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Eixo 1 ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2022-09-27 01:23:21

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ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS construção do Sistema de Proteção Social no país. Num segundo momento, apresenta-se o lugar do território rural perante as políticas públicas sociais, o qual se configura no mundo da agropecuária, por meio do agronegócio com a exploração capitalista e da agricultura familiar sem perspectiva de mudança estrutural e cultural, sem objetivos de superação das desigualdades sociais e da pobreza que contribuem para a dicotomia entre Urbano e Rural. Os embates de ideias têm como objetivo demonstrar que o espaço rural requer políticas para além do capital, pensadas na realidade das famílias que habitam as comunidades e com isso torná- lo um espaço que valoriza seus sujeitos de direitos e evita que saiam em busca de melhorias no meio urbano. 2 DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL Para se compreender a abordagem dos direitos e das políticas públicas no Brasil, reflete- se criticamente a importância de recorrer à visão dos clássicos e posteriormente articular suas ideias com a construção do Bem-Estar Social no país trabalhando com a visão de cidadania de Carvalho (2003) e Santos (1994) para tratar da perspectiva de proteção social sob a ótica da sociedade brasileira. Antes dos pensadores brasileiros, Marshal (1967), sociólogo inglês de matiz liberal, já tinha o conceito de cidadania no Século XX, na Inglaterra. Para o estudioso, a cidadania é formada por três partes/elementos constituintes das esferas; civil, política e social. Quando Marshall (1967) pontua que o direito civil surgiu no século XVIII, identifica-o como indispensável para a economia de mercado, tendo a liberdade individual aos direitos políticos surgidos no Século XIX. Os direitos políticos relacionam-se ao direito de participação política de votar e ser votado para contribuir com o processo de formação do Estado. Em se tratando dos direitos sociais, surgidos no Século XX, o autor destaca o direito de participação à riqueza social, o qual “se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (MARSHALL, 1967, p. 63-64). Analisando os direitos sociais nesse contexto, percebe-se que o cidadão precisa de serviços mínimos para a garantia do bem-estar social, que incluem educação, saúde, segurança, renda – serviços ofertados na amplitude estatal. 201

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Analisando os pensamentos de Marshall (1967), entende-se que a cidadania no Brasil não seguiu as mesmas diretrizes da Inglaterra do século XX, uma vez que essa configuração foi invertida, como afirmam as pesquisas de Carvalho (2003). Em uma sociedade marcada por contradições e heranças de governos escravocratas, autoritários, ditatoriais, a população brasileira, em sua maior parcela histórica, vivenciou, sem garantia de direitos civis, políticos e sociais, um tempo em que os direitos sociais na Inglaterra eram ofertados no viés de participação da riqueza da nação enquanto os disponíveis aos brasileiros se configuraram na benemerência, sem nenhuma participação política da sociedade civil. Em seu estudo, o pesquisador deixa claro que, no Brasil, primeiro são garantidos os direitos civis e sociais, posteriormente os políticos, fator que contribuiu para o “comprometimento de uma cidadania ativa” (CARVALHO, 2003, p. 110). As intervenções do poder público brasileiro, direcionadas à garantia de direitos e à cidadania, constitucionalmente, não são algo tão distante em tempo cronológico, porém, segundo Santos (1994), a primeira expressão que se pode citar como algo relevante a esse processo seria a Lei Eloy Chaves de 1923, direcionada aos trabalhadores do setor ferroviário. “Não se tratava de um direito de cidadania inerente a todos os membros de uma comunidade nacional, [...] mas de um compromisso a rigor privado entre os membros de uma empresa e seus proprietários” (SANTOS, 1994, p. 22), marco inicial para o desenvolvimento da previdência social brasileira. Nesse período, àqueles que não possuíam relações de trabalho restavam a filantropia desenvolvida pela igreja católica e demais entidades filantrópicas; na contemporaneidade, os idosos que não contribuíram com a previdência social e que têm mais de 65 anos, sem renda recorrem à política de assistência social (BRASIL, 2005). Esse entendimento é trabalhado por Santos (1994), ao tratar da cidadania como algo regulado pelo Estado, contrapondo-se à abordagem de igualdade de direito do cidadão pregada por Marshall (1967). Santos (1994) apresenta os direitos adquiridos pela sociedade brasileira como “estratégia de governo” para a manutenção do capital, ligando o status social à desigualdade social, pois, no Brasil, o lugar de cidadão na sociedade é denominado pelo processo de acumulação de capital. Nesse contexto, o cidadão seria aquele que estivesse ligado às atividades reconhecidas e definidas em lei como profissão, deixando à margem da pré- cidadania os demais membros da sociedade, dentre estes, os trabalhadores rurais. 202

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Debater direitos no Brasil é primordial para compreender a necessidade de implementação de políticas públicas como um processo de luta pela sociedade e garantia de direitos aos cidadãos pelo Estado. Sendo assim, é pertinente discorrer sobre a visão de Estado e acerca da ligação que existe entre a efetivação das políticas públicas e o capital. Sabendo que as ações do Estado em prol dos direitos adquiridos na sociedade são fruto de sua relação com a classe dominante, uma vez que o Estado desenvolveu “uma vasta maquinaria de manipulação ideológica para ‘integrar’ o trabalhador à sociedade tardia como consumidor, ‘parceiro social’ ou cidadão [...] procurava constantemente transformar qualquer rebelião em reforma [...]” (MANDEL, 1982, p. 341) buscando, assim, sempre intervir através do controle. A discussão do papel do poder público em relação aos direitos sociais está presente na prestação de atividades que não são ofertadas pelo setor privado, haja vista que, na atual conjuntura, as atividades são oferecidas no viés de serviços essenciais. Percebe-se que esse mesmo Estado tenta de todas as formas proteger a sociedade capitalista dominante nas mais variadas perspectivas, através do Judiciário, das forças armadas e/ou do sistema penitenciário, contribuindo para que a ideologia dessa classe esteja sempre em evidência. Sendo assim, a classe trabalhadora não se permite visualizar a exploração de sua força de trabalho e continua, no processo de dominação, sem poder de fala, acreditando que seria um processo inerente à vida em sociedade e que não possui possibilidades de mudanças (MANDEL, 1982). Essa visão esteve e continua presente em qualquer sociedade que possua o sistema capitalista como regulador das relações de trabalho. Foi na relação de meritocracia que os direitos sociais no Brasil, de 1930 a 1970, se constituíram e consolidou-se institucionalmente o Estado de Bem-Estar, apresentando uma relação dicotômica com o universalismo e usando a seletividade em suas ações para alcançar os grupos particulares, sem levar em consideração a visão de que “Estado e sociedade civil compõem uma totalidade, donde não se pode pensar o Estado sem a sociedade civil e vice- versa” (BEHRING, 2009, p. 2). O Estado de Bem-Estar Social, conhecido também como Welfare State, é um sistema de gestão das políticas sociais que teve sua hegemonia nos países capitalistas pós-segunda Guerra Mundial com o intuito de responder aos anseios da sociedade e aos interesses do capital (ESPING-ANDERSEN, 1991). Essa metodologia de se proporem políticas públicas sociais sucedeu-se em 3 (três) características distintas, cada uma liderada por países diferentes. Em se tratando dos modelos 203

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS de Welfare State, Esping-Andersen (1991) destaca o liberal, o conservador e o social- democrata. No modelo liberal, adotado nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália, o bem- estar era voltado principalmente para aqueles que ocupavam um lugar no mercado de trabalho, oferecendo apenas o mínimo. No modelo conservador, adotado na Alemanha, na França e no Japão, a ação protetiva do Estado estava ligada aos regimes corporativos influenciados pela Igreja e comprometidos com a vocação da tradição familiar. Essa ação é ligada à classe e ao status, portanto seu impacto, em termos de distribuição, é desprezível. Nele, a estratificação do sistema de proteção social é alta e a desmercadorização é baixa. Já no modelo social-democrata, representado pelos países escandinavos, Dinamarca, Suécia e Noruega, a intencionalidade dos direitos do cidadão era diferenciada dos demais modelos, pois foi pregado no âmbito da universalidade, tentando uma mobilidade social através do “seguro-desemprego, igualdade e erradicação da pobreza” (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 95). O Brasil tentou trabalhar nessa mesma linhagem, porém, como já citado, o país não avançou; foi necessária a intervenção da sociedade civil com as lutas sociais democráticas para a consolidação do sistema de proteção social no país por meio da promulgação da Constituição Federal de 1988. Para Dagnino (2004) e Draibe (1989), após o processo de luta e conquista da CF/1988, o poder público foi obrigado a trabalhar com o viés da garantia de direitos em vez do favoritismo, instalando um Estado com garantias sociais, em meio a um modelo fragmentado e seletivo de proteção social. Na atual conjuntura, a população conta com um sistema de proteção social voltado para a universalização da saúde e educação, com políticas sociais focalizadas, direcionadas a diversos segmentos sociais que buscam responder às mais diversas expressões da questão social. Apesar das conquistas de direitos com a presença de uma legislação, a política social brasileira ainda requer avanços significativos, desenvolvendo políticas públicas efetivas que contribuam com mudanças estruturais e culturais, tendo como exemplo a realidade das comunidades e trabalhadores rurais, os quais contam com políticas públicas direcionadas à exploração da mão de obra e de programas que estimulam a competividade buscando responder aos anseios do sistema capitalista e excluindo aqueles que não possuem características distintas. 204

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 3 TERRITÓRIO RURAL: O LUGAR DO RURAL NA CONFIGURAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS O conceito de território é uma discussão presente nas mais diversas ciências, sendo que cada área de conhecimento atrela sua denominação (SCHNEIDER, 2009). No referido estudo, a abordagem de território ultrapassa os limites geográficos, pois, ao trabalhar com políticas públicas, é necessário levar em consideração as múltiplas facetas da questão social, que, por sua vez, se apresenta através das “disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais” (IAMAMOTO, 2001, p. 17). Sendo assim, o estudo se assenta na abordagem de que o território é um espaço composto por contradições e relações sociais. A pesquisa em questão tem como cena o território rural que, por vezes, nos olhares de Sant`Ana (2014), ao tratar de políticas públicas nesse contexto, visualiza a precarização nos direitos sociais dos indivíduos das comunidades rurais, sendo que a maior parcela desse espaço é voltada à produção agrícola, ao acúmulo de capital representado pelas grandes empresas nacionais e transnacionais. A “[...] agricultura empresarial, que apenas concentra a terra, explora todo o seu vigor e depois vai embora” (BARBOSA, 2011, p. 10), não oportunizando melhores condições de vida à população rural, excluindo os trabalhadores rurais do processo de trabalho, uma vez que as atividades do agronegócio, em sua maior parcela, são desenvolvidas por maquinarias. “Assentado nessa lógica, o crescimento na agricultura trouxe poucas contribuições para redução da pobreza rural” (PEDROSO, 2017, p. 50). É na perspectiva de obter respostas à situação de pobreza que as famílias das comunidades rurais vão ao encontro das políticas sociais, seja qual for sua situação de vulnerabilidade social, uma vez que “o trabalhador rural assalariado é o principal usuário da política de assistência, seja na condição de migrante que não conseguiu trabalho, [...] seja na condição de trabalhador [...] que não está conseguindo por meio do trabalho garantir sua reprodução social [...]” (SANT`ANA, 2012, p. 154). O problema da pobreza no campo já faz parte da história do Brasil, devido à ausência de infraestrutura das mais variadas políticas sociais que proporcionem melhores condições de vida à população rural, que contribuam com o desenvolvimento educacional, renda, segurança e assim por diante. Neste sentido, para Pedroso (2017, p. 51), “a pobreza no campo é um fenômeno resultante do agrupamento de 205

