brasileira, além da relação de desigualdade no trato entre os considerados “subintegrados e subcidadãos” e os “sobreintegrados ou subcidadãos” (CARVALHO, 2014, p. 217). Aos adolescentes bem nascidos, aplica-se o modelo de controle médico, de tratamento e recondução às imagens dominantes da boa ordem da sociedade. Aos jovens invisíveis e humilhados, destina-se toda a brutalidade do encarceramento ou insanidade genocida da eliminação física (CARVALHO, 2014, p. 228). Uma realidade que, muitas vezes, superdimensiona a infração cometida, mas naturaliza a violência sofrida durante as apreensões de adolescentes suspeitos de ato infracional11. Além do crescente nos números de homicídios contra a juventude decorrente de intervenção policial, principalmente negra, independentemente se há envolvimento com algum ato infracional ou não, que no caso do Estado do Rio de Janeiro, mata uma em cada quatro crianças e adolescentes12. Não cabe aqui naturalizar a infração perpetrada por esses jovens, tão pouco romantizá-las, mas compreendê-las dentro de um contexto de totalidade que considera as condições sociais, econômicas e políticas aos quais estes jovens são submetidos cotidianamente, desde tenra idade. Expressões da questão social materializadas na dinâmica familiar, que diante da pobreza e do desemprego, perpetuam o trabalho infantil – lícito ou ilícito, mantendo crianças e adolescentes em situação de desproteção e alvos do Sistema de Justiça Juvenil brasileiro. 11 Ver a pesquisa: A violência policial na voz dos adolescentes em conflito com a lei, realizada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal no ano 2011. 1ª Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal – 1ª VIJ/DF. Seção de Medidas Socioeducativas – SEMSE. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/cidadaos/infancia-e- juventude/publicacoes-1/violencia_policial.pdf/view 12 Ver Relatório: Dossiê Criança 2018. Orgs. Flávia Vastano Manso e Luciano de Lima Gonçalves. — Rio de Janeiro: RioSegurança, 2018. 3389

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 5 CONCLUSÃO O debate sobre a violência urbana vem ganhando corpo no cenário brasileiro seja pelo aumento dos índices de homicídios (CERQUEIRA, 2018), seja pela ênfase que as grandes mídias têm dispensado à temática. Neste contexto, faz parte da manipulação midiática apresentar essas crianças e adolescentes de camadas empobrecidas como os maiores algozes da criminalidade, cuja solução versa sobre mais “encarceramento” e/ou encrudescimento das “penas”, como uma espécie de “vingança” que se sobrepõe à justiça e as possibilidades da socioeducação. No entanto, o resultado das pesquisas apresenta que a maior parte das infrações ocorre sem violência ou grave ameaça, desmontando a ideia compartilhada do “menino carente monstruoso”. Além disso, apresenta o retrato da desigualdade social brasileira materializada na vida destes jovens e de suas famílias que são capturados pelo Sistema de Poder Judiciário: a maioria meninos; negros; mais da metade abaixo da linha da pobreza; com consumo de alguma substância entorpecente durante seu período de desenvolvimento; escolaridade defasada e; inseridos de trabalhos precários, podendo até ser perigosos ou insalubres. Um cenário que dificultará futuramente, na inserção em um mercado de trabalho qualificado, protegido e criativo, deixando-os cada vez mais longe do acesso às suas potencialidades e do exercício da cidadania. Soma-se ao fato de que muitas dessas crianças e adolescentes sofrem com a violência do Estado – estrutural, física, psicológica, moral e patrimonial - dentro ou fora do sistema socioeducativo. Algo que parece ser desconsiderado, tendo em vista a tendência de superdimencionamento das infrações perpetradas e uma naturalização da violência sofrida, construída a partir de uma criminalização da pobreza e seletividade punitiva racializada enraizada na Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário. Apesar de a legislação definir a necessidade de uma ação pautada na socioeducação há uma necessidade de se problematizar se o trabalho que está sendo oferecido a estes jovens, não apresenta como objetivo principal a punição, deixando de considerar as questões concretas e objetivas em que eles estão inseridos. Sabe-se que em muitos municípios, com seus parcos recursos para a área social, ainda persiste a “política pobre para pobre”, que em nada, ou bem pouco contribui para sua formação e desenvolvimento. Escassos recursos que dificultam, por exemplo, o cumprimento de 3390

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI medidas socioeducativas em meio aberto, que se apresentam como alternativa à institucionalização. Assim, há de se refletir que apesar da mudança na legislação - que introduz novos conceitos, instrumentos e metodologias: “Não há como elaborar projetos de vida autônomos, criativos, críticos vivendo em condições precárias de existência” (TEIXEIRA, 2014, p. 168). Diante desta conjuntura, há de se considerar o papel do Sistema de Justiça Juvenil, que vem se comportando como um ator importante no processo de institucionalização destas crianças e adolescentes oriundas de famílias pobres, seja através do acolhimento institucional – os “abrigos”, seja com a internação no sistema socioeducativo, sob o discurso de proteção integral. Tais reflexões se apresentam de suma importância para a atualidade, tendo em vista a possibilidade de alteração na idade penal que tomou fôlego nas últimas eleições, com o projeto do presidente eleito e do futuro Ministro da Justiça de apoio à redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos e/ou o aumento do tempo de internação. REFERÊNCIAS ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017. BATISTA, Vera Malagutti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. BRASIL. Lei 8069/1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm BRASIL. Custos Econômicos da Criminalidade no Brasil. Relatório de conjuntura nº. 4. Junho, 2018a. BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Levantamento anual SINASE 2016. Brasília: Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos, 2018. CARVALHO, Thiago Fabres. Criminologia, (in) visibilidade, reconhecimento: o controle penal da subcidadania. Rio de Janeiro: Revan, 2014. CERQUEIRA, Daniel. (Coord). Atlas da Violência 2018. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Rio de Janeiro. IPEA: Junho, 2018. 3391

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CNJ. Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Programa de Justiça ao Jovem. Brasília, 2012. CRUZ NETO, Otávio. Nem soldados, nem inocentes: juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. / Otávio Cruz Neto, Marcelo Rasga Moreira e Luiz Fernando M. Sucena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2001. GALDEANO, Ana Paula; ALMEIDA, Ronaldo (Coord.). Tráfico de drogas entre as piores formas de trabalho infantil: mercados, famílias e rede de proteção social /Ana Paula Galdeano; Ronaldo Almeida, coordenadores; Deborah Fromm Trinta; et al. São Paulo: CEBRAP, 2018. GARCIA, Joana; PEREIRA, Pedro. Somos todos infratores. O Social em Questão. Ano XVIII, nº. 31, 2014. GOMES, Marcus Alan. Mídia e sistema penal: as distorções da criminalização nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Revan, 2015. INFOPEN. Levantamento Nacional de informações penitenciárias: INFOPEN Atualização – junho 2016. Org.: Thandara Santos; colaboração: Marlene Inês da Rosa... [et al.] – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. Tradução: Sobral, Maria Stela. G. 5ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. MDS. Pesquisa de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Disponível em: http://blog.mds.gov.br/redesuas/pesquisa-mse/. Acesso em 03/09/2018. NETTO, José Paulo. Crise do capital e consequências societárias. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 11, 2012. SOUZA, Rosimere de. Município e a política de atendimento socioeducativo. O/ Rosimere de Souza; Louise Lima Storni Rocha; Herculis Pereira Tolêdo. Rio de Janeiro: IBAM, 2018. SOUZA, Taiguara Libano Soares e. A era do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Revan, 2018. TEIXEIRA, Maria de Lourdes, T. Mediada socioeducativa. In: Gislei Lazzarotto et al. Medida socioeducativa: entre A & Z. Porto Alegre: UFRGS 2014. WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008. 3392

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI WACQUANT, Loïc. Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de janeiro. Reven, 2003. ZALUAR, A. Cidadãos não vão ao paraíso. São Paulo: Editora Escuta; Campinas, SP: Ed. da Universidade Estadual de Campinas, 1994. 3393

EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ATO INFRACIONAL E OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL Rodrigo Silva Lima1 Fabiana Schmidt2 RESUMO O Estatuto da Criança e do Adolescente, legislação brasileira considerada uma das mais avançadas na esfera internacional, considera a inimputabilidade penal aos dezoitos anos e compreende o ato infracional enquanto prática análoga ao crime. Ao longo dos últimos 30 anos, os defensores de direitos humanos têm travado uma batalha político-ideológica tanto na interpretação do ECA, como na disseminação de estudos acerca da realidade que atinge ao o público em questão. Esse esforço é fundamental para romper com o tratamento histórico marcado pelo autoritarismo e pela violência do Estado e das classes dominantes. Palavras-Chaves: Direitos Humanos. Ato Infracional. Estatuto da Criança e do Adolescente. ABSTRACT The Statute of Children and Adolescents, Brazilian legislation considered one of the most advanced in the international sphere, considers criminal non-liability at the age of eighteen and includes the infraction as a practice analogous to crime. Over the past 30 years, human rights defenders have fought a political-ideological battle both in the interpretation of ECA and in the dissemination of studies about the reality that affects the public in question. This effort is fundamental to break with the historical treatment marked by authoritarianism and the violence of the State and the ruling classes. Keywords: Human Rights. Infraction Act. Child and Adolescent Statute. 1 Professor da Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional e do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Serviço Social. E-mail: [email protected] 2 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutora em Serviço Social. E-mail: [email protected] 3394

