EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS MOVIMENTO LGBTQIA+ E PODER JUDICIÁRIO: uma análise das demandas judicializadas pelo Grupo Matizes em Teresina (PI) LGBTQIA+ MOVEMENT AND JUDICIAL POWER: an analysis of the lawsuits filed by Grupo Matizes in Teresina (PI) Libni Milhomem Sousa1 Olívia Cristina Perez2 RESUMO O artigo discute o fenômeno da judicialização como uma das estratégias de trabalho do Grupo Matizes em Teresina (PI). O objetivo foi analisar o uso da judicialização pelo movimento como meio de garantir os direitos LGBTQIA+. A pesquisa qualitativa e documental analisou as Ações Civis Públicas nº 2006.40.00.001761-6 e nº 2009.40.00.001593-9 decorrentes das reivindicações da população LGBTQIA+ no Piauí, além de quatro entrevistas com os militantes do movimento. Os resultados apontam que a judicialização das duas demandas favoreceu os ganhos em direitos LGBTQIA+, ao tempo que tornou o Grupo Matizes reconhecido no Brasil como um movimento social pioneiro no uso da judicialização. Palavras-chave: Direitos LGBTQIA+; Movimentos LGBTQIA+; Judicialização. ABSTRACT The article discusses the phenomenon of judicialization as one of the working strategies of the Grupo Matizes in Teresina (PI). The objective was to analyze the use of judicialization by the movement as a means to guarantee LGBTQIA+ rights. The qualitative and documental research 1 Doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor do Instituto Federal do Piauí (IFPI), campus Campo Maior. Mestre em Ciência da Propriedade Intelectual pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Participante do Grupo de Pesquisa Democracia e Marcadores Sociais da Diferença. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Pós-doutorado em Ciencias Sociales, Niñez y Juventud (Cinde/Clacso). Professora Adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI), vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em Ciência Política e ao programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Políticas Públicas. Líder do Grupo de Pesquisa Democracia e Marcadores Sociais da Diferença. E-mail: [email protected] 301
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS examined the Public Civil Actions nº 2006.40.00.001761-6 and nº 2009.40.00.001593-9 arising from the claims of the LGBTQIA+ population in Piauí, as well as four interviews with the movement's militants. The results indicate that the judicialization of the two lawsuits favored gains in LGBTQIA+ rights, while making the Grupo Matizes recognized in Brazil as a pioneering social movement in the use of judicialization. Keywords: LGBTQIA+ Rights; LGBTQIA+ Movements; Judicialization. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho aborda o uso da judicialização pelo Grupo Matizes. O movimento social é considerado o mais importante do Piauí quando se trata da defesa pelo reconhecimento dos direitos LGBTQIA+. Com uma agenda de trabalho diversificada, o movimento tem desenvolvido um amplo conjunto de ações que vão desde a educação em direitos humanos a atividades de advocacy. No entanto, a questão de interesse desta pesquisa concentra-se na judicialização como forma de assegurar os direitos da população LGBTQIA+ no estado. A literatura no campo do direito e da ciência política tem debatido sobre a judicialização como uma resposta ao atendimento das demandas de justiça no país (VIANNA et. al., 1999; BACELLAR, 2002; AGUINSKY, 2006; BARBOZA, KOZICKI, 2012; TEIXEIRA, 2019). Outras pesquisas mostram os avanços significativos em torno da judicialização (MACIEL, KOENER, 2002; OLIVEIRA, CARVALHO, 2005; SILVA, COMARU, SILVA, 2018). E mais ainda, há os estudos que apontam a judicialização como uma terceira via para se fazer cumprir o exercício da cidadania (TATE; VALLINDER, 1995; VIANNA, BURGOS, 2005). Os estudos sobre o tema também trazem explicações sobre os fatores que ampliam o seu maior ou menor uso. Tais pesquisas mostram as motivações que influenciam o uso da judicialização como um recurso decisório (ARANTES, 2007; TAYLOR, DA ROS, 2008; VERONESE, 2009). Estes estudos demonstram que a judicialização tem se apresentado como uma tendência presente na democracia contemporânea. Por exemplo, de acordo com Bacellar (2002), a judicialização das relações sociais está acontecendo de fato e o direito tem influenciado a vida das pessoas. Contudo, são escassos os trabalhos que examinam o uso da judicialização pelos movimentos sociais na conquista de direitos coletivos. Na arena LGBTQIA+, os estudos que tratam sobre o tema dialogam maiormente sobre as demandas individuais 302
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS (ALBERNAZ, KAUSS, 2015; COACCI, 2015; CARDINALI, 2018), o que revela o uso da ferramenta para atender demandas privadas. Para preencher essa lacuna, este trabalho apresenta duas demandas judicializadas pelo Grupo Matizes. A primeira refere-se a Ação Civil Pública - ACP n.º 2006.40.00.001761-6, para a restrição da doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens. A segunda trata da ACP n.º 2009.40.00.001593-9, sobre a inserção como dependente na Declaração do Imposto de Renda, cônjuge de contribuinte LGBTQIA+. A pergunta que norteou esta pesquisa foi: por que o Grupo Matizes fez uso da judicialização para garantir direitos LGBTQIA+? Para compreendermos o caso partimos do argumento de que o Poder Judiciário tem reconhecido através da judicialização os direitos LGBTQIA+ (CARDINALI, 2017, 2018). Nesse ponto, ao considerar a intervenção do Poder Judiciário, o movimento LGBTQIA+ passa a entender a judicialização enquanto uma estratégia política (CARRARA, 2010). Nossa hipótese é que o uso da judicialização favoreceu a conquista dos direitos LGBTQIA+ no Piauí. Assim, buscamos mostrar como as demandas foram judicializadas pelo Grupo Matizes. Tanto a judicialização da restrição da doação de sangue como a do Imposto de Renda foram pautas de trabalho do movimento que provocaram uma ampla repercussão social no estado. Nesse sentido, o objetivo principal deste trabalho é analisar o uso da judicialização pelo Grupo Matizes como forma de garantir os direitos LGBTQIA+. A pesquisa qualitativa utilizou as técnicas de pesquisa documental e entrevista. No primeiro momento da pesquisa foram consultados e analisados os documentos que mostram o uso da judicialização pelo Grupo Matizes. As informações são oriundas de documentos oficiais, publicações em Blogs, jornais e sites. Na segunda etapa foram realizadas quatro entrevistas com militantes do movimento. A escolha dos entrevistados foi determinada em função das contribuições destes para as conquistas do movimento. O roteiro de entrevista foi composto por perguntas que trataram sobre como o Grupo Matizes se organizou em torno da judicialização das demandas LGBTQIA+. As entrevistas ocorreram entre julho a agosto de 2021. O artigo se fraciona em três seções, além desta introdução. Na seção 2 abordamos a judicialização enquanto uma das estratégias de trabalho do movimento. Na seção 3 examinamos o caso da vedação da doação de sangue. Na seção 4 examinamos o caso da 303
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS inclusão de cônjuge de LGBTQIA+ na Declaração do Imposto de Renda. Por último mostramos as considerações finais da pesquisa. 2 JUDICIALIZAÇÃO DAS DEMANDAS LGBTQIA+ POR INTERVENÇÃO DO GRUPO MATIZES O Grupo Matizes enquanto movimento social foi constituído como uma organização voluntária sem fins lucrativos. A agenda de trabalho do movimento foi desenvolvida através de múltiplas estratégias de atuação. Uma dela foi recorrer ao Poder Judiciário para que suas demandas fossem atendidas. No entanto, a princípio a judicialização não era uma das escolhas de trabalho do Matizes. Como afirmou E2 “a judicialização não estava na gênese das estratégias, mas já estava no cenário”. A decisão por judicializar ou não uma demanda dependia em maior parte do sucesso ou fracasso das ações do movimento. Durante as entrevistas, os militantes argumentaram que a judicialização das demandas LGBTQIA+ permite refletir sobre o papel do Poder Judiciário e aproximação com a sociedade. Conforme disse o entrevistado E1 “[...] levar a discussão para o judiciário é também politizar esse judiciário que se mantém em alguns casos, meio que apartado das problemáticas”. E mais ainda, complementa ao dizer que “[...] quando você vai ao Judiciário é porque existe a omissão desses poderes políticos tradicionais, Executivo e Legislativo”. O mesmo argumento também se complementa no depoimento dos demais militantes. Por exemplo, durante a entrevista, E4 afirmou que “[...] provocar o Judiciário é também convidá-lo a se posicionar sobre as diversas questões práticas presentes na sociedade”. Logo, para os entrevistados o movimento atua através da compreensão de litígio estratégico como parte integrante das atividades de advocacy. Nesse aspecto, de acordo com a fala dos militantes, a judicialização foi para o Grupo Matizes uma estratégia de resolução dos conflitos que não eram resolvidos por meio do diálogo. Sobre a questão, o entrevistado E1 refletiu que “[...] o uso já judicialização foi feito para ampliar os dispositivos legais, para ampliar a política, para ampliar a democracia. Não é no sentido de enfraquecer o Estado Democrático de Direito. É fortalecer. Entendeu?”. A fala do E1 se relaciona com a literatura ao apontar o Poder Judiciário como o detentor de um poder que pode se opor as decisões de uma maioria política. A afirmação se alinha ao estudo de Daniel Cardinali onde diz que \"o Poder Judiciário e a jurisdição constitucional se 304
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS apresentam como lócus possível de enfrentamento desta desigualdade estrutural, nos termos das concepções tradicionais acerca de sua capacidade e funções contramajoritárias\" (CARDINILI, 2017, p. 63). A opção de judicializar uma demanda específica conforme pontuou o entrevistado E1 “não significa que você vai diminuir enquanto movimento social sua ação política”. Complementando a afirmação, o entrevistado E2 disse que “a judicialização, entra como uma estratégia política, que para além de assegurar o direito, cria o fato político de visibilidade, não só para o fato específico em questão, mas para o que é envolvido com o fato político em questão”. E ainda mais o E3 citou que “os ganhos em judicialização foram talvez as grandes conquistas do movimento do ponto de vista de encontra na justiça, de encontrar na lei a legitimação das suas demandas históricas”. Nessa lógica, as entrevistas indicam que o Grupo Matizes pretende continuar com a estratégia de judicialização. Os depoimentos dos militantes revelam que nem todas as demandas eram passíveis de judicialização. O fluxo de trabalho apontou para um conjunto de reuniões entre os militantes do movimento para definição das demandas que seriam judicializadas. Após deliberação, o Grupo Matizes protocolava junto ao Ministério Público um requerimento administrativo onde constava a reivindicação. Caso o resultado do requerimento não fosse favorável, o Grupo Matizes seguia para a judicialização, a exemplos dos dois casos que serão vistos na próxima seção. 3 VEDAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE POR HOMENS QUE FAZEM SEXO COM OUTROS HOMENS Em 2005 o Grupo Matizes entrou com o procedimento administrativo n.º 1.27.000.001161/2005-34 aberto na Procuradoria da República do Piauí. Conforme os documentos, a abertura do procedimento ocorreu em razão dos relatos de homossexuais da capital que argumentavam ser impedidos de doar sangue pelo Centro de Hematologia e Hemoterapia do Piauí - HEMOPI em consequência da orientação sexual. A começar do procedimento administrativo, o Ministério Público Federal/MPF entrou com a Ação Civil Pública com pedido de tutela antecipada n.º 2006.40.00. 001761- 6 na Justiça Federal. A referida ação solicitava que a União Federal, Estado e ANVISA considerassem que homossexuais e bissexuais pudessem ter o direito de doar sangue. 305
