ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A analítica do poder e seu método genealógico constituem uma crítica social que politiza a questão do Estado, a partir das relações de poder estabelecidas situadas nos indivíduos concretos. Para além dos rótulos de estruturalista ou pós-estruturalista recusados pelo próprio Foucault, podemos dizer que a genealogia do poder se apresenta como uma alternativa crítica válida e bem fundamentada para analisar a política contemporânea, de modo a repensar o papel do Estado a partir das correlações de forças situadas na sociedade. Desde a família e a escola, até a empresa e o partido político, sob uma perspectiva de controle dos indivíduos enquanto corpo social. Para Foucault, o Estado não pode ser reduzido a um esquema rígido e verticalizado de poder, mas deve ser compreendido sob uma perspectiva de controle imanente aos próprios indivíduos, estabelecida na e pelas relações de poder encontradas na realidade concreta de como estes indivíduos governam a si e uns aos outros de modo a legitimar determinadas formas de governamentalidade. Este processo produz dispositivos e práticas discursivas capazes de modelar as subjetividades e conduzir as condutas que irão, estas sim, produzir as instituições legitimadoras do Estado, regido sob uma determinada racionalidade biopolítica. Foucault analisa o poder como uma prática social que está presente em cada indivíduo por dentro e por fora, cercando-o e preenchendo-o. Ou seja, o poder não se trata de uma coisa estanque que desce do Estado para a sociedade, mas, se constitui por meio de múltiplas correlações de forças que modelam e produzem as instituições que adquirem centralidade no Estado. Isso significa que cada indivíduo participa, ao mesmo tempo que é controlado e modelado, do e pelo poder que se estende por toda rede social que conforma a urdidura da própria luta de classes. REFERÊNCIAS CANDIOTTO, Cesar. A governamentalidade política no pensamento de Foucault. Filosofia Unisinos, 11 (1), p. 33-43, jan/abr 2010. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. 251
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS GOVERNO BOLSONARO E PANDEMIA DO COVID 19: breves reflexões acerca de seu enfrentamento negacionista BOLSONARO GOVERNMENT AND THE COVID 19 PANDEMIC: brief reflections on their denialist confrontation Jousiele Ferreira Simplicio de Oliveira1 Maria Helena Lima Costa2 Monica Barros da Nobrega3 RESUMO O artigo aborda a discussão da política neoliberal no Brasil contextualizando o crescente ataque neoliberalista a partir do governo Temer, e Jair Bolsonaro eleito a presidente pelo sufrágio de 2018. Ressaltamos o papel do Estado e a contrarreforma da política social, que vem enfrentando um processo de desconstrução de direitos sociais impostos em um modelo que se move pela lógica de austeridade neoliberal. Destacamos ainda todo o recrudescimento potencializado na época da pandemia do Covid-19, e a forma como o atual governo vem enfrentando essa grande crise sanitária com postura negacionista. Fundamentado na teoria social critica esse trabalho resulta de estudos sobre o tema, objeto da nossa dissertação, a qual se encontra em fase de levantamento bibliográfico e documental. Palavras-chave: Neoliberalismo, Covid-19, Estado. ABSTRACT The article addresses the discussion of neoliberal politics in Brazil contextualizing the growing neoliberalist attack from the Temer government, and Jair Bolsonaro elected president by the 2018 suffrage. deconstruction of social rights imposed in a model that moves by the logic of neoliberal austerity. We also highlight all the potential upsurge at the time of the Covid-19 pandemic, and the way in which the current government has been facing this major health crisis with a denialist stance. Based on critical social theory, this work results from studies on 1 Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 2 Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 3 Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 253
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS the subject, object of our dissertation, which is in the bibliographic and documentary survey phase. Keywords: Neoliberalism, Covid -19, State. 1 INTRODUÇÃO As inflexões ocorridas pelo desenrolar dos acontecimentos, desde a interrupção do governo de Dilma Rousseff em 2016, onde estão explícitos os interesses da direita, que facilitaria o caminho das políticas neoliberais no plano econômico, com o golpe parlamentar midiático, que permitiu a ascensão de Temer ao poder, e posteriormente pelo sufrágio de 2018 pôs Jair Bolsonaro a presidência, abriu a trilha para a aceleração da concepção neoliberal nas políticas sociais e na condução do Estado, que nada mais é do que carrear recursos para o sistema financeiro especulativo, com congelamento de recursos e inversão de prioridades. Cabe o adendo de Netto (2013) quando avalia que a sociedade contemporânea vivencia as inflexões das profundas transformações societárias ocorridas em decorrência da atual crise do capitalismo, a qual atinge todas as esferas da vida em sociedade. O ideário neoliberal adotado no país deu origem a um processo de contrarreforma do Estado brasileiro, provocando, dentre outros, altos índices de desemprego e de concentração de renda, precarização e flexibilização das relações de trabalho, retração de direitos, fragmentação e enfraquecimento das lutas sociais, focalização e seletividade das políticas públicas, privatizações e o consequente sucateamento dos setores públicos estatais, Indo na direção inversa dos padrões de universalidade e redistribuição contidos na Constituição Federal de 1988. Como bem aponta Behring e Boschetti (2006), o cenário geral neoliberal na particularidade brasileira é de restrição e redução de direitos, justificados pela crise fiscal, transformando as políticas sociais em ações pontuais, altamente fragmentadas e focalizadas. É neste panorama, por meio deste artigo, que sinteticamente abordaremos a relação do papel do Estado e da contrarreforma, e suas inflexões nas políticas sociais resultando na agudização das expressões da questão social, tendo como recorte o governo do então presidente Jair Bolsonaro, pontuando a pandemia como ápice de uma política de desproteção social, que se projeta numa total desresponsabilização por parte do Estado. Ressaltando que a 254
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS chegada da pandemia só agudizou ainda mais as desigualdades preexistentes, em um contexto de intensa fragilidade e desregulamentação social. Nesse sentido, o objetivo deste ensaio é discutir as repercussões da pandemia do COVID-19 no governo atual, onde reduz uma crise sanitária mundial a colocando como uma “gripezinha”, tendo como base para a problematização uma pesquisa bibliográfica e documental, buscando deste modo a compreensão acerca do desdobramento e enfrentamento, de forma a contribuir de algum modo, com estudos já existentes. 2 PARA ALÉM DA PANDEMIA: ANTIGOS PROBLEMAS EM NOVO CENÁRIO É indiscutível que as políticas de caráter neoliberal, adotadas aqui no Brasil, já vinha trafegando entre crises e instabilidades nos governos anteriores, muito antes da COVID-19 desembarcar no país. Datada neste país a partir da década de 90, o neoliberalismo estabelece e intensifica os processos de privatização das empresas estatais, do encolhimento das ações do Estado e da precarização e focalização das políticas sociais. Contudo, é a partir do golpe jurídico- parlamentar de 2016 que a agenda ultraneoliberal ganha fôlego e, desde então, uma série de direitos vem sendo suprimidos. O governo Temer explicitou que a questão social vem sendo enfrentada como questão de polícia, com a militarização de favelas, incentivo a medidas de força em nome da ordem, guerras declaradas ao tráfico de drogas, homicídios e outras tantas demonstrações da intervenção armada e da herança da doutrina de segurança militar. Borges e Matos (2020, p.73) apontam que pelo processo eleitoral em 2018, o rumo político levou à opção extremada e totalitária, “com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, com suas propostas muito mais aviltantes, tendo conseguido emplacar as reformas previdenciária e trabalhista em seu primeiro ano de governo”. A eleição de Bolsonaro evidenciou o potencial das forças conservadoras e de manifestações neofascistas, com articulação de milícias, assassinatos políticos, prisões arbitrárias, discursos de ódio, ações antidemocráticas, demonstração de autoritarismo na relação com o conhecimento, com a cultura, com as artes e no plano econômico, a consolidação do ultraneoliberalismo. Em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia, acelerou a compreensão que o neoliberalismo em seus mecanismos mais perversos, 255
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS confirmava o controle do capitalismo totalitário sobre a vida. A continuidade das políticas neoliberais, cada vez mais extremadas em virtude da crise sanitária, não afastou a possibilidade de que muitos pereceram por falta de condições materiais de vida. No Brasil, temos uma dificuldade em relação à realização de qualquer previsão acerca dos impactos sociais e econômicos da pandemia: a agenda reacionária e a irresponsabilidade política do presidente Bolsonaro, que gera crises consecutivas, ameaças golpistas, um desdém e uma inépcia inacreditável em relação ao combate ao novo corona vírus, sua difusão descontrolada pelo território nacional e um descaso pelos mortos. A atitude negacionista em relação à ciência, a pressão de empresários e as ações na contramão do razoável por parte do governo federal estão conduzindo o Brasil a condições trágicas, tanto sanitárias quanto econômicas. Aliado a isto vivenciamos um (des)governo gerido por ele, que assume uma política de morte contra a classe trabalhadora. Nesse sentido Behring (2020) aponta que: A gestão de Bolsonaro diante do cenário da pandemia do COVID-19 tem sido marcada por fortes conflitos no âmbito político e pela inabilidade no que diz respeito às medidas de contenção da curva de contágio do vírus. Ocorre que “enquanto em todo mundo as estratégias de distanciamento, isolamento e de quarentena têm sido utilizadas para combater um vírus para o qual ainda não há vacinas”, o chefe do Estado brasileiro, agarrando-se a ideia da hidroxicloroquina, “arvora-se ao exercício ilegal da medicina receitando medicamentos para os quais não há comprovação de eficácia” (BEHRING, 2020, p. 1). A pandemia, por sua vez, exigia distanciamento e isolamento social como medida Indispensável para a prevenção do contágio, a esse contexto impactando negativamente uma economia já combalida, conforme mencionou Antunes (2020, p.14) cabe refletir, como ficar em isolamento social os desempregados, “os informais, os trabalhadores intermitentes, os uberizados4 , os subutilizados, os terceirizados, isto é, aos que não tem direitos sociais, aos que recebem salários somente quando executam algum trabalho”. Nem renda, nem previdência, nem convênio de saúde, como será possível driblar essa situação catastrófica? Quem tendera a 4 Uberização entende-se um por “fenômeno caracterizado pela ausência de direitos trabalhistas, pela jornada ilimitada de trabalho, uso de aplicativo enquanto meio de trabalho e pela responsabilidade do trabalhador na obtenção e manutenção dos instrumentos laborais. É importante frisar que tal fenômeno não se restringe ao processo de trabalho desenvolvido pela empresa Uber. Consiste numa nova uma tendência de relações trabalhistas articulada ao uso de recentes tecnologias e que abrange diversas empresas e tipos distintos de serviços prestados” (GUIMARÃES; SOUZA; PINHEIRO, 2018, p. 28) 256
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS se intensificar se o capital pandêmico continuar a dominar o mundo segundo seus interesses? Além de vivermos em um tempo atípico e histórico, Boschetti (2018) aponta que a expropriação dos direitos sociais, fruto das contrarreformas sistemáticas no campo trabalhista e nas políticas setoriais, em particular, da seguridade social, além de impor modos de vida cada vez mais degradantes à classe trabalhadora, ainda à condena a aceitar condicionalidades e regulamentos, na maioria das vezes, humilhantes. Nesse sentindo Behring (2021) aponta que a lista de perdas em investimento nas políticas públicas é extensa, e que não são apenas cifras, sob os números, há milhões de pessoas com necessidades não atendidas, algumas delas no limiar da vida e da morte, neste pobre país rico, de imensas desigualdades de classe, gênero e raciais, e de heterogeneidade estrutural e regional. Bravo, Pelaez e Pinheiro (2018), fazendo um balanço das medidas contrarreformista na política de saúde, implementadas pelo Temer com continuidade no governo Bolsonaro, destacam que o Ministério da Saúde passou por mudanças na sua estrutura, sendo criadas duas Secretarias: a de Atenção Primária à Saúde e a da Tecnologia da Informação, além da extinção da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Já a Secretaria de Atenção à Saúde foi reformulada, priorizando a especialização e a criação de um Departamento de Certificação e Articulação com Hospitais Filantrópicos e Privados, estabelecendo a contratualização com o setor privado. Ainda no tocante as mudanças ocorridas no Ministério da saúde, referente à gestão, durante a pandemia, o governo Bolsonaro nomeou quatro Ministros diferentes para o cargo, sendo o último deles, Marcelo Queiroga. Recrudescendo ainda mais a crise econômica e social, em uma total instabilidade governamental, onde novas questões acentuam-se, tendo em vista as crescentes necessidades da população num contexto de crise sanitária. Em uma análise econômica e social os poucos direitos conquistados no âmbito da proteção social devida pelo Estado por meio da política de Seguridade Social têm sido duramente atacados e destruídos. A contrarreforma da Previdência Social foi uma das prioridades deste desgoverno, não podemos esquecer da Ec 95/2016 que congelava os gastos por 20 anos, e que no governo de Bolsonaro ganha mais musculatura. Importante frisar que O SUS nunca teve o financiamento necessário, ao contrário, sempre foi subfinanciado, e com a aprovação da emenda do teto dos gastos, neste governo explicitamente, impôs um processo 257