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa teórica, com levantamentos bibliográficos e documentais, sobre ato infracional, sistema socioeducativo e desafios dos direitos humanos no Brasil. Apresenta uma perspectiva de análise histórica, com base em autores da tradição marxista e da teoria crítica, com reflexões que contrapõem a ideologia conservadora e punitivista da sociedade brasileira. O desconhecimento da lei ou as leituras fragmentadas e descontextualizadas, assim como as ofensivas midiáticas e nas redes sociais, reforçam mitos, que precisam ser combatidos, de que o ECA “favorece a criminalidade juvenil e a impunidade dos autores de ato infracional”. Por fim, as reflexões teórico-conceituais sobre a temática dos direitos humanos são fundamentais para repensar as mudanças no final do XX e início do século XXI e seu paradigma na atenção, ao público em cumprimento de medidas socioeducativas, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. 2 CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO DO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS No Brasil, para além de todo processo de colonização de Portugal e das iniciativas de cunho educativo e assistencial da Igreja Católica, com a criação de colégios, orfanatos, a roda dos expostos, entre o final do século XV e o início do XIX, o Estado esboçou um modelo de proteção realçado por uma lógica tutelar e a coercitiva. Com a criação do Primeiro Código de Menores e instituição do Juizado de Menores (na década de 1920), o Sistema de Assistência ao Menor (na década de 1940), e a Política Nacional de Bem Estar do Menor (década de 1960), se reforçou procedimentos de longa institucionalização e controle de determinados segmentos infanto-juvenis (ARANTES, 1995). Importante observar que como demonstram as pesquisas de Rizzini (2011), o primeiro sistema de atenção a esse público no Brasil se fundamentou no aparato médico-jurídico cujas práticas denotavam o controle dos pobres com destaque para a 3395

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI população negra recém liberta cunhada de classes perigosas3 na ideologia eugenista, apesar da reprodução de discursos ufanistas acerca da infância brasileira. A partir da metade do século XX, o UNICEF iniciou sua trajetória de atuação no Brasil e, nesse sentido, atravessou décadas influenciando no planejamento e execução de políticas sociais para crianças e adolescentes. Com a presença solidificada desse organismo, havia também uma estratégia da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional – USAID – em frear a expansão do bloco socialista no Brasil e na América Latina. O discurso propagado era de que a pobreza constituía uma ameaça tanto às nações periféricas, como às mais prósperas e desenvolvidas e o objetivo, ao contrário do que se imaginava, não era garantir qualquer tipo de desenvolvimento autônomo do Brasil, mas o de impedir a propagação do comunismo (AMMANN, 2003). Nesse período a ação do UNICEF compreendeu campanhas nutricionais e de merenda escolar, no período conhecido como Desenvolvimento de Comunidade (AMMANN, 2003). Na década de 1950, o órgão também celebrou, ao final da década de 1970, o Ano Internacional da Criança, divulgando a Declaração Universal dos Direitos da Criança (aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1959) e prestou apoio à Pastoral da Criança e ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua na década de 1980. E sua articulação histórica com setores da sociedade civil incentivou a mobilização política que culminou na aprovação do artigo 227 da Constituição Federal e que mudou o marco legal dos direitos de meninas e meninos no País, com o surgimento do ECA. Dentre todas as ações do UNICEF e das contradições existentes, cabe salientar a necessidade de participação mais incisiva em ações e campanhas que visem alterar a realidade das instituições de atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais e em cumprimento de medidas socioeducativas4.Os objetivos dos organismos internacionais não englobaram o enfrentamento da “questão social” e suas múltiplas 3 A denominação e/ou conceito de “classes perigosas”, tem sua origem na segunda metade do século XIX, e considera “perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de ‘controle social’ no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças” (CHALHOUB, 1996, p. 20), estando as mesmas “à margem da lei”. Esse processo, que inaugurou de forma técnica e científica a gestão das diferenças sociais nas cidades, é abordado por Batista (2003) como uma forma de fundamentar políticas de “controle social” e o genocídio dos pobres e negros no Brasil na atualidade. 4 As entidades de cumprimento de medidas socioeducativas, caracterizadas pela privação de liberdade, são objetos frequentes de denúncias de grupos de direitos humanos, como a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), assemelhadas muitas vezes a mini prisões e em descompasso com o Estatuto da Criança e do Adolescente. 3396

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI expressões, dando a entender “que o estatuto jurídico que ampara os direitos humanos é frágil porque constrangido por relações sociais que estruturalmente atentam contra esses direitos” (FRIGOTTO, 2009, p. 13). No bojo das mudanças atuais e da preocupação latente com os direitos de determinados grupos é recorrente, em manuais e cartilhas5 sobre direitos humanos, a elaboração de textos que conjugam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, trechos da Constituição da República Federativa do Brasil e a configuração das políticas de defesa de crianças, adolescentes, mulheres, negros, idosos, pessoas com deficiência, lésbicas, gays, transexuais, religiosos, pobres e oprimidos dentre outros. Acredita-se que a defesa que a universidade e os segmentos de classe deveriam incorporar não é apenas, nesse caso, por direitos humanos de crianças e adolescentes, mas de direitos humanos de uma maneira mais ampla (RUIZ, 2009, p. 28) 3 ATO INFRACIONAL E MEDIDA SOCIOEDUCATIVA NO BRASIL Em 2020 a Lei 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), também completa três décadas de existência. A partir dos arts. 227 e 228 da Constituição da república Federativa do Brasil, considera crianças e adolescentes em situação peculiar de desenvolvimento, devendo, portanto, receber proteção integral6. A legislação brasileira, uma das mais avançadas na esfera internacional, considera a inimputabilidade penal (o público não passível de cumprimento de pena) e compreende o ato infracional enquanto prática análoga ao crime. Os adolescentes estão sujeitos a cumprimento de medidas socioeducativas7 que são aplicadas levando em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade do ato infracional. A Constituição Federal e o ECA, levando em consideração as determinações da Doutrina de Proteção Integral, rompem com as antigas normativas, como o “Código de 5 Ver o exemplo clássico da cartilha de Direitos Humanos produzida em quatro idiomas pela Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEADH-RJ) e a Ação Comunitária do Brasil (s/d). 6 O referido marco legal considera criança de 0a 12 anos incompletos e adolescente de 12 anos a 18 anos incompletos. Nos casos expressos em lei, pode-se aplicar excepcionalmente até os vinte e um anos de idade. 7 De acordo com o ECA as medidas socioeducativas são seis: em meio aberto- advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida; em restrição de liberdade- semiliberdade; em privação de liberdade- internação em estabelecimento educacional. 3397

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Menores (1979), e mantiveram a maioridade penal aos 18 anos em consonância com a maioria dos países do mundo8, inclusive a Convenção dos Direitos da Criança (CDC). As medidas socioeducativas de internação encampadas sob uma perspectiva de justiça juvenil tem em seus principais fundamentos normativos: a brevidade (devido aos impactos que a privação de liberdade causa esta não deve ser muito prolongada), excepcionalidade (só aplicá-la como último recurso) e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (por ser sujeito em processo de formação) cujo tempo máximo de internação é de três anos. Tais valores se chocam com a classe dominante brasileira dado o caráter autoritário de nossa cultura política e a histórica violência de Estado praticada contra sua juventude pobre e negra. O traço autoritário e assim como as persistentes desigualdades sociais que presidem no processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil têm sido uma das particularidades históricas de nossa formação, repercutindo intensamente na construção dos direitos para o segmento da criança e do adolescente, obtendo uma relação inseparável nesse processo. No conhecimento da formação social, econômica, política e cultural do Brasil, é perceptível que a luta de classes se efetivou e se efetiva pela dominação ideológica burguesa conservadora e autoritária. Ampliando o olhar sobre os momentos decisivos da história brasileira, é possível compreender que estes se apresentaram através de manobras “pelo alto”, sem rupturas nas estruturas dominantes de poder econômico, conservando interesses privados da burguesia pela via de uma “revolução passiva”9, base da modernização (conservadora) capitalista no Brasil, sendo o setor público um lugar de relações “condominiais entre os interesses dominantes, expropriando politicamente os setores subalternos da sociedade e intensificando modalidades autoritárias de ‘controle social’ sobre elas”(VIANNA, 1997, p.7). Tanto que o ECA e mais especialmente sua parte relacionada ao ato infracional e as medidas socioeducativas tem sido recorrentemente fruto de questionamento em especial pela ampliação da punição aos adolescentes no contexto do recrudescimento 8 Silva e Oliveira (2015) baseadas em um estudo da UNICEF apontam que 78% dos países adotam 18 anos ou mais como a maioridade penal. 9 O conceito de “revolução passiva” ganhou destaque nas reflexões de Gramsci (1987). A ‘revolução passiva’ compromete, por meio de automatismos inscritos no coração das instituições de reprodução social, a mudança com a conservação.” (FREIRE, 2011, p. 19) 3398