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS diferentes causas que geram sua manutenção e impedem o acesso às condições que possibilitaram sua superação”. Ao tratar da intervenção do Estado, através de políticas públicas destinadas à população rural, as pesquisas apontam que essas políticas estão mais voltadas ao desenvolvimento da agricultura familiar e primordialmente à produção agrícola, lembrando que, “no atual contexto, são as relações capitalistas que dão a formatação ao modelo de desenvolvimento agrário, embora alguns conflitos éticos e culturais extravasem o âmbito específico das relações capital/trabalho” (SANT`ANA, 2012, p. 153). Essas intervenções estatais não são pensadas na perspectiva de contribuir com o desenvolvimento agrário desse espaço para sua população e sim na visão de “reafirmar um reformismo agrário ‘conservador’, pelo qual não se questionam um dos seus fundamentos centrais da sociedade burguesa, a propriedade privada da terra” (LUSTOSA, 2012, p. 48), negando o direito à terra, o direito de a população rural trabalhar no seu “pedaço” de chão adequado às suas necessidades de trabalho, contribuindo, assim, com a visão imposta pela sociedade dominante e polarizando ainda mais as desigualdades sociais existentes entre campo e cidade. Nesse sentido, entende-se que o lugar do rural na configuração das políticas públicas está voltado para a exploração da mão de obra da população, na exploração do uso da terra, no acúmulo de capital pelo agronegócio e não nas políticas direcionadas aos sujeitos de direitos dessas localidades, negando-se os direitos apontados por Marshall (1967). É importante destacar que os diversos programas destinados ao espaço rural, dentre estes o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) com seus respectivos subprogramas, estão direcionados ao capital e não ao desenvolvimento e superação da pobreza das comunidades, pois as propostas “[...] beneficiam os que detêm poder de decisão sobre as condições necessárias para aproveitar as oportunidades” (GEHLEN, 2004, p. 96). As propostas governamentais direcionadas ao espaço rural devem buscar contribuir com garantias de melhorias para além da agricultura, que contribuam com a permanência dos indivíduos em seu espaço de origem, através de políticas públicas eficientes que respondam às demandas das famílias rurais: infraestrutura, ações voltadas para nutrição, educação, saúde, buscando responder às perspectivas apresentadas a esse espaço sejam elas no âmbito do setor privado e/ou social (GEHLEN, 2004; LUSTOSA, 2012; GAMEIRO; MARTINS, 2018). Além disso, 206

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS para apresentar alternativas que estejam voltadas para minorar as desigualdades, devem-se trabalhar políticas estruturais e culturais valorizando a realidade das comunidades, pois “Um novo olhar sobre o rural complexificado resgata o cidadão crescentemente participativo não só nas suas questões (local), mas também nas nacionais e internacionais, e em processo de diferenciação e profissionalização” (GEHLEN, 2004, p. 96). Pensar em políticas públicas emancipatórias que de fato consigam atingir os objetivos propostos seria um avanço significativo para a superação da situação de pobreza e desigualdades sociais nas comunidades rurais e certamente não seriam necessárias “políticas sociais compensatórias, recomendadas para situações emergenciais e de risco ou de superação de legados históricos específicos, como, por exemplo, incluir segmentos sociais não contemplados historicamente pelas políticas de desenvolvimento” (GEHLEN, 2004, p. 95). Como já citado, a realidade da Política de Assistência Social que, apesar de constituir, em sua maior parcela, beneficiários indivíduos dos territórios rurais, não possui, em suas premissas, ações direcionadas a esse contingente populacional deixando-o aos critérios de sua equipe profissional que, por sua vez, deve buscar adotar estratégias diferenciadas para superar o princípio da homogeneidade apresentado pela política. Para Sant`Ana (2014), por diversas vezes, esses profissionais não possuem de fato leitura suficiente da realidade desse público, sem correlacionar os fatores ligados à desigualdade nas comunidades rurais com as particularidades advindas da questão social. Quando se volta ao debate de políticas públicas e direitos sociais para os sujeitos que estão presentes nesse contexto social, que é o território rural, e correlaciona-os com os autores que pesquisam sobre essa categoria, observa-se que a proteção social preconizada no âmbito da Política de Assistência Social é ausente em sua amplitude das famílias desse território. Isso se dá, porque não há efetivação de direitos sem a presença de equipamentos públicos nesses espaços, sejam eles de Assistência Social ou de qualquer outra política de direito. Sendo assim, o território rural, como espaço de convívio familiar e acesso a direitos sociais, possui uma gama de deficiências devido à ausência do Estado com seus respectivos serviços (BEHRING, 2009). Com base nos conhecimentos de Behring (2009), as políticas sociais ofertadas às famílias e indivíduos brasileiros, sejam elas residentes nos territórios, rurais e/ou urbanos, possuem diretrizes neoliberais, as quais não trabalham na visão da superação da situação de vulnerabilidade social de seu público, e, sim, com uma visão paternalista do Estado mínimo, 207

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS onde os serviços públicos perdem a visão de direito da sociedade e obrigatoriedade do Estado podendo ser ofertados no viés de serviços essenciais disponíveis nas mais diversas instituições privadas. 4 CONCLUSÃO A discussão aqui proposta chama a atenção para a comparação de pontos importantes dos autores por meio dos quais se buscou analisar qual a forma de intervenção do Estado para a materialização do direito social e das políticas públicas com enfoque para o território rural. Percebeu-se que a intervenção do Estado por meio da implementação de políticas públicas é uma forma de solucionar as situações de vulnerabilidade e risco social na conjuntura do capitalismo, porém é interessante destacar que houve soluções de governo e de formas de intervenção em tempos distintos. O estudo se propõe contribuir com as particularidades do contexto brasileiro com cenas da realidade do território rural das famílias e trabalhadores dessa região. Na atual conjuntura sócio-histórica, as análises desenvolvidas no estudo são importantes para se pensar o direito legítimo à cidadania contra a dominação capitalista efetuada através dos princípios de controle da ação estatal, buscando trabalhar no viés de garantia de direitos promulgada pelo Estado para responder às demandas da população. Além disso, pode-se também deduzir que o debate sobre as políticas públicas na cena rural ainda se constitui em programas e projetos voltados para o desenvolvimento do agronegócio. O diálogo aqui proposto se deu no sentido de contribuir para melhor compreensão do lugar do rural na configuração das políticas públicas fazendo isso a partir da discussão entre direitos sociais e políticas públicas universais e buscando entender o porquê de as famílias e os trabalhadores das comunidades rurais não serem percebidos além do agronegócio e da agricultura familiar. Percebe-se que é preciso trabalhar a visão de políticas públicas efetivas que contribuam com a mudança estrutural e cultural desse segmento social através de programas e projetos que valorizem e incluam todos com ou sem habilidades distintas, buscando a superação da situação de pobreza vivenciada pela populção rural. 208

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS REFERÊNCIAS BARBOSA, Thiago Michelini. A cidade e a roça: semeando agroecologia. Rio de Janeiro: AS- PTA, 2011. Diponível em: https://mst.org.br/biblioteca-da-questao-agraria/?tipo=Cartilha. Acesso em: 06 abr. 2022. BEHRING, Elaine Rossetti. As novas configurações do Estado e da Sociedade Civil no contexto da crise do capital. In: Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS, 2009. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política de Assistência Social – PNAS/ 2004. Brasília, 2005. CARVALHO, José M de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política & Sociedade, n. 05, p.139-164, out. 2004. DRAIBE, Sônia Miriam. O “Welfare State” no Brasil: características e perspectivas. Ciências Sociais Hoje, 1989. São Paulo: ANPOCS; Vértice, p. 13-59, 1989. ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova, São Paulo, n. 24, p. 85-116, set.1991. GAMEIRO, Mariana Bombo Perozzi; MARTINS, Rodrigo Constante. O desenvolvimento rural sob regime de verdade: o discurso do Banco Mundial. In: Revista Sociedade e Estado, v. 33, n. 1, p .15-39, abr. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/se/a/H5RRBnTcjLQfvp9c8mrDFLw/?lang=pt. Acesso em: 15 abr. 2022. GEHLEN, Ivaldo. Políticas públicas e desenvolvimento social rural. In: São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 2, p. 95-103, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/j/spp/a/fC3c7q6pWCFJdWTtdjgZTRs/?lang=pt. Acesso em: 14 abr. 2022. IAMAMOTO, Marilda Villela. A Questão Social no Capitalismo. In: Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Revista Temporalis. n. 3. Brasília: UNB, 2001. LUSTOSA, Maria das Graças Osório P. Reforma agrária à brasileira: política social e pobreza. São Paulo: Cortez, 2012. MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982. MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. PEDROSO, Gustavo Lopes. Pobreza Rural e Políticas Públicas: uma análise sobre a estratégia de enfrentamento da pobreza no campo no estado de Minas Gerais. Minas Gerais: EJP, 2017. Disponível em: http://monografias.fjp.mg.gov.br/bitstream/123456789/2433/1/Pobreza%20Rural%20e%20P 209

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ol%c3%adticas%20P%c3%bablicas%20_%20Uma%20an%c3%a1lise%20sobre%20a%20Estrat% c3%a9gia%20de%20Enfrentamento%20da%20Pobreza%20no%20Campo%20no%20estado%2 0de%20Minas%20Gerais.pdf. Acesso em: 03 abr. 2022. SANT’ANA, Raquel Santos. Trabalho Brutal no Canavial: questão agrária, assistência e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2012. SANT’ANA, Raquel Santos. Trabalho e desenvolvimento: a realidade rural e a questão social. In: Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 120, p. 723-745, 2014. SANTOS, Wanderlei Guilherme dos. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1994. SCHNEIDER, S. Território, Ruralidade e Desenvolvimento. In: VELÁSQUEZ LOZANO, Fábio; MEDINA, Juan Guillermo Ferro (Org.). Las Configuraciones de los Territorios Rurales en el Siglo XXI. 1. ed. Bogotá/Colombia: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2009, v. 1, p. 67- 108. Disponível em: https://www.ufrgs.br/pgdr/wp-content/uploads/2021/12/726.pdf. Acesso em: 18 mar. 2022. 210

EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS ESTADO E ROTAÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: “reformas” previdenciárias dos RPPS no Nordeste, fundo público e o papel anticíclico da máquina estatal STATE AND CAPITAL ROTATION IN CRISIS: social security “reforms” of RPPS in the Northeast, public fund and the countercyclical role of the state machine Ingred Lydiane de Lima Silva1 RESUMO Os fundos de pensão, previdência privada fechada por capitalização, são uma forma funcional do capital financeiro. Estes detêm nos títulos da dívida pública uma de suas principais fontes de rentabilidade. Não é à toa que a contrarreforma da previdência é central na agenda neoliberal, restringir a política previdenciária é expandir o mercado financeiro no país. Diante de tal conjuntura e contra os anseios neoliberais, o Estado assume um papel indispensável para reprodução do capital. Nesse sentido, temos como objetivo problematizar a figura do Estado capitalista e o papel anticíclico que assume para reprodução do capital através da financeirização da previdência via contrarreformas. Palavras-chave: Estado Capitalista; papel anticíclico; contrarreformas da previdência. ABSTRACT Pension funds, closed private pension plans, are a functional form of financial capital. These hold public debt securities as one of their main sources of profitability. It is not by chance that the social security counter-reform is central to the neoliberal agenda, restricting social security policy is to expand the financial market in the country. Faced with such a conjuncture and against neoliberal aspirations, the State assumes an indispensable role in the reproduction of capital. In this sense, we aim to problematize the figure of the capitalist State and the countercyclical role it assumes for the reproduction of capital through the financialization of social security via counter-reforms. Keywords: Capitalist State; anticyclic paper; pension reforms. 1 Graduada em Serviço Social. Mestranda em Serviço Social e Direitos Sociais pela UERN. @[email protected] 211

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO A valorização pela via financeira, o avanço do neoliberalismo e as transformações do mundo do trabalho não são fenômenos isolados, mas sim processos que fazem parte de uma mesma totalidade, são respostas articuladas do capitalismo em crise na busca pela reprodução ampliada do capital. O conjunto dessas respostas trazem à tona um novo contexto social, econômico, político e cultural para o mundo; o processo de financeirização trata-se de um modo especifico de organização e dominação do capitalismo contemporâneo. A ofensiva neoliberal avança no mundo como uma resposta do capitalismo ao ciclo econômico depressivo, a essência dessa expansão é encontrar condições para direcionar os Estados segundo interesses de classe. No bojo dos ajustes neoliberais ganha destaque o debate sobre a necessidade de “reformar” a política de previdência social, isso não é à toa, já que a previdência privada por capitalização é uma das formas funcionais do grande capital financeiro. Garantir a financeirização da previdência social via contrarreformas é consolidar o mercado financeiro e a ideologia neoliberal. Em outras palavras, é proporcionar ao capital um maior controle sobre o fundo público e expandir uma nova via de espoliação. Diante do desafio que é compreender a conjuntura face ao aprofundamento das contradições do capital, esse artigo busca problematizar a relação entre a concepção marxista de Estado e os subsídios estatais para o desenvolvimento da previdência privada via contrarreformas da política social de previdência. Com base no referencial teórico-metodológico marxista, dividimos o desenvolvimento do trabalho em dois itens. No primeiro, analisamos as contribuições de Marx, Engels, Gramsci, Mandel e Mézáros sobre a relação entre o Estado e a reprodução do capital. Vale destacar que não abordamos as dissidências entre os autores, fizemos uma síntese de suas contribuições sobre a temática. Dando continuidade, no segundo item, debatemos sobre o avanço do neoliberalismo no Brasil e o processo de financeirização da previdência social via contrarreformas. A capitalização dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) na região Nordeste são uma expressão de como o Estado atua a serviço do capital em crise. Contra os anseios neoliberais que defendem a autonomia do mercado, a obra marxista destaca o papel decisivo do Estado para reprodução do capital. 212