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS acelerado de desfinanciamento, simultaneamente agindo com o contingenciamento e corte de recursos públicos antes destinados às ações governamentais. Na prática a contrarreforma por parte do Estado, aumenta o nível de exploração e ameaça objetivamente a vida da população, essa situação se agrava ainda mais em tempos pandêmico provocando um adensamento substancial da desigualdade social no Brasil. 3 BOLSONARISMO E O (DES)ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA DO COVID-19 As autoras Castilho e Lemos (2021) apontam que vivemos no Brasil uma forte recessão econômica e um contexto muito peculiar de pandemia do novo Corona vírus, que expressa, na verdade, a profunda desigualdade social existente no mundo, e mais especificamente, no Brasil. Esta realidade, em sua maior potência, indica que apesar da contaminação parecer atacar a todos/as, de fato, nada têm de democrática, na medida em que, é a classe trabalhadora que vivencia as piores condições de vida, trabalho, moradia, alimentação, saneamento, acesso à saúde e negação de outros direitos sociais. Esta, portanto, tem menores condições de resistir, seja do ponto de vista de sua imunidade biológica ou de sua imunidade social. Numa conta matemática simples, os donos do poder, mais uma vez decidem quem vive e quem morre, como seres descartáveis. Nesse sentido Freire e Cortes (2020) ressaltam que O modo como ocorre o enfrentamento da “questão social” no Brasil possui particular importância quando percebemos a utilização que as classes dominantes fazem desta questão em cada momento da nossa história. Por isso, faz-se mister apreendermos as determinações históricas da “questão social”, tornadas mais complexas nas suas formas de expressões, sendo claro que no cenário atual a “velha” “questão social” se metamorfoseia e assume novas roupagens. Ela evidencia hoje a imensa fratura entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o sustentam. (FREIRE, CORTES, p. 35 ,2020). As medidas governamentais realizadas no início da pandemia foram aquém das que seriam necessárias para mitigar os impactos econômicos. Vale ressaltar o Auxílio Emergencial5, que se tornou um calvário sem fim para a classe trabalhadora que se via obrigada a enfrentar 5 Auxílio Emergencial, pensada primeiramente pelo governo no valor de R$200,00 e, após pressão do parlamento, alterada para R$ 600,00 e R$ 1.200,00 (mães solteiras chefes de família) valor insuficiente para dar conta da crise sanitária e econômica vivenciada no País 258
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS filas quilométricas na Receita Federal e nas agências da Caixa Econômica para garantir o acesso ao benefício. A famosa frase “ em analise” recebida para quem solicitava o referido auxilio, parecia punição de um governo eugenista e perverso que, conscientemente, trabalha para prover as piores condições para as massas de trabalhadoras/es em tempos obscuros. Uma matéria publicada no G1 em janeiro de 2022, demostrou um dado assustador da maior cidade do Brasil, de acordo com a publicação, São Paulo teve um amento de quase 32 mil pessoas vivendo na rua, essa população cresceu nos últimos dois anos, 31%. Isso contando também quem pernoita em abrigos. Levando em consideração apenas os que ficam o tempo todo na rua, o aumento registrado pelo Censo é ainda maior: 54%. O novo Censo também mostra que 18 em cada 100 pessoas vivem há menos de um ano nas ruas. O que podemos entender com os dados acima citados, é que a miséria, e a desigualdade social, se agravou ainda mais na pandemia, devido ao desgoverno exercido pelo presidente. Cabe destacar que em seu segundo ano de governo, consolidou-se a ameaça no campo da formação acadêmica, com a perseguição ideológica às universidades públicas, manifestas nos cortes e contingenciamento de recursos, suspensão de programas e de bolsas para iniciação científica, para a pesquisa acadêmica, dificuldades para manutenção da política de cotas e de permanência na Universidade, um evidente enfrentamento à democratização desta instituição secular, reforçando o modelo de universidade privatista e elitista. Acrescentam-se os cortes orçamentários nas pesquisas, perseguição a projetos de ensino, com interferência nas eleições e intervenção nas universidades, com quebra de sua autonomia, apologia da ditadura e reverência aos torturadores, dilapidação do patrimônio público, incentivo ao ódio, à perpetuação do racismo, militarização do Estado, controle ideológico com o incentivo da escola sem partido, cerceamento da cultura e do direito de livre expressão, punição aos ativistas e movimentos sociais, aprovação da contra reforma previdenciária que coloca os aposentados em penúria absoluta, expressa um conjunto de iniquidades e barbarizarão da vida presentes na conjuntura atual em nosso país. Abramides (2021) ainda acrescenta nesse sentido, a negação da ciência em que o CNPQ retira bolsas para estudantes dos cursos de pós-graduação, o que bloqueia a formação e a pesquisa. De outro lado a CAPES sequestra bolsas de mestrandos e doutorandos que anteriormente retornavam aos programas da pós-graduação, reduzindo ainda mais a possibilidade dos estudantes cursarem mestrado e doutorado, ameaçando o fim de muitos 259
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS programas que se mantém pelas bolsas que garantam os estudos e a pesquisa para os que pretendem dar continuidade à sua formação acadêmica de qualificação para a docência e consequentemente para o trabalho profissional. A estratégia do enfrentamento da pandemia, pelo presidente já estava posta, no pronunciamento realizado em março de 2020, ela afirmava - “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como bem disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão. ” (Jair Bolsonaro, UOU, 2020). Todo seu argumento feito em seus primeiros pronunciamentos quando eclodiu a pandemia já demostrava um governo negacionista, os temas presentes no pronunciamento oficial, seriam repetidos inúmeras vezes desde então, produzindo uma abordagem centrada na minimização da pandemia, na desqualificação das medidas de contenção, na naturalização da morte e na suposição de uma espécie de teoria da conspiração. Contraditoriamente a aceitação e com postura de minimização do Vírus Covid 19 expressa pelo presidente Bolsonaro, até a presente data, o Ministério da Saúde contabilizou mais de 660 mil óbitos (BRASIL,2022). Outra contradição marcante neste governo, apesar de ser consenso entre especialistas sobre a eficácia da vacina, o presidente coloca inexistente tal eficácia, ainda lança mão de fake News sobre o tema como aponta o (CNS,2021) onde cita um verdadeiro show de horrores, pois no momento em que o país começa a ver a queda consistente do número de mortes e internações por Covid-19, prova inconteste dos efeitos protetivos da ampla vacinação, Bolsonaro retoma sua usual prática de inculcar o medo, de mentir e de atacar à ciência. Numa encenação que parece não ter fim, o presidente estabeleceu uma correlação falsa entre a conclusão do esquema vacinal, com a administração da 2ª dose, com o desenvolvimento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, a Aids. Em um estudo de orçamento público, realizado pela a autora Behring (2021) aponta que sob os números, é certo que temos mais destruição e morte: a letalidade. Em plena pandemia ainda descontrolada no país, os cortes de gastos nas políticas públicas se aprofundam. A saúde perdeu cerca de 2 bilhões de reais, sendo que a pesquisa de três programas da FIOCRUZ, por exemplo, e que tem sido decisiva no combate à Covid-19 e produção de vacinas, perdeu cerca de 10 milhões de reais. A referida autora, retrata que o TCU vem sinalizando um curso de paralisação do Estado brasileiro, frente à asfixia do orçamento em 260
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 2021 e com tendência de continuidade em 2022. O orçamento federal de 2021 foi sancionado com um corte de quase 30 bilhões de reais nos gastos discricionários – de manutenção e investimentos nas políticas públicas. Vislumbra-se que a lista de perdas em investimento nas políticas públicas é extensa, e que não são apenas cifras, sob os números, há milhões de pessoas com necessidades não atendidas, algumas delas no limiar da vida e da morte neste pobre país rico, de imensas desigualdades de classe, gênero e raciais, e de heterogeneidade estrutural e regional. Portanto, para além do contexto pandêmico, há que pensar na letalidade intrínseca à condução da economia política brasileira movida pela lógica da “austeridade” ultraneoliberal para as maiorias; e pelo privilegio e remuneração compulsória e farta de uma parcela ínfima, sanguessuga do fundo público. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A crise mundial cujo estrangulamento ocorreu em 2008, aprofundou na particularidade brasileira a resposta neoliberal através da redução da função social do Estado, ampliando o mercado econômico, legitimando e dando encaminhamento às privatizações, a focalização, e o ajuste fiscal se materializando em um Estado de desproteção social. Como já mencionado a política neoliberal e suas nuances, se instaurou aqui no Brasil desde a década de 90. Com recorte histórico a partir dos governos Temer e Bolsonaro, aqui nessa seção já referidos, nota- se o aprofundamento do neoliberalismo e de medidas de austeridade fiscal, avançando as privatizações, desfinanciamento das políticas sociais, expropriação de direitos sociais e mudanças nos marcos legais, que tem se materializado na regressão dos direitos conquistados constitucionalmente. Todos os problemas sociais e econômicos agravaram-se ainda mais no período de pandemia, notoriamente o governo brasileiro vem respondendo de forma muito tímida aos problemas decorrentes da crise sanitária e está indo num caminho que não contribui para uma rápida saída dela. Os trabalhadores formais e informais precisam de programas sociais que gerem emprego e renda, promovam uma melhoria nas condições de habitabilidade das comunidades e dos assentamentos precários, bem como necessitam de proteção social. 261
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Nesse cenário de governo, sob a direção ultraneoliberal, a ofensiva capitalista vem em busca do valor, referenciando-se em ajustes e medidas de austeridade, através da Contrarreforma do estado, com destaque para a apropriação do fundo público e mercantilização das políticas públicas. A necropolítica se impôs com nitidez no governo Bolsonaro, em meio à grave crise econômica e à pandemia viral, o governo brasileiro continua com sua política de morte contra a classe trabalhadora. REFERÊNCIAS ABRAMIDES. Maria Beatriz Costa. Serviço Social e lutas sociais: desafios profissionais em tempos de barbárie. Temporalis, Brasília (DF), ano 21, n. 41, p. 19-33, jan. /jun. 2021. ANTUNES. Ricardo. Coronavírus o trabalho sob o fogo cruzado. São Paulo: Boitempo.2020. BEHRING, Elaine. Orçamento no Governo Bolsonaro: entre a letalidade e o clientelismo. Esquerda online, 11 maio 2021. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2021/05/11/orcamento-no-governo-bolsonaro-entre-a- letalidade-e-o-clientelismo-/. Acesso: 19 de ago. 2021 _____________. O ultraneoliberalismo e o “esmaecimento dos afetos” na pandemia. Esquerda Online, 2020. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2020/04/23/o- ultraneoliberalismoe-o-esmaecimento-dos-afetos-na-pandemia/ Acesso em: 25 mar. 2022. _____________. BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2006. BORGES. M. E. S.; MATOS. M. C. As duas facetas da mesma moeda: ultraneoconservadorismo e ultraneoliberalismo no Brasil da atualidade. In: BRAVO.M. I. (org.) et al. Políticas sociais e ultraneoliberalismo. Uberlândia,2020. Cap. 3,p. 71-88. BOSCHETTI, Ivanete. Expropriação de direitos e reprodução da força de trabalho In: _______ (Org.) Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018. p. 131-166. BRASIL. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Portal do Covid-19, 2022. Disponível em: https://covid.saude.gov.br Acesso em: 21 mar. 2022. BRAVO, M. I.; PELAEZ, E.; PINHEIRO, W. As contrarreformas na política de saúde do governo Temer. Argumentum, Vitória, v. 10, n. 1, abr.2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/argumentum/article/view/19139/13218.>. Acesso em: 15 set. 2021. CASTILHO. Daniela Ribeiro, LEMOS. Esther Luíza de Souza. Necropolítica e governo de Jair Bolsonaro: repercussões na seguridade social brasileira. Revista Katalysis, vol. 24, núm. 2, pp. 262