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI penal brasileiro bem ao gosto do neoliberalismo: a pauta da redução da maioridade penal ou aumento do tempo de internação existe desde o início dos anos de 1990 e atualmente no Congresso Nacional10 há (aproximadamente) 63 projetos de lei11 de alteração do ECA na matéria socioeducativa cuja maioria se refere ao incremento de seu punitivismo. Há que se destacar nesse processo de criminalização, o papel protagonista que a mídia12 em seus grandes grupos corporativos exerce na legitimação da figura do adolescente/jovem pobre e negro como classe perigosa passível de ser eliminado e encarceramento cuja figura do traficante varejo de drogas ilícitas ganha status de fantasmagórico (BATISTA e MALAGUTI, 2003). Segundo Inácio Cano (2009), “o clima de insegurança reinante aumenta a sensação de urgência e reduz o espaço para intervenções de longo prazo. Todavia as ações de segurança pública no país são muitas vezes pautadas pela imprensa”. Sales (2007) observa que a mídia empresarial monopolista brasileira sobretudo em casos de grande repercussão explora sobremaneira a imagem deste adolescente em geral descontextualizando-o histórico e politicamente das condições de vidas destes sujeitos na realidade brasileira, atendendo ainda a interesses comerciais na vendagem da notícia sensacionalista e escamotear as mais profundas contradições sociais da relação capital/trabalho de nosso caráter dependente. Na década de 1990, observamos como imagem a incompleta transição das FUNABEM/FEBEMs13 para o ECA e as cenas de rebeliões nestas unidades, além da 10 No ano de 2015, assistimos em rede nacional, a patética manobra do ex-presidente da Câmara dos Deputados, hoje preso por corrupção, Eduardo Cunha que após ser derrotada em votação no plenário em 01º/07, a pauta sobre a redução da maioridade penal para 16 anos foi novamente votada e aprovada no dia seguinte, revelando que a criminalização da juventude faz parte do pacote do golpe parlamentar em curso no Brasil. “Com nova manobra de Cunha, Câmara aprova redução da maioridade penal”, disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/com-nova-manobra-de-cunha-camara-aprova-reducao-da- maioridade-penal-4715.html. Consulta em 31/05/2018. 11 Disponível em: https://observatoriocrianca.org.br/agenda-legislativa/temas/adolescentes-autores-ato- infracional. Consulta em 31/05/2018. 12 Conforme Batista (2002, p. 223) existe “uma solidariedade entre a mídia e os sistemas penais no neoliberalismo, que espraia a noção de sanção como rito sagrado para a solução do conflito”. 13 Além da publicação de Roberto da Silva (1997) “Os filhos do governo: formação da identidade criminosa em criança órfãs e abandonadas”, dois filmes podem ser indicados. “Contador de Histórias”, de Luiz Villaça, inspirado numa história real. Trata das desiguais relações sociais que perpassam a vida de crianças e adolescentes, por meio de uma biografia, e a complexa realidade institucional. Também há o que denuncia e retrata a violência institucional, “Pixote: a lei do mais fraco”, de Héctor Babenco. De maneira mais realista demonstra a situação de parcela de crianças e adolescentes empobrecidos e submetidos a condições de vida muito cruéis e as dimensões do processo de institucionalização, 3399

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI explosão sem precedentes da violência urbana. Nos decênios seguintes, ainda que permaneça tais realidades, temos como marco no cenário político-normativo das medidas socioeducativas no Brasil a aprovação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). No que se refere ao tema do adolescente autor de ato infracional, destacamos a importância da aprovação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo/SINASE em 2006, pela Secretaria de Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)14. Tal documento é fruto de um intenso debate entre os mais variados setores e expressa uma série de normas e parâmetros para execução de medidas socioeducativas inseridas em uma perspectiva de direitos humanos (SEDH e CONANDA, 2006). Em janeiro de 2012 foi aprovada a Lei federal Nº 12.594/2012 que institui e regulamenta o SINASE. A base de dados oficiais sobre o sistema socioeducativo no Brasil está situada no sítio do Ministério dos Direitos Humanos que desde o ano de 2010 divulga levantamento anuais. Porém, se observa fragilidades na divulgação destas informações seja pela sua parca sistematização, pela maior pobreza de dados do meio aberto e pela descontinuidade nos levantamentos15, o que dificulta sobremaneira a realização de pesquisas sobre o tema, bem como proposição de políticas públicas. Se por um lado pairam alguns questionamentos no tocante à qualidade dos dados divulgados, o que não se pode ter dúvidas é o tratamento cruel e degradantes que os adolescentes brasileiros recebem cumprindo medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade. Entre os anos de 1996 e 2015, o número de adolescentes nestas condições passou de 4245 para 26868 o que equivale a um aumento de 600,33% no período (MDH, 2018). Para se ter uma dimensão deste fenômeno, a população carcerária brasileira aumentou cerca de 400,4% no mesmo espaço de tempo e a população de adolescentes no Brasil cresceu 1,02% entre 1997 e 2013 (SILVA e OLIVEIRA, 2015). 14 Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/plano-nacional-de-atendimento- socioeducativo-diretrizes-e-eixos-operativos-para-o-sinase. Consulta em 20/04/2015. 15 Para se ter uma ideia, no momento de finalização deste artigo o link com os levantamentos estava fora do ar e o último censo do ano de 2015 somente fora divulgado no início de 2018. 3400

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Gráfico 1: Evolução da privação e restrição de liberdade 30000 13489 15426 16868177031959520532 23006 2462268868 20000 9555 10000 4245 8579 1996 1999 2002 2004 2006 2008 2010 2011 2012 2013 2014 2015 0 POPULAÇÃO Fonte: MDH (2018), elaboração própria No tocante ao ato infracional, os dados apontam a recorrente prevalência de atos infracionais análogos a roubo (46%) e tráfico de drogas (24%), o homicídio que corresponde a 10% deste total. Um dos fatores que representam maiores preocupações é o uso constante de aplicação de privação de liberdade para atos infracionais análogos ao tráfico de drogas (cerca de ¼), visto que tal prática por si só não justificaria a privação de liberdade por não se tratar de violência e grave ameaça à pessoa (MDH, 2018). É relevante indicar então que o envolvimento de adolescentes no tráfico de drogas é considerado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), através da convenção 182, ratificada pelo Brasil em 12 de setembro de 2000, como uma das piores formas de exploração do trabalho infantil. Este conceito abrange: a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívidas, servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b)utilização, recrutamento e oferta de criança para fins de prostituição, produção ou atuações pornográficas; c)utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. Estas quatro categorias integram o núcleo básico do conceito “piores formas de trabalho infantil” e devem ser priorizadas nas políticas e suas estratégias de combate. (BRASIL, 2006). 3401

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Considerando, então, a Convenção da OIT, fica claro que se o trabalho no tráfico de drogas é definido como exploração do trabalho infantil, o debate que deve ser feito é de que estes jovens precisam é de políticas públicas de proteção e não de responsabilização. Ainda em relação ao perfil, 96% dos adolescentes são do gênero masculino sendo que 57% do montante total está entre as idades de 16 e 17 anos, anos finais da adolescência, o que indica uma maior atenção a política pública da última fase da adolescência. Além disso, 61% dos adolescentes privados de liberdade no Brasil são pretos/pardos o que por si só reflete a desigualdade étnico/racial brasileira, fruto de nosso processo histórico e determinante para compreensão da luta de classes nestas latitudes (MDH, 2018; SNJ, 2015). Podemos destacar como um dos grandes avanços do SINASE em conformidade com o SUAS, a execução de medidas socioeducativas em meio aberto pela política de assistência social no qual o Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) é o seu equipamento. Antes do SUAS, em muitos dos estados, a execução era feita diretamente pelo poder judiciário responsável pela aplicação de medida o que gerava um emblemático paradoxo. O último material do SINASE disponível apontou um total de 67356 adolescentes em cumprimento de LA e PSC, que deveriam ainda ser mais potencializadas pois as unidades da assistência social são ainda marcadas pela precária infraestrutura de seus equipamentos, parcas ofertas de políticas públicas para atendê- los e baixa remuneração de seus profissionais. O retrato mais fidedigno da dinâmica da criminalização da juventude pobre e negra via encarceramento é o tratamento dispensado pelo Estado aos adolescentes privados de liberdade. Em síntese, as unidades socioeducativas se apresentam superlotadas, com degradantes condições de funcionamento de infraestrutura que afetam toda a esfera do atendimento. Além disso, a violência institucional se expressa no cotidiano destas instituições nos quais podemos destacar: as estruturas de atendimento militarizadas, sanções arbitrárias, lógica disciplinar sob a via da segurança em detrimento da socioeducação, tempo excessivo de confinamento, uso reiterado de algemas e spray de pimenta, revista vexatória em familiares, falta de individualização e as práticas de tortura, muitas vezes mais gravosas que adultos (MNPCT, 2017) que 3402

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI reatualizam a situação irregular menorista e consolida a arbitrariedade do Estado em seus aparelhos repressivos. Em praticamente todas as visitas realizadas pelo MEPCT para o presente relatório, foi uníssona a reclamação dos adolescentes em relação ao uso excessivo da força perpetrada pelos agentes socioeducativos. Os relatos são desde agressões físicas e verbais – como xingamentos, intimidações, tapas, socos, pontapés, até a utilização de barras de ferro ou madeira. Nos sete anos de existência do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura fluminense, foram observadas diversas situações de torturas e maus tratos. (MEPCT/RJ, 2017, p.62). A possibilidade de tais violações dos direitos humanos também está assentada na introdução no neoliberalismo no Brasil, na década de 1990, às tendências americanizadas de “autoproteção individual” (MAURIEL, 2006), que reforça a tônica de um individualismo exacerbado e reitera mecanismos eliminação física e formatos cruéis de vingança com as próprias mãos que em nada se aproxima dos ideais de justiça social, seja com a população encarcerada, com crianças e adolescentes em situação de rua, os indígenas, os quilombolas, os nordestinos e demais ou segmentos considerados “indesejáveis” (ARANTES 1995). O assombroso cenário de violência social no país passa pela perpetuação de posturas execráveis dos que criminalizam a classe trabalhadora e seus estratos pauperizados16, reiteram um típico “sujeito padrão” que pode ser rotulado, perseguido e até mesmo exterminado17. Principalmente se esses indivíduos são jovens, negros e favelados. Na fase atual do capitalismo, principalmente em países de economia dependente, coexistem contrastes no campo dos direitos humanos e na atenção à infância e à juventude. Inexiste neutralidade político-ideológica dos governos e há uma incorporação, por parte das forças sociais identificadas tanto com a esquerda como a direita, de abordagens neoliberais, dos organismos internacionais, que preconizam “ajustes com a face humana” (MAURIEL, 2011, p. 254). 16Em ações policiais, amplamente divulgadas pela mídia, o atual Governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ao sobrevoar com helicóptero da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), a região do conjunto de favelas da Maré, compactuou com os disparos da equipe de atiradores de elite da polícia em horário diurno e com crianças e adolescentes saindo das escolas. 17 Os determinantes históricos se perpetuam na atualidade como forma de neutralização e ou eliminação, pois se constituem em um sistema que criminaliza “seletivamente, tornando delitos boa parte das alternativas de vida do segmento negro e lançado sobre ele uma suspeição generalizada, pode se valer desses mesmos atributos para condenar à morte”. (FLAUZINA, 2008, p. 134). A denominada teoria da “suspeição generalizada”, se apresenta como a essência da expressão das “classes perigosas” (CHALHOUB, 1996). 3403