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS As informações coletadas mostram que na ação o Ministério Público Federal alegou que a resolução n.º 153/2004 era inconstitucional. O argumento dizia que a resolução feria princípios constitucionais, a exemplo dos princípios de igualdade, liberdade e bem-estar, como também do progresso de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito (BRASIL, 1988). O pedido liminar solicitava a suspenção da proibição de doação de sangue por homossexuais e bissexuais. Especificamente “homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos doze meses” (ANVISA, 2004, n.p). A liminar pretendia que a União e a ANVISA considerassem que homossexuais e bissexuais como sujeitos aptos a doar sangue, barrando a resolução de caráter discriminatório da ANVISA. Verificamos que às fls. 113, nos termos do Art. 2 da lei 8. 437/92 houve o despacho que determinava a oitiva dos requeridos no processo (BRASIL, 2006). Em resposta, o Estado do Piauí às fls. 125/131 argumentou da impossibilidade de concessão da liminar/tutela antecipada, posto que, dizia que o protocolo adotado pelo estado seguia os critérios adotados pela resolução 153/2004 (BRASIL, 2006). A União, às fls. 136-138 disse que a ANVISA era dotada de autonomia e que o impossibilitava sua intervenção (BRASIL, 2006). Por fim, a ANVISA às fls. 149/156 citou que a determinação da resolução visava unicamente proteger os sujeitos que necessitavam das doações de sangue, porém, a RDC 153/2004 estava em processo de revisão (BRASIL, 2006). Diante dos argumentos apresentados notamos no posicionamento do juiz um discurso jurídico que delatava a violação da dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, vale lembra que o reconhecimento dos sujeitos em sociedade é também um direito fundamental, onde “é possível falar em um direito fundamental ao reconhecimento, que é um direito ao igual respeito da identidade pessoal” (SARMENTO, 2016, p. 256). Além da violação da dignidade humana ficava expresso que a Resolução da ANVISA lesava também os princípios da proporcionalidade e da igualdade. Ademais, a restrição perdeu efeito ao ser considerado as pesquisas científicas no campo da doação de sangue como falado anteriormente. No final da ação foi solicitado que a ANVISA num prazo de até 30 dias, orientasse os Hemocentros do país que no processo de triagem não fossem realizadas perguntas sobre a orientação sexual do candidato a doador. Em caso de infração constava na sentença “multa diária (Art. 461, §4º, CPC), aplicável inclusive em caráter pessoal, que fica arbitrada em R$ 1.000,00 (mil reais) por dia em caso de descumprimento” (BRASIL, 2006). De acordo com os 306
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS documentos, após a decisão, a ANVISA entrou com um recurso de agravo de instrumento em razão das decisões interlocutórias do juiz. O recurso foi provido com aprovação dos argumentos interpostos pela ANVISA. De fato, os militantes acreditam que a ação civil pública em referência a doação de sangue fez o Grupo Matizes ser reputado como um movimento social pioneiro. A pauta chamava atenção da imprensa pelo debate provocado na sociedade, o que muito contribuía com a visibilidade da causa. A afirmação pode ser confirmada através dos estudos de Leachman (2014), ao argumentar que o uso da judicialização traz mais visibilidade midiática em comparação a outras estratégias de trabalho. Ainda de acordo com os dados da pesquisa, só a abertura do processo para fins de judicialização não seria capaz de suprir as necessidades da população LGBTQIA+. Era necessário, paralelo ao processo, a mobilização do movimento no sentido de defender os motivos que desencadearam na estratégia da judicialização. Ao provar a inconstitucionalidade do impedimento de doação de sangue por homossexuais e bissexuais, o Matizes defendia que tão importante quanto garantir o direito era também levar a questão à sociedade. Nesse sentido, a estratégia de judicializar as demandas LGBTQIA+ relacionava-se com os ganhos em direitos e a visibilidade da pauta provocada na sociedade. Por fim, a ação civil pública atualmente tramita na 6º Turma do Tribunal Regional Federal 1ª Região. 4 INCLUSÃO DE CÔNJUGE DE LGBTQIA+ NA DECLARAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA Em 2009, o Grupo Matizes entrou com uma representação no Ministério Público Federal - MPF/PI em desfavor do ato administrativo da Receita Federal do Brasil – RFB. A representação referia-se à proibição da inserção de companheiro de contribuinte LGBTQIA+ na Declaração do Imposto de Renda como dependente. Na ocasião, a Ação Civil Pública nº 2009.40.00.001593-9 foi ajuizada pelo Procurador Regional dos Direitos do Cidadão, em 17 de março de 2009. À época, o Procurador solicitou pedido de liminar. A intenção era a de que ainda naquele ano os contribuintes que estivessem em união estável homoafetiva declarassem seus cônjuges como dependentes. Em vista disso, a Procuradoria da Fazenda Nacional – PFN/PI, ingressou com um pedido de suspensão da liminar ou antecipação de tutela, respaldado pelos arts. 12, 307
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS §1º, da Lei 7.347/1985, 4º da Lei 8.437/1992 e 318 do RITRF - 1ª Região, tendo o pedido sido indeferido e a decisão publicada no DJF1, em 06 de agosto de 2009 (BRASIL, 2005). No requerimento administrativo protocolado pelo Grupo Matizes em 03 de março de 2009 havia uma série de argumentações que contestavam a proibição. O conteúdo do documento procurava situar as perdas em direitos da não inserção do companheiro na Declaração do Imposto de Renda. O fato pode ser constatado no argumento do Grupo Matizes onde expõe que “no último dia 02 de março a Receita Federal do Brasil iniciou o período de recebimento da Declaração de Imposto de Renda Pessoa Física – DIRPFA, cujo prazo se estende até 30 de abril de 2009” (BRASIL, 2009). Amparada pela legislação do Brasil, a Receita Federal se posicionou a respeito do caso. O argumento usado foi que na ausência de dispositivo que pudesse legislar sobre o tema, a compreensão do órgão se situava na distinção de efeito entre união estável para casais homoafetivos e casais heterossexuais. Nessa lógica, mesmo com união estável comprovada, a Receita Federal não entendia a existência de relação de dependência para fins de Declaração de Imposto de Renda. Como contra-argumento, o Grupo Matizes refutou a resposta, alegando que a Receita Federal não respeitou aos princípios constitucionais previstos nos artigos; 3º, IV e 5º, caput, além do art. 150 II da Constituição Federal de 1988. De acordo com os militantes entrevistados, ao não conceder tratamento igual aos contribuintes em detrimento de uma relação homoafetiva, tornava-se evidente o preconceito contra LGBTQIA+. Nesse sentido, a partir da provocação do Grupo Matizes, o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública. A Receita Federal compreendia a lei ipsis litteris. O entendimento do órgão pautava-se no Art. 226, §3º onde diz “que para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar o seu casamento” (BRASIL, 1988). E mais ainda no Art. 226, § 5º onde “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela (BRASIL, 1988). Do outro lado, o Ministério Público Federal alinhava-se ao entendimento que a lei deveria ser estendida à casais homoafetivos em cumprimento aos princípios constitucionais. Essa compreensão estava expressa no objetivo da ação, onde dizia que “busca-se, com a presente ação, salvaguardar os interesses difusos dos casais homossexuais em ver o seu relacionamento aceito pelo ordenamento jurídico e com aptidão para gerar direitos” (BRASIL, 2009). 308
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Os dados da pesquisa mostram que o posicionamento do Ministério Público Federal foi baseado na compreensão de que casais homoafetivos consistiam em uma entidade familiar, da mesma maneira que as uniões formadas por casais heterossexuais. Por esse motivo, seus direitos previdenciários deveriam ser assegurados. À face do exposto, a Receita Federal contestou o mérito do Ministério Público Federal na ação. O argumento dado foi que não havia previsão legal que acatasse a inserção de indivíduo LGBTQIA+ como dependente na Declaração do Imposto de Renda, por razão de relação homoafetiva. Na compreensão do órgão, o reconhecimento só seria possível quando da previsão em lei. Assim, afirmava que “o reconhecimento da relação de dependência nos relacionamentos homossexuais subordina-se à necessidade de previsão normativa expressa, pois não se confunde com a união estável, nos termos em que tal instituto é definido por lei.” (BRASIL, 2009). No entanto, após a avaliação dos fatos, foi concedido liminar favorável a inclusão de companheiro LGBTQIA+. Os efeitos da provocação para judicializar a ação da inserção de cônjuge no Imposto de Renda rendeu frutos. Não por acaso, parte do esforço ocorreu por descontentamento de LGBTs que procuravam o Grupo Matizes no sentido de denunciar a ausência de direitos nesse campo. Após a liminar favorável, de acordo com E4, a Advocacia-Geral da União – AGU fez um Parecer Normativo e na época o então Ministro da Fazenda, Guido Mantega, estendeu a decisão para todo o país. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo estudou a judicialização como uma estratégia de trabalho do Grupo Matizes. O movimento fez uso da judicialização ao acionar o Ministério Público Federal, o que ocasionou em duas Ações Civis Públicas. A escolha em judicializar deu-se tanto para assegurar direitos, como pela visibilidade que a estratégia ocasiona. Nessa direção, o artigo vai de encontro as pesquisas atinentes ao fenômeno da judicialização. Tais estudo investigam o uso desta como forma de assegurar os direitos constitucionais das minorias historicamente vulneráveis. Os achados da pesquisa indicam que a judicialização das demandas pelo Grupo Matizes teve como influência as experiências de uma das militantes no campo do direito. O fato explica 309