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS GRAMSCI E O SERVIÇO SOCIAL: mapeamento das principais categorias do pensamento gramsciano na disciplina Movimentos Sociais GRAMSCI AND SOCIAL WORK: mapping of the main categories of Gramscian thought in the Social Movements discipline Cristiana Costa Lima1 Leilane da Silva Fonseca2 RESUMO Mapeamento das categorias do pensamento de Antonio Gramsci presentes na disciplina Movimentos Sociais, ministrada no curso de Serviço Social da UFMA, desde o currículo de 1982. Contextualiza a emergência da influência das ideias gramscianas no Serviço Social e como elas repercutiram na academia, contribuindo para a formação profissional do assistente social. Enumera as categorias e bibliografias que demarcaram essa influência, com destaque para ideologia, organização política, intelectual orgânico, hegemonia e a práxis. Conclui anotando a importância desse processo para a construção de uma análise crítica da realidade pelos profissionais do Serviço Social. Palavras-chave: Gramsci. Serviço Social. Movimentos Sociais. ABSTRACT Mapping of Antonio Gramsci's thought categories present in the Social Movements discipline, taught in the Social Work course at UFMA, since the 1982 curriculum professional training of the social worker. It lists the categories and bibliographies that demarcated this influence, with emphasis on ideology, political organization, organic intellectual, hegemony and praxis. It concludes by noting the importance of this process for the construction of a critical analysis of reality by professionals of Social Work. Keywords: Gramsci. Social Work. Social Movements. 1 Doutora em Políticas Públicas (PPGPP/UFMA). Professora do Departamento de Serviço Social (DESES/UFMA). E- mail: [email protected]. 2 Graduanda do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) E-mail: [email protected]. 265
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO Este trabalho é resultante do processo de pesquisa inserido no âmbito do projeto de pesquisa que aborda a contribuição do pensamento de Gramsci no curso de Serviço Social na atualidade. Trata-se de uma pesquisa documental e bibliográfica que tem mapeado a penetração do pensamento de Antonio Gramsci no âmbito das disciplinas do Curso de Serviço Social da UFMA. Antonio Gramsci é um dos autores mais discutidos nas últimas décadas. Seus conceitos e suas categorias oferecem uma ampla análise histórico-crítica sobre os problemas e impasses do capitalismo monopolista do século XX, tendo como centralidade a discussão da esfera política e o papel dessa práxis humana como uma das dimensões constitutivas do ser social. O pensamento de Gramsci ganha notoriedade no Serviço Social brasileiro a partir da década de 1970, quando o Movimento de Reconceituação passa a assumir uma perspectiva dialética, pautado em uma base teórico-metodológica que busca superar o conservadorismo profissional. As reflexões do pensamento de Gramsci são relevantes para o curso de Serviço Social, pois suas categorias são imprescindíveis, tanto em relação ao fortalecimento do seu estatuto teórico quanto na qualificação das ações práticos-interventivas profissionais, desafiado a construir alternativas diante das manifestações da questão social na complexidade contemporânea. O período que compreende o surgimento do Serviço Social no Brasil, em 1936, com as primeiras escolas até meados da década de 1970, representa uma transição da formação profissional de cunho religioso conservador para o processo de renovação no Serviço Social, possibilitando aos profissionais um questionamento de sua prática tecnificada a partir das mudanças do desenvolvimento industrial e o amplo movimento da classe operária pela democratização da sociedade e do Estado no Brasil. A influência de Gramsci no Serviço Social tornou possível o encaminhamento de novas reflexões sobre o papel profissional do assistente social. Portanto, Gramsci contribui com sua reflexão no sentido da mobilização social para o engajamento político das camadas subalternas, na luta por emancipação. Para ele, o intelectual, mediador entre a sociedade política (Estado) e os movimentos sociais (sociedade civil), tem um papel importantíssimo na organização dos 266
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS atores sociais, no processo de articulação de estratégias para criar hegemonia da classe trabalhadora. A proposta curricular de 1982 visou romper com a metodologia tradicionalista, que marcava a formação profissional desde sua gênese, como também visou introduzir o conhecimento da realidade a partir do estudo dos pensadores clássicos. É nele que se dá a inclusão de reflexões sobre os movimentos sociais e sua relação com a profissão. No Maranhão, esse novo currículo entra em vigor em 1983 e passa a considerar, no processo de formação profissional acadêmica, aspectos novos no que diz respeito à discussão da metodologia do Serviço Social, modificando radicalmente o leque de disciplinas até então ofertadas no Curso. Nesse sentido, este estudo realizou um levantamento das categorias gramscianas trabalhadas nas disciplinas Movimento Social do curso de Serviço Social da UFMA, identificando as referências/influência do pensamento de Gramsci. Destacamos que tal levantamento é fundamental para resgatar a memória histórica do curso e conhecer a influência desse pensador no Serviço Social do Maranhão. Para tanto, foi realizado uma pesquisa documental a partir dos Programas da disciplina Movimentos Sociais ministrada no Curso de Serviço Social de 1995 até o ano 2000. Na primeira parte deste trabalho abordaremos a inserção do pensamento de Gramsci no Brasil, e as primeiras influências deste pensador no Serviço Social. E na segunda parte, apresentaremos o resultado do mapeamento das principais categorias identificadas nos programas da disciplina de Movimentos Sociais do curso de Serviço Social da UFMA a partir do currículo mínimo de 1982. Desse modo, pretende-se refletir a contribuição do aporte teórico de Gramsci para o curso de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão no processo de formação profissional. 2 GRAMSCI E O SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL Gramsci indica em suas concepções um aspecto essencial da ontologia marxista do ser social, o momento de articulação entre subjetividade e objetividade, entre particular e universal, pois, com a dialética, Gramsci “tende a ver todas as esferas do ser social a partir do ângulo de sua relação com a política; são frequentes, nos Cadernos, referências ao fato de que 267
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS tudo é política, seja a filosofia, a história, a cultura ou mesmo a práxis em geral”. (COUTINHO, p. 90, 2012). Em suas pesquisas, Simionatto (1995) destaca que Gramsci fazia parte dos debates da esquerda no Brasil, mas ainda de forma limitada à influência do Partido Comunista Brasileiro – PCB. Por volta de 1966 a 1968, no período das contradições internas ao regime ditatorial brasileiro de 1964, é que foram publicadas, no país, três das mais importantes obras de Antonio Gramsci: Concepção Dialética da História; Os Intelectuais e a Organização da Cultura e A Questão Meridional. No que se refere ao debate acadêmico, de acordo com a pesquisa de Simionatto (1995), o professor Oliveiros S. Ferreira destaca-se como um dos primeiros intelectuais a abordar o pensamento gramsciano, na disciplina “O conceito de hegemonia em Ciências Políticas”, ministrada no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo (USP). Registra-se, também, o interesse do professor Francisco Weffort em trazer Gramsci para o debate na área das Ciências Sociais, História e Filosofia. Para Weffort (2006), Gramsci foi um referencial que ajudou a pensar a política, a história do movimento sindical e dos movimentos sociais de maneira geral. As discussões centravam-se na questão ético-política, na visão plural e ampliada do movimento operário, no papel do intelectual e da cultura. O Centro Universitário da USP ficou caracterizado como espaço significativo do pensamento de Gramsci. A obra de Gramsci, traduzida e publicada no início da década de 1970, chega no processo de abertura política e sob a crise das organizações marxistas tradicionais. Na Universidade Católica de São Paulo - PUC, as referências ao pensador italiano começam a ser feitas na área da educação, pelo professor Demerval Saviani, a partir de 1978. Reconhece Saviani (1991) que esta discussão já estava em andamento em outras áreas: “no campo da política, havia uma discussão do professor Weffort; no Rio de Janeiro, os pólos eram Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder; e, na Sociologia, seja mais ou menos pela ligação estreita entre sociologia e política, seja pela iniciativa de alguns sociólogos como Luis Eduardo Wanderley, que já levava em conta as contribuições de Gramsci no âmbito da sociologia e no estudo da questão religiosa. (SIMIONATTO, 1995, p. 119). Coutinho (2012) considera que a difusão do pensamento de Gramsci no plano do método e dos conceitos e de sua profunda universalidade é capaz de iluminar alguns aspectos decisivos de nossa peculiaridade nacional. O autor aponta dois conceitos importantes em 268
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Gramsci: o de revolução passiva, capaz de fornecer importantes indicações para análise dos processos de modernização conservadora que caracterizam a história brasileira; e o de Estado ampliado, refletindo que o Estado não compreende somente o aparelho jurídico de comando e repressão, mas também a “sociedade civil” e seu aparelho de hegemonia, graças ao qual um grupo social pode conquistar a direção de toda a sociedade. A partir da segunda metade dos anos 1970, o Serviço Social passou a buscar referências teórico-metodológicas no campo marxista, na busca de assumir uma perspectiva dialética, orientada, principalmente, pela concepção de Estado integral, quando Antônio Gramsci passa a ser adotado largamente no Brasil. O pensamento de Antonio Gramsci e, particularmente de suas abordagens acerca do Estado, da sociedade civil, do mundo dos valores, da ideologia, da hegemonia, da subjetividade e da cultura das classes subalternas, passou a ser apropriado também pelo Serviço Social, que incorporou essas categorias como importantes na perspectiva crítica para desvendar as mediações que esclarecem as relações de dominação na sociedade a partir da relação entre a sociedade política, civil econômica. No curso de graduação de Serviço Social da PUC/SP, por exemplo, encontramos referências a Gramsci já em 1979, na disciplina “Teoria do Serviço Social” Deste período em diante a bibliografia das diferentes disciplinas cita Gramsci através das obras traduzidas no Brasil e de interpretes como Carlos Nelson Coutinho, Hugues Portelli, Christine Buci-Gluksmann, Moacir Gadotti, Demerval Savianni, Maria Antonieta Macciocchi, Jean Marc Piotte e Alba M. P. de Carvalho. (SIMIONATTO, 1995, p. 120). O referencial gramsciano era buscado como possibilidade para pensar a atuação do assistente social enquanto intelectual orgânico, marcando seu compromisso com as classes subalternas. Ele traz à luz elaborações relativas à sociedade civil, arena de disputa de projetos hegemônicos; a intelectuais, em seu papel primordial na construção da hegemonia, bem como na conservação e difusão de ideias; dentre outras de fundamental reflexão ao objeto de estudo e intervenção do Serviço Social. Para Gramsci os intelectuais desempenham uma função organizadora da sociedade, visando uma nova concepção de mundo. Assim, os intelectuais comprometidos com a classe dominante favorecem a hegemonia, buscando a dominação ideológica de outros grupos sociais, e os intelectuais orgânicos comprometidos com a classe subalterna têm uma função central nos 269
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS processos de lutas e na disseminação de uma visão de mundo capaz de promover uma transformação da sociedade. Os principais autores na década de 1980 a discutirem Gramsci no Serviço Social foram Safira Bezerra Ammann, Vicente de Paula Faleiros e Miriam Limoeiro Cardoso. Essa última contribui ricamente com as produções acadêmicas aproximando Gramsci do Serviço Social, abrindo oportunidades para romper com a herança tradicionalista no quadro da reconceituação. O grupo orientado por Miriam Limoeiro Cardoso era formado por Josefa Batista Lopes, Maria de Guadalupe Silva, Gelba Cavalcante Cerqueira, Zulma Maria Lima de Sousa e Alba Maria Pinho de Carvalho. Existem registros sobre o pensamento gramsciano não só na Universidade de São Paulo, mas também em outros estados como Rio de Janeiro, Brasília, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Maranhão. Este último, “tem buscado em Gramsci até mesmo o eixo teórico do projeto de formação profissional” (SIMIONATTO, 1995, p. 125). No Maranhão, foi desencadeado um amplo debate pelas professoras Franci Gomes Cardoso, Marina Maciel Abreu, Josefa Batista Lopes, Maria Aparecida Fernandes, Évila Brito Ribeiro, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (DESES/UFMA), para questionar a prática profissional do assistente social, na perspectiva de construir algo em termos metodológicos para superar o tradicionalismo conservador da profissão. Desse modo, encontraram em Gramsci o aporte teórico metodológico para pensar o encaminhamento de uma prática política e pedagógica, ou seja, uma práxis “voltada à luta pela hegemonia na sociedade, na qual o Serviço Social, enquanto prática profissional, tem um papel a desempenhar” (SIMIONATTO, 1995, p. 203). O debate no curso de Serviço Social brasileiro a partir do aporte teórico de Gramsci consolida-se na produção do conhecimento com a reflexão de categorias importantes como Estado e sociedade, cultura, hegemonia, intelectuais, organização política, ideologia, dentre outras no âmbito da filosofia e da política. Na disciplina Movimentos Sociais, do curso de Serviço Social da UFMA, a partir do currículo mínimo de 1982, emerge a influência do pensamento de Gramsci. De acordo com Brandão (2013), o novo currículo de 1982 do Serviço Social entra em vigor em 1983 no Maranhão e, desde então, passou a considerar, no processo de formação profissional 270