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Soma-se a isso ao alarmante quadro de homicídios de adolescentes em privação de liberdade. De acordo com os últimos levantamentos do SINASE (MDH, 2018) foram a óbito 130 adolescentes entre 2013 e 2015 em geral em conflito interpessoal e generalizado agravando mais a situação já que é dever do Estado a integridade de quem ele priva da liberdade, contribuindo ainda pela dor e falta de seus familiares18. Por fim, as constantes violações sofridas por adolescentes em privação de liberdade no país apontam para o grande desafio19 que temos pela frente no que refere a implementação de direitos humanos para este segmento. Neste sentido a atualidade de Marx (2011, p. 25) se apresenta para nossa análise. Na publicação do “18 Brumário de Luís Bonaparte”, em relação a processos históricos é referido que “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Podemos afirmar que a tragédia permanece em um grau intenso de barbárie; enquanto fundante do processo capitalista, na atualidade se expressa de forma inconteste, pois a luta de classes ocorre de forma devastadora, com reduzidos espaços civilizatórios. Já a farsa se apresenta pela via instrumental da punição/criminalização dos pobres e negros, aqui pelos discursos de socioeducação, mas que na verdade se constituem como violações no cotidiano da execução das MSEs. 4 CONCLUSÃO Para amplos contingentes populacionais, informados por mensagens de fontes duvidosas em redes sociais e por pautas sensacionalistas dos veículos de comunicação de massa, o racismo, por meio a eliminação física de crianças, adolescentes e jovens, não passa de um “discurso vitimista”, dos defensores de direitos humanos, mas os dados apresentados apontam em outra direção. O discurso do ódio e suas variantes, presente no discurso dos governos, induzem à construção de um modelo de proteção individual, amparado pela “justiça com as próprias mãos” ou da prestação de serviços privados de 18 Recentemente, no estado de Goiás, nove adolescentes morreram em um incêndio em uma unidade socioeducativa que funcionava em unidade improvisada de um batalhão da Polícia Militar desde os anos 1970. “Em GO, nove adolescentes morrem em incêndio em centro para infratores”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/em-go-nove-adolescentes-morrem-em-incendio-em-centro- para-infratores.shtml. Consulta em: 01/06/2018. 19 O papel das universidades, na produção e disseminação de conhecimento, bem como a sua articulação com os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e dos Adolescentes no que tange às orientações e às estratégias de denúncia sobre violações dos direitos humanos. 3404

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI segurança. Somente no estado do Rio de Janeiro, entre os anos de 2019 e 2020, dezenas de crianças e adolescentes, em situação de risco, sem qualquer passagem por instituições protetivas ou socioeducativas ou acusadas de ato infracional, foram assassinadas e, muitas delas, pela ação do estatal, justamente pelos aparatos de segurança pública20. A luta pelos direitos humanos da infância e juventude adquiriu no Brasil a sua mais ampla visibilidade nos últimos trinta anos, mas ao mesmo tempo esbarra nas condições concretas das situações de vida destes sujeitos, em especial na agudização das expressões da questão social oriundos da relação capital-trabalho. Essa dinâmica de cidadania escassa que dialoga com o legado histórico do tratamento à infância nestas terras tem na figura do adolescente autor de ato infracional sua materialização mais expressiva do processo de criminalização. Contudo, os acontecimentos que reiteram o caos e a barbárie, não estão passando desapercebidos por movimentos sociais, entidades de direitos humanos e coletivos de juventude urbana negra e pobre. Os nódulos de resistência estão sendo formados e do processo de organização política e de questionamento permanente da ordem vigente podem brotar, nos jardins das incertezas, as flores vivas que alterarão o curso da história. REFERÊNCIAS AMMANN, Safira Bezerra. Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003. ARANTES, Esther. M. M. Rostos de Crianças no Brasil. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI; Irene. (Org.). A Arte de Governar Crianças - A História das Políticas Sociais, da Legislação e da Assistência à Infância no Brasil. 1ªed. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Ninõ/OEA , AMAIS Livraria e Editora, Universidade Santa Úrsula, 1995. BATISTA, Nilo; MALAGUTI, Vera. “Todo crime é político”. In: Revista Caros Amigos Nº77, agosto de 2003. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2003. 20 Kethlen Umbelino (5 anos); Anna Carolina e Agatha Vitória (ambas 8 anos); Jennifer Cilene, Kauã Rozário e Kauê Ribeiro (todos de 11 anos); Kauã Peixoto (12 anos); João Pedro (14 anos) e mais uma sequência de uma dezena de adolescente e jovens exterminados, e divulgados na grande mídia, no período de isolamento social diante da pandemia do Covid19 3405

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BATISTA, V. M. O Medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. CANO, Ignácio. Como se fossem entulho. Jornal O Globo (seção Opinião), Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2009. CHALHOUB, S. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. FLAUZINA, A. L. P. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. FREIRE, Silene de Moraes. Entrevista - Dossiê “Novos líderes: relações internacionais em tempo de crise” (2000). In: BARROS, Clarissa F. do Rêgo. Revista Ágora. Disponível em: <> Acesso em 19 jan. 2011. FRIGOTTO, Gaudêncio. Direitos humanos, democracia, e educação na contemporaneidade. In: FREIRE, Silene de Moraes (Org.). Direitos Humanos e Questão Social. Rio de Janeiro: Gramma, 2009. IAMAMOTO, Marilda Villela. CARVALHO. Raul de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil.: Esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 1996. MARX, K. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Tradução e notas: Nélio Schneider; prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. MAURIEL, Ana. Paula A nova forma da política social: desenvolvimento humano e combate à pobreza. In: Capitalismo, políticas sociais e combate à pobreza. Ijuí – RS: Editora Unijuí, 2011. MAURIEL, Ana Paula. O Combate à pobreza na América Latina: impasses teóricos e ideológicos na construção da política social contemporânea. In: Ser Social nº. 18. Programa de Pós-graduação em Política Social da UnB, 2006. MDH- Ministério dos Direitos Humanos. Levantamento Anual SINASE 2012, 2013, 2014, 2015. Brasília: MDH, 2018. MNPCT- Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Relatório anual 2016-2017. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, 2017. RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para infância no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. RUIZ, Jefferson Lee de Souza. Concepções de direitos humanos e um diálogo com o Serviço Social. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. 3406

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI SALES, Mione Apolinário. (in)visibilidade perversa: adolescentes infratores como metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007. SILVA, Enid Rocha e OLIVEIRA, Raissa Menezes. O adolescente em conflito com a lei e o debate sobre a redução da maioridade penal: esclarecimentos necessários. Nota Técnica Nº 20 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Rio de Janeiro: IPEA, 2015. SNJ- Secretaria Nacional de Juventude. Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil. Brasília: SNJ, 2015. 3407

EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS A FLEXIBILIZAÇÃO DO PORTE E DA POSSE DE ARMAS DO GOVERNO BOLSONARO E OS IMPACTOS NA POPULAÇÃO INFANTO-JUVENIL Nataly Isabelle Pessoa da Silva Pinto1 Camila Ariane Monte da Purificação2 Jussara de Melo Ferreira3 RESUMO Considerando as tendências do capitalismo contemporâneo, este trabalho tem por objetivo analisar a implementação de medidas em torno da flexibilização do porte e da posse de armas pelo governo Bolsonaro enquanto uma das medidas de enfrentamento a violência e como essa medida implica na vida de crianças e adolescentes. Buscou- se com a pesquisa, discutir as principais alterações trazidas pelo Projeto de Lei PL 6428/2019, de 12 de dezembro de 2019 e pelo Decreto nº 9.846 de 25 de junho de 2019, que alteram questões que encobre as regras armamentistas no país, visando a municiar à defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes. Palavras-Chaves: Proteção Social. Violência. Estado Repressor. ABSTRACT Considering the trends of contemporary capitalism, this work aims to analyze the implementation of measures around the flexibility of the possession and possession of weapons by the Bolsonaro government as one of the measures to combat violence and how this measure implies in the lives of children and adolescents. The research sought to discuss the main changes brought by Bill PL 6428/2019, of December 12, 2019 and Decree No. 9,846 of June 25, 2019, which alter issues that impose the arms rules in the country, aiming to provide for the defense of the human rights of children and adolescents. Keywords: Social Protection. Violence. Repressive State. 1 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), bolsista do PIBIC pelo do Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil. E-mail: [email protected] 2 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), colaboradora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil. E-mail: [email protected]. 3 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: [email protected]. 3408