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS a intenção do movimento em continuar utilizando a estratégia da judicialização. Os militantes entrevistados acreditam que novas demandas LGBTQIA+ serão judicializadas. Confirmando a hipótese aventada no trabalho, a judicialização das demandas LGBTQIA+ no estado possibilitou assegurar direitos. Prova disso, são os ganhos verificados. Hoje, qualquer contribuinte LGBTQIA+ pode declarar seu companheiro para fins de Declaração no Imposto de Renda. Quanto a doação de sangue, a judicialização da demanda repercutiu em uma liminar favorável que serviu de argumento para Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543, proposta pelo PSB, ocasionado no fim da proibição de doação de sangue por homossexuais. Ao explorar o tema da judicialização como estratégia de trabalho do Grupo Matizes, o artigo complementa com estudos da área. Assim, reconhece que na ausência dos demais poderes, o Poder Judiciário torna-se uma opção viável relativa à proteção jurídica destinadas à população LGBTQIA+. No entanto, há ainda que se explorar demais pesquisas que tenham como foco o impacto da judicialização das demandas LGBTQIA+ na vida desses sujeitos. Outra agenda de estudo que se apresenta é o interesse em pesquisar as experiências dos movimentos sociais com a judicialização nos demais estados do país. Mapear essas outras conjunturas permite não só compreender as dinâmicas de trabalho que se configuram em cada realidade, mas também amplia a compreensão sobre o tema. REFERÊNCIAS AGUINSKY, Beatriz Gershenson. Judicialização da questão social: rebatimento dos processos de trabalho dos assistentes sociais no Poder Judiciário. Katálysis, Florianópolis, v. 1, n. 9, Jan/Jun, 2006, p. 19 – 26. ALBERNAZ, Renata Ovenhausen; KAUSS, Bruno Silva. Reconhecimento, igualdade complexa e luta por direitos à população LGBT através das decisões dos tribunais superiores no Brasil. Rev. psicol. polít. 2015, vol.15, n.34, pp. 547-561. ANVISA. AGENCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Resolução da diretoria colegiada- RDC Nº 153, de 14 de junho de 2004. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt- br/legislacao/resolucao-da-anvisa-ndeg-1532004 Acesso em: 17 Ago. 2021. ARANTES, Rogério. Judiciário: entre a justiça e a política. In: AVELAR, Lúcia; CINTRA, Antonio O. (orgs.). Sistema político brasileiro: uma introdução. 2. ed. São Paulo: Konrad Adenauer/Unesp, 2007. p. 81-115. 310
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS BACELLAR, Roberto Portugal. 2002. O poder paralelo e o Judiciário. Quando a Justiça falha, a violência não tarda. Novos Rumos. Órgão Oficial da Associação dos Magistrados do Paraná, n.o 76, p. 2. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; KOZICKI, Katya. Judicialização da Política e Controle Judicial das Políticas Públicas. Revista Direito GV, São Paulo, n.º 8, v. 1, Jan./Jun., 2012, p. 58 – 86. BRASIL. Ação Civil Pública n. 2006.40.00.001761-6. Ministério Público Federal, 2006. BRASIL. Ação Civil Pública n. 2009.40.00.001593-9. Ministério Público Federal, 2009. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 10 Ago. 2021. BRASIL. Nota Técnica nº 163/2006/SVS/SAS/MS. Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/pplgbt-92.pdf. Acesso em: 16 Jul. 2021 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Consulta Processual. 2005. Disponível em:https://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php. Acesso em:16 Ago. 2021 CARDINALI, Daniel Carvalho. A Judicialização dos Direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências. 1ª ed. Belo Horizonte: Arraes. p. 228. 2018. CARDINALI, Daniel Carvalho. Direitos LGBT e cortes constitucionais latino- americanas: uma análise da jurisprudência da Colômbia, Peru, Chile e Brasil. Revista da Faculdade deDireito – RFD-UERJ, Rio de Janeiro, n. 31, Jun, 2017, p. 25 – 68. CARVALHO, Ernani R. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 23, Nov. 2004. p. 115- 126. CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. In: Bagoas, n. 5, 2010, pp. 131-147. COACCI, Thiago. Do homossexualismo à homoafetividade: discursos judiciais brasileiro sobre homossexualidades, 1989-2012. Sexualidad, Salud y Sociedade – Revista Latinoamericana. n.21. Dez. 2015. p. 53-84. 311
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NUCLEAÇÃO DAS “ESCOLAS NO/DO CAMPO” DO MUNICÍPIO DE CAXIAS-MA: uma política governamental de racionalização de recursos financeiros ou uma política educacional municipal voltada para melhoria da qualidade da educação do campo? NUCLEATION OF “SCHOOLS IN/DO FIELD” IN THE MUNICIPALITY OF CAXIAS-MA: a governmental policy to rationalize financial resources or a municipal educational policy aimed at improving the quality of rural education? Denilson Barbosa dos Santos1 Rosana Evangelista da Cruz2 RESUMO A temática nucleação de “escolas do/no campo” é relevante, pois é pouca abordado nos estudos que tratam do ensino nos territórios camponeses. O objetivo deste artigo é analisar a nucleação das “escolas no/do campo” em Caxias-MA, problematizando se ela tem se constituído em uma política governamental voltada apenas para racionalização de recursos financeiros ou em uma política pública educacional voltada para melhoria da qualidade social da educação e do ensino-aprendizagem dos educandos camponeses. Metodologicamente, como este estudo está em andamento, este trabalho é produto apenas de pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados preliminares dão conta de que a adoção per si da política educacional de nucleação de escolas camponesas, paralelamente ao fechamento de escolas isoladas, não tem garantido o acesso, a permanência, o sucesso escolar e a qualidade do ensino-aprendizagem dos estudantes camponeses caxienses e, tão pouco, a qualidade social da educação. 1 Doutorando em Educação/PPGed-UFPI. Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Piauí/PPGGEO/UFPI. Professor Substituto do Departamento de Educação do Centro de Estudos Superiores de Caxias da Universidade Estadual do Maranhão/CESC-UEMA. Professor de Geografia da Rede Municipal de Ensino de Matões (MA), Brasil. E-mail: [email protected]. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5499375805943322 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGed-UFPI. Professora associada da Universidade Federal do Piauí e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política e Gestão da Educação. E-mail: [email protected]. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0021484669773124 313
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Palavras-chave: Educação do Campo; Política Educacional; Qualidade social da educação. ABSTRACT The nucleation of “schools in/in the countryside” is relevant, as it is rarely addressed in studies that deal with teaching in peasant territories. The objective of this article is to analyze the nucleation of “schools in/from the countryside” in Caxias-MA, questioning whether it has been constituted in a governmental policy aimed only at rationalizing financial resources or in a public educational policy aimed at improving social quality. of education and teaching-learning of peasant students. Methodologically, as this study is in progress, this work is the product of bibliographic and documentary research only. The preliminary results show that the adoption per se of the educational policy of nucleation of peasant schools, in parallel with the closure of isolated schools, has not guaranteed access, permanence, school success and the quality of teaching and learning of peasant students from Caxias do Sul. and, as little, the social quality of education. Keywords: Rural Education; Educational politics; Social quality of education. 1 INTRODUÇÃO A institucionalização da Educação do Campo como política pública data da década de 1990. No entanto, como campo de pesquisa é um processo muito recente no cenário brasileiro, pois somente a partir de 2003 é que ganha força e consolida-se, mobilizado pelo avanço da modalidade no ensino superior. Atualmente, são ofertados em universidades estaduais e federais cursos de Licenciatura Plena, de especialização, de mestrado e doutorado acadêmico e profissional (Stricto Sensu) em Educação do Campo. Paradoxalmente, a Educação do Campo configura-se também como área de disputa entre o Ministério da Educação (MEC), as empresas, as universidades e os movimentos sociais, os quais têm concepções distintas de Educação do Campo e do papel da escola do campo, como poderá ser visto ao longo deste trabalho. Ademais, a institucionalização da Educação do Campo à medida que tem servido para fortalecê-la, também tem promovido o seu enfraquecimento. Isso porque, entre outros aspectos, as escolas e as instituições de ensino superior que ofertam cursos de Graduação e de Especialização em Educação do Campo, contrariando os documentos legais que dão sentido e base legal à Educação do Campo, com raríssimas exceções, insistem em urbanizar o campo, “[...] perpetuando e reproduzindo um modelo injusto e inadequado, 314
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS porque desconsidera as peculiaridades da vida rural em toda sua exuberância e diversidade, [...]” (BARRADAS, 2013, p.83). Nessa perspectiva, este artigo, abordando o cenário da Educação do Campo, da escola e do direito dos camponeses de estudar e aprender com qualidade em Caxias-MA, sob a lupa do materialismo histórico e dialético e das evidências empíricas, foi orientado pelo seguinte problema de pesquisa: Em Caxias-MA, a nucleação das “escolas no/do campo” tem se constituído em uma política governamental voltada apenas para racionalização de recursos financeiros ou em uma política pública educacional voltada para melhoria da qualidade social da educação e do ensino-aprendizagem dos educandos camponeses? Para operacionalizar respostas ao problema de pesquisa delineou-se as seguintes questões norteadoras: a) Quais os aspectos relevantes considerados pelo poder público municipal para efetivação do processo de nucleação de “escolas do/no campo” em Caxias-MA? b) A população camponesa foi ou não ouvida/consultada a respeito da nucleação das “escolas do/no campo” antes da efetivação desse processo no município de Caxias-MA? c) Como se deu ou vem acontecendo o processo de nucleação das “escolas do/no campo” no município de Caxias-MA? O estudo sobre nucleação de “escolas do/no campo”, tem relevância acadêmica e social, pois trata de uma temática pouco abordada nas pesquisas voltadas para o ensino nos territórios camponeses. Além do mais, seus resultados poderão oferecer aos gestores públicos municipais (prefeitos e secretários de educação) subsídios para repensar a política de nucleação das escolas camponesas para que ela não se restrinja a ideia de redução de gastos, mas sobretudo, priorize a qualidade social da educação e da aprendizagem dos estudantes camponeses, garantindo investimentos para assegurar o acesso, permanência e pleno aproveitamento desses estudantes. Metodologicamente, adotou-se o materialismo histórico e dialético para orientar o desenvolvimento da pesquisa. A escolha desse método, justifica-se, porque “[...] permite compreender o campo enquanto local e território de vida, não somente destinado ao monocultivo e ao agronegócio de modo geral [...]” (ROSSI, 2014, p. 240). Aliado a escolha do método supracitado, o estudo adotou a abordagem qualitativa como perspectiva porque, 315