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 2 ESTADO E REPRODUÇÃO DO CAPITAL EM CRISE: CONTRIBUIÇÕES DO DEBATE MARXISTA Em contraponto a concepção jusnaturalista, que compreendia o Estado como uma instituição emancipatória funcional a racionalização das relações sociais, Marx (1984) e Engels (1984) o analisou como um espaço privilegiado de exercício do poder da classe dominante. A tese de Engels (1984) é que a origem do Estado na sociedade estava vinculada a alienação do trabalho. Dessa maneira, apesar do Estado se mostrar neutro em relação a mediação da luta de classes, ele é uma instituição que surge para controlar as relações socais e mediar os interesses da classe dominante. “Todas as revoluções aperfeiçoaram essa máquina, ao invés de destroça-la. Os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa estrutura como o principal espólio do vencedor” (MARX, 1984, p.72). Essa é uma análise feita por Marx em seu artigo 18 de Brumário, que analisava a conjuntura francesa dos anos 1848-1851. Por ela, percebemos similaridades com o pensamento de Engels, o Estado é apresentado por ele como um espaço de poder. Não é à toa que ele conceitua o Estado Moderno como o “comitê que administra os negócios comuns da classe burguesa” no Manifesto Comunista (MARX; ENGLES, 2008, p.12). Era perceptível para o autor que a máquina estatal intervia na luta de classes, mais que isso, era um espaço privilegiado de poder da classe burguesa através da coerção. A suposta racionalização das relações sociais tinha em sua essência a espoliação política de classe, uma expressão exposta por Marx (2017) no livro o Capital é a relação entre Estado Moderno Burguês e o processo de acumulação primitiva. O conjunto da obra marxiana foi responsável por evidenciar que o Estado não era neutro, mas sim um instrumento de exploração e poder de classe. Como destaca Marx (1984): “(...) o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe” (MARX, 1984, p.72, grifos nossos). Dito de modo diverso, o poder político não é entendido como algo abstrato, mas sim como uma expressão da materialidade das relações sociais de exploração. Destarte, subsidiado pela obra marxiana, mas vivenciando um novo contexto histórico do capitalismo, Gramsci (1980) levanta novas discussões sobre a concepção de Estado. O autor concorda com a tese de que o Estado burguês tem um caráter coercitivo de dominação, porém para ele, essa instituição se complexificou ao passo em que o desenvolvimento do capitalismo 213

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS acarretou mudanças nas relações sociais. Dessa forma, ele contribuiu para o entendimento de que o caráter coercitivo era apenas uma das faces do Estado. Para Gramsci (1980), o desenvolvimento do capitalismo acarreta mudanças na superestrutura, pois o processo de socialização política faz emergir novos organismos de atuação, os quais ele denomina de aparelhos privados de hegemonia pois se afastam da atuação do Estado restrito. Partidos políticos, sindicatos, escolas, meios de comunicação e igrejas são exemplos de aparelhos privados de hegemonia, que para autor, estruturam a sociedade civil. Desse modo, ele continua entendendo, assim como Marx (1984), que a superestrutura é funcional para reprodução da estrutura, ou seja, que o Estado exerce influência na reprodução do modo de produção. O seu achado foi compreender que a superestrutura do Estado não estaria delimitada na sociedade política, mas também regulada através dos aparelhos ideológicos da sociedade civil. Por isso, conceituam o seu debate de “Estado Ampliado”. Mandel (1985), por sua vez, utilizando-se do conceito “capitalismo tardio” dedicou seus estudos a compreensão do contexto político, econômico e social que foi a transição da fase concorrencial capitalista para consolidação dos monopólios. Para ele, o Estado Moderno é tanto produto do poder político da classe burguesa como instrumento para valorização do capital. Este exerce funções repressivas, integradoras e cria condições gerais de produção que são fundamentais para reprodução da estrutura social. O Estado tem o papel de conservar a reprodução do capital, entretanto, a forma em que ele atua está em movimento tal como o próprio desenvolvimento do sistema (MANDEL, 1985). Se no contexto concorrencial a máquina estatal funcionava como uma expressão de “capitalista total real” (MANDEL, 1985, p.336) através de um parlamento burguês fechado, a transição para o capitalismo tardio trouxe consigo mudanças. No imperialismo ocorre uma hipertrofia do Estado, dentre as mudanças, Mandel (1985) destaca o crescente investimento bélico, a mudança do lócus burguês do parlamento para o executivo, e o crescimento das funções integradoras e da sua atuação econômica via criação de condições para produção. As funções políticas do Estado imbricaram-se organicamente com as suas funções econômicas durante a fase monopolista do capital, o Estado burguês passa a assumir uma multiplicidade de funções, corroborando de forma direta e indireta para reprodução das relações de produção. A ampliação da legislação social face ao desenvolvimento do capitalismo 214

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS monopolista tem relação com a função conservadora do Estado, já que teve um papel ideológico e econômico. A contradição gerada pela acumulação aprofundava a pobreza e a luta dos trabalhadores, a maneira clássica de expropriação política via parlamento já não tinha a mesma resolutividade. O Estado Social foi um programa de estabilização do sistema (MANDEL, 1985). Nesse sentido, uma importante apreensão feita por Mandel (1985) foi a de que apesar da aparência social, o alargamento do Estado no Imperialismo é uma resposta ao aprofundamento das contradições do sistema. A era dos monopólios evidenciou que o “sistema [capitalista] sofre de uma doença incurável” (MANDEL,1984, p.341). A doença a qual o autor se refere é a própria lei de acumulação, ela é incurável já que sustenta a reprodução do capital ao passo que é alicerçada por contradições, que vem se manifestando através de crises cada vez mais simultâneas e extensas. Marx (1988) já alertava sobre essa doença quando destacou que o desenvolvimento do modo de produção capitalista era marcado por uma tendência decrescente na taxa de lucro. Ele analisou que um período marcado por acumulação prolongada alterava a composição do capital, já que ocasionava uma queda no investimento em força de trabalho (capital variável) e um aumento no capital investido em meios de produção, tecnologias (capital constante). A mudança na composição do capital geraria progressivamente uma queda na taxa de lucro e posteriormente uma crise de superacumulação. No capitalismo a crise não é causada pela falta de bens necessários ou pouco desenvolvimento das forças produtivas, mas porque a demanda do consumo não alcança o ritmo da produção (NETTO; BRAZ, 2007). A crise é a interrupção do movimento de reprodução ampliada do capital, é quando o valor criado na produção não é realizado no comércio. Expressa, portanto, que a valorização do capital esbarra em seus próprios limites: um sistema que produz inversamente riqueza e pobreza, por meio da concentração de riqueza e polarização da pobreza. A contradição residiria então no conflito entre produção e distribuição (IAMAMOTO, 2008). No capitalismo tardio, a problemática da concentração de capitais ociosos fica evidente. É justamente nesse contexto histórico que ocorre uma hipertrofia do Estado, demostrando a sua importância econômica e ideológica para o movimento de reprodução ampliada do capital. “A hipertrofia e autonomia crescentes do Estado capitalista tardio são um corolário histórico 215

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS das dificuldades crescentes de valorizar o capital e realizar a mais-valia de maneira regular” (MANDEL,1985, p. 314). A Era dos Monopólios manifesta o ápice da concentração de riqueza concomitante ao aprofundamento das contradições do sistema. Nesse momento, o Estado mostra-se decisivo para administração das crises e reprodução do capital na contemporaneidade (MANDEL,1985). Dito de modo diverso, a crise reafirma que o mercado não consegue se autorregular, ela demostra a importância da máquina estatal e seu papel anticíclico para reprodução do sistema capitalista. Mészáros (2015), referência marxista na contemporaneidade, defende que o capitalismo vem apresentando uma crise com caráter sistêmico e estrutural, com traços inéditos. Para além de uma crise de valorização do capital é uma crise humanitária e civilizatória. Essa analise se aproxima das apreensões de Mandel (1985), que destaca o aprofundamento das contradições sistêmicas no capitalismo tardio. Capital, Trabalho e Estado são unidade dialética no modo de produção capitalista (MÉZÁROS, 2015). Não se pode compreender Estado como uma “parte” da sociedade, de maneira fragmentada do sistema. É preciso mediações com a luta de classes para fazer aproximações com o movimento histórico do Estado. Sendo assim, analisar a intervenção do Estado nas relações de produção capitalista requer um olhar dialético, pois apesar da função fundamental do Estado ser o subsidio da reprodução do capital, a forma como ele intervém depende das condições de cada contexto histórico e em cada formação social. 3 OFENSIVA NEOLIBERAL E A FINANCEIRIZAÇÃO DOS RPPS NO NORDESTE O desenvolvimento do modo de produção capitalista é marcado por um movimento desigual e combinado, dessa forma, é errôneo pensar o processo de desenvolvimento capitalista nos países pautando-se por fases. O Brasil não teve seu crescimento industrial/urbano “atrasado”, mas um desenvolvimento subordinado aos ditames dos países imperialistas. O Brasil é um país periférico que carrega a marca histórica da dependência econômica (FERNANDES, 2020). Para Behring (2003), compreender o desmonte do Estado brasileiro nos anos 1990 e o processo de inserção do país na dinâmica contemporânea do capital, por meio da incorporação 216

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS da política macroeconômica neoliberal requer considerar as condições gerais que lhe antecedem. Em sua análise, existe uma relação direta entre a contrarreforma neoliberal dos anos 1990, a estagnação econômica do país nos anos 1980 e o processo de endividamento durante o período da ditadura militar no Brasil. O “milagre” econômico durante a ditadura militar, período entre os anos de 1969 à 1973 que ficou conhecido pelo alto crescimento econômico, foi segundo Behring (2003) uma articulação do Estado brasileiro, da burguesia nacional e do capital estrangeiro. A queda na taxa de lucro dos países centrais e o acirramento intercapitalista, durante os anos 1960-70, culminou na necessidade de transferência de capital monopolista para periferia como mecanismo de reestruturação do capital na busca por novos nichos de acumulação. É durante esse período, no qual o Brasil era governado de forma autoritária e golpista por militares, que o país adota uma política econômica de cunho desenvolvimentista através da instalação de transnacionais, por meio da abertura de crédito externo, que culminou no crescimento econômico. Entretanto, o custo do desenvolvimento industrial submisso aos ditames imperialistas, no período da ditadura, foi a sujeição do país a acordos políticos que resultou no seu endividamento, a aceitação de juros flutuantes submeteu a capacidade de investimento nacional ao pagamento da dívida pública. O colapso da dívida passou a contribuir com a sangria dos recursos públicos dos países periféricos para o financiamento da reestruturação produtiva dos países centrais. O Brasil ficou submetido a condição forçada de exportador de capital por meio do mecanismo dos juros flutuantes. O endividamento dos países periféricos, dentre eles o Brasil, ganha um novo contexto com a adoção de uma nova política de juros dos EUA. Como consequência do acirramento intercapitalista, os EUA adotaram uma nova política monetária para retomar a hegemonia do dólar, aumentou bruscamente a porcentagem dos juros e rebaixou o prazo dos pagamentos, o que gerou uma queda na taxa de exportação e estrangulamento das economias periféricas. Os anos 1980 passa a ser conceituado como “década perdida” para os países latino- americanos, por conta da forte estagnação econômica do período. O descontrole inflacionário e a pressão em relação ao pagamento da dívida geraram uma situação de “ciranda financeira” no Brasil, através da emissão de novos títulos do tesouro a juros atraentes (BEHRING, 2003). Para Lupatini (2012) a dívida externa e interna se entrelaça neste contexto, com a emissão de novos títulos ocorre um crescimento da dívida interna, que 217