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados da pesquisa intitulada “As medidas do governo Bolsonaro no enfretamento a violência e suas implicações a população infanto-juvenil”. Trata-se, de uma pesquisa bibliográfica e documental, que se faz desenvolver em dois momentos. Num primeiro momento foi feito a pesquisa bibliográfica, onde buscamos uma apropriação das categorias teóricas que permitiu nos apropriar do objeto de estudo proposto, tais quais: Proteção Social, Violência e Estado Repressor, buscando identificar como estas vem atingir a população infanto-juvenil. Num segundo momento foi realizado a pesquisa documental que se fez realizar mediante a consulta de documentos oficiais, tais quais: Bibliografias, Decretos Presidenciais e Projetos de Lei. A coleta de informações permitiu analisar a realidade da violência/criminalidade no Brasil, em especial no que atinge crianças e adolescentes e como o Estado, tomando como referência o período que corresponde ao primeiro ano do governo Bolsonaro, tende a responder a essa problemática, dando ênfase as medidas em torno da flexibilização do porte e posse de armas, enquanto ação que garantiria a legítima defesa para os “cidadãos de bem”. 2 AS CRISES DO SISTEMA CAPITALISTA E O APROFUNDAMENTO DA BARBÁRIE O Capitalismo configura-se como um sistema econômico e social hegemônico no cenário global. A expropriação da classe trabalhadora pela classe dominante aparece como elemento determinante ao desenvolvimento do seu modo de produção e logo se propaga, acentuando cada vez mais as desigualdades sociais. Concomitantemente, a incidência de crises, processo inerente ao funcionamento do próprio capitalismo marca seu aspecto contraditório e sua natureza cíclica, caracterizando-se como outro elemento de destaque. Cumpre ressaltar que as crises surgem enquanto fator necessário para que o capitalismo se reinvente ao longo do tempo. As crises “são soluções momentâneas, violentas, das contradições existentes, irrupções violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado” (CARCANHOLO; apud; MARX, 1888, VL. IV p.179). As crises do capital podem ser compreendidas a partir de dois modos: o primeiro 3409

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI diz respeito à crise cíclica que apresenta uma curta duração e alguma parte do globo, já o segundo, refere-se à crise estrutural, a qual se apresenta de forma global e de longa duração e pode ser caracterizada como uma crise endêmica. No dizer de Netto (2012), a história é marcada por apenas três crises estruturais, sendo a primeira na década de 80 do século XIX, propriamente em 1873; a segunda, em 1929 conhecida também como a Grande Depressão; e a terceira, é a que eclodiu em meados de 1970 e que perdura até os dias atuais. O modo como o capitalismo reage às crises não segue um padrão definido, pois como descreve Boschetti (2010) as crises dependem do “grau de desenvolvimento do capitalismo; forma de organização das classes sociais e formas de constituição e desenvolvimento do Estado em dado momento histórico” (BOSCHETTI, 2010, p. 65). A crise de 1929 marca a primeira crise após a revolução industrial e uma das principais soluções governamentais para o restabelecimento da acumulação do capital foi à implantação das estratégias do fordismo/keynesianismo (o Welfare State constituiu-se como um dos principais pilares). Já no que concerne à crise atual, diferentemente do que aconteceu anteriormente em 1929, à contenção dessa nova crise vem acontecendo por meio de uma reestruturação produtiva, sob uma política meramente neoliberal. O avanço do neoliberalismo indica uma onda de retrocessos, em grande escala, no que diz respeito aos direitos sociais e trabalhistas, conquistados historicamente pela classe trabalhadora, principalmente pela relação da tríade neoliberal: flexibilização, privatização e desregulamentação, em que os desdobramentos vêm pouco a pouco difundindo a barbárie sobre a humanidade. Partindo desse pressuposto, o Estado aciona políticas com caráter punitivo que se direcionam em especial, a população que mais precisa e/ou depende das políticas sociais que é a população pobre, com o objetivo de controle social, o que impulsiona a desigualdade, a proliferação da miséria e consequentemente da violência. 3 O AVANÇO DO NEOLIBERALISMO NA PARTICULARIDADE BRASILEIRA No Brasil, o neoliberalismo chega de forma tardia, o país vivencia desde 1990 um “tensionamento permanente entre a restituição do Estado democrático, com ampliação dos direitos e políticas sociais e materialização em contexto mundial” (BOSCHETTI, 2010, 3410

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI p. 70). Todo processo de desenvolvimento no Brasil se deu através de uma modernização conservadora que firmou no país a industrialização e o crescimento econômico. Esse novo Estado regulado, restringe sua responsabilidade social a questões de segurança pública e focalização dos atendimentos por meio da assistência social para aqueles que de forma alguma conseguiriam vender a sua força de trabalho. Todo esse processo de materialização de um novo imperialismo, que criaram os oligopólios globais – nada mais é do que concentração e centralização do poder financeiro. O neoliberalismo, ideologia que predomina nesse cenário, vem baseando seus alicerces no tríplice: flexibilização, desregulamentação e privatização – que vai da produção, as leis trabalhistas, até as relações de trabalho, desmontando as regulamentações comerciais, e privatizando todo o patrimônio estatal. Nessa lógica, têm-se a atuação do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995- 2003), marcando os pressupostos do Consenso de Washington no país, em que pesaram ações em construção de medidas em torno de ajustes ficais, com projetos de reformas em contra mão dos direitos sociais, em áreas como a previdência social e área trabalhista, ao lado de privatizações de instituições estatais, medidas econômicas visando a abertura de mercados, e em benefício do capital financeiro, atuação que expressava a perspectiva neoliberal de diminuição do papel do Estado. Posteriormente têm-se no país, a eleição dos governos do PT com Luiz Inácio lula da Silva (2003-2010) e a então presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), que ao que tudo indica, mesmo se colocando no período pré-eleição, enquanto alternativa ao neoliberalismo, sob uma perspectiva da socialdemocracia, na prática, se apresentou enquanto continuidade as propostas do governo de FHC, nas palavras de Castelo(2013), como um “canto da sereia”, ao passo que mesmo acionando medidas que permitiram que as condições de vida de inúmeros brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza melhorasse, através por exemplo da expansão dos programas de transferência de rende, destacaram-se também as medidas que muito beneficiaram os grandes empresários e o capital financeiro. Contudo, em 2016, o cenário muda e inicia-se o processo de aprofundamento do neoliberalismo no Brasil, em virtude do impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, que é retirada da cadeira presidencial, ao que tudo indica, por um tipo peculiar de golpe, um golpe de Estado articulado pelo parlamento e pela oposição, em que no 3411

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI momento de crise interna recebe o apoio da população, via manifestações. Após a saída do PT, o real motivo do golpe aparece, ao passo que a tomada de poder se dá pelo vice- presidente Michel Temer, onde o mesmo assume em seu incipiente governo a iniciativa ultra neoliberal, na execução de medidas austeras, que apontam retrocessos as políticas sociais, destacando-se entre elas, a PEC/95 conhecida como PEC do fim do mundo que congela os gastos sociais por até 20 anos no Brasil, onde quem ganha é o patronato (o capital), e quem perde, a classe trabalhadora. O golpe, indica assim, a retomada do avanço violento da ofensiva neoliberal no país, que tendem a se propagar também nas eleições pós golpe, que são as eleições do ano de 2018, que tem como resultado a ascensão do governo representado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro. Os primeiros sinais que indicam para o governo Bolsonaro enquanto continuidade do cenário de avanço do neoliberalismo no país, já pode ser identificado nas principais propostas do Governo Bolsonaro no período eleitoral, propostas essas que cobriam as áreas de educação, saúde, segurança, políticas sociais e direitos humanos, economia e emprego, corrupção, política externa e ambiental (BBC, 2019). Cabe aqui destacar três, a primeira diz respeito a propostas na segurança pública, onde o mesmo, propõe entre outros, reformular o Estatuto do Desarmamento; defende mudanças no código penal para estabelecer a legítima defesa de fato; a segunda, não a área das Políticas sociais e direitos humanos, destaca-se seu papel crítico ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em que o mesmo, propõe a diminuição da maioridade penal, defendendo que o ECA \"tem que ser rasgado e jogado na latrina, pois é um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil\"; e a terceira na economia e emprego, deixar para trás o comunismo e o socialismo e praticar o livre mercado; As propostas, com seu teor ultraconservador e distante de uma lógica de ampliação de direitos socais pautadas em uma vertente eminentemente moral e neoliberal, já anunciavam a caminhada a ser travada no governo de Jair Messias Bolsonaro. Logo, nos primeiros meses de governo com o objetivo de responder ao seu eleitorado, Bolsonaro iniciou o processo de acionamento de medidas em torno da questão que trouxe mais polêmica durante a campanha: a flexibilização do porte de armas através do acionamento de Decretos e construção de Projeto de Lei, questão que terá destaque de análise neste trabalho, com a perspectiva de compreender como esse movimento implica na vida de crianças e adolescentes. 3412

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No entanto, antes de adentrarmos especificamente na análise das medidas acionadas em torno da flebilização do porte de armas, iremos refletir um pouco mais sobre outra questão que se coloca em volta desse cenário, o caráter de um avanço do Estado Penal em detrimento do Estado Social e do Investimento em políticas públicas, no a preferência que o governo assume é de um Estado penal, no qual, como característica da vigência de organização do capital preponderam ações do Estado mediante práticas de controle e repressão na contramão de avanços de políticas sociais. 4 O ESTADO PENAL: método de tratamento da Questão Social no capitalismo atual O capitalismo contemporâneo é marcado por uma reestruturação produtiva guiada pela ofensiva neoliberal que vem trazendo, entre outras consequências, retrocessos para a vida da população, nesse cenário como resposta ao menor Estado social dá-se o Estado Penal, como medida para lidar com a questão Social resultante das contradições do capital, sendo esse modelo estatal atuante com a perspectiva de controlar a sociedade, visto que a ausência/ fragilidade de políticas essenciais como, a educação, saúde e assistência aprofundam, a desigualdade, a miséria e a violência. No entanto, mesmo frente a essa tendenciosa contradição quando o Estado em defesa da reprodução do capital usa como suporte para o controle social cada vez mais, medidas de repressão, moldando um cenário que vem colocando à tona o fenômeno da militarização da vida social, em que se expressam frente a esse fenômeno, o encarceramento em massa e a criminalização da pobreza intensificada cada vez mais pelo recrudescimento penal, cenário que atinge determinada população, com determinada raça e classe. Wacquant(1999) em sua obra “As prisões da miséria” faz alusão a essa realidade do avanço do Estado repressor, mediante a discussão sobre o encarceramento em massa nos países capitalistas, em especial nos Estados Unidos, no qual “(...) A chave da prosperidade norte-americana, e a solução para o desemprego em massa, residiria numa fórmula simples, para não dizer simplista: menos Estado(...) reduziram fortemente os gastos sociais, virtualmente erradicaram os sindicatos e podaram vigorosamente as regras de contratação(...) (WACQUAN,1999, p.49), vale ressaltar que o movimento do EUA é crucial ao passo que país que até hoje é considerado como referência para o mundo, visto por muitos como “modelo”. 3413