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS conforme Minayo (2004, p. 21), “[...] se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado”. Contudo, justifica-se que do ponto de vista metodológico, como este estudo está em andamento, este trabalho é produto apenas de pesquisa bibliográfica e documental. Na organização, análise e interpretação dos dados, empregou-se a técnica análise de conteúdo proposta por Bardin (2009). Entretanto, para situar o leitor a respeito do delineamento macro da pesquisa, esclarecemos que quando for realizada pesquisa de campo, o cenário empírico, terá como área geográfica o município de Caxias-MA, mais especificamente, três assentamentos rurais que contam com escolas nucleadas. Quanto aos interlocutores da pesquisa e critérios de escolha, serão gestores escolares, professores de “escolas do/no campo”, pais dos estudantes camponeses, Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares, Secretária Municipal de Educação e profissionais da Coordenação de Educação do Campo da Secretaria Municipal de Educação de Caxias-MA, que aceitarem participar voluntariamente e assinar o Termo de Consentimento, livre, esclarecido e espontâneo/TCLE. Como procedimentos, instrumentos e técnicas de pesquisa, realizar-se-á pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo de cunho qualitativo com aplicação dos instrumentos e técnicas de pesquisa como questionários, entrevistas semiestruturadas, observação participante com registro em diário de campo e fotográfico. Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo é analisar se em Caxias-MA, a nucleação das “escolas no/do campo” tem se constituído em uma política governamental voltada apenas para racionalização de recursos financeiros ou em uma política pública educacional voltada para melhoria da qualidade social da educação e do ensino-aprendizagem dos educandos camponeses, contudo, ressalta-se que os resultados deste trabalho são preliminares, produzidos a partir de pesquisa iniciada em 2022 e ainda em andamento, sobre o objeto de estudo supracitado. 2 NUCLEAÇÃO DAS “ESCOLAS NO/DO CAMPO” NO ÂMBITO DA POLÍTICA EDUCACIONAL BRASILEIRA PARA O TERRITÓRIO CAMPONÊS Educação é uma das dimensões fundamentais para o desenvolvimento territorial camponês, embora não seja a única. A Educação do Campo, por sua vez, é indissociável do 316
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS projeto de campo desejado pelos trabalhadores camponeses. Não há como pensar essa educação se não for construída com a participação de todos os interessados, na realidade do território camponês brasileiro, em sua democratização, o que exige a superação do projeto do agronegócio e o do latifúndio, pois: [...] a materialidade de origem da Educação do Campo projeta/constrói uma determinada totalidade de relação que lhes são constitutivas. Antes (ou junto) de uma concepção de educação ela é uma concepção: porque, neste caso, como pensamos o campo pensamos a educação; se pensarmos o campo como um latifúndio não tem como pensar a educação do campo; se pensarmos a Reforma Agrária como uma política compensatória apenas, não vamos pensar em um sistema público de educação para os camponeses (CALDART, 2004, p. 4). A discussão, proposta por Caldart (2004), nos remete às ideias defendidas por Arendt (1999) em seu livro “A condição humana”, dentre elas, filosoficamente, a de que “todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra coisa” (ARENDT, 1999, p. 132). Essa compreensão parte do entendimento de que os seres humanos não enxergam as coisas, os objetos, os acontecimentos pelos seus olhos biológicos, mas enxergam a partir dos seus conceitos historicamente construídos. Nesse sentido, esta autora, critica fortemente, a perda da relevância de “fazer distinções”, pois, à proporção que não se distinguem conceitos que “cada um de nós tem o direito de definir seus termos” (ARENDT, 1999, p. 132), abrimos mão de viver em um mundo comum em que as palavras possuem sentidos e significados precisos, universais e bem definidos. Isso é o que Dagnino (2004), denomina de confluência perversa e o deslocamento de significados e sentidos como características marcantes dos projetos de construção democrática no Brasil, o neoliberal e participativo. Neste sentido, o capitalismo e o agronegócio tentam transformar tudo em mercadoria, inclusive a educação dos camponeses. Por isso a Educação do Campo se contrapõe à Educação Rural, porque, “[...] Enquanto a Educação Rural é um projeto externo ao campesinato, a Educação do Campo nasce das experiências camponesas de resistência em seus territórios” (FERNANDES, 2009, p. 52). Dessa forma, a Educação Rural caracteriza-se como sendo uma educação ideológica, reprodutora e domesticadora neoliberal enquanto a Educação do Campo consiste em uma educação libertadora e emancipatória construída com e para os camponeses. 317
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Ademais, a educação não acontece somente na escola, mas para além desta, pois é tecida com fios que percorrem, perpassam e intercruzam, de forma mútua e articuladamente, as múltiplas dimensões da realidade do campo, seja ela a realidade das famílias dos projetos de assentamentos (PA), dos Sem Terra, de Pequenos Agricultores e, outras denominações que se refiram aos camponeses que resistem no campo, organizados na luta social dos Movimentos, que, estão lutando contra o modelo capitalista, materializado no território do agronegócio e do latifúndio, pois estes, estão intimamente ligados a um modelo capitalista de produção e exploração da e na agricultura (ALMEIDA et al., 2008). Por isso mesmo, deve-se esclarecer que no cenário brasileiro: Temos dois campos, porque os territórios do campesinato e os territórios do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de diferentes relações sociais. Um exemplo importante é que enquanto o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro, para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida (FERNANDES, 2009, p. 52). Assim sendo, ressalta-se que, historicamente nos espaços escolares brasileiros, de um lado, a Educação Rural vem sendo norteada pelo paradigma dominante ou tradicional (educação bancária), visando a alienação, a dominação e opressão dos sujeitos. Por outro lado, a Educação do Campo é norteada pelo paradigma emancipatório, com vistas à libertação, o empoderamento e a autonomia dos sujeitos (SANTOS, 2019). Sobre a influência negativa do paradigma tradicional e da educação gestada na cidade no processo de escolarização da população camponesa, deve-se esclarecer também que no: [...] processo ideológico construído por essas instituições a educação da cidade é tida como superior a do campo; a cultura e os saberes do povo do campo pouco ou quase nada são escutados para construção de uma política educacional para o campo; quando essas políticas são instituídas têm um caráter compensatório e não emancipatório, portanto, o currículo que organiza os conhecimentos e discussões no e do campo são inspirados nos valores da cidade, o que descaracteriza ou enfraquece a identidade dos povos do campo (SILVA; HOELLER, 2010, p. 43). Nesse ínterim, conceitos como “privado”, “público”, “autoridade”, “liberdade” e “educação”, “camponês”, entre outros, perdem seus sentidos e significados universais, originários e precisos e, passam assumir tons ou características pertinentes ao relativismo, a “opinião própria” ou ao bel prazer de cada um, em que um termo se confunde com o outro, 318
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS como se fosse uma coisa só, a exemplo do público e privado que, na contemporaneidade, se dissolveram, perderam seus sentidos originários, transmutando-se em instâncias que quase não se distinguem uma da outra. Assim, envolvida, nesse embate e debate sobre a dissolução dos sentidos originais da esfera pública e da esfera privada, Arendt (1999) em sua obra analisa que o político não pode mais sobreviver e que, como consequência, emerge o social. Destarte que não se pode perder de vista que a concepção de esfera pública como expressão da liberdade, igualdade e pluralidade humana, pois, \"[...] a esfera pública, enquanto mundo comum reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer\" (ARENDT, 1999, p. 62). Essa questão conceitual em torno dos sentidos e significados precisos, bem definidos e universais, é tão séria e necessária ser discutida, que Bobbio (2004), alerta-nos e ao mesmo provoca a refletir sobre a seguinte situação: “[...] dois direitos fundamentais, mas antinômicos, não podem ter, um [...] fundamento que torne um direito e o seu oposto, ambos, inquestionáveis e irresistíveis. [...]. O fundamento absoluto [...] é também um pretexto para defender posições conservadoras” (BOBBIO, 2004, p.15). Destarte que vale apena ressaltar que somente no final do Século XX é que ganha força a luta dos movimentos sociais no Brasil pelo direito à uma Educação do Campo com a aprovação da LDB nº 9.394/96, seu artigo 28 é dedicado a esta modalidade de ensino. Nesse interim, Fernandes (2009b, p.136) esclarece que a utilização da expressão “do campo” foi adotada em função da reflexão sobre o “[...] sentido atual do trabalho camponês e das lutas sociais e culturais dos grupos que hoje tentam garantir a sobrevivência deste trabalho”. É imperioso explicitar que a definição de escola do campo, ganha sentido, significado e/ou razão de ser ou existir, somente quando pensada a partir das especificidades dos povos camponeses. Essas ideias convergem para os três conceitos fundamentais tematizados por Arendt (1999) em seu livro “A Condição Humana”, os quais configuram-se como a gênese da sua antropologia filosófica: trabalho, produção e acção. Os dois primeiros são caracterizados pela autora, como conceitos situados no domínio da esfera privada e, o último (acção) no domínio da esfera pública (política). Isto posto, “A esfera pública configura-se como uma estrutura autônoma que tem como função atuar na mobilização para captar e tematizar os problemas da sociedade a partir dos contextos comunicacionais das pessoas atingidas” (HABERMAS, 2003, p. 97). 319