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS passa a valorizar capitais privados do setor exportador. A elevação da taxa de juros alimentou o processo inflacionário e teve como consequência um desequilíbrio no orçamento público do Estado brasileiro, gerando diversas expressões negativas nos anos 1980, dentre elas: desemprego, produção voltada para exportação, empobrecimento e crise nos serviços públicos. O contexto de estagnação econômica e hiperinflação dos anos 80 foram a base para a hegemonia do projeto neoliberal nos anos 1990. O endividamento e a recessão econômica nos países periféricos foram o caminho para o avanço do neoliberalismo. As instituições multilaterais como o FMI, representantes do grande capital, passaram a receitar o neoliberalismo para os países devedores como medida para combater à inflação e atrair capital estrangeiro. A financeirização da previdência social via contrarreformas é um elemento fundamental para compreensão da consolidação do neoliberalismo no Brasil. Não é por acaso que a “reforma” da previdência ganha centralidade no bojo do debate neoliberal, existe um elo, como buscaremos demostrar, entre o desmonte dos direitos previdenciários e a expansão da previdência privada. A necessidade rentista de que a previdência privada se desenvolva é porque está atua como uma forma funcional do capital financeiro. Faremos uma análise desse processo de financeirização da previdência social partindo do estudo da situação da região Nordeste. A criação da previdência complementar na modalidade de contribuição definida (CD) foi um dos principais achados do capital em crise. No plano econômico, por garantir uma grande captura de recursos para devolução a longo prazo, e no ideológico, por disseminar a crise da previdência de caráter solidário, ao passo que se apropria dos recursos públicos e individualiza a aposentadoria, desarticulando a luta dos trabalhadores (GRANEMANN, 2012). A princípio é fundamental evidenciar um elemento basilar para compreensão desse processo: o elo entre a retração da política social de previdência social e a expansão da previdência privada. Em termos marxista, a “reforma” da previdência social e a previdência privada são uma unidade dialética, “uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade” (MARX, 1978, p.115). Em outras palavras, compreender o significado do processo de financeirização da previdência social perpassa a análise desse movimento de negação entre previdência privada e a retração política de previdência social. 218

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Como destaca Granemann (2006), as contrarreformas da previdência social deram subsidio para o desenvolvimento da previdência privada, dita complementar. A implementação dos fundos de pensão foi marcada por emendas constitucionais e leis que restringiram os benefícios dos RPPS. Promulgada no governo de Fernando Henrique, a Emenda Constitucional n° 20/98 criou um Regime de Previdência Complementar (RPC) voltado para os servidores públicos, com caráter de adesão facultativa, também estabeleceu que uma lei complementar seria responsável pela posterior regulamentação. De maneira paralela, estabeleceu a exigência de idade mínima com tempo de contribuição para o acesso a aposentadoria integral no RPPS. Nos casos de aposentadorias voluntárias, estabeleceu-se o critério do cumprimento de tempo de carência no serviço público. Em continuidade as contrarreformas, durante o governo de Lula, a EC n°41/2003 foi aprovada. Um grande desmonte dos direitos previdenciários dos servidores públicos, tendo como principais mudanças a fixação de subtetos salariais, taxação de pensionistas/aposentados ao teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), estabelecimento de alíquota de contribuição e o fim do direito a integralidade e paridade para os servidores que ingressaram no serviço público após a promulgação. Concomitantemente, contribuiu com desenvolvimento da previdência privada, estabeleceu as características do RPC criado por FHC. Definiu o RPC como entidades fechadas (fundos de pensão) de gestão pública, que deverão ser organizados pelo regime de capitalização e ofertar obrigatoriamente planos de contribuição definida (CD). Com todos esses estímulos para o desenvolvimento da previdência privada, a EC n°103/2019, aprovada pelo governo de Bolsonaro, foi o passo decisivo para financeirização dos RPPS no Brasil. A emenda taxou o valor dos benefícios dos RPPS ao teto do RGPS, estipulando um prazo de dois anos para os governos se regularizarem através da institucionalização de Regimes de Previdência Complementar. Em outras palavras, o servidor que entrar no serviço público depois do ato de instituição da entidade de RPC perde automaticamente o direito a integralidade (com base nas contribuições) e tem os seus benefícios limitados ao teto do RGPS. Ademais, a emenda vetou a criação de novos RPPS e estabeleceu que os estados que não aprovassem as medidas atuariais, como adequação do índice da alíquota, ficariam sem repasses financeiros da União. 219

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS A análise das contrarreformas do sistema previdenciário brasileiro demostra a relação entre a retração da política social de previdência social e a expansão da previdência por capitalização. Paralelo ao estimulo que governos deram a expansão da previdência privada observa-se o desmonte dos benefícios do RPPS estruturado pelo regime de repartição simples, através da imposição de uma maior permanecia no mercado de trabalho, restrições no acesso aos benefícios sociais, aumento das alíquotas e redução do valor dos benefícios. O estimulo a previdência privada via medidas legislativas é um exemplo de como o Estado atua a serviço do capital. Concordamos com a tese de Granemann (2006) quando ela afirma que a necessidade da expansão da previdência privada não surge do mundo do trabalho, mas sim de interesses da classe burguesa. Portanto, relacionamos que as “reformas” na previdência social são uma expressão dos interesses rentistas da classe burguesa, na busca pela valorização do capital e de retomada das taxas de lucratividade. As contrarreformas previdenciárias que vem ocorrendo nos estados nordestinos, dada a sua particularidade, são expressões das mudanças constitucionais mencionadas. A implementação de previdências privadas destinadas a servidores públicos foi e está sendo consolidada através do desmonte dos RPPS. QUADRO I. Financeirização dos RPPS no Nordeste Fonte: ANDES. Elaboração própria 220

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Dos nove estados da região Nordeste, cinco estão com Regime de Previdência Complementar em funcionamento: Ceará (CE-Prevcom), Alagoas (ALprev), Bahia (PrevNordeste), Piauí (PrevNordeste) e Sergipe (PrevNordeste); três já aprovaram a criação (Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco) e o Maranhão está com um projeto de lei que versa sobre a institucionalização em tramitação. O que se materializa através do RPC é a financeirização dos direitos previdenciários dos servidores públicos, os benefícios são alienados a lógica de aplicações no mercado financeiro. O modelo de capitalização funciona como uma espécie de poupança, a arrecadação dessas contribuições destina-se a aplicações no mercado financeiro. Deste modo, é perceptível que a previdência por capitalização atende a exigência do capital financeiro em se apropriar do dinheiro dos trabalhadores para transformá-lo em capital. O grande achado econômico é que a modalidade de contribuição definida garante uma grande captura de recursos para devolução a longo prazo (GRANEMANN, 2006). A previdência privada por capitalização garante que o capital financeiro se aproprie do salário dos trabalhadores e o utilize como capital. A sua expansão foi um importante achado do capital portador de juros, um dos mecanismos de circulação do grande capital financeiro, pois garantiu um novo nicho de acumulação por espoliação (HARVEY, 2014). A financeirização da previdência realiza um projeto rentista do capitalismo em crise, que busca valorizar o capital através da apropriação do salário dos trabalhadores por meio da mercantilização do direito à aposentadoria, paralelo a isso, a previdência “complementar” contribui com a desresponsabilização do Estado de suas funções sociais e garante uma maior canalização de recursos públicos para valorização do capital financeiro. 4 CONSIDERAÇOES FINAIS A Financeirização dos RPPS no Nordeste é uma expressão de como o Estado atua em serviço do capital. O avanço da previdência privada é uma demanda econômica e ideológica do capital em crise, que foi e está sendo legitimada através do desmonte da política social de previdência social. Neste sentido, as contrarreformas corroboraram em amplos aspectos: na apropriação dos recursos do fundo público, no incentivo à procura de planos privados de previdência e na capitalização progressiva dos regimes estatais. 221

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Isto é, o Estado está exercendo um papel decisivo para o desenvolvimento do mercado financeiro no Brasil. Apesar da ideologia neoliberal defender a autonomia do mercado, é perceptível que a previdência privada não teria como se desenvolver sem a retração da política social de previdência. Limitar os benefícios do RPPS ao teto do RGPS foi uma das medidas que estimulou os servidores públicos a buscarem complementar sua renda através da participação em fundos de pensão. A previdência privada trata-se de um grande negócio para mercado financeiro, mensalmente parte do salário dos trabalhadores é apropriado e administrado como capital portador de juros. Ou seja, é um achado do capital em recessão, já que é um mecanismo que garante um grande volume de dinheiro com prazo de devolução longo. Dessa forma, analisar o processo de financeirização da previdência social através das investidas contrarreformas, demostra o papel decisivo que o Estado exerce para reprodução do capital em crise na contemporaneidade. É um correlato da atualidade da obra marxista, as escolhas políticas em torno da previdência social não são neutras, elas expressam interesses da classe burguesa. REFERÊNCIAS ANDES. Financeirização nos Regimes Próprios Previdência Social (RPPS) nos estados: Tendências enunciadas na estruturação do sistema e na legislação. Brasília, 2020. BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrareforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. p. 127-212. ENGELS, Fridrich. A origem da família, da propriedade e do Estado (Trad. de H. Chaves). Portugal: Livraria Martins Fontes. p. 45-65. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Curitiba: Kotter Editorial; São Paulo: Editora Contracoreente, 2020. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. P.3-102 GRANEMANN, Sara. Fundos de pensão e a metamorfose do “salário em capital”. In: SALVADOR, Evilásio; BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete; GRANEMANN, Sara. (Org). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012. p. 243-260. GRANEMANN, Sara. Para uma interpretação marxista da ‘previdência privada’. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. 222

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, edições Loyola, 2014. IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em tempo de Capital Fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2008. LUPATINI, Márcio. Crise do capital e dívida pública. In: SALVADOR, Evilásio; BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete; GRANEMANN, Sara. (Org). Financeirização, fundo público e política social. São Paulo: Cortez, 2012. P. 59-93. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. In: Os Economistas, 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. MARX, Karl. Manifesto do partido Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MARX, Karl. O 18 de Brumário. Edições Avante, 1984. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro 3, volume IV. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, [1894] 1988b MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro 1. 2ed. São Paulo: Boimtempo, 2017. MARX, Karl. Para a crítica da economia política (1859). Manuscritos econômicos filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores, 1978. MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. (Trad. Maria Izabel Lagoa). 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2015. NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2007. p. 211-243. SÍTIOS CONSULTADOS: https://www.alprev.com.br/alprev https://www.cearaprev.ce.gov.br/ce-prevcom/ https://www.prevnordeste.com.br/ 223

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 224

EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS ESTADO E SOCIEDADE: relações e imbricamentos1 STATE AND SOCIETY: relationships and imbrications Silvana Barros dos Santos Teixeira2 RESUMO O compromisso pelo bem comum é valor tradicionalmente reconhecido, fortemente influenciado pela contribuição das teorias clássicas de Estado. O objetivo do presente trabalho é compreender o papel do Estado na ordem social vigente e seu imbricamento com a sociedade. A metodologia empregada para a elaboração desta reflexão teve por base pesquisa bibliográfica. Considera-se que o Estado é constructo histórico social, permeado por relações, e que age, predominantemente, a serviço de uma classe dominante, absorvendo as demandas das classes subalternizadas com a finalidade de manutenção de um consenso mínimo para conservação de sua base de sustentação. Palavras-chave: Estado; relações sociais; sociedade civil. ABSTRACT The commitment to the common good is a traditionally recognized value, strongly influenced by the contribution of classical theories about the State. This paper aims to understand the role of the State in the current social order and its imbrication with society. The methodology used to prepare this article was based on bibliographic research. The State is a social historical construct, crossed by relationships, that acts mostly in the service of a dominant class, absorbing the demands of the subordinate classes to maintain a minimum consensus for the conservation of its support base. Keywords: State; social relations; civil society. 1 A presente reflexão resulta de trabalho apresentado como requisito parcial de avaliação na disciplina Estado, Sociedade e ação do Serviço Social na Esfera Pública, ministrado pela Professora Dra. Ariane Paiva do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio. 2 Assistente social e aluna do curso de Doutorado Acadêmico em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Contato: [email protected]. 225

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988 traz em seu primeiro artigo o seguinte parágrafo: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A carta magna ainda afirma, como um dos objetivos do Estado brasileiro, a busca em “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Estas são premissas constitucionais que representam a crença em um ideário configurado a partir do processo de reabertura democrática ocorrido no Brasil na década de 1980. Contudo, diante do cenário atual, surgem muitas indagações acerca do papel do Estado, principalmente, em face do aumento da pobreza e da exacerbação das desigualdades sociais3, elementos contra os quais este mesmo Estado se propõe a enfrentar em seus objetivos. A crença em sua austeridade e na finalidade de atendimento às necessidades da população em geral contribuem na construção de um imaginário coletivo acerca de expectativas sobre as funções e responsabilidades do Estado, uma vez que a promessa constitucional continua tão distante da realidade. Para a construção do presente trabalho, cujo objetivo está em compreender o Estado na ordem social vigente, suas implicações e seu imbricamento com a sociedade, foi realizada uma revisão de literatura com base em contribuições de autores dedicados ao estudo das teorias de Estado e suas implicações sobre as políticas públicas, dentre os quais destacamos Martin Carnoy, Potyara Pereira e Carlos Nelson Coutinho. Desta forma, este artigo realiza uma breve reflexão teórica acerca do papel contraditório do Estado que traz em sua lei maior a finalidade para o bem-comum, mas permite a extrema desigualdade e a descartabilidade das vidas, conforme tem sido observado nos últimos anos. 2 A CONTRIBUIÇÃO CLÁSSICA O Estado moderno é visto sob um aspecto de neutralidade, onde os agentes públicos eleitos democraticamente representam os vários interesses do povo, devendo levar as 3 Fonte: Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/ portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37022&Itemid=448. Acesso em: 22 abr. 2022. 226