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Têm-se também nesse processo, o crescimento no dispêndio orçamentário voltado a segurança pública em detrimento do orçamento social, sobre isso Wacquant (1999) aponta, “Em período de penúria fiscal, resultado da forte baixa dos impostos para as empresas e as classes superiores, o aumento dos orçamentos e do pessoal destinados ao sistema carcerário só foi possível ao se amputarem as somas destinadas às ajudas sociais, à saúde e à educação. Assim, enquanto os créditos penitenciários do país aumentavam 95% em dólares constantes entre 1979 e 1989, o orçamento dos hospitais estagnavam, o dos liceus diminuía em 2% e o da assistência social em 41%. Os Estados Unidos fizeram a escolha de construir para suas pobres casas de detenção e estabelecimentos penais em lugar de dispensários, creches e escolas. (WACQUANT, 1999, p.57). Nesse sentido, compreendemos que ao retirar das políticas sociais o Estado deixa inúmeros cidadãos desassistidos e frente a isso o cárcere aparece para o sistema como a “solução” para o controle sobre população pobre, num cenário de retrocessos de políticas, que deveriam estar garantindo as condições mínimas de vida e desenvolvimento social. No entanto, nem de longe esse modelo de segurança pública promove uma quebra no desenvolvimento da violência e do tráfico de drogas, associado ao fato de que os verdadeiros bandidos acabam ficando fora das grades, e não estão nas comunidades, estão nas residências de luxo, e quase nunca são punidos. Além disso, as questões ilícitas importam ao capital que por sua natureza ilícita geram lucro, alimentando e fazendo girar essas riquezas ao sistema. Logo, a única resultante desse processo, diz respeito, aos enormes índices de negros encarcerados, que vale ressaltar, sobrepõe o número de brancos. As prisões acabam, por assim, exercendo muito mais um o papel de segregação, do que um ambiente de promoção de justiça. Além dos pontos supracitados destaca-se também os ganhos para economia, em que o avanço das penitenciárias privadas detém o grande movimento das empresas de segurança privada, que lucrando em cima da insegurança social gerada por este cenário de ampliação das problemáticas sociais, é para tanto que grandes empresas de segurança privada contêm espaço em grandes bolsas de valores como a Wall Street. Significando esse movimento, como uma ação de criminalização da pobreza, ao passo que para sustentação de uma realidade de aprisionamento da 3414

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI população pobre em conjunto com a fragilização das políticas, se constrói um imaginário de que aquela população merece ser tratada daquela forma. A lógica nos argumentos em que as atitudes individuais estão acima da realidade conjuntural e do sistema que em sua natureza produz desigualdade, miséria e violência, resultando para a população pobre, sem as condições de subsistência, padecer de fome, esperar a caridade ou padecer nos presídios. Nessa sociedade, as condições de sobrevivência da população pobre são incertas só restando à punição, enquanto na outra face da realidade, poucos indivíduos detêm a maior parte da riqueza produzida socialmente. Nesse processo, os impactos caem excepcionalmente na população jovem e em especial no grupo infanto-juvenil, com consequências, muitas vezes irreparáveis, ao passo que além dessa população crescer e se desenvolver num ambiente hostil, também são embebidos diariamente por preconceitos, privações e discriminação. 5 AS MEDIDAS DE FLEXIBILIZAÇÃO DO PORTE E DA POSSE DE ARMAS NO PRIMEIRO ANO DO GOVERNO BOLSONARO Entende-se que a violência é um fenômeno eminente nas relações sociais, não se pensando um período histórico que tenha ausência da mesma. Na contemporaneidade não poderia ser diferente, o fenômeno se expressa, e no Brasil, o debate sobre a violência é predominante, considerando que, segundo a ONU , em matéria do R7cidades(2018), o Brasil ocupa o nono lugar no ranking dos países mais violentos do mundo mediante as altas taxas de homicídio. Nesse cenário, o Estado fica como encarregado de emitir/buscar elementos para o seu enfrentamento, ações entorno da lógica penal se destacam em conjunto com a busca do controle de fatores que acirram os casos de violência no país, como, no que se refere ao enfrentamento ao tráfico de drogas ilícitas que vem ganhando espaço em diversos países capitalistas. Como já mencionado neste trabalho uma das principais propostas do então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro se pautava em torno de promover uma segurança pública nacional efetiva, incluindo como uma das medidas a questão da flexibilização do porte e da posse de armas para “os cidadãos de bem” do país, numa perspectiva de alto defesa contra os “criminosos”. Com a perspectiva de colocar em prática o “prometido na campanha”, o primeiro ano de governo foi marcado pelo 3415

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI acionamento de uma série de medidas em torno da premissa da flexibilização do porte de armas. A primeira medida executada pelo executivo em torno desta pauta foi o Decreto nº 9.785, de maio de 2019, que entre seus pontos facilitava o porte de armas para 19 categorias, além de revogar, cinco outros decretos existentes até então, dentre eles o Decreto Nº 5.123/ 2004, modificando aí a prática de tiro por indivíduos menores de idade. Esse decreto se destacou, trazendo muitas polêmicas e dividindo ideias, como nos mostra a matéria da redação Rede Jornal Atual. O decreto foi visto como “uma forma de burlar o Estatuto do Desarmamento, vai na contramão de estudos que indicam que maior número de armas nas mãos de civis colabora para o aumento da violência e deve agravar ainda mais a crise na segurança pública” (REDAÇÃO RJA, 2019). A mesma matéria aponta a opinião de duas grandes entidades, a do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgando notas com a perspectiva de que seria necessário, uma nova análise do Congresso Nacional, atrelando o decreto a uma “artimanha” do governo para agradar os eleitores e desviar de outras questões importantes; e a do Instituto Sou da Paz, que condiz com a ideia de que a flexibilização das armas poderá contribuir para um posterior aumento da violência. No entanto, frente a tantas críticas, essa medida não durou muito e mediante o movimento do cenário político atrelado a apontamentos de “inconstitucionalidades” por parte das outras instâncias do estado democrático o Decreto foi revogado, e posteriormente o executivo editou ainda outros sete decretos tratando da temática, provocando um cenário que como apontado por vários jornais trouxe muita confusão principalmente para a sociedade civil na compreensão de qual medida de fato está ativa no Brasil. Frente todo esse movimento de aplicações de medidas e vetos sobre uma mesma temática, considerando as últimas medidas realizadas pelo executivo, em torno da temática do porte e posse de armas, destacamos para análise, o Projeto de Lei PL 6428/2019, de 12 de dezembro de 2019 e o Decreto nº 9.846 de 25 de junho de 2019, que ainda traz em seu corpo muitas das questões presente no primeiro Decreto do mês de maio que ocasionou tanto movimento, sendo assim, estas duas medidas também muito traduzem as premissas do governo para com a temática da chamada defesa individual, pautadas em medidas que se movimentam entre tantas para, a autorização 3416

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI do porte e posse de armas a diversas profissões trazendo mudanças inclusive para profissionais atuantes nas instituições de proteção a população infanto-juvenil, assim como novos regimentos nas instituições de tiro desportivo facilitando esse acesso a essa prática, o que impacta o diretamente o grupo em vulnerabilidade a qual damos destaque neste trabalho, ou seja, as crianças e os adolescentes, bem como os manejos do próprio funcionamento do sistema democrático brasileiro. Nas próximas linhas poderemos identificar bem essas questões. Sobre este primeiro ponto das medidas, atrelado ao movimento da permissão do porte de armas para novas categorias, temos entre os contemplados, contemplados pelo Projeto de Lei PL 6428/2019: (...) XIII - agentes socioeducativos; XIV - agentes de trânsito; XV - oficial de justiça e oficial do Ministério Público; XVI - agente de fiscalização ambiental; XVII - membros da Defensoria Pública; e XVIII - advogados públicos federais. (...) (BRASIL, 2019). Considerando o que implica a população em destaque por este trabalho, que são as crianças e os adolescentes, tem-se que o PL traz a proposição de ampliar o acesso a armas de fogo, cuja permissão é dada inclusive, à agentes da política de proteção de crianças e adolescentes, integrantes do Sistema de garantia de direitos, entre estes: agentes do sistema socioeducativos. Em consonância com a flexibilização para os indivíduos que “obedecem às regras”, e tratando do segundo ponto destacado nessas medidas do governo Bolsonaro, tem-se o decreto nº 9.846 de junho de 2019, que traz em seu corpo outra medida bastante considerável, que é a modificação da prática de tiro por indivíduos menores de idade, como infere o seu Art.7º: “Art. 7º A prática de tiro desportivo, nas modalidades aceitas pelas entidades nacionais de administração do tiro, por pessoas com idade entre quatorze e dezoito anos:I - será previamente autorizada conjuntamente por seus responsáveis legais, ou por apenas um deles, na falta do outro;II - se restringirá tão somente aos locais autorizados pelo Comando do Exército; III - poderá ser feita com a utilização de arma de fogo da agremiação ou do responsável legal, quando o menor estiver por este acompanhado”. Vale ressalta que, antes dos decretos, a prática para crianças e adolescentes estava condicionada a um aval judicial, ou seja anteriormente se colocava: \"a prática de 3417