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Por conseguinte, nos dias de hoje percebe-se que “[...] o capitalismo atual apresenta um processo multiforme, no qual informalidade, precarização, materialidade e imaterialidade se tornaram mecanismos vitais, tanto para a preservação quanto para a ampliação da lei do valor [...]” (ANTUNES, 2018, p. 38). No tocante à escolarização do povo camponês, a educação tem sofrido cada vez mais os efeitos da precarização e da pauperização que propagam a perspectiva alienante, domesticadora e desvinculada da vida dos camponeses. Ao passo que devido a luta dos movimentos sociais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 9.394/1996, mas, precisamente o parágrafo único do Artigo 28, textualmente assegura que: O fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar. (Incluído pela Lei nº 12.960, de 2014). Esse fato, implica no mínimo em dois enfoques que devemos ficar atentos: a) a importância da inclusão da população do campo na política educacional brasileira fruto da luta sistemática dos movimentos sociais que os povos do campo estão engajados; b) a diversidade dos processos produtivos e culturais, que são formadores dos sujeitos humanos e sociais do campo. Esses enfoques têm seu fundamento legal no que diz a LDB 9.394/96 em seus Artigos 27 e 28 que determinam o seguinte: Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais. Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural. Parágrafo único. O fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas será precedido de manifestação do órgão normativo do respectivo sistema de ensino, que considerará a justificativa apresentada pela Secretaria de Educação, a análise do 320
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS diagnóstico do impacto da ação e a manifestação da comunidade escolar. (Incluído pela Lei nº 12.960, de 2014) Por sua vez, a nucleação é “[...] um processo político-administrativo que consiste na reunião de várias escolas isoladas em uma só, desativando ou demolindo as demais” (BRASIL, 2006, p. 116). Aprofundando esse entendimento que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira-INEP e o MEC – Ministério da Educação, têm de nucleação de escolas, entende-se ainda que este processo consiste “[...] em construir escola de grande porte em determinado espaço geográfico, de forma que fique centralizada e as demais do entorno seriam deslocadas para esta” (CARMO, 2010, p.161). Contudo, Pastorio (2015), chama atenção para o fato de que o processo de nucleação de escolas rurais não é recente e tão pouco não é exclusivo do Brasil, pois, sob distintas nomenclaturas ocorreram e ocorrem em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, Costa Rica, Irã, Índia, Colômbia e Canadá, visto que: [...]. No Brasil, as primeiras experiências situam-se na década de 70 e 80 e foram ampliadas posteriormente em decorrência da atual lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e valorização do Magistério (FUNDEF), como resultado da acentuada municipalização no Ensino Fundamental (PASTORIO, 2015, p. 54). Portanto, o autor esclarece que essa ação se dá no cenário brasileiro sob a égide da racionalidade dos recursos financeiros, pois, é orientada pela lógica dos compromissos assumidos pelo Brasil, “[...] com organismos multilaterais, principalmente o Banco Mundial, em que a implementação das políticas educacionais assume o caráter da racionalidade econômica em que deve prevalecer a relação custo-benefício” (PASTORIO, 2015, p. 58). Essa racionalidade econômica na educação tem se materializado na contenção de gastos, pelo enxugamento dos investimentos, mediante diminuição do quadro de profissionais, dos materiais didáticos, do número de escolas, entre outros. 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES (análises iniciais/preliminares) Os resultados iniciais desta pesquisa dão conta de que a adoção persi da política educacional de nucleação de escolas camponesas paralelamente ao fechamento de escolas 321
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS isoladas, não tem garantido o acesso, a permanência, o sucesso escolar e a qualidade do ensino- aprendizagem dos estudantes camponeses caxienses e, tão pouco a qualidade social da educação. Paradoxalmente, ao considerar o transporte escolar dos estudantes camponeses como única via de acesso à escola, o poder público municipal não assegura os recursos e as condições necessárias para a permanência e efetivação da aprendizagem satisfatória dos estudantes que residem em diferentes e distantes povoados ou comunidades rurais e que estudam em escolas nucleadas no/do campo. Assim, considerando a Educação como um direito social e uma política pública materializada, entre outros aspectos, no processo de escolarização dos brasileiros, é imperioso dizer que “o discurso é claro: não basta apenas educar, é preciso aprender a empregar convenientemente os conhecimentos adquiridos”. (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2003, p. 11) e, no tocante à escolarização do povo camponês, a educação tem sofrido, cada vez mais, os efeitos da precarização e da pauperização, alienante, domesticadora e desvinculada da vida dos camponeses. Por outro lado, desde 2011 a Secretaria Municipal de Educação de Caxias-MA vem intensificando o processo de diminuição do número de escolas multisseriadas, bem como aquelas que se encontram em condições precárias na zona rural. Assim, dando continuidade ao fechamento de unidades escolares e, prioriza a nucleação das escolas camponesas, disponibilizando transporte escolar público e gratuito aos estudantes que residem em povoados distantes daquele em que a escola nucleada se encontra localizada. Contudo, a maioria dos ônibus escolares disponibilizados são improvisados e não atendem aos parâmetros exigidos pelo Programa Nacional do Transporte Escolar (SANTOS, 2019). Essa realidade é coerente com a compreensão de que a nucleação das escolas do campo no Brasil se deu e ainda se dá sob a égide da racionalidade dos recursos financeiros (PASTORIO, 2015). Nesse sentido, na realidade investigada, atualmente existem “[...] 18 escolas polos que funcionam na zona rural de Caxias-MA organizadas a partir do processo de nucleação ou polarização [...]” (SANTOS, 2019, p.54). Essa situação que a população camponesa brasileira, maranhense e caxiense enfrenta cotidianamente, se assemelha aquilo que Carvalho (2003) convencionou chamar de cidadania negativa, pois o povo camponês não exerce plenamente a cidadania, isso porque tem seus direitos sociais violados como falta de acesso a saúde, educação, alimentação, segurança, 322
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS moradia, saneamento básico, entre outros. Milhões de trabalhadores rurais são analfabetos e vivem abaixo da linha da pobreza. Para melhorar as condições de vida da população camponesa é necessária a articulação do tripé Estado, Sociedade e Políticas Públicas. Portanto, é preciso que o poder público intensifique e amplie as políticas públicas já consolidadas no país, mas tão fragilizadas nos últimos anos, voltadas para a diminuição da mortalidade infantil, do analfabetismo, da concentração de renda e da pobreza, visando a melhoria dos indicadores educacionais, socais e da qualidade de vida, entre outros, no território camponês. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados preliminares dão conta de que a adoção per si da política educacional de nucleação de escolas camponesas, paralelamente ao fechamento de escolas isoladas, não tem garantido o acesso, a permanência, o sucesso escolar e a qualidade do ensino-aprendizagem dos estudantes camponeses caxienses e, tão pouco, a qualidade social da educação. Apesar desta pesquisa está em andamento, julga-se que os seus resultados finais poderão oferecer aos gestores públicos municipais (prefeitos e secretários de educação) subsídios para repensar a política de nucleação das escolas camponesas para que ela não se restrinja a ideia de redução de gastos, mas sobretudo, priorize a qualidade social da educação e da aprendizagem dos estudantes camponeses, garantindo investimentos para assegurar o acesso, permanência e pleno aproveitamento desses estudantes. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Antônio Escobar de; BARRETO, Eldo Moreira; BRAGA, Izabela Christiana; XAVIER, Luiz Adílio Alves; PAZETTI, Marcionei. Educação, escola, movimentos sociais e comunidade. In: MACHADO, Carmem Lúcia Bezerra; CAMPOS, Christiane Senhorinha Soares; PALUDO, Conceição (Orgs.). Teoria e prática da Educação do Campo: análises de experiências. Brasília: MDA, 2008, p.156-173 (NEAD Experiências). Disponível em: <http://nead.mda.gov.br/ download.php?.../experiencias/teoria_e_pratica_da_educacao_do_ campo.pdf>. Acesso em: 1 jan. 2021. ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. (Cap. 2). 323
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS O CLAMOR DAS RUAS FRENTE AO PINOCHETISMO: PODER POPULAR- CONSTITUINTE CONTRA O ESTADO SUBSIDIÁRIO THE CLAMOR OF THE STREETS AGAINST PINOCHETISM: CONSTITUENT POPULAR POWER AGAINST THE SUBSIDIARY STATE Marcos Diligenti1 Ricardo Souza Araujo2 RESUMO O presente artigo busca examinar o recente Estallido Social Chileno de 2019, que derrubou a constituição neoliberal de Augusto Pinochet, e a sua repercussão na conjuntura brasileira atual. O modelo implementado no Chile, foi fundamentado no projeto de Estado Subsidiário é referencial para o atual governo brasileiro de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Na contramão das revoltas populares observadas na América Latina, o Brasil passou por um ciclo de contrarreformas neoliberais. Analisaremos, a partir de referenciais bibliográficos quais os projetos em disputa na sociedade, bem como paralelos e especificidades de cada nação. Este artigo busca instrumentalizar a luta pela manutenção e ampliação dos direitos sociais por enfrentamento de classes diante da crise do capital. Palavras-chave: Neoliberalismo; Brasil, Chile. ABSTRACT This article aims to examine the recent Chilean social boom, which began in 2019, which overthrew Pinochet's neoliberal constitution, whose model of Subsidiary State is a reference for the current Brazilian government of the extreme right of Jair Bolsonaro. Contrary to the revolts in Latin America, Brazil is going through a new cycle of neoliberal counter-reforms. We will analyze, from bibliographical references, the context of both countries and which projects are in dispute in society, as 1 Pós-Doutor em ViviendaS Sociales pela PUC- CHILE. Professor do Programa Pós-Graduação em Serviço Social PUCRS. E-mail: [email protected] 2 Assistente Social na UFCSPA. Bolsista da Capes. Doutorando em Serviço Social pela PUCRS. E-mail: [email protected] 327