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS acadêmica, aspectos novos no que diz respeito à discussão da metodologia do Serviço Social. A seguir, traçamos elementos dessa influência gramsciana na disciplina. 2.1. A PRESENÇA DO PENSAMENTO DE GRAMSCI NO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL DA UFMA A PARTIR DA DISCIPLINA MOVIMENTOS SOCIAIS Aponta-se que a inclusão de reflexões sobre os movimentos sociais e sua relação com a profissão aparece a partir do currículo mínimo de 1982, na disciplina de Desenvolvimento de Comunidade (DC), embora ela já constasse do Currículo do Curso desde a década de 1960. O currículo mínimo de 1982 significou um avanço expressivo para a categoria quanto à sua interlocução com a tradição marxista e teve como pressupostos a necessidade de mudança em função da dinâmica social e da vinculação profissional com as lutas da classe trabalhadora. Duriguetto (2014) aborda que a condução teórico-metodológica entre o Serviço Social e os movimentos sociais no Brasil se estabelece por meio da acentuada participação de profissionais e estudantes nos movimentos e organizações da sociedade civil. No final da década de 1970, setores progressistas da profissão incorporaram-se às lutas populares. Ocasião em que se vivenciava um processo global de inovações nos processos de trabalho, atingindo, assim, o Serviço Social, que teve consolidadas as dimensões tanto política-organizativa quanto sócio-ocupacional da profissão (DURIGUETTO; MARRO, 2016). No Maranhão, na década de 1970, nota-se a presença no ciclo profissionalizante da disciplina Serviço Social de Comunidade, que tinha como foco os termos de análise da dinâmica das comunidades urbanas de bairro, análise crítica da participação social do povo no contexto da sociedade, procedimentos metodológicos em diferentes modelos de trabalhos comunitários, a posição do assistente social nos trabalhos de cooperativismo e sindicalismo, técnicas de mobilização popular, a dinâmica da técnica do diálogo e técnicas de discussão em reuniões e assembleias com o povo. Na década de 1980, conforme currículo mínimo adotado, identificamos a presença das disciplinas Desenvolvimento de Comunidade I e Desenvolvimento de Comunidade II, ambas com carga horária de 60 (sessenta) horas, como técnica e como campo de intervenção profissional. Traziam na ementa a análise histórica de Desenvolvimento de Comunidade (DC) no Brasil, considerando seus fundamentos teóricos e políticos ideológicos, com o objetivo de 271
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS fornecer conteúdo para conhecimentos do processo histórico de DC considerando os determinantes conjunturais e as novas formas de expressão prática interventiva junto à população. Na ementa da disciplina Desenvolvimento de Comunidade II, do ano de 1987, sob orientação da professora Raimunda Barbosa da Costa Silva Pereira, observa-se o destaque na ementa com a preocupação do trabalho com populações como espaço de luta conquistado pela sociedade civil, estudo dos movimentos sociais no Brasil e no Maranhão, principais manifestações, suas formas de organizações e sua dinâmica. A disciplina tinha como objetivo abordar e discutir a proposta de organização dos movimentos sociais buscando identificar suas ações políticas e sociais e sua relação com a conjuntura nacional, estadual e municipal. Em 1992, quando se intensifica a implementação do projeto neoliberal no país e o direcionamento das lutas de classes passam a tencionar o projeto profissional, a disciplina Desenvolvimento de Comunidade permanece na grade curricular, sob orientação da professora Évila Brito Ribeiro, porém, com a ementa focada ainda no estudo dos movimentos sociais organizados como espaço de luta conquistada pela sociedade civil, tinha como objetivo instrumentalizar os alunos para compreender e discutir a questão dos movimentos sociais no Brasil e no Maranhão, apreendendo as principais formas de organização, expressões e manifestações coletivas considerando a relação destes com os diferentes momentos históricos. Por sua vez, inserção da disciplina de Movimentos Sociais nos componentes curriculares do curso de Serviço Social na Universidade Federal do Maranhão ocorreu em 1994, sob a orientação da professora Évila Brito Ribeiro. A ementa trazia estudos dos movimentos sociais no Brasil e no Maranhão, enfatizando a abordagem teórica dos elementos conceituais, a caracterização e organização das classes populares em suas expressões concretas no espaço urbano e rural, destacando o papel do profissional do Serviço Social com os movimentos sociais. Na tabela abaixo, destacamos as principais categorias identificadas nas ementas das disciplinas, com autores sob a influência gramsciana. Tabela 2 - Categorias gramscianas nas ementas de disciplina do curso de Serviço Social Ementas Disciplina Autores/obras sob influência de Gramsci Categorias 1983 Serviço Social de SAFIRA, B. Amann. A ideologia do Desenvolvimento Ideologia Comunidade III de Comunidade no Brasil. São Paulo, Cortez Editora. 272
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1983 Serviço Social de FALEIROS, Vicente de Paula. Formas Ideológicas da Ideologia 1985 Comunidade III Participação in Serviço Social e Sociedade nº 09, 1985 Cortez Ed. 1982, São Paulo. 1985 1986 Serviço Social de SAFIRA, B. Amann. A ideologia do Desenvolvimento Ideologia 1992 Comunidade I de Comunidade no Brasil. São Paulo, Cortez Editora. 1994 Desenvolvimento de CARVALHO, Alba Maria Pinho de. A questão da Hegemonia e Comunidade I transformação e o trabalho social. Cortez, São Intelectual Paulo. Orgânico Desenvolvimento de ABREU, M. M. ANDRADE, M. A. e RODRIGUES, M. L. Comunidade I B. Pesquisa: Questões Metodológicas do Serviço Práxis Social (Relatório Parcial) Desenvolvimento de CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do Ideologia Comunidade I Desenvolvimento, Brasil, JK, Terra e Paz, Rio, 1972) Desenvolvimento de RIBEIRO, Évila Brito. A emergência e organização do Organização Comunidade II campesionato. Texto mimeográfico, UFMA, 1985. Política Movimentos Sociais RIBEIRO, Évila Brito. A emergência e organização do Organização campesionato. Texto mimeográfico, UFMA, 1985. Política Ideologia, hegemonia, intelectual orgânico, organização política e práxis são as categorias gramscianas que emergem nas ementas das disciplinas de Desenvolvimento de Comunidade I e II e de Movimentos Sociais. Elas indicam o início da penetração da influência do pensamento de Gramsci no curso de Serviço Social as UFMA nessas disciplinas, entre 1083 e 1994. Aos autores como os já anotados (Miriam Limoeiro, Alba Maria Pinho de Carvalho, etc.), somam-se os escritos de maranhenses como Marina Maciel Abreu e Évila Brito Ribeiro. Vestígios de uma tendência da forte penetração de Gramsci no Serviço Social maranhense. Considerando o fenômeno da reestruturação produtiva e da ideologia neoliberal instaurados no início dos anos de 1990 no país, que resultou no acirramento da relação capital e trabalho, e na precarização das condições de vida da classe trabalhadora, podemos observar que a discussão sobre o pensamento de Gramsci e Movimentos Sociais apontam para a construção de novos aportes teóricos sobre o processo de mobilização e organização da sociedade, chamando atenção para a intervenção do Serviço Social nas organizações populares. Fortalecendo a luta e resistência social da profissão na trajetória para a emancipação humana, por uma sociedade justa, igualitária e libertária. 273
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS É importante observar nesse contexto a importância da unidade entre teoria e prática profissional do Serviço Social, uma profissão que precisa estar atenta, captando, nesse movimento, o que se produz como questão social no contexto de vida dos sujeitos. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo reflete sobre elementos importantes que contribuíram para a superação do pensamento conservador no processo de formação profissional do Serviço Social. Compreende- se que esta nova fase da profissão teve início no contexto da Ditadura Militar que ocorreu no Brasil de 1964 a 1985. Nesse contexto, o pensamento de Antonio Gramsci contribuiu com suas reflexões no âmbito da política, da cultura e da ideologia, por meio de categorias como o Estado, sociedade civil e política, hegemonia, filosofia da práxis. O intelectual orgânico é aquele que provém de sua classe social de origem e a ela se mantém vinculado ao atuar como porta-voz da ideologia e interesse de classe. Aos intelectuais vinculados às classes subalternas cabe a tarefa de romper com a hegemonia dominante a partir da formulação do questionamento e crítica social. Devem ser capazes de superar a ideologia dominante e também desenvolver as bases de uma nova cultura que dará suporte a construção da sociedade igualitária. Esse é o contexto do projeto ético-político do Serviço Social. Nossa análise mostra que os escritos gramscianos aparecem influenciando de maneira significativa a disciplina de Movimentos Sociais do curso de Serviço Social da UFMA nessa perspectiva. Considera-se que a disciplina de Movimentos Sociais tinha como objetivo propor uma análise crítica aos discentes sob as expressões dos movimentos populares diante das lutas que se configuravam na década de 1990 e os desafios colocados para os movimentos populares de uma correlação de forças desfavoráveis para a luta da classe trabalhadora. Ratificamos que o pensamento de Gramsci no Serviço Social e no processo de organização dos movimentos sociais é de suma importância, pois possibilita em suas análises compreender elementos contraditórios da formação econômica, histórica, política e social como forma de organização alternativa ao capitalismo. 274
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS REFERÊNCIAS BRANDÃO, Selma Maria Silva de Oliveira. Pesquisa na Formação Profissional em Serviço Social no Brasil em tempos de contrarreforma da Educação Superior: expressões particulares no Maranhão. 2013. COUTINHO. Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 4ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. DURIGUETTO, Maria. Movimentos sociais e Serviço Social no Brasil pós-anos 1990: desafios e perspectivas. In: ABRAMIDES, M. B.; DURIGUETTO, M. L. (Org.). Movimentos Sociais e Serviço Social uma relação necessária. São Paulo: Cortez, 2014. p. 177-193. DURIGUETTO, Maria; MARRO, Katia. Serviço Social, lutas e movimentos sociais: a atualidade de um legado histórico que alimenta os caminhos de ruptura com o conservadorismo. In: SILVA, M. L. (Org.). Serviço Social no Brasil histórias de resistências e de ruptura com o conservadorismo. São Paulo: Cortez, 2016. p. 97-118. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Trad.: C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol.2, 2001. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. SIMIONATTO, Ivete. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC; São Paulo: Cortez Editora, 1995. WEFFORT, Francisco. Formação do pensamento político brasileiro. Idéias e personagens. São Paulo: Ática, 2006. 360p. 275
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS INTERVENÇÃO SOCIAL DE MULHERES NAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE PARA ENFRENTAR A PANDEMIA DO COVID-19 WOMEN'S SOCIAL INTERVENTION IN BASIC ECCLESIAL COMMUNITIES TO CONFRONT THE COVID-19 PANDEMIC Greyce Helen Marques Teixeira1 Paula Raquel da Silva Jales2 RESUMO As Comunidades Eclesiais de Base constituíram-se em meio a inúmeros desafios sociais, políticos e ideológicos, expressando uma contraposição a uma Igreja distante da realidade material do povo. São instâncias progressistas que articulam fé e vida, somando forças com os movimentos sociais e populares. O objetivo geral deste artigo foi refletir sobre a atuação de mulheres das Comunidades Eclesiais de Base, junto a população de seus territórios, no contexto das estratégias engendradas para o enfrentamento da Pandemia do Covid-19. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Conclui-se que as mulheres lideraram um movimento de apoio e suporte aos sujeitos, imersos na conjuntura da Pandemia, que enfrentavam condições adversas de uma ampla desproteção social. Materializou-se uma luta política, dentro de suas múltiplas limitações de intervenção, para que a população aumentasse suas condições de acessar direitos básicos, mediante os agravos causados pela intensificação da crise sanitária mundial. Palavras-chave: Intervenção Social; Atuação Coletiva; Mulheres; Covid-19. 1 Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa sobre Estado e Políticas Públicas da UFPI e dos grupos de pesquisa Margens, Culturas e Epistemologias Dissidentes (GEPE Margens) e Políticas de Seguridade Social, Movimentos Sociais e Trabalho do Serviço Social, este vinculado ao Laboratório de Seguridade Social e Serviço Social (LASSOSS), ambos da UECE. E-mail: [email protected]. 277