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI tiro desportivo por menores de dezoito anos deverá ser autorizada judicialmente e deve restringir-se aos locais autorizados pelo Comando do Exército, utilizando arma da agremiação ou do responsável quando por este acompanhado\" (BRASIL, 2004), com o novo decreto ficou fácil o acesso de crianças e adolescente a treinos com armas de fogo tendo como meio apenas a permissão do responsável, como podemos identificar no art. 7º supracitado. Considerando o avanço do ultraconservadorismo no cenário político e social do país, tal Projeto de Lei e decreto nos desperta as seguintes indagações: que indivíduos sociais se tornarão essas crianças aliciadas pelo uso de armas de fogo? Que visão sobre as crianças e adolescentes está se formando em nossa sociedade? Será uma visão progressista em busca de ampliar direitos, ou regressiva? É necessário nos atentar a isto. Pois, ao passo que, na nossa constituição prevalece uma noção de crianças como detentoras de direitos próprios, em que se destaca o reconhecimento da sua condição de pessoa em desenvolvimento (físico e psquíco), sendo estes direitos descritos nos dispositivos de proteção integral a infância preconizados no ECA, bem como efetivados através das políticas públicas existentes que visam a promover o seu pleno desenvolvimento, o que remete a responsabilidade não só da família, mas, da sociedade e do Estado, têm-se que neste contexto, se faz colocar lado a lado adultos e crianças, tanto nas atividades desenvolvidas, em que se tem a permissão de uso de armas de fogo, cuja permissão se fará unicamente sob responsabilidade dos pais, pelo qual tal permissão não se faz definir pelo limite etário, nem exigir do aparelho estatal e jurisdicional tal permissão, por meio do qual não se faz considerar os danos que isso possa acarretar, frente a tais condições, não estaria assim se impondo como caminho, o retrocesso, no tratamento à infância no Brasil? Além dessas questões, cabe outras reflexões: considerando a realidade brasileira, de extrema desigualdade, não seria mais uma medida que impulsionaria essa contradição? Não seria mais uma vez a população, negra e pobre e vulnerável, que mais sentiria o poder dessa “liberação”? a quem um projeto de flexibilização de porte e posse de armas mais atingiria se não a população mais pobre do país? É de se pensar, considerando que os corpos negros e pobres são os que além de superlotarem celas de presídios, também são os que mais ocupam os cemitérios, em virtude de um modo de produção erguido na exploração de uma classe sobre a outra, numa condição de 3418

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI organização social em que o papel do Estado que se volta muito mais para ações repressivas e não investe no que poderia melhor as condições dessa população - dando outras perspctivas que muitas vezes são buscadas no mundo do crime - que é ampliação de políticas públicas sociais. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao consagrar a Doutrina da Proteção integral, e colocar a criança na ordem jurídica em igualdade de posições e sujeito de direitos, criado em consonância com as Convenções internacionais e a própria Constituição Federal de 1988, fez com que as crianças e adolescentes passassem a serem vistos como sujeitos de direitos que gozam de direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, devendo ser-lhes assegurado o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social em condições de liberdade e dignidade, devendo viver em um ambiente livre de violência e constrangimentos, devendo ser protegido pela sua condição de vulnerabilidade. Tais princípios encontram- se hoje ameaçados com as as medidas tomadas pelo governo Bolsonaro no enfrentamento a violência, no que se destaca as medidas de flexibilização do porte e posse de armas através do, Projeto de Lei PL 6428/2019, de 12 de dezembro de 2019 e do Decreto nº 9.846 de 25 de junho de 2019, quando indicam para a liberação de armas por profissionais que lidam diretamente com instituições de garantias de direitos de crianças e adolescentes, bem como a facilitação do contato de crianças e adolescentes com armas, colando em questionamento qual a perspectiva sobre essa população está sendo cultiva, em especial pelo Estado. REFERÊNCIAS BBC. Bolsonaro presidente: As propostas com as quais Jair Bolsonaro se elegeu presidente do Brasil. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil- 46012309. Acesso em: 20 abr.2019. BOSCHETTI, Ivanete. Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010. BRASIL. Decreto Nº 5.123/ 2004. Regulamenta a Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - SINARM e define crimes. Presidência da República Secretária-geral Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF, 01 jul. 2004. Disponível 3419

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5123.htm. Acesso em: 16 jun.2020. BRASIL. DECRETO Nº9.785, DE MAIO DE 2019.Regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, para dispor sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição e sobre o Sistema Nacional de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas BRASIL. DECRETO Nº 9.846, DE 25 DE JUNHO DE 2019.Regulamenta a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, para dispor sobre o registro, o cadastro e a aquisição de armas e de munições por caçadores, colecionadores e atiradores. Presidência da República Secretária-geral Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, DF, 25 jun.2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019- 2022/2019/Decreto/D9846.htm. Acesso em: 17 jun.2020. BRASIL. Lei nº 8.060, de 13 de junho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul.1990. BRASIL. Poder Executivo. PROJETO DE LEI PL 6438/2019. Altera a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas - Sinarm e define crimes, e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=223398 6. Acesso em: 17 jun.2020. CARCANHOLO, Marcelo. Causa e formas de manifestação da crise: uma interpretação do debate Marxista. 1996. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ), 1996. Disponível em: https://pt.calameo.com/read/0001407492397811573bc. Acesso em 09 fev. 2020. CASTELO, Rodrigo. O canto da sereia: social-liberalismo, novo desenvolvimentismo e supremacia burguesa no capitalismo dependente brasileiro. EM PAUTA, Rio de Janeiro, n31, v.11, p.122,2013. R7cidades.Brasil é o 9º país mais violento do mundo, segundo a OMS. 17 maio.2018. Disponível em:https://noticias.r7.com/cidades/brasil-e-o-9-pais-mais-violento-do- mundo-segundo-a-oms-17052018. Acesso em: 17 jun. 2020. REDAÇÃO RBBA. Decreto de Bolsonaro que facilita porte de armas é criticado por especialistas. Rede Brasil Atual. 2019. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2019/05/decreto-de-bolsonaro-que- facilita-porte-de-armas-e-criticado-por-especialistas/. Acesso em: 21 dez.2019. WACQUANT, LOÏC. Prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 3420

EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS ESTADO REPRESSOR, NOVA POLÍTICA NACIONAL DE DROGAS E SUAS IMPLICAÇÕES PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES Nataly Isabelle Pessoa da Silva Pinto1 Camila Ariane Monte da Purificação² Jussara de Melo Ferreira³ Patrícia da Silva Andrade4 RESUMO Este trabalho tem como objetivo, considerando as tendências do capitalismo contemporâneo, analisar a implantação da Nova Política Nacional de Drogas do governo Bolsonaro enquanto uma das medidas de enfrentamento a violência e como essa medida implica na vida de crianças e adolescentes. Buscou-se com a pesquisa, discutir as principais mudanças que o Decreto 9.761/2019 que institui a Nova Política Nacional de Drogas ( PNAD);e a Lei nº 13.840/2019 que acrescenta e altera normas da Lei de drogas, trazem para o tratamento do abuso e uso de drogas, visando a municiar à defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes. Palavras-Chaves: Proteção Social. Violência. Estado Repressor. ABSTRACT This work aims, considering the tediousness of contemporary capitalism, to analyze the implementation of the New National Drug Policy of the Bolsonaro government as one of the measures to confront violence and how this measure implies in the lives of children and adolescents. The research sought to discuss the main changes that Decree 9.761 / 2019 that institutes the New National Drug Policy (PNAD); and Law No. 13,840 / 2019 that adds and alters norms of the 1 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), bolsista do PIBIC pelo do Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil. E-mail: [email protected] ² Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), colaboradora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil. E-mail: [email protected] ³ Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: [email protected] 4 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E-mail: [email protected] 3421

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Drug Law, bring to the treatment. abuse and drug use, aiming to provide the defense of the human rights of children and adolescents. Keywords: Social Protection. Violence. Repressive State. INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados da pesquisa intitulada “As medidas do governo Bolsonaro no enfretamento a violência e suas implicações a população infanto-juvenil”. Trata-se, de uma pesquisa bibliográfica e documental, que se faz desenvolver em dois momentos. Num primeiro momento foi feito a pesquisa bibliográfica, onde buscamos uma apropriação das categorias teóricas que permitiu nos apropriar do objeto de estudo proposto, tais quais: Proteção Social, Violência e Estado Repressor, buscando identificar como estas vem atingir a população infanto-juvenil. Num segundo momento foi realizado a pesquisa documental que se fez realizar mediante a consulta de documentos oficiais, tais quais: Bibliografias, Decretos Presidenciais e Projetos de Lei. A coleta de informações permitiu analisar a realidade da violência/criminalidade no Brasil, em especial no que atinge crianças e adolescentes e como o Estado, tomando como referência o período que corresponde ao primeiro ano do governo Bolsonaro, tende a responder a essa problemática, dando ênfase as medidas em torno da questão das drogas. 2 O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E O NEOLIBERALISMO NO BRASIL O Capitalismo é o sistema, político, econômico e social que há seis séculos perdura de modo homogêneo no cenário global. Entre as principais características desse complexo sistema produtivo, podemos destacar, sem a pretensão de limitar, a polarização marcada por uma sociedade dividida por classes sociais - de um lado os donos de meios de produção e de outro os vendedores de força de trabalho - burguesia e classe trabalhadora. Outro ponto que marca a existência desse modo de produção é a incidência de crises, processo inerente ao funcionamento do capitalismo, marcando seu aspecto contraditório e a natureza cíclica do capital. As crises surgem enquanto fator necessário para que o capitalismo se reinvente ao longo do tempo, ou seja, as crises “são soluções momentâneas, violentas, das 3424