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS questões da sociedade à discussão de uma agenda pública. No entanto, segundo Carnoy (1988), a construção deste pensamento tem forte influência das teorias clássicas4. O autor aponta que a perspectiva de democracia pluralista5 tem fundamento no modelo jusnaturalista e no modelo liberal clássico, pois rege-se pela liberdade individual, princípio motor do sistema de produção capitalista. Está implícita nas análises do Estado que se apoiam na visão pluralista a ideia de que o governo pretende servir aos interesses da maioria, mesmo que, na prática, nem sempre o faça. O governo está a serviço do povo, colocado lá por esse povo para cumprir tal função. A concepção de que os indivíduos, coletivamente, devem ser capazes de determinar as leis que os governam é tão antiga quanto as próprias ideias dos direitos humanos e da democracia. (CARNOY, 1988, p. 20). A lei divina, que sustentou relações econômicas e sociais durante séculos, se enfraqueceu diante da valorização do direito individual, levando o Estado autocrático e eclesiástico a um gradual declínio e desencadeando muitas transformações sociais a partir do século XVI (CARNOY, 1988). O Estado passou, então, por um processo essencial de redefinição de seu interior e de suas relações. O estabelecimento da democracia nos governos modernos ocidentais coincide com o surgimento da burguesia enquanto classe social reconhecidamente dominante, na medida em que se dá a constituição e a expansão do modo de produção capitalista. Não obstante, ainda que não seja suficientemente óbvio que a democracia representativa é um conceito cuja origem coincide com o surgimento da burguesia, na prática, sua difusão e institucionalização são identificadas com o crescimento do capitalismo e do poder econômico e político burguês. (CARNOY, 1988, p. 22). Habermas (1990) contribui, nesse entendimento, ao explicar como a classe burguesa, em seu processo de formação, passou a requerer legitimidade na representação política, consolidando seu poder no âmbito das novas relações de produção que se estabeleciam. Neste contexto, este autor propõe uma definição de esfera pública na era moderna a partir da emergência da burguesia enquanto classe social. Para Habermans (1990), o espaço da esfera pública seria essencial para o exercício da democracia. Para ele, um novo equilíbrio das forças 4 Carnoy (1988) utiliza, principalmente, os pensamentos de Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rosseau. 5 Carnoy (1988) atribui a construção da democracia pluralista à prática política estadunidense. 227

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS sociais presentes na sociedade poderia ocorrer por meio de uma força integradora de solidariedade capaz de impor-se perante os demais poderes do Estado e da economia. Habermas (1990), então, propõe a teoria da ação comunicativa que, enquanto alternativa ao poder coercitivo do Estado, contribuiria no processo dialógico entre os sujeitos presentes na esfera pública com vistas a alcançar o status de uma democracia radical. Esta esfera não se confunde com o espaço \"público estatal\", mas, para Habermas (1990), ela se torna um espaço propício para o exercício do debate público, onde os sujeitos poderiam discutir os mais diversos assuntos de forma igualitária. No entanto, Avritzer e Costa (2004) refletem sobre alguns autores que oferecem duras críticas a esta percepção habermasiana de esfera pública, como Nancy Fraser e Paul Gilroy, os quais defendem que a teoria da ação comunicativa se distancia do plano concreto e aponta para um modelo idealizado de exercício da democracia, onde as relações se realizariam de forma igualitária, sem tensionamentos ou disputas por poder. Para Fraser, a ideia habermasiana “não considera as relações assimétricas de poder” que marcam os processos constitutivos das esferas públicas, pois desde a sua formação já se apresentam mecanismos de seleção que excluem grupos discriminados e subordinados (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 711). Gilroy, por sua vez, defende ser imprescindível considerar a diáspora africana, pois mais que reivindicar a igualdade de participação política, faz-se importante discutir como essa política moderna foi construída com base nas representações de mundo do “homem branco”, onde grupos sociais inseridos historicamente na condição de subalternizados e/ou escravizados foram previamente descartados do processo decisório (AVRITZER; COSTA, 2004, p. 712). Assim, considera-se que a legitimidade da classe burguesa para a participação na esfera pública não permite afirmar que sua ascensão significou a igualdade entre os indivíduos, mas entre os indivíduos pertencentes a uma classe social específica, ou seja, a classe dominante. Para Carnoy (1988), as teorias clássicas de Estado contribuíram nos fundamentos do “Estado liberal” que valorizou a natureza do homem e apontou para a necessidade de se delegar o controle das paixões humanas a um ente mediador civilizador apartado do poderio religioso. Nesta perspectiva, o Estado, em teoria, passa a agir movido pelo princípio do bem comum, elevando o interesse público acima dos interesses privados e garantindo o 228

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS funcionamento livre dos mercados. Observa-se, assim, o estabelecimento de um novo modelo de sociedade cujos direitos naturais do homem passaram a afirmar a liberdade individual. O poder e o conhecimento já não eram mais herdados pelo direito de nascimento; eram adquiridos (embora como veremos, isso não fosse inteiramente tão igualitário como pareceria à primeira vista). Agora, os direitos humanos eram uma nova versão do direito de nascimento. Além do mais, os teóricos clássicos conservaram a base “divina” para o exercício do poder: o \"bem comum\". (CARNOY, 1988, p. 23). A admissão de um poder soberano perpétuo capaz de garantir as liberdades individuais – as quais precisariam estar mediadas suficientemente para fazer fluir as relações de mercado – e, ao mesmo tempo, refrear apetites mantendo a convivência social de forma harmônica, faz surgir o Estado laico. 3 ESTADO: RELAÇÃO E CONTRADIÇÃO O Estado possui um conceito bastante complexo, uma vez que só pode ser entendido a partir da análise de sua construção social, cultural e histórica e das relações que o compõem. Segundo a Potyara Pereira (2008), para compreender o Estado, é preciso considerá-lo como fato histórico, existente simultaneamente sob diferentes formas, uma vez que se concretiza por meio da ação mundana e não divina. O Estado precisa ser considerado como “algo em movimento e em constante mutação e, por isso, um fenômeno que tem que ser pensado e tratado como um processo” (PEREIRA, 2008, p. 144). A autora acrescenta que o Estado é relacional, uma vez que não se realiza de forma isolada e circunscrito em si mesmo, sendo um meio e não um fim, pois “interage com outros meios para atingir objetivos que os ultrapassam” (PEREIRA, 2008, p. 145). Sendo um processo histórico, o Estado está atravessado de contradições, somente sendo possível sua compreensão, se for analisado pelas interdependências que ele mantém com a sociedade – seu principal oposto e, também, sua principal complementação (IANNI, 1986 apud PEREIRA, 2008). O Estado, portanto, não é abstrato, nem está fora da realidade ou da história, tampouco é absoluto ou terá sempre a mesma forma. O Estado é típico de uma época, visto que é um fato 229

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS histórico construído por homens e que pode assumir diversas modalidades e configurações (PEREIRA, 2008). A relação dialética realizada pelo Estado comporta simultaneamente antagonismos e reciprocidades e, por isso, permite que forças desiguais e contraditórias se confrontem e interajam de tal forma que uma deixa sua marca na outra e ambas contribuem para um resultado [...]. (PEREIRA, 2008, p. 146). O Estado, então, exerce seu domínio por meio de aparatos institucionais criados para a regulação das relações que o compõem, não sendo soberano, tampouco neutro, haja vista sua necessidade de relacionar-se socialmente, tanto com a classe social dominante, como com todas as demais classes, a fim de sustentar sua legitimidade e fortalecer sua base de sustentação (PEREIRA, 2008). Na ordem social vigente, o Estado constitui-se para fins de controle de indivíduos e grupos, por meio de suas instituições, justificando sua natureza de ente organizador da vida em sociedade. Essa visão do Estado como entidade superior e imparcial aos interesses individuais, ordenador da vida em comum, que Carnoy (1988) demonstra ter tido origem na doutrina clássica, se torna reconhecida, social e historicamente, como força necessária ao funcionamento do pacto social que mantém a ordem entre os indivíduos. Contudo, é preciso considerar que não é sempre que os indivíduos se relacionam pacificamente e, neste sentido, o Estado, constantemente, faz valer a sua força de forma impositiva. Portanto, as relações sociais, “cujo cerne se encontra em um modelo excludente e competitivo, já supõem a existência de conflitos, disputas e tensões, em continuadas rupturas desse suposto acordo social” (TEIXEIRA, 2021, p. 12). Desta forma, para administrar estas relações, o Estado se complexifica e se institucionaliza. Conforme Iamamoto (2014, p. 93), existem, na sociedade moderna, instituições de “controle político-ideológico ou repressivo” que trabalham pela manutenção da ordem e não produzem valor diretamente para o capital. A autora ressalta que se vive em uma sociedade baseada em relações de produção capitalistas, assim, mesmo aquelas atividades que não estão diretamente envolvidas na força produtiva, “são indispensáveis ou facilitadoras do movimento do capital” (IAMAMOTO, 2014, p. 93). O Estado, portanto, institucionaliza suas formas de 230

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS controle repressivo e burocrático, entre outras especializações do trabalho que passam a ser requeridas socialmente6. [...] A razão de ser [destas instituições] é dada pela contribuição que possam oferecer, pois que se encontram vinculadas a estruturas do poder, à criação de condições político-ideológicas favoráveis à manutenção das relações sociais, configurando-as como harmônicas, naturais, destituídas das tensões que lhe são inerentes. (IAMAMOTO, 2014, p. 93). Segundo Carnoy (1988), o Estado, de acordo com o liberalismo clássico, precisaria ter uma atuação mais periférica diante da dinâmica social, deixando livre a atuação da “mão invisível” do mercado, teoria do economista Adam Smith. O autor pontua que Smith defendia essa teoria por acreditar no amor do homem pela sociedade e por defender que o controle de cada indivíduo poderia partir de si mesmo. [...] O mais importante é que essa sociedade (e sua ordem) são possíveis para Smith porque os sentimentos morais que governam o comportamento humano geralmente conduzem à interação positiva entre os indivíduos. [...] Smith considerou a configuração dos sentimentos humanos de tal forma que a sociedade poderia existir sem a intervenção direta da \"vontade geral\" [ou seja, do Estado]; sem dúvida, a vontade geral foi um resultado não intencional das relações positivas generalizadas entre os indivíduos. (CARNOY, 1988, p. 39-40). Nota-se, na doutrina liberal clássica, uma supervalorização da faculdade moral do homem como mecanismo regulador dos comportamentos, e uma relegação do poder controlador do Estado, ente imparcial e superior aos interesses dos homens. Assim, ao passo que responsabiliza as faculdades morais individuais pelo controle das relações sociais, a doutrina liberal, também recorre a fundamentos divinos para justificar a boa ação humana. Para Carnoy (1988, p. 40), Adam Smith confunde “a moral com a motivação para o ganho com o próprio ganho, e novamente nós temos a afirmação de que a luta pelo ganho material é a moral agindo como cimento social”. Smith defendia que o Estado deveria “fornecer a base legal com a qual o mercado [pudesse] melhor maximizar os ‘benefícios aos homens’”, não existindo contradições “entre a 6 Iamamoto (2014), ao refletir sobre a requisição social dos aparelhos de controle e repressão do Estado, contribui para o entendimento do processo de institucionalização da profissão de Serviço Social, a qual passou a ser requerida socialmente a partir das necessidades do sistema capitalista de produção. 231