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ABSTRACT The Basic Ecclesial Communities were constituted in the midst of innumerable social, political and ideological challenges, expressing a counterposition to a Church distant from the material reality of the people. They are progressive instances that articulate faith and life, joining forces with social and popular movements. The general objective of this article was to reflect on the performance of women from the Base Ecclesial Communities, together with the population of their territories, in the context of the strategies designed to confront the Covid-19 Pandemic. The methodology used was bibliographic, documental and field research. We conclude that the women led a movement of support and assistance to the subjects, immersed in the Pandemic situation, who faced adverse conditions of a wide social unprotection. A political struggle was materialized, within its multiple intervention limitations, for the population to increase its conditions of access to basic rights, through the aggravations caused by the intensification of the world health crisis. Keywords: Social Intervention; Collective Action; Women; Covid-19. 1 INTRODUÇÃO Neste espaço de análise, pretende-se reflexionar sobre a atuação de mulheres das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) de Fortaleza-Ce, junto a população de seus territórios, no contexto das estratégias engendradas para o enfrentamento da Pandemia do Covid-19. Em pesquisa realizada com as líderes das CEB no ano de 2020, referente a um Trabalho de Conclusão de Curso, surgiu, como um dos recortes da investigação, a análise das trajetórias coletivas de mobilização e luta por direitos junto aos indivíduos de seus respectivos bairros, atingidos pelo cenário pandêmico. A pesquisa com as lideranças femininas das CEB de Fortaleza ampliou discussões postas nos recortes das histórias de vida de mulheres, conectadas a uma construção pastoral e política em busca dos direitos. A perspectiva que será desbordada, enfatiza o fato peculiar da capacidade e criatividade dessas mulheres em mobilização, desenhando resistências para o enfrentamento das graves consequências sociais da Pandemia do Covid-19. As mulheres cebianas são fruto de um meio e modelo popular de ser Igreja Católica que remonta a década de 1960, desde o grande giro e reconfiguração da Igreja pós Concílio Vaticano II. Este evento ocorreu de 1962 a 1965 reunindo a hierarquia católica e representantes masculinos leigos, teólogos, para redefinir a posição da Igreja diante das transformações da modernidade e das sequelas da questão social nos países da América Latina (DOMEZI, 2016). 278
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS As CEB constituíram-se em meio a inúmeros desafios sociais, políticos e ideológicos, expressando uma contraposição a uma Igreja distante da realidade material do povo, mas sobretudo, firmaram-se enquanto instâncias progressistas articulando fé e vida, somando forças com os movimentos sociais e populares. O seu caminhar é historicamente denso, não cabe aqui um maior detalhamento, o que se pode pontuar de imediato é que esses núcleos tiveram seus momentos de invisibilização, mas não de desaparecimento, portanto seguem atuando dentro de novas configurações. Diante do recorte trazido da pesquisa monográfica, firma-se um questionamento central: como essas mulheres, lideranças da CEB, puseram em movimento forças, potências e habilidades para uma atuação política de enfrentamento ao cenário pandêmico? A investigação objetiva analisar aspectos de uma intervenção política e coletiva, construída por mulheres das CEB, que teceram redes de apoio com suas comunidades na Pandemia. Pontos específicos foram adotados, mediante a necessidade de conexão e respostas ao objetivo geral, relativos aos processos históricos de mobilização política das mulheres nas CEB. Em seguida, a tessitura das respostas às consequências e agravamentos da Pandemia em busca de interesses coletivos e direitos sociais. Os elementos presentes na proposta metodológica adotada foram as pesquisas bibliográfica, documental e de campo, através de entrevistas semiestruturadas realizadas com seis lideranças femininas das CEB, entre os meses de agosto de 2019 a março de 2020. Para fins de abordagem dos complexos determinantes do real, optou-se pelo diálogo do materialismo histórico e dialético de Marx com o método biográfico de análise de trajetórias. Nesse artigo, confluem provocações, que incitam reflexões sobre distintas modalidades de intervenção política das mulheres na Igreja Católica, a partir das instâncias progressistas. 2 MOBILIZAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES CEBIANAS A participação das mulheres nas Comunidades Eclesiais de Base é historicamente situada. Esses núcleos progressistas da Igreja Católica tecem, desde a década de 1960 no Brasil e na América Latina, uma densa caminhada onde se entrecruzam experiências pastorais e formação política. Estes grupos iniciaram trabalhos de base fundamentados num modelo de 279
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Igreja Popular, tomaram como referência as diretrizes do Movimento da Teologia da libertação e alguns direcionamentos do Concílio Vaticano II (BOFF,1998). Frei Betto (1984) descreveu com refinamento as propostas e caminhos iniciais assumidos pelas CEB junto as classes populares, dos métodos adotados definidos como Ver- Julgar- Agir diante da realidade conjuntural e sociopolítica brasileira advindos da ditadura civil- militar. Os golpes geraram consequências compostas por extremas violações de direitos, assim como o sufocamento das lutas e projetos democráticos. Nas CEB germinavam encontros nas comunidades, nos bairros, na zona rural, comprometidos com a luta pelos direitos sociais como saúde, habitação, educação, alimentação, dentre outros (BETTO,1984). Essas políticas sociais foram intensamente negadas e desestruturadas pela combinação perversa das imposições do capital, alinhadas aos golpes militares, que expuseram a grande maioria da população a um cenário opressor e reprodutor de profundas desigualdades sociais (NETTO, 2015). Em contraposição, os membros das CEB se organizavam no âmbito local, na vizinhança, a partir dos círculos bíblicos, dos clubes de mães, das associações de agricultores, dos sindicatos, ampliando a base a partir do contato com os movimentos sociais e populares (BETTO, 1984). Desde o início dessas jornadas cebianas, os percursos das experiências e vivências das mulheres se entrelaçam em uma luta constante por direitos e em defesa da vida. Maria Cecília Domezi (2016) expõe em suas análises sobre o Concílio Vaticano II a redefinição do posicionamento da Igreja Católica frente as grandes problemáticas da América Latina, a pobreza, miséria, desemprego, vistas como faces da questão social produzida e reposta pelo capitalismo. A opção preferencial pelos pobres e oprimidos adquire centralidade na formulação dos projetos e ações pastorais, ao menos nas intenções e perspectivas dos grupos mais progressistas (DOMEZI,2016). Maria Cecília Domezi (2016) nos oferta um panorama sobre as contribuições das mulheres inseridas nas CEB, numa leitura dos bastidores dos ambientes de preparação a reunião conciliar. O que a autora destaca, diz respeito a esta grande contradição histórica da Igreja Católica em definir para as mulheres papéis e lugares subalternos e secundários, apartados da produção do conhecimento e dos centros de decisão. De acordo com Maria Rosado Nunes (2008), diversas mulheres católicas e cebianas construíram verdadeiros posicionamentos contra hegemônicos a estrutura hierárquica e clerical contida nesses mesmos ambientes de preparação, formação e organização da ação da Igreja. 280
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Conforme as narrativas das lideranças femininas, interlocutoras da pesquisa mencionada, essas estratégias das companheiras cebianas são múltiplas e fundamentais para a construção política que se consolidou e fortaleceu a efervescência das lutas por direitos assumidas pelas CEB na década de 1980. Raimundinha Portela nos apresentou com o requinte de suas memórias enquanto Assistente Social, mulher negra, periférica, liderança ativa no chão das CEB, alguns detalhes da atuação das mulheres no surgimento das CEB em Fortaleza-CE. Apesar de enfrentarem uma ampla estrutura hierárquica nacional da Igreja, que influenciava diretamente a Arquidiocese de Fortaleza, tiveram forte apoio do Bispo Dom Aluísio Lorscheider, que se mostrou mais sensível e aberto as temáticas dos direitos humanos e sociais. Margarida Alves fez também suas considerações acerca do trabalho de base protagonizado pelas mulheres nas CEB nos bairros do Lagamar, Pici, Barra do Ceará, Maraponga, Parque São José, dentre tantos outros. Esses núcleos cebianos reivindicaram fortemente com a Pastoral da Juventude do Meio Popular e os movimentos sociais, a luta pela moradia, manifestaram-se contra a miséria e a carestia, defendendo as pautas de direitos essenciais a população Fortalezense. No que concerne aos espaços formativos das Comunidades Eclesiais, Sulamita ressaltou as vivências das mulheres em várias instâncias, contudo, tecidas num solo antagônico, patriarcal, machista e hierárquico. Porém, as mulheres continuaram revolucionando e construindo a duras penas, suas possibilidades de legitimidade e reconhecimento. Esta liderança fez destaques sobre as práticas políticas que surgiram no convívio direto com as demandas reais da comunidade. Desse contexto surgiram os entrelaces que se adensaram nas Assembleias Arquidiocesanas, nas reuniões entre lideranças as chamadas Ampliadas Regional e Nacional, como também o ponto de culminância formativo, socializador das experiencias e práticas cebianas que se concentram nos Encontros Nacionais Intereclesiais a cada quatro anos. De acordo com a líder Espedita Araújo, os Intereclesiais são espaços referenciais de um grande encontro nacional. Congregam-se neste local, não somente membros das CEB, mas sobretudo, múltiplos representantes dos movimentos sociais, indígenas, das religiões de matriz africana, e das CEB de outros países da América Latina. Segundo conteúdo publicado no site CEB do Brasil, intitulado Memória dos Intereclesiais, o primeiro evento ocorreu no Brasil em 1975, onde percebe-se que o ativismo político das mulheres sempre foi, desde o início, constitutivo desses espaços permanentes de diálogos e debates. 281
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Contudo, Lúcia Ribeiro (2003) pontua que sob a influência machista, patriarcal e hierárquica que permeia as relações de gênero, os primeiros encontros nacionais foram protagonizados pela figura masculina, ocultando as mulheres seu direito e autonomia de estar nas principais lideranças e representações. Apenas, a partir do VI encontro se dá maior abertura e visibilidade as discussões pertinentes as questões das mulheres, dos negros (as), indígenas, que passaram a adquirir uma certa centralidade nas reflexões sobre a vida cotidiana e suas experiências culturais e sociais. Estelita ao se pronunciar sobre a atuação política das mulheres nos espaços cebianos, faz uma exposição sintetizada das principais experiências de luta por direitos pós década de 1990. A líder destaca os momentos de reflexão e mobilização nos círculos da comunidade, discutindo temas sociopolíticos em cada Campanha Anual da Fraternidade, a busca por conhecimento nas formações do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). Frisou também a participação nos eventos de luta por direitos, como o Grito dos Excluídos, Romaria da Terra, Marcha das Margaridas, Dia Internacional de luta das Mulheres e o grande protesto nacional #ELENÃO em 2018, a favor da vida das mulheres, contra o autoritarismo do candidato à presidência Jair Bolsonaro. Aqui foram apresentadas algumas nuances de um rico e diversificado processo de mobilização e atuação política das mulheres nas CEB que hoje existem e resistem em novas configurações. Estes aspectos foram trazidos a luz da reflexão da pesquisa monográfica com as lideranças femininas. São questionamentos cruciais para se pensar contemporaneamente a condição das mulheres nos espaços de luta por direitos, com recorte específico para os âmbitos de contradição e complexidade da Igreja Católica. No próximo tópico desborda-se as análises sobre a atuação feminina cebiana no contexto da Pandemia do Covid-19, reafirmando a pratica política viva e potente das mulheres de base. 3 RESPOSTAS ARTICULADAS POR MULHERES NO CHÃO DAS CEB AOS DESDOBRAMENTOS DO CENÁRIO PANDÊMICO No início do ano de 2020, mais precisamente no dia 7 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decreta de fato a Pandemia do Novo Coronavírus notificado primeiramente em Wuhan na China. Uma doença extremamente contagiosa que atinge as vias respiratórias e 282