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS well as parallels and particularities between them in the struggle for the maintenance and expansion of social rights. Keywords: Brazil, Chile, Neoliberalism. 1 INTRODUÇÃO A América Latina vive desde 2019 um novo ciclo de levantes populares. A luta contra o Golpe na Bolívia, a greve geral na Colômbia, levantes no Peru e no Paraguai, e o Chile, em especial, que passa por um processo de refundação nacional, com processo constituinte, fruto de um profundo estallido social são alguns exemplos. Todos estes movimentos às ruas contra agendas privatistas, apesar da pandemia, demonstram o potencial de transformação de um modelo de sociedade que parece há muito tempo ter esgotado quaisquer possibilidades de reinvenção. Estas manifestações são sintoma da crise modelo neoliberal, que aprofunda a Dependência e Superexploração da força de trabalho na América Latina, que já são características marcantes neste continente, de forma desigual e combinada. A reestruturação produtiva mundial obriga a América Latina reprimarizar a sua economia, baseada em “commodities”, em detrimento da indústria, que migra para China e Índia, com a manutenção pelas economias centrais dos centros de alta tecnologia, do mercado financeiro e o controle da redistribuição geográfica desta produção globalizada. Da aparente “desindustrialização”, o capital fictício passou a negociar as ações sobre lucros futuros destas companhias transnacionais, que extraem matérias primas nos países periféricos, instalam as fábricas onde a legislação trabalhista é fragilizada, e “contabilizam” os lucros nas economias centrais. Esta dinâmica se impõe aos estados nacionais que assumem um papel de subordinado aos ditames dos organismos internacionais a como o BIS, FMI e o Banco Mundial. Estes, consistem em um poder não-eleito que desnuda os limites da democracia nos marcos burgueses. Em tempos de crise, os governos passaram a emitir moedas para salvar o sistema bancário, l para garantir o lucro privado com garantia estatal, principalmente por títulos de dívida estatal e de fundos de pensão 328
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS No Chile, após as eleições constitucionais e presidenciais de 2021, a grande mídia anuncia um “mercado nervoso”. Mas é evidente que as populações na Praça da Dignidade e em outros pontos do país, seguem bradando que os acordos palacianos para manter o “pinochetismo sem pinochet” não prosperarão No Brasil, o Governo genocida e neoliberal de Guedes e Bolsonaro, tem tido êxito ao reproduzir uma agenda “Neopinochetista”, inspirada no receituário da Escola de Chicago, com à implantação de contrarreformas e privatizações. Como as Reformas da Previdência, Trabalhista e Administrativa. É indispensável que no Brasil, sejam observadas as experiências na “Nuestra América”, para fortalecer os processos resistência contra o governo Bolsonaro, sob pena da perda dos direitos sociais e democráticos que ainda restam à classe trabalhadora. 2 DAS CARABINAS DO NEOLIBERALISMO AO LEVANTE DOS CABILDOS O Chile viveu a sua última e mais avançada experiência popular/progressista no continente Sul Americano, com a promessa de “Socialismo de Via pacífica” sob o Governo de Salvador Allende, da Unidade Popular. Este, entre outras iniciativas, nacionalizou o cobre e prometeu reformas radicais. Porém, terminou derrotado em suas táticas de unidade com a burguesia nacional e deixou a classe trabalhadora acéfala de uma liderança com propostas de transformação genuinamente estruturais. O sangrento 11 de setembro de 1973 pôs fim as utopias reformistas ao sul do Equador, com a detenção, exílio e assassinato de milhares de pessoas. Ruy Mauro Marini (2019) um dos fundadores da Teoria Marxista da Dependência (TMD) e dirigente do Movimento Izquierda Revolucionária (MIR), aponta que reformismo, na sua incapacidade de enfrentar as elites nacionais e constituir junto aos “cordões industriais” (organismo de auto-gestão operária) uma nova forma de contrapoder, tornou-se a antessala da contrarrevolução, que se concretizou à mão de ferro de Augusto Pinochet. Perspectiva corroborada por Nahuel Moreno (2003) que também alertou os limites do projeto de Unidade Popular, que apostando nas alianças com a burguesia, ao invés da auto- organização da classe, conduzem a classe trabalhadora às derrotas históricas. 329
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Gunder Frank (1968) inspirado no sucesso da revolução Cubana e nas teses trotskistas da Revolução Permanente, identifica que o inimigo da libertação nacional é, taticamente, a Burguesia Nacional e, estrategicamente, o inimigo principal é o Imperialismo em uma clara crítica aos projetos nacional-desenvolvimentistas apoiados pelos partidos comunistas na primeira metade do século XX. O autor ressalta ainda o caráter dialético desta relação, dado o caráter mundializado do capital, portanto, a luta contra a burguesia nacional se entrelaça intrinsecamente com a luta anti-imperialista. Tentativas contemporâneas de articulação de frentes amplas, principalmente na América Latina, têm sofrido derrotas por meio de golpes ou mesmo pela via eleitoral. O regime civil-militar chileno, com aproximadamente quatro mil mortes confirmadas, diferente do generalato brasileiro da época, usou os trabalhadores chilenos de “cobaia” para o, já mencionado, projeto da Escola de Chicago: o Neoliberalismo. Décadas após, Paulo Guedes, integrante da equipe econômica de Pinochet, busca reproduzir este projeto no Brasil, e falsifica a história dizendo que o neoliberalismo anda de mãos dadas com a democracia. Entretanto, nega que seu projeto de Estado Subsidiário foi imposto pelos \"carabineros\" e é uma herança de características fascistas. Segundo Bercovici (2015) é precisamente na “Carta del Lavoro” de Mussolini (1927) que se determina que a intervenção do Estado só deve ocorrer quando não houver interesse de mercado, ou seja: tudo privado e todos privados de tudo. Esta diretriz, fruto do Golpe, embasou a constituição de 1980 no Chile, e se manteve vigente, mesmo após o fim da ditadura militar em 1990, aí sob a alcunha de ditadura do Capital Isto se dá pela completa privatização dos serviços públicos, que passam a ser lucrativos negócios capitalistas, cabendo ao Estado um papel subsidiário, em especial, para aqueles que não conseguem inserção no mercado. Este modelo de Estado, leva desregulamentação das leis trabalhistas e previdenciárias, bem como, a negação dos “salários sociais indiretos”, que se constituem em políticas sociais públicas e gratuitas, voltam-se para o mercado e o dispêndio de salário, usualmente é praticado abaixo do valor necessário para à reprodução das forças de trabalho. Segundo Borges et al (2019), no Chile um “padrão peculiar de acumulação de capital”. Tornou-se o país mais atrativo do continente para o investimento estrangeiro, com uma série de contrarreformas e privatizações impostas a força, que combinaram a elevada atividade acionária e uma forte compressão dos salários sociais indiretos, ambos devido, entre outros 330
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS fatores, à privatização da previdência social, que reduziu ‘gastos” sociais e fortaleceu os fundos de pensão, modelo exportado mundo afora. Os recursos destinados à aposentadoria dos trabalhadores passaram a ser aplicados no mercado de ações, sem a garantia de uma aposentadoria digna. Enquanto laboratório deste projeto de redução dos “salários sociais” da população, o Chile tornou-se país ‘atrativo” para o capital financeiro e passou à ser usado de exemplo pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional para “recomendar” aos países dependentes as reestruturações nas políticas sociais, alegando a inviabilidade da garantia da estabilidade fiscal e condicionando o recebimento de aportes financeiros à adoção destas medidas. Este País viveu as últimas décadas sob a égide deste projeto de Estado, mesmo após a queda do regime militar em 1990, sendo que nem as gestões de centro-esquerda reverteram este quadro. As últimas gerações nasceram e cresceram diante de um regime democrático formal que manteve o entulho neoliberal-ditatorial, sem a participação popular, nem respeito às necessidades do povo Chileno, onde se renegou a história e o direito dos povos Mapuches, bem como, dos Mestizos, em prol de uma história “oficial”, que se refletiu nas constituições promulgadas neste país. Pode-se dizer que no século XXI, novos processos de luta no Chile começaram com os estudantes secundaristas na “revolta dos pinguins” de 2006, e nas lutas estudantis universitárias de 2011/2012, que questionaram todo o sistema de ensino chileno que opera desde a educação básica até a educação superior sob uma lógica privada. A tragédia social de famílias escolhendo qual dos irmãos teria acesso ao ensino superior foi um importante detonador daquela revolta. Nesse sentido, o estallido social, iniciado na luta pela redução do preço das passagens do transporte público e pelo direito à cidade converteram-se em um uma das mais grandiosas demonstrações de força popular em todo o território chileno. As bandeiras mapuches tomaram a Plaza de la Dignidad. Este movimento, além de um represamento das medidas neoliberais impostas por Pinochet, expressa uma autêntica e genuína manifestação das massas trabalhadoras historicamente tornadas invisíveis pelo poder hegemônico da burguesia chilena, ao longo de toda a sua história. 331
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Reergueram-se nessa luta os cabildos (organizações dos moradores por bairros/territórios) que buscam romper com à condição de populações “pedintes” de seus direitos, e propõem o papel de populações protagonistas de uma nova sociabilidade. Os brados ``Fuera Piñera”, “Asamblea Constituyente Yá”, entre outras, demonstram a potencialidade de radicalidade das transformações almejadas. Outro fator a considerar nas manifestações chilenas é a consciência popular do papel do Estado tanto enquanto gerente dos negócios da classe burguesa quanto papel repressivo simbolizado pelos carabineros. Neste panorama, contar a história do Chile “desde os de abajo”, como preconiza Gabriel Salazar (2015), é uma necessidade não apenas de interpretação histórica, mas de disputa dos rumos futuros. O Estalido e o movimento popular que o sucedeu conquistaram nas ruas a Constituinte paritária entre homens e mulheres, com ampla participação indígena e popular e o plebiscito para a instauração de uma nova assembleia foi referendado por cerca de 80% da população. Já em 2022, a luta da classe trabalhadora chilena segue intensa, disputando os rumos da nova constituição. 3 BOLSONARO BUSCA REFUNDAR O PROJETO PINOCHETISTA NO BRASIL Se o Chile de hoje colhe os resultados do neoliberalismo implantado no regime de Pinochet, no caso brasileiro, a implementação do neoliberalismo se deu junto a redemocratização. A “Nova República” de 1988 foi fruto do ascenso social que produziu uma constituição que garantiu uma transição “gradual e segura” para um regime democrático burguês, com direitos civis, políticos e sociais. Segundo Florestan Fernandes (1988), então deputado constituinte, destacava-se uma série de temas “em aberto”, a serem regulamentados por leis complementares e emendas constitucionais, que vieram a permitir a desfiguração do caráter “cidadão” da Carta Magna Apesar de apontar importante avanços e tais medidas foram inviabilizadas por opção política dos governantes e das aristocracias financeiras, com objetivo de imposição da agenda neoliberal. Apesar da forma democrática do Estado burguês, não foi superada a condição de dependência, novamente buscou-se a contrarrevolução preventiva, que marca a estratégia 332