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS acumulação ilimitada de riqueza e a coesão social” (CARNOY, 1988, p. 42-44). Assim a sua crítica se voltava ao Estado regulador, pois o Estado mercantilista – o qual ele reivindicava – embora fizesse intervenções, estas se davam em favor do desenvolvimento do capital. De acordo com Carnoy (1988), Adam Smith evitou problematizar a estratificação da sociedade em classes, assim como outros autores do liberalismo clássico, como Jeremy Bentham e John Stuart Mill – filósofos do pensamento utilitarista – que defenderam a existência do Estado apenas para garantia da propriedade e da liberdade do mercado, o qual se encarregaria da maximização do bem-estar da coletividade. Este Estado liberal seria, então, controlado pela democracia representativa, tendo o eleitorado o poder de substituí-lo através do voto7. Para Mill, a desigualdade não era algo inerente ao capitalismo, mas acidental e passível de ser remediada por meio do esforço individual (CARNOY, 1988). Embora a formação do proletariado tenha agregado uma agente a mais no jogo das decisões políticas, o fato de a classe trabalhadora não ter contestado o Estado burguês se torna um “problema fundamental não somente para os utilitaristas, mas para os marxistas”, segundo Carnoy (1988, p. 48). Para Przeworski (1979 apud CARNOY, 1988), a classe trabalhadora foi forçada a associar-se com outros grupos sociais a fim de alcançar políticas reformistas, enquadrando-se ao sistema capitalista, ao invés de opor-se a ele. Assim, o pluralismo foi, na realidade, uma estratégia de contenção da insatisfação da classe trabalhadora, favorecendo a aceitação do modelo de democracia representativa8. Para Macpherson (1977 apud CARNOY, 1988, p. 52), o “modelo pluralista faz da democracia um mecanismo para governos escolhidos e sancionados, não um tipo de sociedade ou uma série de fins morais”, retirando seu conteúdo moral clássico. Para Coutinho (1992, p. 74), a gênese do Estado reside na divisão da sociedade em classes, razão por que ele só existe quando e enquanto existir essa divisão (que decorre, por sua vez, das relações sociais de produção); e a função do Estado é precisamente a de conservar e reproduzir tal divisão, garantindo assim que os interesses comuns de uma classe particular, se imponham como o interesse geral da sociedade. 7 Cabe ressaltar, que Mill não defendia o voto igualitário para todos, além de não confiar decisões políticas à massa trabalhadora. Para este pensador, o poder deveria estar sob o controle do segmento mais próspero da população, baseando-se o poder de voto na contribuição diferenciada dos indivíduos (Carnoy, 1988, p. 46-47). 8 Carnoy (1988) demonstra como Joseph Schumpeter influenciou a teoria pluralista, uma vez que entendia que a democracia direta não [era] possível porque nem todos na sociedade [estariam] no mesmo estágio de desenvolvimento cultural. 232

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Elementos das teorias clássicas de Estado estão presentes até os dias atuais, conduzindo reformas políticas e estratégias de controle social. Segundo Coutinho (1992, p. 74), Marx e Engels contribuíram enormemente ao “dessacralizarem” o Estado, “mostrando como a aparente autonomia e ‘superioridade’ dele encontram sua gênese e explicação nas contradições imanentes da sociedade como um todo”. 4 ESTADO E SOCIEDADE: EMBATE, CONSENSO E IMBRICAMENTO O Estado, enquanto constructo histórico, mantém um movimento dialético em suas relações, pois conjuga interesses diversos, inclusive opostos. Segundo Pereira (2008, p. 146), “apesar de ele ser dotado de poder coercitivo e estar predominantemente a serviço das classes dominantes, pode também realizar ações protetoras, visando às classes subalternas, desde que pressionado para tanto, e no interesse de sua legitimação”. Assim, a fim de manter a ordem vigente e a sua legitimidade, o Estado incorpora interesses de todas as classes com que se relaciona, assumindo o caráter de poder público (PEREIRA, 2008). [...] Estudar o Estado é desnudar uma arena tensa e contraditória, na qual interesses e objetivos diversos se confrontam permanentemente. No contexto capitalista, fazem parte dessa arena tanto interesses dos representantes do capital, com vista a reproduzir e ampliar a rentabilidade econômica privada, quanto dos trabalhadores, com vista a compartilhar da riqueza acumulada e influir no bloco de poder. (PEREIRA, 2008, p. 148). Refletindo sobre a construção histórica do Estado e o movimento contraditório que ele comporta, Pereira (2008) ratifica a contribuição de Iamamoto (2014) ao dizer que o Estado é relação de dominação e, também, um conjunto de instituições mediadoras e reguladoras dessa dominação, que agem tanto ideologicamente quanto coercitivamente. [...] Ao mesmo tempo em que a pessoa que governa perde privilégios particulares e deixa de falar em seu próprio nome para falar em nome do Estado, ela não se confunde com o governo, o qual significa um conjunto de pessoas jurídicas e órgãos que exercem o poder político, ou a dominação, numa determinada sociedade. (PEREIRA, 2008, p. 149). 233

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Segundo Pereira (2008), para entender o Estado, é preciso entender a sociedade e sua relação com ele. Para a autora, esta relação tem base em um processo histórico complexo mais bem compreendido se ancorado na teoria de Antonio Gramsci, que foi responsável por problematizar o conceito de sociedade civil9 dentro da teoria crítica marxista, de modo a não refutar, mas ampliá-la. [...] O conceito de “sociedade civil” é o meio privilegiado através do qual Gramsci enriquece, com novas determinações, a teoria marxista do Estado. [...] Gramsci não inverte nem nega as descobertas essenciais de Marx, mas “apenas” as enriquece, amplia e concretiza, no quadro de uma aceitação plena do método do materialismo histórico. (COUTINHO, 1992, p. 74). A formação do proletariado, a partir das revoluções de 1848, agrega novos interesses na arena política de decisões, acarretando diversas transformações nas relações sociais, como a organização partidária socialistas, a criação de sindicatos e entidades organizativas dos trabalhadores, reivindicação de direitos políticos e sociais, instauração do bloco de poder soviético e quebra do entendimento de sociedade civil reduzido à sociedade burguesa (PEREIRA, 2008). Esta conjuntura levou Gramsci a perceber as metamorfoses sociais que tornavam os mecanismos de dominação ainda mais sofisticados, utilizando-se de instrumentos que não se limitavam à mera coerção (PEREIRA, 2008). Segundo Coutinho (1992, p. 75), “[Gramsci] mostra como seu conceito de ‘sociedade civil’, sua concepção ampliada do Estado, parte precisamente do reconhecimento dessa socialização da política no capitalismo desenvolvido, dessa formação de sujeitos políticos coletivos de massa”. Enquanto na teoria marxiana, o Estado é visto de forma restrita como ente coercitivo a serviço da burguesia; para Gramsci, o Estado ganha novas determinações que extrapolam a coerção e visam a um consenso, uma vez que, em perspectiva ampliada, ele se vê obrigado a atender os interesses das classes não dominantes, sendo as políticas sociais resultados do reconhecimento da luta destas classes (PEREIRA, 2008). O Estado em sentido amplo, ‘com novas determinações’, comporta duas esferas principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de ‘Estado em sentido estrito ou de Estado-coerção’), que é formada pelo conjunto de mecanismos através 9 Pereira (2008) ressalta que o conceito de sociedade civil já havia sido utilizado por outros teóricos. Contudo, a concepção do termo, que representa o que se compreende atualmente sobre ele, foi forjado pelo teórico Antonio Gramsci. 234

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência, e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das burocracias executiva e policial-militar; e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto de organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc. (COUTINHO, 1992, p. 75-76, grifos nossos). O Estado ampliado, portanto, reúne aspectos de negociação, consentimento e legitimação. Para Gramsci, a classe dominante buscará manter uma hegemonia, por meio da direção e do consenso, utilizando-se, para isso, desses aparelhos privados da base material de produção (COUTINHO, 1992). Assim, é preciso compreender que a sociedade civil, a partir de Gramsci, não está em oposição ao Estado ou fora dele, tampouco se confunde com o aparelho estatal, mas ganha uma “autonomia material” e integra um conjunto de instituições, organizações que para este teórico, configurarão os aparelhos privados de hegemonia, ou seja, “os organismos de participação política aos quais se adere voluntariamente (e, por isso, ‘privados’) e que não se caracterizam pelo uso da repressão” (COUTINHO, 1992, p. 76 e 77). Com o auxílio da teoria gramsciana, torna-se compreensível o modo de ser e de se relacionar do Estado brasileiro. No Brasil, conforme Coutinho (1992, p. 121), não houve revolução democrática, mas mudanças graduais executadas “pelo alto”, demonstrando a forte hegemonia da classe dominante latifundiária, a mesma que veio a se transformar em classe capitalista agrária. O processo de desenvolvimento do Estado brasileiro em Estado capitalista não contou com a participação de movimentos sociais. [...] Ao invés de ser o resultado de movimentos populares, ou seja, de um processo dirigido por uma burguesia revolucionária que arrastasse consigo as massas camponesas e os trabalhadores urbanos, a transformação capitalista teve lugar graças ao acordo entre as frações das classes economicamente dominantes, com a exclusão das forças populares e a utilização permanente dos aparelhos repressivos e de intervenção econômica do Estado. (COUTINHO, 1992, p. 121). Essas reformas “pelo alto” ou pela “via prussiana”10 ou, ainda, que, segundo Gramsci, se identificam como “revoluções passivas” retratam o modo como o Estado brasileiro, usualmente, tem se antecipado aos enfrentamentos sociais, concedendo frações de 10 Carlos Nelson Coutinho (1992) faz uma referência à conceito leniniano. 235

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS legitimidade aos interesses das classes subalternizadas, ao mesmo tempo que as mantém sob seu controle e marginalizadas do processo político decisório. Um exemplo brasileiro clássico deste processo de antecipação à reivindicação social foi a legitimação dos direitos trabalhistas na Era Vargas11, ainda que restrita a alguns segmentos da classe trabalhadora apenas. Segundo Coutinho (1992), o “populismo” varguista pode ser entendido como uma modalidade de legitimação carismática que visava a incorporar, de modo subalternizado e fragmentado, os interesses da classe trabalhadora. [...] Um processo de revolução passiva, ao contrário de uma revolução popular, realizada a partir “de baixo”, jacobina, implica sempre a presença de dois momentos: o da “restauração” (na medida em que é uma reação à possibilidade de uma transformação efetiva e radical “de baixo para cima”) e o de “renovação” (na medida em que muitas demandas populares são assimiladas e postas em prática pelas velhas camadas dominantes). (COUTINHO, 1992, p. 122). Para Coutinho (1992, p. 126), as classes dominantes brasileiras delegaram ao Estado- coerção, a função de dominação política do Estado, a quem coube controlar e/ou reprimir as classes subalternizadas, obtendo-se, para isso, a legitimidade para o estabelecimento de um consenso mínimo entre as classes por meio de “processos de transição ‘pelo alto’”. As transformações mais profundas na conjuntura brasileira, como o processo de reabertura democrática vivida a partir da década de 198012, podem ser elucidadas ao se analisar o desmantelamento das bases de consenso do governo ditatorial, onde a classe média e segmentos da classe burguesa monopolista deixam de prestar o seu apoio ao regime militar que passa a sofrer uma crise de legitimidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS As medidas interventivas do Estado, no sentido de atender às necessidades das classes subalternizadas, podem ser consideradas recursos paliativos, embora não se desconsidere o fato de que também comportam o resultado de lutas e reivindicações, posto que, para o alcance da hegemonia, faz-se necessário o consenso. Entretanto, é preciso ressaltar que estas 11 A Era Vargas compreende os anos do governo federal brasileiro presidido, ininterruptamente, por Getúlio Vargas, período que durou de 1930 a 1945. 12 No período de 1964 a 1985, o Brasil foi governado em regime ditatorial militar. 236

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS mudanças “pelo alto”, ao se anteciparem ao embate direto entre classes, demonstram não serem capazes de modificar a lógica da exploração capitalista, uma vez que atuam em favor de sua manutenção. O resgate da doutrina clássica permite o entendimento acerca da construção dessa face do Estado – austero, soberano e imparcial – que trabalha em prol do bem comum. Por sua vez, a perspectiva gramsciana contribui na compreensão do contexto sócio-histórico que envolve Estado e sociedade civil, de seu movimento histórico-dialético, além do reconhecimento da existência de assimetrias de poder nessas relações, bem como da presença de diversos interesses antagônicos que, muitas vezes, desencadeiam processos de luta e caracterizam a sociedade civil como um espaço de coerção e consenso. A permissividade do Estado diante do cenário brasileiro de desigualdades, paradoxo de seu objetivo constitucional, apenas confirma seu caráter de constructo histórico social e relacional, predominantemente, a serviço de uma classe dominante, e que absorve as demandas dos subalternizados para fins de manter o consenso mínimo da sua base, com vistas a sua conservação. Contudo, apesar da conjuntura amplamente desfavorável, o movimento das lutas sociais, embora tenham assumido caráter defensivo em prol do mínimo de condições de existência, ainda é capaz de marcar a presença no cenário social e político, sendo indicador da permanência do enfrentamento das desigualdades. Assim, mesmo que, por hora, estejam reduzidas à manutenção do consenso por meio de transições “pelo alto”, é preciso reconhecer que as lutas sociais existem e resistem, vislumbrando um caminho concreto de possibilidades para a transformação da realidade. REFERÊNCIAS AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, no 4, 2004, pp. 703 a 728. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Gráfico do Senado Federal, 1988. CARNOY, Martin. Estado e Teoria política. Campinas: Papirus, 1988 237