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS desafiou de forma acentuada as relações humanas, a ciência, os profissionais da saúde e toda a população mundial que se voltaram as devidas medidas de contenção a grave crise sanitária (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020). Para um diálogo crítico sobre os impactos sociais dessa crise mundial de saúde, que atingiu brutalmente a classe trabalhadora, os desempregados, autônomos, pessoas marcadas pelas múltiplas vulnerabilidades sociais, inclusive a população dos territórios onde atuam as CEB, necessita-se explicitar alguns determinantes históricos. De acordo com Pedro Bezerra (2020), as fraturas da sociabilidade capitalista, produtora das facetas diversificadas e ampliadas da questão social, revelaram novos contornos no contexto pandêmico. A execução desenfreada do projeto neoliberal com suas implicações na economia brasileira, rege um campo de retrocessos em relação a efetivação da proteção social, garantia mínima de direitos e das políticas públicas. Políticas públicas bem estruturadas são imprescindíveis para a organização dos planos estratégicos de enfrentamento ao Covid-19, porém o que se verificou na gestão do Governo Bolsonaro foram a aplicação de golpes sucessivos de destruição das políticas de seguridade social, junto ao arsenal de práticas e discursos ideológicos negacionistas no auge da Pandemia (CFESS MANISFESTA, 2020). As orientações dos órgãos oficiais de saúde para a implementação da quarentena, do isolamento social que possibilita um maior controle sobre os agravos da transmissão comunitária, foram vistos pelo Estado brasileiro como verdadeiros obstáculos ao desenvolvimento e crescimento econômico, segundo os interesses do capital (BEZERRA, 2020). A população brasileira enfrentou neste cenário da Pandemia do Covid-19 situações devastadoras, principalmente seus segmentos mais vulneráveis e desamparados dos territórios periféricos, nas comunidades e favelas que necessitavam de um conjunto de direitos e ampla proteção social que lhes assegurassem um suporte necessário para atravessar este período (CFESS MANIFESTA, 2020). Essas demandas sociais que surgiram e exigiram respostas da sociedade, foram acolhidas e percebidas pelas lideranças cebianas, atentas a estes fenômenos que impactaram os sujeitos na comunidade. Especificamente, mobilizaram-se no sentido de definir articulações em rede comunitária que pudessem amenizar alguns dos pontos mais graves, como exemplo a redução drástica de renda, escassez de recursos para as despesas básicas de sobrevivência, dentre outras necessidades. 283
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Anaide Neri relembra todos os esforços empreendidos, mesmo diante das limitações de intervenção social a partir das CEB, onde seus ativismos políticos estavam concentrados em dar algumas orientações para que a população pudesse acessar as medidas emergenciais como o Auxilio Emergencial, auxiliando as famílias nos cadastros via internet. Para além disso, organizaram em conexão com as associações de bairro, de mulheres, arrecadação de cestas básicas a serem distribuídas nos territórios. Destaca-se um trecho dessa narrativa: As trajetórias nas CEB hoje é a partir das parcerias, nossa região aqui Jangurussu, Palmeiras, agora mesmo com essa situação do coronavírus, isolamento social, foi criado a frente Jangurussu/palmeiras onde envolve a associação de moradores, de mulheres, grupos organizados, enfim, vários grupos e movimentos se juntam em defesa da vida. (ANAIDE NERI). Estelita em suas narrativas evoca o contexto da região da CEB Praia do futuro, pontuando também as intervenções com a comunidade, movimentos sociais e populares, no enfrentamento conjunto dos efeitos da Pandemia. As mulheres cebianas constroem práticas políticas articulando a dimensão de fé e vida. Suas intervenções adquirem materialidade nas bases, quando ministram formações, na socialização dos encontros mensais, onde discutem e reflexionam com os indivíduos sobre as conjunturas atuais que afetam diretamente a vida concreta da população. Suas mobilizações partem das demandas ditadas pela dinâmica social, com vistas a busca por direitos, assim confirma Anaide Neri [...] cada área de CEB da arquidiocese de Fortaleza também está se movimentando principalmente na Praia do Futuro que está mais grave essa questão assim, das pessoas que estão com o Coronavírus, como também na Barra do Ceará, no Planalto Pici, que é uma região também muito carente, mas muito de luta também é uma ZEIS, no Lagamar, no Bom Jardim, todas essas áreas onde sempre existiu essa semente de luta, de organização, de fé em Deus, busca desses direitos, busca de melhoria de vida, a gente continua, mais lento mais devagar, mas de uma outra forma a gente vai se fortalecendo e continuando a luta. (ANAIDE NERI). Um outro aspecto evidenciado pelas lideranças cebianas durante a Pandemia que foi identificado em seus contatos com as mulheres da comunidade, diz respeito a violência doméstica sofrida por elas no contexto pandêmico. Pasinato e Colares (2021) destacam em suas análises os diversos impactos dos processos de violência contra as mulheres no âmbito doméstico, principalmente durante os estágios de isolamento social. 284
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS As autoras pontuaram as dificuldades das mulheres de realizarem as denúncias, pelo convívio direto e por ameaças constantes dos agressores. Outros desafios postos referem-se aos obstáculos para acessar os canais institucionais de acolhimento humanizado e referência de proteção as mulheres, como as Delegacias Especializadas, Ministério Público, dentre outros equipamentos inclusos também na rede de Assistência Social. Espedita Araújo nos revelou que em sua caminhada e ativismo político sempre esteve alinhada as discussões sobre gênero e destacou seu comprometimento com a luta das mulheres, por autonomia, liberdade e direitos. No que concerne ao fenômeno da violência contra a mulher na Pandemia, expressou a sua indignação diante do recrudescimento desses atos misóginos e sexistas, violadores dos direitos das mulheres. Desse modo, ela evidenciou, em alguns trechos de sua fala, que sua prática e mobilização política nos espaços da Igreja Católica, enquanto liderança junto à comunidade, prioriza a defesa da vida, justiça social e o reconhecimento das especifidades e do respeito as relações de gênero. Segundo Espedita Araújo torna-se urgente promover efetivos rompimentos com os ciclos de violência. No entanto, ressalta a existência de distintos entraves a essas emancipações: Assim algumas ainda são um pouco limitadas nos espaços, ficam nos bastidores, mas em sua grande maioria, possuem consciência do seu papel, de seu potencial [...] e devem conquistar muito mais. Ser uma liderança feminina nas Cebs é ser capaz de fazer a diferença, não compactuar com esse modelo de Igreja que discrimina, que é fechada e presa no altar, nos ritos. (ESPEDITA ARAÚJO). Ivone Gebara (2010) salienta que o comprometimento com as lutas políticas e o protagonismo das mulheres cebianas cada vez mais alcança legitimidade, não somente nas esferas de mediação católicas. São perceptíveis as ampliações e os frequentes diálogos com os movimentos sociais, populares, com as Universidades e instituições comprometidas com os valores éticos e democráticos. No entanto, essas trajetórias, não passam sem os desafios e limitações impostos pelas instâncias patriarcais e hierárquicas de segmentos conservadores da Igreja Católica, principalmente ligados aos Novos Movimentos Religiosos, como os núcleos da Renovação Carismática (NUNES, 2008). 285
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Realizou-se um trato analítico, com recorte específico relativo as intervenções de mulheres cebianas nos respectivos bairros de Fortaleza-CE, onde tecem suas trajetórias de vida e militância política nas CEB. Suas ações conformaram a construção de uma rede solidária e coletiva de apoio e suporte as consequências mais agravantes da Pandemia do Covid-19, dentre elas a limitação e ausência de renda, violência, desemprego e os lutos causados pelo efeito devastador dessa crise sanitária. Dentro de suas possibilidades e limites, diante do que foi possível articular para que a população tivesse algumas de suas demandas reconhecidas ou pelo menos amenizadas, optaram pelos subsídios da orientação e suporte, com vistas a estimular processos de autonomia nos indivíduos, para que acessem seus direitos básicos de proteção social. Percebeu-se, que tais iniciativas, compõe não somente uma história consolidada de práticas pastorais históricas das CEB, mas de atos políticos de mulheres comprometidas com a defesa da vida e dos direitos. Sobre o detalhamento das principais características dos processos de mobilização política, construídos pelas mulheres desde o surgimento das CEB no Brasil e América Latina, evidenciou-se a riqueza e concretude de vastas experiências. A luta por direitos sempre foi uma pauta levantada pelas mulheres cebianas nos mais variados espaços e circunstâncias conjunturais. Na própria dinâmica dos encontros Intereclesiais, as mulheres sempre atuaram, articulando a dimensão de fé e vida, enfrentando inicialmente o preconceito, machismo, discriminação, invisibilização e o silenciamento de seus discursos e práticas. Constantemente, eram convocadas a assumir papéis reservados ao lugar do cuidado, obediência e aceitação naturalizada, submetidas as hierarquias masculinas. As líderes cebianas ocuparam espaços na dinâmica de seus territórios que anteriormente pareciam inacessíveis. Estabeleceram conexões e férteis diálogos com os movimentos sociais e populares no decorrer de suas trajetórias nas CEB, iniciativas que ultrapassam os limites de uma ação pastoral ancorada no seguimento de ritos, doutrinas e dogmas. Percebeu-se que essas mulheres romperam inúmeros muros, ainda persistentes, cravados nas estruturas hierárquicas e clericais da Igreja Católica. Seu protagonismo político, foi sendo conquistado e viabilizado pela soma de forças em cada encontro nas comunidades, 286
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS nas vivências e partilhas dos espaços formativos e de socialização da vida cotidiana, da cultura e da espiritualidade. Toda essa tessitura, possibilitou-lhes, exercitarem uma postura comprometida com a defesa dos direitos e em busca de uma ordem social, mais justa e igualitária. Esta análise enfatizou as respostas das mulheres cebianas, em articulação direta com a comunidade, nos bairros onde atuam nas CEB em Fortaleza-CE. Lideraram um movimento de apoio e suporte aos sujeitos, imersos na conjuntura da Pandemia do Covid-19, que enfrentaram condições adversas de uma ampla desproteção social. Materializou-se uma luta política, dentro de suas múltiplas limitações de intervenção, para que a população aumentasse suas condições de acessar direitos básicos, mediante os agravos causados pela intensificação da crise sanitária mundial. Vale destacar que, conforme suas condicionalidades, essas mulheres construíram e reconfiguraram sua atuação e prática política nas CEB, levando em conta o contexto contemporâneo das lutas sociais, que prezam pela efetivação dos valores democráticos. Posicionaram-se na contramão de ondas negacionistas, conservadoras e reacionárias. Portanto, suas trajetórias de militância política são contribuições legítimas e válidas. Suas intervenções suscitam sempre novas reflexões no campo das políticas públicas, da produção do conhecimento, dos estudos sobre relações de gênero, religião, espaço público, com vistas a ampliar caminhos possíveis que superem uma sociabilidade tão opressora e excludente como a capitalista. REFERÊNCIAS BETTO, Frei. O que é Comunidade Eclesial de Base. São Paulo: Brasiliense, 1984. Bezerra, PHA. O contexto social, político e econômico do Coronavírus no Brasil e seus rebatimentos na atuação do Serviço Social. Disponível em: https://artecritica1.blogspot.com/2020/03/o-contexto-social-politico-e-economico.html Acesso em: 14 maio 2020. BOFF, Leonardo. O caminhar da Igreja com os oprimidos. 2 ed. Petrópolis: Vozes,1998. BRASIL. Ministério da Saúde. O que é COVID-19. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/o-que-e-o-coronavirus. Acesso em: 10. ago. 2021. 287
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS CEBS DO BRASIL. Memória dos Intereclesiais. Disponível em: https:// https://cebsdobrasil.com.br/intereclesiais/. Acesso em: 7 abril. 2022. Conselho Federal de Serviço Social (CFESS). CFESS Manifesta: os impactos do Coronavírus no trabalho do/a assistente social. Brasília, DF. 23 de março de 2020. DOMEZI, Maria Cecília. Mulheres do Concilio Vaticano II. col. Marco Conciliar. São Paulo: Paulus,2016. GEBARA, Ivone. Vulnerabilidade, Justiça e Feminismos: antologia de textos. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2010. NETTO, José Paulo. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós- -64. 17 ed. São Paulo: Cortez, 2015. NUNES, Maria José F. R. Direitos, cidadania das mulheres e religião. Novembro. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 20, n. 2, 2008. PASINATO, W.; COLARES, E. S. Pandemia, violência contra as mulheres e a ameaça que vem dos números. Boletim Lua Nova, 20 abr. 2020. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/diversas/pandemia-violencia-contra- as-mulheres-e-a-ameaca-que-vem-dos-numeros-por-wania-pasinato-e-elisa-sardao-colares/. Acesso em: 27 maio. 2021. RIBEIRO, Lúcia. Nos meandros da caminhada: a questão de gênero nas comunidades eclesiais de base (CEBs). Rev. Eletr. Ciências Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, v. 5, n. 5, p. 225-242,2003. 288
EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS INTRODUÇÃO À TEORIA DE CLASSES MARXIANA: um estudo sincrônico entre O Capital, O 18 de Brumário e o Manifesto Comunista INTRODUCTION TO MARXIAN CLASS THEORY: a synchronic study between The Capital, The 18th Brumaire and The Communist Manifesto Wécio Pinheiro Araújo1 Maria Imaculada de Andrade Morais2 RESUMO Este artigo discute a contribuição encontrada nas últimas páginas de O Capital — capítulo intitulado As Classes —, por meio de um estudo sincrônico realizado com O 18 Brumário de Luís Bonaparte e o Manifesto Comunista. Para isto, dialoga com autores da tradição marxista no sentido de aprofundar o debate acerca da teoria de classes, no desenlace de como a partir da generalidade histórica atinente à atividade dinâmica das lutas de classes enquanto “motor da história”, igualmente se manifesta a generalidade do objeto determinante da própria luta de classes: a exploração do homem pelo homem. A exposição compartilha alguns resultados do projeto de iniciação científica denominado Estado, ideologia e luta de classes no capitalismo contemporâneo, com o objetivo de contribuir para o esclarecimento daqueles estudiosos que começaram a frequentar o texto marxiano, com interesse na problemática da luta de classes. Palavras-chave: Classe social. Luta de classes. Marx. 1 Professor efetivo da UFPB (DSS/CCHLA). Doutor em Filosofia pelo Programa de Doutorado Integrado UFPE/UFPB/UFRN, com estágio sanduíche na Alemanha (CAPES/PDSE) junto à Hochschule für Grafik und Buchkunst (HGB/Leipzig). Coordenador do presente projeto de pesquisa (PIBIC/UFPB/CNPq). E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba e bolsista de iniciação científica no presente projeto, vinculado ao Grupo de Estudos em Filosofia e Crítica Social (GEFICS/UFPB/CNPq). E-mail: [email protected] 289
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ABSTRACT This article discusses the contribution found in the last pages of The Capital — a chapter entitled As Classes — through a synchronic study with The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte and The Communist Manifesto. For this, it dialogues with authors of the Marxist tradition in order to deepen the debate about class theory, in the outcome of how from the historical generality concerning the dynamic activity of class struggles as a motor of history, the generality of the object is also manifested. determinant of the class struggle itself: the exploitation of man by man. It shares some results of the scientific initiation project called State, ideology and class struggle in contemporary capitalism. At this stage of the research, the objective is to contribute to the clarification of those scholars who began to frequent the Marxian text, with emphasis on the problem of class struggle. Keywords: Social class. Class struggle. Marx. 1 INTRODUÇÃO A concepção geral que fundamenta a perspectiva de classes marxiana está assentada em um fato historicamente comprovado em todas as sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção: a exploração do homem pelo homem e seus desdobramentos sociais, econômicos, políticos etc. Neste sentido, o ponto de partida que assumimos para examinar a questão da luta de classes está na seguinte indagação: o que constitui uma classe social? Este questionamento corresponde ao último esforço em vida de Marx no sentido de elaborar uma argumentação científica para o problema das classes, e pode ser encontrado nas últimas páginas d’O Capital (livro terceiro, capítulo intitulado As Classes) — publicado por Engels após a morte de Marx (MARX, 2017, p. 947-948), e lamentavelmente incompleto. Portanto, esta exposição consiste na realização de um breve e ainda inicial estudo sincrônico estabelecido entre, de um lado, a questão supracitada apresentada em O Capital, e de outro, dois textos anteriores e de natureza distinta: O 18 Brumário de Luís Bonaparte (MARX, 2011) e o Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 2021). Em primeiro lugar, o conceito de classe social na teoria marxiana define-se como um grupo social que ocupa um lugar determinado no processo de produção, entendendo-se que este lugar comporta uma significação dupla: lugar no processo técnico de produção e lugar no processo jurídico, sobreposto ao processo técnico. O capitalista é simultaneamente o senhor da organização do trabalho, e logo o senhor do processo técnico, e o é também, juridicamente, 290
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS graças à sua situação de proprietário dos meios de produção, que lhe garante legalmente o direito de se apropriar do mais-valor aos produtores associados (ARON, 2007, p. 182). Inicialmente, vejamos resumidamente o movimento teórico-metodológico realizado por Marx: a luta de classes assume no pensamento marxiano, um caráter genérico, que Marx e Engels resumem na expressão “motor da história”. Mesmo fundamentada em uma realidade concreta, trata-se de uma abstração, pois expressa uma conclusão decorrente de determinada forma de pensar que se analisa a realidade. Contudo, sua generalidade está situada precisamente no nível de abstração que coloca a luta de classes como verdade concreta e material comum a todas as épocas da histórica das sociedades fundadas na propriedade privada dos meios de produção – e neste movimento temos o caráter dialético da formulação marxiana. Como um produto do pensamento, esta formulação ganha corpo histórico quando, sob a união do universal (o trabalho subjugado à propriedade privada) com o singular (o sujeito histórico: indivíduos e sociedade) sob a inferência do particular (o estágio de desenvolvimento de uma sociedade), põe-se a determinação concreta dessa abstração, que sob a perspectiva do sujeito político manifesta-se nas classes sociais e nas relações estabelecidas entre elas em uma sociedade. Por mim, sob este proceder teórico-metodológico, a generalidade comum a todas as épocas sofre inevitavelmente as determinações históricas cada vez mais particulares tanto quanto se aproximam de determinada conjuntura, decorrente de uma determinada particularidade histórica – neste caso, a sociedade capitalista. Cabe ressaltar que, em carta a Lassale, Marx lembrou certa vez que o seu método se define como uma pesquisa que “se eleva do abstrato ao concreto”; isto é, elevando-se gradativamente de determinações mais amplas a determinações mais precisas. Sob este direcionamento teórico-metodológico é que vamos discutir a questão a partir daqui. 2 ENGAJAMENTO POLÍTICO E RIGOR CIENTÍFICO: MANIFESTO COMUNISTA E O CAPITAL No primeiro capítulo do Manifesto Comunista, Marx e Engels apresentam uma poderosa peça retórica extraída, por rigoroso exame, da história escrita acumulada até sua época: “A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 2021, p. 53) – conforme explica Engels: 291
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS A Pré-História, organização social anterior à história escrita, era desconhecida em 1847. Mais tarde, Haxthausen [August von, 1792-1866] descobriu a propriedade comum da terra na Rússia, Maurer [Georg Ludwig von, 1790-1872] mostrou ter sido essa a base social da qual as tribos teutônicas derivaram historicamente e, pouco a pouco, verificou-se que a comunidade rural era a forma primitiva da sociedade, desde a Índia até a Irlanda. A organização interna dessa sociedade comunista primitiva foi desvendada, em sua forma típica, pela descoberta de Morgan [Lewis Henry, 1818- 1881] da verdadeira natureza do gens e de sua relação com a tribo. Após a dissolução dessas comunidades primitivas, a sociedade passou a dividir-se em classes distintas. (MARX; ENGELS, 2021, p. 98; nota de Engels à edição inglesa de 1888). Logo adiante no texto fica evidente que eles pretendem analisar, a partir dessa afirmação mais geral, a sociedade burguesa, onde aquela abstração inicial, mais simples, adquire sua forma mais complexa — seu verdadeiro ponto de partida —, igualmente produto de condições históricas, e que não possui validez concreta senão para essas condições e dentro dos limites da mesma. No Manifesto Comunista, Marx e Engels destacam duas grandes classes sociais, pois sendo um texto aberto e de caráter político — como anuncia o próprio título —, a luta de classes ganha uma embocadura engajada realidade social do seu tempo, com o intuito evidente de manifestar aos trabalhadores a necessidade da revolução. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (MARX; ENGELS, 2021, p. 54-55). Em síntese, temos duas grandes classes, pois essa era a determinação colocada pelo processo social enquanto totalidade concreta manifesta na sua concretude e pela natureza eminentemente política e panfletária do texto em questão. Portanto, a natureza do problema situado na realidade concreta (sensível e factual) determina o recorte que sofrerá a teoria no movimento da abstração rumo ao concreto pensado, ou seja, por meio da mediação, o pensamento navega de proposições mais gerais (abstratas) em direção às determinações mais particulares (concretas), a saber: na realidade concreta da luta de classes rumo à transformação revolucionária da sociedade capitalista moderna – e esta é a ênfase do Manifesto —, as classes 292
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS que capitaneiam o conflito segundo Marx e Engels, estão historicamente representadas pelos burgueses e proletários, em uma situação determinada diretamente por uma relação de opostos irreconciliáveis entre si. Por burguesia entende-se a classe dos capitalistas modernos, que são proprietários dos meios de produção social e empregam trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que, não tendo meios de produção próprios, são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. (MARX; ENGELS, 2021, p. 98, nota de Engels à edição inglesa de 1888). Temos inequivocamente o destacamento de “dois grandes campos inimigos”: burguesia e proletariado. Por conseguinte, retomemos a pergunta elaborada pelo próprio Marx em O Capital, Livro III, no capítulo intitulado As Classes (MARX, 2017, p. 947): A questão que se propõe agora é esta: que constitui uma classe? A resposta decorre automaticamente da que for dada à pergunta: que faz dos assalariados, dos capitalistas e dos proprietários de terra membros das três grandes classes sociais? À primeira vista, a identidade das rendas e das fontes de renda. São três grandes grupos sociais, e seus componentes, os indivíduos que os constituem, vivem respectivamente de salário, de lucro e de renda fundiária, utilizando a força de trabalho, o capital e a propriedade fundiária. (MARX, 1985, p. 1013). A generalidade ou universalidade abstrata da luta de classes enquanto “motor da história”, comum a todas as épocas, sofre aqui uma determinação precisa decorrente da aproximação junto à particularidade da sociedade burguesa analisada em O Capital, que põe a exposição teórica sob o método da crítica à economia política, por meio do recurso à inferência da particularidade histórica determinada pelo estágio de desenvolvimento da sociedade capitalista no seu tempo. Marx, fiel ao seu método, prossegue elevando-se progressivamente do abstrato ao concreto. Assim, na costura da mediação, a particularidade exerce determinação sobre a abstração, a partir de termos específicos e rigorosamente situados na esfera da produção. Segundo o próprio autor, a resposta terá que decorrer automaticamente da que for dada à pergunta: “O que faz com que assalariados, capitalistas e proprietários de terra constituam as três grandes classes sociais?” (MARX, 2017, p. 48). Apesar da inequívoca coerência com a elaboração encontrado no Manifesto, aqui estamos diante de um problema posto rigorosamente em termos científicos. 293
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Os assalariados, capitalistas e proprietários de terra estão a se movimentar no solo real história, logo, à primeira vista, o conceito de classe surge da aproximação com esse concreto em suas manifestações reais elaboradas no que tange à produção enquanto concreto pensado. Este processo conduz à conclusão de que, sob essa perspectiva dos papéis desempenhados no modo de produção, os assalariados, os capitalistas e os proprietários de terra são os três grandes grupos sociais, pelo fato de que “vivem respectivamente de salário, lucro e renda da terra, da valorização da sua força de trabalho, de seu capital e de sua propriedade fundiária” (MARX, 2017, p. 948). Dois pontos podem nos ajudar a aprofundar um pouco mais a análise. Primeiramente, o lucro é a forma socialmente necessária e aparente que adquire a substância da acumulação capitalista situada no mais-valor. Igualmente à renda fundiária – consagrada por Marx neste mesmo livro terceiro por meio de longa análise –, o lucro é também uma fração do mais-valor não distribuído entre os trabalhadores. Por fim, resta o salário enquanto única parte acessível aos trabalhadores com relação a tudo aquilo que produzem. Neste ponto temos, alinhada de modo coerente com o Manifesto, uma constatação empírica da exploração do homem pelo homem como uma determinação sistêmica ao modo de produção capitalista. Essa interpretação das classes pela estrutura econômica encontrada em O Capital, é a que corresponde melhor à intenção científica de Marx (ARON, 2007, p. 182). Em segundo lugar, segundo Marx e Engels, as relações entre as classes tendem a simplificar-se à medida que o capitalismo se desenvolve. Neste aspecto, eles enfatizam as duas principais fontes de rendimentos, deixando de lado a renda fundiária cuja importância, segundo eles, diminui à medida que progride a industrialização. Decorrente disto, o texto nos leva a duas grandes classes que disputam a luta deflagrada na arena política da história sob a perspectiva da revolução comunista: de um lado, o proletariado constituído pelos que só possuem a sua força de trabalho, e de outro, a burguesia capitalista, aquela classe social que açambarca a maior parte do mais-valor produzido pelos trabalhadores. Apesar da natureza distinta desses textos, é possível identificar um nexo inequívoco entre eles, seja num tipo de interpretação de intenção mais científica, seja com propósitos mais voltados para o engajamento político. 294