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS histórica da burguesia brasileira, para evitar que o país transite para qualquer experiência concretamente progressista. Pode-se dizer que na conduta política brasileira do período recente, a Nova República, caracterizada por períodos de maior ou menor grau de adesão à agenda neoliberal, executou um processo de “ajuste fiscal permanente”. Assim como o Chile, o Brasil mantém alta rotatividade de capital fictício devido à remuneração da dívida pública e dá historicamente elevada taxa de juros, principalmente desde a implementação do Plano Real. Importa saber que o pagamento de juros e a rolagem da dívida no Brasil, atualmente, correspondem a 39% do orçamento da união (AUDITORIA CIDADÃ, 2020). Ao longo da “Nova República”, vários governos recorrentemente buscaram artifícios para burlar a Constituição no que tange à garantia dos serviços públicos, atendendo ao receituário neoliberal de desresponsabilização do Estado. O governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) impôs o tripé macroeconômico, sob a égide de redução máxima das despesas (sociais) do Estado, priorizando poupar recursos para o pagamento do serviço da dívida pública. Houve uma série de privatizações e terceirizações em órgãos públicos. No âmbito previdenciário, a Emenda Constitucional nº 20/1998, que regulamentou o “fator previdenciário” e os fundos de pensão como “previdência complementar”, inspirado no paradigma chileno pinochetista. Já os subsequentes governos de frente popular Lula e Dilma (2003-2016) aprofundaram com a sua política de conciliação de classes e ortodoxia fiscal. Com a elevação do preço das commodities no mercado mundial foi possível o governo construir programas de transferência de renda focalizada e a ampliação do acesso ao crédito e ao consumo de massas. Tais medidas seguiram recomendações de órgãos internacionais que objetivaram minimizar os índices de extrema pobreza, porém sem colocar em xeque as raízes estruturais da histórica desigualdade social. Verificou-se ainda, como parte do “ajuste fiscal permanente”, uma nova Contrarreforma da Previdência (Emendas Constitucionais 41 e 43 de 2003 e 2005), prejudicial especialmente aos servidores públicos, com restrições de acesso ao seguro-desemprego e às pensões, além da concessão de portos e aeroportos para a iniciativa privada. Foi garantido em todo este período o superávit fiscal e acompanhado da elevação da taxa de juros, garantindo lucros históricos para os bancos. Neste período, também foi vetado (no Governo Dilma) o projeto de lei que previa a Auditoria da Dívida Pública. 333
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Destaca-se ainda que após quatorze anos deste ciclo, com o aprofundamento da crise econômica global, o governo Dilma adotou, no seu segundo mandato, uma dura agenda de ajuste fiscal, que levou a elevação do desemprego e a sua perda de popularidade. Este cenário permitiu que ocorresse o golpe parlamentar que destituiu a Presidenta. Iniciou-se então, uma evidente crise da própria República, que aprofunda o ajuste fiscal. Destacam-se neste período três medidas articuladas no âmbito fiscal, trabalhista e previdenciário. O conjunto de medidas foi executado pelo Governo de Michel Temer e aprofundado, atualmente, no governo de Jair Bolsonaro. A Emenda 95/2016, que instituiu o “Novo Regime Fiscal” (NRF), que proíbe qualquer reajuste real nas despesas não-financeiras nos próximos vinte anos, inviabilizando a vinculação constitucional dos recursos para as políticas sociais. No campo do trabalho foi imposta uma contrarreforma, via Lei nº 13.467/2017, que precarizou ainda mais as condições de trabalho, modificando mais de 100 artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) na qual observa-se uma série de consequências nefastas que autoriza: demissões em massa, regime de trabalho intermitente e “negociação individual” de condições de trabalho. Por fim, no âmbito Previdenciário, houve uma tentativa de nova reforma da Previdência, sob a falsa narrativa de “combate a privilégios”, naquele momento, derrotada nas ruas pela greve geral de 2017. Após uma conturbada eleição presidencial, Jair Bolsonaro, realiza na atualidade a continuidade do austericídio neoliberal, ao lado do ministro Paulo Guedes, herdeiro da escola de Chicago, e apoiado por militares, milicianos e fundamentalistas religiosos. No seu primeiro ano de governo aprovou a Reforma da Previdência, inspirada na AFP Chilena, mas apesar de draconiana, não conseguiu abolir o histórico sistema contributivo- solidário histórico operado pelo INSS. O governo Bolsonaro, também espelhado no projeto pinochetista, passou a intervir na nomeação de reitores desrespeitando o processo eleitoral interno das instituições de Ensino Superior e apresentou o projeto “Future-se”, que amplia a parceria das universidades públicas com o setor privado. Estas medidas, assim como os cortes de recursos geraram amplas manifestações de estudantes, técnicos administrativos e professores em defesa da educação, da ciência e da tecnologia, pauta que ganhou apoio popular, e o projeto Future-se foi derrotado. 334
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Já no final de 2019, Bolsonaro e Guedes confiantes com a vitória na previdência apresentaram a continuidade do ajuste fiscal, o “Plano Mais Brasil”, que não foi adiante, devido aos ventos Andinos que sopravam do Chile, Peru, Equador e Bolívia, cujas revoltas populares assustavam o ministério da Economia, e a pandemia mundial do COVID em 2020. O plano em questão, além de impor graves ataques aos servidores e serviços públicos, propõe desindexar os “mínimos orçamentários” da Constituição em educação e saúde, fato que na prática desobriga o investimento público nessas áreas, (mais um aceno ao Estado Subsidiário). Importa considerar que, em tempo de pandemia COVID-19, justamente estes dois serviços conquistaram o reconhecimento de ampla maioria social como funções essenciais de Estado, que devem ser gratuitos e de acesso a todos. O SUS, como uma grande conquista da classe trabalhadora, está garantindo condições de cuidado e tratamento da população, mesmo sob risco de colapso (não só pela pandemia, mas por uma sabotagem histórica de seu financiamento e estrutura). Simultaneamente os trabalhadores da saúde se expuseram ao contágio, mesmo sem as devidas condições e equipamentos de proteção suficientes para realizar o seu trabalho. Já em 2021, depois de eleição comprada a trilhões de reais, Bolsonaro consegue eleger seus candidatos à Câmara e Senado, que garante uma blindagem contra pedidos de impeachment e à continuidade da agenda de reformas. Logo em seguida é aprovada a autonomia do Banco Central para servir ao sistema financeiro. O próximo passo é a Reforma Administrativa (PEC 32/2020) que também mira-se no projeto pinochetista de Estado Subsidiário, ou seja, revoga os direitos sociais historicamente conquistados no Brasil e atinge seus operadores; servidores e servidoras públicos. A PEC previa inicialmente a inclusão do princípio da subsidiariedade da administração pública. Esta reforma é a institucionalização da “Escola de Chicago”, em que os direitos sociais são a causa da queda da taxa de lucro e da crise fiscal do Estado, portanto, a saída seria inviabilizar o serviço público para manter o pagamento da dívida pública. A reforma atinge a todos os poderes, em nível federal, estadual e municipal, de forma desigual, em especial os trabalhadores diretamente envolvidos nas políticas sociais, mas não atinge à alta cúpula do aparelho de Estado: parlamentares, magistrados, militares, auditores, diplomatas etc. Os considerados cargos “típicos de Estado”, terão sua estabilidade garantida. 335
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS As demais carreiras passam a ser consideradas de “tempo indeterminado”, sem a garantia de estabilidade e com a hipótese da demissão por avaliação de desempenho ato que mascara à perseguição político-ideológica. A estabilidade mais do que uns direitos destes trabalhadores é uma conquista democrática do conjunto do povo, com o objetivo de profissionalização e continuidade das políticas de Estado, independente de governo. Fato que mascara à perseguição político- ideológica. E dado à busca pelo Estado subsidiário, esta reforma é mais um passo na destruição dos direitos sociais. E dado à busca pelo Estado subsidiário, esta reforma é mais um passo na destruição dos direitos sociais. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante da análise dos processos históricos no Chile e no Brasil, observa-se elementos em comum, dados que são países dependentes sob jugo imperialismo e da superexploração da classe trabalhadora. Entre golpes e contrarreformas, o Estado opera de forma mínima sobre os direitos sociais e com sua máxima força na garantia do poder e da riqueza das elites, inclusive por meio de seu aparelho repressivo. Enquanto o regime pinochetista operou e manteve o Estado Subsidiário no Chile, o Brasil, à medida que retomava a democracia formal, conhecia o ápice do receituário neoliberal. Após décadas vivenciando este projeto o povo Chileno, conquista uma nova Constituinte, após a grande crise de 2008, diante da experiência da pandemia, que comprovou a necessidade de um sistema de saúde pública. Poderia a mobilização produzir uma constituição mais progressista que a brasileira? Ou ainda no Brasil, diante de uma frágil democracia formal, cujos governos oscilaram do neoliberalismo ao social-liberalismo conciliatório que contribuiu com a desmobilização popular, poderíamos resistir aos intentos genocidas, autoritários e ultraliberais do governo Bolsonaro? Só a intensidade do clamor das ruas poderá responder. Diante deste quadro, faz-se necessário o aprendizado e a inspiração nas lutas do continente sul-americano como possibilidade de enfrentamento contra as políticas aparentemente inexoráveis de austeridade e privatização e ampliação dos direitos sociais. 336