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: UNESP, 1990. IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2014. PEREIRA, Potyara. Política Social: temas & questões. Cap. IV – Para maior compreensão da política social: concepções básicas de Estado versus Sociedade. São Paulo: Cortez, 2008. TEIXEIRA, Silvana B.S. Perícia Social e Instrumentalidade: uma face do exercício profissional do Serviço Social no Poder Judiciário, 2022 – Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) - Faculdade do Maciço do Baturité, Fortaleza, 2022. 238

EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS FOUCAULT E O ESTADO MODERNO: uma introdução à analítica do poder FOUCAULT AND THE MODERN STATE: an introduction to power analysis Wécio Pinheiro Araújo1 Thamires Araújo Rios2 RESUMO O objetivo deste artigo é contribuir com a temática do poder e do Estado na modernidade, mediante apresentação de uma aproximação crítica do conceito moderno de Estado com o pensamento do filosofo francês Michel Foucault, com ênfase para a questão do poder. Portanto, dividimos a exposição em dois momentos, a saber: em primeiro lugar faremos uma breve síntese do debate historicamente acumulado sobre a questão do Estado moderno, destacando pensadores como Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau. Em segundo lugar, trataremos o Estado Moderno no contexto do pensamento foucaultiano, resgatando a discussão de como Foucault se posiciona criticamente diante do modelo soberania-Estado, com foco na sua perspectiva acerca do poder e das relações de poder na contemporaneidade, envolvendo conceitos como biopoder, biopolítica e governamentalidade. Palavras-chave: Estado. Poder. Foucault. ABSTRACT The objective of this paper is to contribute to those scholars interested in the theme of power and the State in modernity, by presenting a critical approach to the modern concept of the State with the thought of the French philosopher Michel Foucault, with an emphasis on the question of power. Therefore, we divided the exposition into two moments, namely: firstly, we will make a brief synthesis of the historically accumulated debate on the question of the modern State, 1 Professor efetivo da UFPB (DSS/CCHLA). Doutor em Filosofia pelo Programa de Doutorado Integrado UFPE/UFPB/UFRN, com estágio sanduíche na Alemanha (CAPES/PDSE) junto à Hochschule für Grafik und Buchkunst (HGB/Leipzig). E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Serviço Social pelo PPGSS/UFPB. E-mail: [email protected] 239

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS highlighting thinkers such as Machiavelli, Hobbes, Locke and Rousseau. Secondly, we will treat the Modern State in the context of Foucauldian thought, rescuing the discussion of how the French thinker critically positions himself in the face of the sovereignty-State model, focusing on his perspective on power and power relations in contemporary times, involving concepts such as biopower, biopolitics and governmentality. Keywords: State. Power. Foucault. 1 INTRODUÇÃO O surgimento do Estado Moderno se deu a partir da crise no feudalismo. É importante destacar que na sociedade medieval, eram os senhores feudais que tinham poderes políticos nas suas propriedades sem precisarem obedecer a um poder central estabelecido, ou seja, os poderes eram descentralizados e profundamente pulverizados. Na modernidade, após as revoluções democráticas burguesas, o cenário sociopolítico ocidental sofre profundas transformações, sobretudo no que tange as relações de poder estabelecidas entre sociedade e Estado. Conforme destacam Singer, Araújo e Belinelli (2021, p. 135): As revoluções na Inglaterra, em 1642 e 1688, nos Estados Unidos em 1776 e na França em 1789 moldaram a existência ocidental, sobretudo ao reinventar a democracia – tipo de governo que ficara esquecido na Antiguidade clássica – e transformá-la num projeto civilizatório. Até hoje se vive sob o signo do que ingleses, norte-americanos e franceses fizeram e pensaram algumas centenas de anos atrás. Neste contexto, surgem as pré-condições para a emergência da dimensão institucional na qual o poder adquire centralidade: o Estado democrático de direito. Iniciamos esta exposição com um breve epítome sobre a teoria política do Estado Moderno, com base nos seus principais teóricos, elencados no âmbito do debate historicamente acumulado. Ainda em um período de transição entre a Idade média e a modernidade, Maquiavel3 (1469-1527), em sua obra intitulada O Príncipe (2005) – escrita e publicada no início do século XVI4 –, apresenta um verdadeiro manual com o propósito de analisar as condições de possibilidades concretas para um poder centralizado, absoluto e imutável. Segundo ele, aquele 3 Nicolau Maquiavel foi um pensador florentino (filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico), que se destacou como fundador da ciência política moderna, tendo em vista seus esforços em pensar e discutir as relações de poder sob a perspectiva do Estado e dos governos. 4 Cf. RUSSELL, 1968, p. 20-40. 240

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS que detém este poder centralizado (o príncipe), deve se comportar com estratégia e tática políticas perante o clero, o povo, a nobreza e a milícia (tropa), de modo a manter o seu poder. Para manter o seu poder, o Príncipe precisa levar em as relações de poder que formam um governo como elas realmente são, e não como deveriam ser, isto é, sem idealismos. No seu realismo político, Maquiavel assume a natureza humana como sumariamente egoísta, predatória e inclinada ao conflito. Neste contexto, em uma de suas mais afamadas reflexões, Maquiavel analisa que nasce [...] uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza da alma, são compradas, mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer (MAQUIAVEL, 2005, p. 98). Maquiavel entendia que o príncipe não deveria esperar gratidão dos seus súditos, pois isto colocaria em risco a preservação do seu poder. Vemos que o florentino aponta um ideal – que deveria ser ao mesmo tempo temido e amado –, mas diante da realidade ingrata e litigiosa dos seres humanos, o seu realismo aponta que o príncipe deve preferir ser temido. Na esteira do debate inaugurado por Maquiavel, surge mais tarde no contexto da primeira revolução inglesa, o pensador Thomas Hobbes5 (1588-1679). Para este, diante desta natureza humana predatória e belicosa, o Estado seria responsável por regular as relações humanas, tendo em vista que os homens são movidos por desejos egoístas, ou seja, impulsos que os levam a buscar o atendimento de seus desejos a todo custo, e até mesmo, não raro, de maneira violenta. Na teoria política hobbesiana, todo objeto que desperta o desejo no sujeito é denominado como “bom”, ao passo que tudo aquilo que causa aversão é identificado como “mal”. Essa problemática será desenvolvida na última seção do seu sistema filosófico, dividido 5 Thomas Hobbes foi um pensador inglês (filósofo, matemático e teórico político), que se destacou com sua obra intitulada “Leviatã”, publicada em Paris no ano de 1651. O autor defendia a monarquia absolutista e acreditava que era necessário um contrato social para se chegar a uma sociedade civil. 241

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS em três partes, a saber: i) Corpus: que trata dos corpos em geral; ii) Homo: se debruça em torno do corpo humano em estado biológico; iii) Civis: aborda o ser humano em sociedade, isto é, como um corpo político. Obviamente, esta última é aquela que garantiu o seu legado para a posteridade. Em seu famoso aforismo, “O homem é lobo do homem”, encontrado na obra intitulada Leviatã (1999) – que pode ser considerada os anais de fundação do Estado moderno –, Hobbes sintetiza o argumento de que se não for por meio de um poder absoluto e centralizado, os homens não se respeitam e não sentem prazer em desfrutar da companhia um dos outros, pois cada um espera de outrem o que atribui a si próprio. Assim, para ele, relegados ao seu estado de natureza, os homens viveriam permanentemente em guerra – vejamos um ponto nevrálgico do argumento hobbesiano: Expus até aqui a natureza do homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao governo), juntamente com o grande poder de seu governante, ao qual comparei com o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41 de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou Rei dos Soberbos. Não há nada na Terra, disse ele, que se lhe possa comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas abaixo dele, e é o Rei de todos os Filhos da Soberba. (HOBBES, 1945, p. 466). Portanto, o Estado surge como um corpo político artificial, que por meio de um contrato social, os indivíduos, renunciando as suas paixões – mesmo que parcialmente –, cedem seus direitos de governo de si próprios ao poder estatal estabelecido acima de todos. Nesta direção, para estabelecer a lei e a ordem contra o estado de natureza, o Estado, em nome do bem comum, passa a ter poder sobre a vida dos homens, de maneira centralizada e legitimada na e pela sociedade. Não obstante, encontramos um outro pensador inglês, que traz uma análise do ser humano bem mais condescendente do que aquela encontrada no pensamento hobbesiano. Trata-se do filósofo empirista John Locke6 (1632-1704), que pensou sistematicamente o Estado sob a inflexão da propriedade privada enquanto fundamento do gozo da liberdade, pelo que é considerado o pai do liberalismo. Segundo Locke, mesmo considerados em seu estado de 6 John Locke foi um filósofo inglês e principal representante do empirismo, também foi pioneiro em muitas ideias liberais. Se destacou nos estudos de filosofia política deixando diversas contribuições sobre a noção de Estado de Direito e foi o primeiro a apresentar a divisão dos 3 poderes. Duas de suas principais obras são: Dois Tratados sobre o Governo Civil e Ensaio acerca do Entendimento Humano. 242

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS natureza, os homens não viveriam necessariamente em guerra. Enquanto para Hobbes o que importa é a soberania indivisível capaz de garantir a paz decorrente da lei e da ordem, mesmo que isto se estabeleça por meio de poderes ditatoriais, por outro lado, Locke é um adversário ferrenho do absolutismo, tendo em vista que defende um corpo político amparado em um Estado de direito, sendo a propriedade privada o direito primacial e inviolável deste corpo político. Contudo, mesmo acreditando no caráter positivo tanto da liberdade como da igualdade existente no estado de natureza, Locke não descartava as possibilidades de invasões da propriedade privada, por isso se fazia necessário um contrato social em que os homens pudessem passar do estado de natureza para a sociedade civil. Este contrato social daria plenos poderes ao Estado para organizar a sociedade civil, se colocando como a fonte legítima do poder capaz de mediar conflitos, estabelecer os direitos e deveres dos indivíduos, de modo a evitar injustiças e garantir o direito à propriedade. No que diz respeito à questão da liberdade, não podemos esquecer de Jean-Jacques Rousseau (1721-1778), conhecido como o teórico da Revolução Francesa. No seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (2008), Rousseau toma o seguinte ponto de partida na sua argumentação: “os pobres, só tendo a perder a liberdade cometeram uma grande loucura ao conceder, voluntariamente, o único bem que lhes restava [...]”. Deste modo, Rousseau pretende refutar não somente a tese de Hobbes de que o Estado tem como único objetivo pôr fim à guerra e garantir a segurança e a paz, como também a formulação de Locke que justifica o Estado como garantia do usufruto da propriedade privada. Para ele, ambos acabam por justificar o despotismo e, portanto, deve-se colocar no centro do debate a questão política da liberdade. Em 1762, na obra Do Contrato Social (1999), Rousseau defende um contrato no qual a vontade geral reine soberana de modo que a liberdade, assumida como o valor supremo da condição humana, seja preservada. Portanto, a passagem do despotismo à liberdade civil requer a formação de um corpo político que, segundo ele, deve representar uma coletividade pública, como na antiga pólis grega, que passa a ser chamado de Estado em sua representação passiva; e Soberano quando em sua expressão ativa. Os indivíduos que pactuam este contrato recebem os nomes de cidadãos enquanto “participantes” da autoridade soberana, e povo quando representados como uma massa a partir de uma designação genérica e coletiva. 243

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Estamos diante dos fundamentos do modelo soberania-Estado, que na modernidade, sobretudo a partir do Iluminismo, formula a questão do poder sob a perspectiva de um Estado de direito que seja capaz de conduzir racionalmente a sociedade, de modo a garantir o exercício coletivo da liberdade, motivo pelo qual surge a questão: como equacionar racionalmente o valor supremo da liberdade diante da necessidade do Estado para garantir a lei e a ordem? Essa problemática deu a tônica da própria Revolução Francesa, conforme ficou registrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos”. Contudo, indagamos: é possível pensar a vida política e as relações de poder por meio de um caminho teórico-metodológico que não passa por este modelo soberania-Estado? No sentido de demonstrar introdutoriamente esta perspectiva é que passamos ao próximo tópico da nossa exposição. 2 O PODER EM FOUCAULT E O PARADIGMA SOBERANIA-ESTADO Paul-Michel Foucault (1926-1984), foi um filosofo francês muito influente no pensamento de intelectuais contemporâneos, autor de uma vasta obra voltada para a questão do poder e suas relações com a produção do saber, envolvendo diversas problemáticas correlatas, desde a doença mental, os sistemas de encarceramento, a escola e a sexualidade. O seu interesse com relação ao Estado foi assim resumido pelo próprio: É verdade que o Estado me interessa, mas só me interessa diferencialmente. Eu não acredito que o conjunto dos poderes, que são exercidos no interior de uma sociedade – e que garantem nessa sociedade a hegemonia de uma classe, de uma elite ou de uma casta – se resuma completamente ao sistema do Estado. O Estado, com seus grandes aparelhos judiciários, militares e outros, representa apenas a garantia, a armação de toda uma rede de poderes que passa por outros canais, diferentes dessas vias principais. Meu problema é efetuar uma análise diferencial dos diferentes níveis de poder dentro da sociedade. (FOUCAULT apud REVEL, 2011, p. 56-57). Para Foucault, o poder não é um objeto natural ou uma coisa, mas trata-se de uma prática social constituída historicamente de modo socialmente determinado e culturalmente condicionado, e o mais importante: o poder é algo vivo e que se realiza nas relações estabelecidas entre os indivíduos concretos, processo que está em constante transformação. 244