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 3 O 18 DE BRUMÁRIO DE LUÍS BONAPARTE: O CASO DOS CAMPONESES FRANCESES “A situação dos camponeses franceses nos permite decifrar o enigma das eleições gerais de 20 e 21 de dezembro de 1848.” Karl Marx, em O 18 de Brumário3 O 18 Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852, traz uma primorosa análise de conjuntura, na qual Marx desmonta a estrutura de classes francesa e traz à tona os interesses e as divergências que existiam entre elas, assim como os diversos grupos sociais que exerceram influência na sucessão dos fatos políticos naquele momento, com destaque para o fato de que Luís Bonaparte soube aproveitar-se politicamente desses conflitos, à medida que se colocou estrategicamente como alternativa para uma determinada classe, enquanto vislumbrava, na verdade, apoderar-se do Estado francês. Um pouco antes de publicar de O 18 de Brumário, em A Luta de Classes na França (MARX, 2012), texto de 1850, Marx distingue as seguintes classes: burguesia financeira, burguesia industrial, classe burguesa ligada ao comércio, pequena burguesia, classe camponesa, classe proletária, e por fim aquilo a que chama o Lumpenproletariat, correspondendo aproximadamente àquilo que chamamos o subproletariado ou lumpemproletariado (ARON, 2007, p. 182). Segundo Bottomore (2001, p. 223), Marx refere-se ao Lumpenproletariat como “o lixo de todas as classes”, “uma massa desintegrada”, que reunia “indivíduos arruinados e aventureiros egressos da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-saídos da cadeia (...) batedores de carteira, rufiões, mendigos” etc., nos quais Luís Bonaparte apoiou-se em sua luta pelo poder. Como destaca Aron (2007, p. 182), esta classificação não contradiz a teoria de classes delineada no último capítulo de O Capital. Afinal, o problema colocado por Marx nas duas abordagens e, consequentemente, nos textos que produzem, não é o mesmo. Em O Capital, Marx procura determinar quais são os grandes agrupamentos, característicos de uma economia capitalista; enquanto nos textos da década de 1850 dedicados à realidade política francesa, ele procura determinar quais foram, em circunstâncias históricas particulares, os grupos sociais que exerceram a sua influência sobre os acontecimentos políticos. 3 Cf. 2011, p. 150. 295
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Ainda no seu prefácio à segunda edição de O 18 de Brumário, de 1869, Marx alerta que apenas duas outras obras que tratam desse episódio são dignas de nota, a saber: Napoléon Le petite [Napoleão, o Pequeno], de Victor Hugo, mesmo não levando em conta os acontecimentos históricos, tratando-os apenas como espontâneos e inesperados; e a obra de Proudhon, Coup d’état [Golpe de Estado], na qual os acontecimentos são relatados mergulhados num contexto construído historicamente como se fossem resultado de uma “evolução histórica precedente” (MARX, 2011, p. 18), e acabando por transformar a construção histórica do golpe de Estado numa “apologia do herói do golpe de Estado” (MARX, 2011, p. 18). A questão em jogo é que, diferente de ambos supracitados, Marx tratará os fatos, não só como um contexto construído historicamente, mas, sobretudo, perpassado pelas lutas de classes, o que revelará o caráter eminentemente crítico-dialético da sua abordagem no deslindamento das classes e/ou grupos sociais que influenciaram politicamente aquele momento histórico. Eis o desafio assumido por Marx na sua narrativa histórica daquele acontecimento que chamou ironicamente de “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”: superar analogias históricas superficiais que, segundo ele, eram comuns à Alemanha da época. O elemento chave para a teoria de classes encontrado neste texto está na descrição de novos elementos históricos das lutas de classes e na crítica reveladora daquilo que havia sido mistificado na forma inescrupulosa como Luís Bonaparte chega ao poder. A estratégia bonapartista consistiu em capturar o descontentamento das classes em proveito próprio, processo por meio do qual ele foi eleito mediante habilidosa manipulação do prestígio que seu sobrenome carregava junto as massas dos pequenos camponeses – por conta do seu tio, Napoleão Bonaparte. A tática consistiu precisamente em conquistar a opinião daqueles grupos sociais mais miseráveis; e junto disto, no meio urbano, ele ergueu um exército pessoal formado pelo lumpemproletariado, este edificado [...] em condições extremas de crise e de desintegração social em uma sociedade capitalista [quando] grande número de pessoas pode separar-se de sua classe e vir a formar uma massa “desgovernada”, particularmente vulnerável às ideologias e aos movimentos reacionários. (BOTTOMORE, 2001, p. 223). Os camponeses intervieram na política francesa, segundo Marx, no dia em que elegeram Luís Napoleão Bonaparte, isto é, 10 de dezembro de 1848. O sobrinho de Napoleão foi eleito, e ninguém o conhecia muito antes disso, todavia, mesmo assim foi eleito, em eleições livres, pela 296
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS imensa maioria do país. Como salienta Aron (2007, p. 454), a questão que se colocava para Marx sob a perspectiva da luta de classes era a seguinte: “Quem Luís Napoleão representava?”. Nosso autor responde: os camponeses, uma vez que a maioria da população francesa era rural. No entanto, paira a questão de saber se Luís Napoleão representava a classe dos camponeses de maneira essencial ou acidental e se, no poder, ele se comportou como porta-voz dos camponeses. A partir disso, revela-se o peso do texto de O 18 Brumário de Luís Bonaparte do ponto de vista teórico da perspectiva da luta de classes, motivo pelo qual chegamos a outra questão: os camponeses constituem uma classe social? Eis a resposta de Marx: A grande massa da nação francesa é constituída por uma simples adição de grandezas do mesmo nome, mais ou menos do mesmo modo que um saco cheio de batatas forma um saco de batatas. Pelo fato de viverem CONDIÇÕES ECONÔMICAS de existência que distingue seu modo de subsistência, seus interesses e cultura daqueles das outras classes, esses milhões de famílias CONSTITUEM UMA CLASSE, inímiga recíproca das outras classes. Mas pelo fato de estarem unidas por um vínculo puramente LOCAL, pelo fato de a identidade dos interesses não criar comunidades, nem união nacional, nem ORGANIZAÇÃO POLÍTICA, os camponeses minifundiários NÃO CONSTITUEM CLASSE. (MARX, 1928, p. 313-314, grifo nosso). Como aponta Aron (2005, p. 455-456), aí está uma teoria bem elaborada das classes. Primeiro, temos a condição primacial para a formação de uma classe, isto é, que exista um número grande de famílias vivendo dentro de condições semelhantes. Em seguida, também um outro aspecto nevrálgico também aparece contemplado: é preciso que esses milhões de famílias tenham os mesmos interesses, que tenham mais ou menos a mesma cultura e que essas comunidades criadas pela semelhança das condições as coloquem como inimigas de outros grupos, definidos por outras condições de existência e outros interesses. Mas a classe só tem acesso a sua realidade, no sentido estrito do termo, da realidade de uma classe, pela tomada de consciência. Eis uma constatação profundamente crítica, a saber: uma classe social se põe determinada pela unidade dialética entre duas dimensões contraditórias. A contradição é exatamente aquilo que elucida o enigma, pois nela se revela a própria essência do fenômeno de classes. Na condição primeira, temos elementos bem mais ligados à particularidade da vida rural francesa manifestos num “vínculo puramente local” e trazendo uma noção na qual poderíamos enquadrar os camponeses enquanto “classe”; por outro lado, no apuramento 297
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS teórico-metodológico da análise teríamos a aproximação com determinações mais complexas relativas à dialética entre a forma política e o conteúdo social na sociedade burguesa4, das quais, o campesinato francês estava muito distante. Nota-se que a sacada pioneira do ponto de vista teórico está no fato desta análise ser capaz de captar tal contradição e não meramente cunhar um conceito engessado para ser aplicado verticalmente à realidade. E neste ponto, somente a abordagem dialética marxiana corresponde a tal acuidade teórico-analítica. O apontamento de Marx é rigorosamente dialético, pois capta a contradição fundamental entre a formação de classes naquele contexto da realidade francesa, no sentido de revelar a contradição fundamental entre um grupo social (os camponeses) ser e não ser uma classe simultaneamente; isto é, se afirmar pela própria negação na dinâmica dos processos sociais que compõem aquela totalidade concreta. Em termos dialéticos, ao observar um grande número de pessoas que vivem em condições análogas de existência e interesses em comum, diríamos que esse grupo constitui uma “classe em si”; mas se estas pessoas não têm consciência de constituírem um grupo, e não desenvolvem um projeto comum, de vontade coletiva e organização política, não constituem uma “classe para si”, pois não atuam no cenário político diretamente enquanto classe. Para Marx, como aponta Aron (2005, p. 456, grifo nosso), resgatando a evidente inspiração hegeliana do pensamento marxiano, “Uma classe só existe realmente quando ela se pensa como classe, porque, sem isso, ela o é em si e não para si. Uma classe só existe realmente quando ela se quer classe, quer dizer, quando ela tem um projeto”. Podemos compreender então porque os conservadores camponeses franceses necessitavam de um representante que estivesse no ápice da pirâmide social para assegurar a ordem, e sendo maioria apta a votar em eleições livres, exercem o direito, mesmo não sendo uma classe organizada no sentido estrito do termo, de modo que elegem este questionável representante nomeado por Marx de “aberração política”, marcando para sempre sua intervenção episódica na história política francesa. 4 Ver prólogo de Herbert Marcuse, Cf. MARX, 2011, p. 9-16. 298
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Marx partiu da ideia de uma contradição fundamental de interesses entre os assalariados e os capitalistas. Estava, além disso, convencido de que essa oposição dominava o conjunto da sociedade capitalista e de que tomaria uma forma cada vez mais forte com o avanço da evolução histórica (ARON, 2007, p. 183), como tentamos demonstrar neste trabalho. Todavia, quando sua análise se move rumo ao concreto, enquanto esmerado observador histórico, ele não poderia, por um lado, negar a pluralidade dos grupos sociais, como no caso da interpretação histórica dos sucessivos fatos políticos naquele momento vivido pela França; assim como também, por outro lado, seria impossível igualmente negar a luta de classes perpassando aquela complexa realidade. Fica, mais uma vez, comprovada, a assertiva marxiana de que a essência do mundo humano está nas relações sociais, e que, somente sob a rigorosa apreensão histórico-dialética dessas relações enquanto totalidade concreta, é que podemos explicar, por aproximação, a complexidade dos processos sociais que delas e nelas se desenvolvem. Neste momento da pesquisa (ainda propedêutico), podemos concluir que a teoria de classes marxiana, seja em textos situados no início do itinerário intelectual marxianos, seja na sua obra madura, é rigorosamente coerente com sua formulação mais geral que afirme a luta de classes como “motor da história”. E mais: estabelece mediações com os acontecimentos históricos em suas particularidades por meio de um recurso essencial ao método dialético: a lógica da contradição imanente ao conteúdo das relações sociais e suas formas políticas deste conteúdo ser vivenciado pelos indivíduos enquanto sujeitos de classe. REFERÊNCIAS ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Tradução de Jorge Bastos. - São Paulo: Arx, 2005. ______. As Etapas do Pensamento Sociológico. 8ª edição. Lisboa (Portugal): Publicações Dom Quixote: 2007. BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do Pensamento Marxista. -Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MARX, Karl. As lutas de classe na França. - São Paulo: Boitempo, 2012. 299
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ______. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. - São Paulo: Boitempo, 2011. ______. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro III, volume VI: O Processo Global de Produção do Capital. 10ª ed. – Tradução Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: DIFEL, 1985. ______. O Capital – Crítica da Economia Política. Livro III: O Processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2021 (recurso digital/edição kindle). ______. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007. 300
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