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI contradições existentes, irrupções violentas que restabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado” (CARCANHOLO,1996; apud; MARX, 1888, VL. IV, p.179). Para facilitar a compreensão sobre as crises podemos entendê-las sobre dois modos considerando o espaço e intervalo da crise. O primeiro é o da crise cíclica, podendo ser identificadas em determinado recorte do globo, em que se destaca a sua curta duração. Já o segundo, diz respeito à crise de cunho estrutural/ endêmico, em que entre suas características, pesam uma força de impacto de alcance global, no qual toda a estrutura capitalista, ou seja, o campo social, cultural, político e econômico, são atingidos, desdobrando-se de modo intenso e com longa duração. No que concerne a incidência das crises no campo histórico; as cíclicas se dão em frequência no desenvolver do capitalismo, diferente das crises estruturais. Segundo Netto (2012), a história é marcada por apenas três crises estruturais, sendo a primeira na década de 80 do século XIX, propriamente em 1873, eclodindo principalmente na Europa e com a duração de cerca de 20 anos, a segunda, em 1929 conhecida também como a Grande Depressão, que foi se espalhando por todos os países do globo e deixando um rastro devastador, e a terceira, é a que eclodiu em meados de 1970 e que perdura até os dias atuais. O capitalismo cria formas de enfrentamento, é importante pontuar que métodos aplicados pelo capital não seguem um padrão, pois como descreve Boschetti (2010) as crises dependem do “grau de desenvolvimento do capitalismo; forma de organização das classes sociais e formas de constituição e desenvolvimento do Estado em dado momento histórico” (BOSCHETTI, 2010, p. 65). Diante disso, as respostas dos governos são diferentes, o sucesso disto, sempre irá a depender da correlação de forças em dado momento histórico. Vale ressaltar nesse processo, o papel do Estado enquanto parte integrante do capital, exercendo a função social de garantir a manutenção deste sistema produtivo em favor da classe dominante. A crise de 1929 marca a primeira crise após a revolução industrial, diante disso, para o restabelecimento da acumulação do capital foi usado as estratégias do fordismo/ keynesianismo, e “para assegurar o consumo de massas, instituindo políticas de regulação econômicas com ação ativa do Estado na geração de emprego, tanto no setor público quanto no setor privado, garantindo ampliação de rendimentos e salários, mas também por via indireta, por meio das políticas sociais. As políticas sociais, portanto, se 3425

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI constituíram em medidas essenciais na resposta à crise de 1929.” (BOSCHETTI, 2010, p. 67). Já no que concerne à crise atual que diz respeito ao atual momento histórico do modo de produção capitalista, diferente do que aconteceu anteriormente em 1929, à contenção dessa nova crise vem se dando por meio de uma restruturação produtiva sob uma política meramente neoliberal, no qual os neoliberais após a crise do Wefare State (em português estado de bem estar social), modelam seus argumentos em torno da culpabilização da existência de um Estado regulador e também das políticas sociais criadas, indicando que a quebra da acumulação e do crescimento da taxa de lucro do mercado se relacionam ao modelo de Estado que cedeu muito para o social, se faz como necessário apenas a lógica da mão-invisível com a defesa que todos possuem a mesma oportunidade no mercado. Nesse processo, o neoliberalismo baseia seus alicerces no tríplice: flexibilização, desregulamentação e privatização – que vai da produção, das leis trabalhistas, até as relações de trabalho, desmontando as regulamentações comerciais, e privatizando todo o patrimônio estatal. Em conjunto, também destacam-se os modos de tratamento para com a Questão Social. Entre as medidas estatais se atrela um modelo de Estado Penal em sobreposição ao estado social de outrora, há nesse cenário a investida de um Estado que aciona políticas com caráter punitivo e não social, que passam a ser direcionadas em especial, a população que mais precisa e/ou depende das políticas sociais, a população em vulnerabilidade social, caindo sobre elas não objetivo de controle social, necessário ao funcionamento do capital, frente as contradições do capitalismo em que se destaca a desigualdade, a proliferação da miséria e consequentemente da violência. Especificamente no Brasil, o neoliberalismo chega de forma tardia, o país vivencia desde 1990 um “tensionamento permanente entre a restituição do Estado democrático, com ampliação dos direitos e políticas sociais e sua materialização em contexto mundial” (BOSCHETTI, 2010, p. 70). Todo processo de desenvolvimento no Brasil deu-se através de uma modernização conservadora e o país vive sob o comando do capital financeiro, que busca redefinir as estratégias de acumulação e impor uma reforma de Estado. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) destaca-se o predomínio da lógica neoliberal, a partir de medidas como ajustes ficais, projetos de 3426

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI reformas na contra mão dos direitos sociais, ao lado de privatizações de instituições estatais, medidas econômicas visando à abertura de mercados, e em benefício do capital financeiro. Tendências que não se encerram por completo após a governança de FHC, os governos do PT (2003-2016), mesmo colocando-se enquanto alternativa ao neoliberalismo, sob uma perspectiva da socialdemocracia e trazendo importantes avanços no campo dos direitos sociais para os trabalhadores/as, apresentaram uma continuidade às propostas do governo de FHC, resultando por exemplo em um dos momentos históricos em que os Bancos mais lucraram. Contudo, em 2016, o cenário de dominância do neoliberalismo se aprofunda, após o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, e mesmo os feitos pelos governos do PT que muito favoreceram os grupos minoritários e as populações mais carentes da nação, sofrem um processo de sucateamento, no qual a presidenta é retirada da cadeira presidencial, sinalizada por impeachment, que na verdade foi um tipo peculiar de golpe de Estado, articulado pelo parlamento e pela oposição, em que no momento de crise interna recebe o apoio da população, via manifestações. O resultado desse processo culmina na ascensão do poder pelo vice-presidente Michel Temer, que traz para a mesa uma política que vai de contramão da política de governo eleito democraticamente. Temer, assume com uma postura ultra neoliberal, na execução de medidas austeras, que apontam retrocessos no tocante as políticas sociais, destacando-se entre elas, a EC/95 conhecida como PEC do fim do mundo que congela os gastos sociais (educação, saúde e assistência) por até 20 anos, entre outras ações. Acenando assim, para a retomada do avanço violento da ofensiva neoliberal no país, que não se encerra chegado ao fim da governança de Temer, mas que propaga-se também após as eleições de 2018, erguido e guiado por toda uma mobilização antipetista, atrelada a um movimento de fake News, apelo moral e polêmicas, resultando na ascensão do governo representado pela figura de Jair Messias Bolsonaro. A indicativa do Governo Bolsonaro enquanto continuidade do golpe, já se deu pelas características em torno de suas posturas, ainda no período eleitoral, com um tendencioso teor ultraconservador e neoliberal, que pode ser facilmente observada, em matéria da BBC (2018), em oposição inclusive ao ECA por exemplo. Portanto já era de se esperar, que o andar de medidas acionadas em seu primeiro ano de mandato indicaria 3427

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI tanto a continuidade do projeto neoliberal aprofundado por Michel Temer, quanto o avanço do conservadorismo no país. Entre as principais ações do governo no primeiro ano destacamos, em virtude do objetivo do estudo, o acionamento de medidas que tratam especificamente da segurança pública, associadas a questão do controle à criminalidade, debate que já vinha sendo predominante no país, considerando que, segundo a ONU , em matéria do R7cidades(2018), o Brasil ocupa o nono lugar no ranking dos países mais violentos do mundo mediante as altas taxas de homicídio, realidade que atinge a população infanto- juvenil, considerando que entre pessoas de 0 - 19 anos, temos um número expressivo de mortes, só em 2018 foram notificados 10.067 casos de óbitos por homicídio, nestes, 8.880 obedecem o perfil de pessoas negras e pardas como vítimas, o que indica que milhares de crianças e adolescentes tem sua vida encerrada antes do tempo pelo fenômeno do homicídio. (OBSERATÓRIO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE,2018). Entre as medidas de enfrentamento do governo, destaca-se mudanças no campo do tratamento do uso e do abuso de drogas, alterações que nos deteremos em momento posterior deste trabalho. Antes de adentarmos especificamente na abordagem e análise sobre essas medidas que pesam no tratamento das drogas e as implicações para vida de crianças e adolescentes, iremos refletir um pouco mais sobre o caráter do Estado Repressor, no qual, como característica da vigência de organização do capital preponderam ações do Estado mediante práticas de controle e repressão na contramão de avanços de políticas sociais. 3 O ESTADO PENAL NA CONTEMPORANIEDADE O capitalismo contemporâneo é marcado por uma reestruturação produtiva guiada pela ofensiva neoliberal que vem trazendo, entre outras consequências, retrocessos para a vida da população, nesse cenário como resposta ao menor Estado social dá-se o Estado Penal, como medida para lidar com a questão Social resultante das contradições do capital, sendo esse modelo estatal atuante com a perspectiva de controlar a sociedade, visto que a ausência/ fragilidade de políticas essenciais como, a educação, saúde e assistência aprofundam, a desigualdade, a miséria e a violência, moldando um cenário que vem colocando à tona o fenômeno da militarização da vida social, em que se expressam frente a esse fenômeno, o encarceramento em massa e a 3428


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