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Neste sentido, o poder é um instrumento dos desejos e das disputas, que envolvem contradições imanentes a uma rede social de múltiplas correlações de forças estabelecidas primariamente na sociedade, para posteriormente chegar ao lugar formal onde o poder adquire centralidade política e institucional: o Estado. Segundo Machado (2019), para ele, não existe uma teoria geral do poder derivada unicamente do Estado. Em suas análises ele não entende o poder como uma realidade que possui uma natureza ou uma essência ontológica engessada. Foucault não está preocupado em formular um determinado conceito de poder, mas em entender as formas de poder praticadas pelos indivíduos em sociedade; o que ele denominará como uma analítica do poder. Sob a perspectiva foucaultiana, o poder se expande e circula por toda a sociedade, assim como o sangue circula pelo corpo humano, produzindo determinações concretas para e na realidade objetiva dos indivíduos (Machado, 2019). Foucault diz que não entende o poder [...] como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outros e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. A análise em termos de poder não deve postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma dominação; estas são apenas, e antes de mais nada, suas formas terminais. Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade das correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (FOUCAULT, 2018, p. 100-101, grifo nosso). A razão histórica do Estado aparece arraigada a diversos poderes que já existiam, ou seja, “[...] poderes densos, intrincados, conflituosos, ligados à dominação direta ou indireta sobre a terra, à posse das armas, à servidão, aos laços de suserania e vassalagem [...]” (FOUCAULT, 2018, p. 95). Nesta direção, destacamos quatro proposições que esquadrinham a perspectiva foucaultiana do poder. Primeiramente, “[...] o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis” (2018, p. 102). De partida, fica claro a ênfase no caráter dinâmico e multidirecional do poder, ou seja, poder é sempre relação de poder. 245

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Em segundo lugar, “[...] as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimento, relações sexuais), mas lhes são imanentes; são os efeitos imediatos das partilhas, desigualdade e desequilíbrios que se produzem nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas dessas diferenciações; as relações de poder não estão em posição de superestrutura, com um simples papel de proibição ou de recondução; possuem, lá onde atuam, um papel diretamente produtor” (FOUCAULT, 2018, p. 102). Neste ponto, dois elementos são fundamentais e intermutáveis: se de um lado o poder é ao mesmo tempo condição e efeito dos processos imanentes à formação das diversas relações que constituem a sociedade, por outro lado, o poder é a relação produtora de toda estrutura que sustenta os processos econômicos, políticos, da produção do saber, da formação da sexualidade etc. Podemos dizer que o poder não somente deforma ou destrói, mas sobretudo forma e produz os sujeitos em suas condutas, comportamentos e práticas discursivas, de modo determinante para as relações sociais que constituem a vida em sociedade, isto é, vida política. No terceiro ponto apresentado em sua História da Sexualidade (2018, p. 102-103), Foucault argumenta que [...] o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social. Deve-se, ao contrário, supor que as correlações de força múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e nas instituições servem de suporte a amplos efeitos de clivagem que atravessam o conjunto do corpo social. Não é o Estado que do alto estabelece o poder sobre a sociedade, mas, ao contrário, é “de baixo”, isto é, a partir da sociedade, das pessoas concretas enquanto sujeitos sociais e políticos na família, na escola, na empresa, no partido, no sindicato, nos hospitais, na igreja etc., que o poder se produz, circula e só mais tarde adquire centralidade soberana no Estado. Portanto, Foucault não condena o paradigma soberania-Estado, mas apenas demonstra como este é limitado e insuficiente para dar conta dessa perspectiva na qual o poder é apreendido como algo vivo, dinâmico e imanente à formação social dos sujeitos em sociedade, e como esta produz e legitima as normas e instituições que adquirem existência formal no Estado. 246

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS O quarto ponto destacado por Foucault na sua crítica do paradigma soberania-Estado, isto é, o caráter supraindividual no que tange à sua racionalidade: [...] as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de causalidade, de uma outra instância que as explique, mas porque atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente; não busquemos a equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que governa, nem os grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem aqueles que tomam as decisões econômicas mais importantes, gerem o conjunto da rede de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar); a racionalidade do poder é a das táticas muitas vezes bem explicitas no nível limitado em que se inscrevem [...] encadeando-se entre si, invocando-se e se propagando. (FOUCAULT, 2018, p. 103). Por ser algo vivo e dinâmico, o poder não somente é sempre relação de poder, mas também e sobretudo nunca pode ser reduzido unilateralmente a um grupo ou uma classe, por mais que esta apareça como classe dominante do ponto de vista econômico, social e/ou político. Não se trata de negar a dominação, mas de desvendar a sua complexidade no que tange ao poder, sem reduzi-la ao seu caráter econômico ou social, tendo em vista que o poder circula e se estabelece nas e por todas as esferas de uma sociedade, de modo imanente as suas correlações de força. A dominação é real, porém, isto não significa um fluxo unilateral de poder exercido por uma classe sobre outra, nem muito menos que um grupo ou classe detenha o poder em absoluto. No pensamento foucaultiano o Estado moderno se conforma por meio de um conjunto de instituições que buscam a centralização do poder que, na verdade, são poderes. E para isto, emprega mecanismos disciplinares, por meio de dispositivos não estatais, que vão desde a família e a escola, até a igreja e a empresa. Os mecanismos disciplinares são técnicas de poder que atuam sobre os corpos dos indivíduos, modelam seus gestos e comportamentos, de modo a conduzir suas condutas e, assim, produzir corpos dóceis e submissos. A dominação encontra na vigilância uma das principais ferramentas de controle do poder, e que se estabelece não somente de modo relacional, mas também de maneira mútua entre os indivíduos, constituindo assim as chamadas correlações de forças que são capazes de produzir e legitimar as instituições que dão forma política ao Estado. Assim, o poder se consolida como uma rede tecida pelas relações sociais estabelecidas entre os indivíduos concretos, desde o cotidiano da vida privada até a esfera da vida pública – o que Foucault denominou como microfísica do poder. 247

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Revel (2011) explica que Foucault faz uma tentativa de identificar o Estado com sua crise política na história do Ocidente. Para isso ele faz sua investigação através de uma genealogia, isto é, [...] uma investigação histórica que se opõe ao “desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teologias”, o qual se opõe à unicidade da narrativa histórica e à busca da origem, e que procura, inversamente, a “singularidade dos acontecimentos à parte de qualquer finalidade monótona”. A genealogia trabalha, portanto, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso dos princípios e dos acidentes: de forma alguma ela deseja voltar no tempo para restabelecer a continuidade da história, mas procura, em contraposição, restituir os acontecimentos em sua singularidade. (REVEL, 2011, p. 69). Sob esta perspectiva genealógica, Foucault identifica que na formulação encontrada em O Príncipe, Maquiavel abandona sucessivamente o poder representado na figura do príncipe, escolhido por Deus, e passa a se sinalizar uma verdadeira política de Estado. A análise de Foucault se concentra nessas transformações sofridas pelo poder na modernidade, de modo a destacar como passamos de uma centralidade estatal formada no “Estado territorial” – que se define “numa relação com espaço e com as fronteiras” (REVEL, 2011, p. 57), a exemplo do feudalismo –, para um “Estado de população”, que não abandona o aspecto territorial, mas agora passa a incluir “o estabelecimento de um controle capilar e difuso com o objetivo de governar os indivíduos tanto individualmente quanto coletivamente” (REVEL, 2011, p. 57). Podemos dividir a questão em dois momentos: em um primeiro momento da trajetória foucaultiana, o Estado se apresenta com um ideal que não se difere muito do modelo panóptico7, que resulta de uma estrutura administrativa muito poderosa de vigilância dos indivíduos. Em um segundo momento, já na modernidade consolidada, o Estado se volta as necessidades econômicas procurando possuir uma força de trabalho dócil e adestrada, que por 7 O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição o princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprime-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. (FOUCAULT, 1977, p. 177). 248

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS meio de microdispositivos de poderes, acompanhem a produção industrial. É neste ponto que Foucault irá contribuir para a crítica das relações de poder na sociedade capitalista, inclusive sob a perspectiva da luta de classes. Nesta direção, Foucault irá desenvolver a concepção de biopoder. O biopoder se expressa de duas maneiras distintas, mas interligadas, processo que se refere à evolução de uma política disciplinar do corpo (voltada para o indivíduo) para uma biopolítica da espécie humana reconhecida de maneira massificada. O disciplinamento dos corpos busca maior produtividade a partir da reprodução de controles por meio de instituições como escolas, hospitais, prisões etc. Contudo, para consolidar o biopoder, surge a biopolítica, que corresponde aos saberes, normas jurídicas e políticas estabelecidas a partir do final do século XVII, com o objetivo de exercer o controle de fenômenos sociais a partir da submissão dos indivíduos enquanto população. Significa “[...] estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações” (FOUCAULT, 2005, p. 293). Voltada para a população enquanto corpo social, a biopolítica consiste na intervenção sobre as massas a partir da utilização de diversos saberes a respeito de processos biológicos. Mecanismos como natalidade, mortalidade, longevidade, entre outros, alicerçados na biologia e ciência econômica possibilitam uma política que almeja melhoria da população sob uma perspectiva de obter maior produtividade, no sentido de que se apodera dos indivíduos por meio do controle dos seus corpos (FOUCAULT, 2005, p. 190-191), conforme vemos na sociedade moderna enquanto modo de produção regido pela lógica da acumulação capitalista. Portanto, esta lógica produtivista voltada para o lucro, surge a necessidade da biopolítica enquanto uma forma de poder exercida sobre a vida da população enquanto um corpo social. Este processo enquanto tecnologia de poder se mostra se expressa como uma governamentalidade alicerçada no individualismo e na economicização da vida social, a exemplo do que vivenciamos na conjuntura hodierna do neoliberalismo. Foucault se opõe ao Príncipe, visto que, para ele, Maquiavel apresenta uma concepção anacrônica orientada pela conservação, manutenção e proteção do poder, uma vez que no principado por ser exterior, o soberano é “constantemente ameaçado externamente por inimigos que querem tomá-lo, e internamente, por aqueles súditos que não aceitam sua 249

ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS soberania” (CANDIOTTO, 2010, p. 36). Para Foucault (2008), a figura do bom rei do período medieval é substituída por uma figura que almeja a ascensão de um governo para gerir a população. A diretriz de gerir a população reproduz problemas oriundos da soberania e intensifica o uso de disciplinas, de modo que Foucault (2008, p.143) identifica uma sólida associação estabelecida entre soberania, disciplina e economia política, desde o século XVIII até a atualidade. Por sua vez, com relação ao Estado e as táticas gerais de controle técnico e racional da população, este processo adquire um caráter político enquanto tecnologia de poder, pois cada vez mais o Estado se organiza para exercer a governamentalidade orientada por racionalidade – na atualidade, leia-se, a racionalidade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016). Não obstante, temos um giro significativo na relação de Foucault com o modelo soberania-Estado. Conforme ressalta Thomas Lemke (2006, p. 9), o “Estado, que até então havia representado um ponto de referência negativo em sua teoria, passou a ser o objeto central da análise”. À vista disto, a governamentalidade liberal e neoliberal se destacam como problematizações foucaultianas apresentadas nos cursos de 1978 e 1979, no sentido de compreender a questão do Estado na contemporaneidade como a ação de governos sobre a vida biológica dos indivíduos enquanto população, leia-se, a biopolítica. Foucault modifica seu foco de análise, inaugurando a fase do seu pensamento que ficou conhecido como “período ético” (anos 1980), na qual ele busca analisar historicamente a governamentalidade enquanto um [...] conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. [...] Enfim, por “governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado” (FOUCAULT, 2008b, p.143-144). Ao tratar da biopolítica, Foucault (2008a) alarga a sua compreensão acerca da relação entre saber e poder, processo que o leva ao problema da “arte de governar”, esboço daquilo que mais tarde se manifestará na questão de como os sujeitos podem ser governados sob uma determinada racionalidade a partir do Estado, regido pela lógica capitalista. 250


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