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS REFERÊNCIAS AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA. Números da dívida. Auditoria Cidadã da Dívida: Brasília, 2022. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/categoria-conteudo/graficos/ Acesso: jan de 2022 BERCOVICI,Gilberto O princípio da subsidiariedade e o autoritarismo 2015 https://www.conjur.com.br/2015-nov-08/estado-economia-principio-subsidiariedade- autoritarismo Acesso: jan de 2022 BORGES, Rodrigo Emmanuel Santana; STOCCO, Aline Faé; NOGUEIRA, C.S. Da economia política do capital fictício: notas sobre seu movimento na América Latina e no Brasil. ENCONTRO NACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL Vitória: 2019. BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no BRASIL, Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017 FERNANDES, Florestan. Processo constituinte. Brasília: Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, Coordenação de Publicações, 1988. GUNDER FRANK, A. América Latina: subdesarrollo o revolución. México: Ediciones Era, 1973. MARINI, R. M. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes, 20005 ___________(2019)O Reformismo e A contrarrevolução Estudos sobre o Chile. Expressão Popular. São Paulo.Brasil, 2019 MORENO, Nahuel. Os governos de frente popular na História. São Paulo: Editora Sundermann. São Paulo.2003. SALAZAR, Gabriel. En el nombre del Poder Popular Constituyente. Santiago: Siglo XXI, 2015. 337
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS O DOMINÍO DO ESTADO PELO CAPITAL FINANCEIRO: o governo dos ricos para os ricos THE DOMINION OF THE STATE BY FINANCIAL CAPITAL: government by the rich for the rich Samuel Costa Filho1 RESUMO O poder na sociedade capitalista é muito diferenciado. Nessa sociedade são os que possuem e controlam os fundos financeiro necessários à produção da economia, que tem poder de influenciar e decidir o destino de cada sociedade. É uma pequena minoria com imenso poder econômico e político. Nesse cenário, o Estado procura acomodar as demandas da sociedade sem pôr em risco seus alicerces e a dinâmica da sociedade capitalista. No Brasil, o capital financeiro via discurso de corrupção e ineficiência capturou o Estado em benefício dos ricos. Depois do golpe contra a democracia de 2016 aprofundou o governo dos ricos para os ricos, expandindo o processo de desconstrução social originária da constituição de 1988. Palavras-chave: Poder; elite brasileira; governo brasileiro. ABSTRACT Power in capitalist society is very different. In this society they are the ones who own and control the financial funds necessary for the production of the economy, which has the power to influence and decide the fate of each society. It is small minority with immense economic and political power. In this scenario, the State seeks to accommodate the demands of society without jeopardizing its foundations and the dynamics of capitalist society. In Brazil, financial capital via discourse of corruption and inefficiency captured the State for the benefit of the rich. After the 2016 coup against democracy, it deepened the government from the rich to the rich, expanding the process of social deconstruction originating from the 1988 constitution. Keywords: Power; brazilian elite; brazilian government. 1 Professor Mestre em Economia e Doutor em Politicas Pública, do Departamento de Ciências Econômicas e do Mestrado em Gestão Pública. 339
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO Na economia capitalista o objetivo principal é a expansão da riqueza. Aumentar o poder de comando sobre a riqueza social é o que determina na produção de bens e serviços dessas economias. Essa produção é realizada por empresas com a finalidade de venda para quem tem poder aquisitivo e não para viabilizar o atendimento das necessidades da população, pois o objetivo é fazer dinheiro, terminando o circuito D – M – D’ com mais dinheiro do que começou. Nesse processo as firmas buscam riqueza em sua forma mais geral que é a forma monetária. Assim sendo, são as decisões dos empresários o elemento fundamental na geração da dinâmica do capitalismo, pois controlam os instrumentos e os fundos financeiros necessários à produção nessa economia. As decisões empresariais determinam o ritmo e a estrutura da atividade produtiva de cada economia, sendo o poder de influenciar e decidir do destino em cada sociedade muito diferenciado. A questão de poder nessa sociedade é muito heterogênea, com os empresários, homens de negócios e grupos economicamente poderosos obtendo e utilizando seu poder em seu benefício. Essa hierarquia de poder dos diversos grupos possibilita a um grupo minoritário, não apenas o controle do governo, mas também mostra que, esse pequeno grupo economicamente poderoso, somente mantém governos que dão maior prioridade e proteção aos negócios dessas elites. A realidade mostrou ainda que os interesses estabelecidos possuem um poder de pressão e uma retórica no sentido de conseguir apoio em favor da vitória de seu projeto e de política em seu favor, sendo o poder dominante nas decisões governamentais. Na questão dos Gastos públicos, é prática das elites econômicas combater a gastança do Estado para que não atue contra os interesses estabelecidos. Até os gastos com hospitais, escolas e habitação popular, os chamados bens semipúblicos, chega a ser combatido, dado que os interesses do setor privado não toleram a competição do governo com a iniciativa privada. A questão das necessidades e prioridades sociais e as políticas públicas via Estado ocorrem em meio a um conflito entre as necessidades da maioria da sociedade, em contrapartida aos interesses de uma pequena minoria que possui imenso poder econômico e político. Nesse cenário, o Estado procura acomodar as demandas da sociedade sem pôr em risco seus alicerces e a dinâmica da sociedade capitalista. 340
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS A história tem mostrado que existe uma relação orgânica entre o capital e o Estado no capitalismo, tendo o Estado moderno aparecido e crescido fruto do próprio desenvolvimento do sistema capitalista. Do surgimento e desenvolvimento desse sistema, o Estado foi fundamental na promoção das bases institucionais e econômicas, tendo utilizado os recursos públicos para subsidiar muitas atividades produtivas e especulativas lucrativas que se fizeram necessárias ao desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, domina a visão que o Estado atrapalha o adequado funcionamento da economia e que os empreendedores conquistaram fortuna como resultado do seu próprio desempenho. Não se fala que esse Estado é o elemento quem garante por todos os meios a defesa da propriedade privada e defesa dos contratos, como ainda nada se comenta sobre a benéfica ação do Estado na formação da infraestrutura logística de rodovias, portos, aeroportos, energia e da infraestrutura social da educação, saúde, segurança pública, todos elementos fundamentais ao adequado e eficiente funcionamento da economia capitalista. É deixado ainda a margem, até a interação dos empreendedores com os demais membros da sociedade. No Brasil, a Constituição de 1998 colocou o Estado com papel central na agenda de indutor do crescimento e promotor do bem-estar social. Todavia, desde os anos 90, as elites econômicas, políticas e jurídicas trabalham contra a nação. A elite escravocrata brasileira nunca gostou e não gostam das mudanças sociais e políticas resultantes do desenvolvimento do progresso da humanidade fundados na ideia de igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, todos ditados por regras e pela lei. A Agenda Conservadora sempre procurou revogar o contrato social da Constituição de 1988. No processo de constituinte, o ataque conservado apresentou como primeiro intelectual orgânico Roberto Campos, que denominava a constituição de “hino a preguiça”, coleção de anedotas, anacronismo moderno, ou misto de regulamento trabalhista e dicionário de utopia. Nesse mesmo período o “arenista” presidente José Sarney afirmava que o país se tornaria ingovernável. 341
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS O ultraliberalismo2 foi a forma moderna que os grupos dominantes implementaram para suprimir todas as formas de oposição que esse sistema capitalista antissocial dissemina. Os ricos brasileiros implementam uma política para legitimar os seus privilégios por intermédio de uma ideologia particularista que camufla os seus interesses, mas é absorvida pela sociedade, via discurso culpando o Estado corrupto e que atua com negligência diante das mazelas da sociedade brasileira. Essa burguesia encobrindo o seu desinteresse pela construção da nação prospera utilizando o Estado em proveito próprio. As alianças de classes e grupo sociais da burguesia agrária, comercial, industrial e financeira com a burocracia estatal desenvolvem um projeto deliberadamente concebido procurando adequar o sistema econômico nacional aos interesses e atividades do sistema econômico internacional. Desse modo, só é possível compreender a situação de crise vivida no Brasil, o combate ao gasto público, a crítica as políticas públicas, o avanço das medidas de desproteção social e luta contra a educação se se entender que o projeto executado pela burguesia nacional viabilizou o golpe contra a nação e contra a democracia (com ares de legitimidade), se percebermos o domínio do Estado pelo grupo que tem poder econômico, via um governo com uma face muito mais autoritária, mais cruel. Nessa perspectiva, o objetivo desse artigo é apresentar o processo de como a direita, via última eleição “democrática” viabilizou a eleição da retaguarda conservadorismo e defensores do mais atrasado, que procura avançar sem se importar em deixar ruinas no seu caminho. O governo Bolsonaro foi o pior governo que o dinheiro pode comprar3, dado que as eleições de governos na sociedade capitalista são decididas pelas alianças dos que tem poder nessa sociedade, sendo isso normalmente comum a todas as administrações políticas da sociedade capitalista. Governos para servir e garantir determinados interesses econômicos e 2 Muito mais radical que os liberalismos anteriores esse é originário de três linhas: 1) a escola Austríaca o patrono de todo pensamento neoliberal contemporâneo; 2) a escola de Chicago, do liberal monetarista Milton Friedman e Gery Becker, com a teoria do capital humano e 3) a escola de Virginia com James Bachman com public choice. 3 O editor-executivo do jornal Valor Econômico, Pedro Cafardo afirmou: “Está claro que a escolha do presidente foi responsabilidade das elites brasileiras, do agronegócio à indústria, passando evidentemente pelo setor financeiro. Não há clichê esquerdista algum nessa afirmação que usa a palavra ‘elites'. Foram, sim, os mais ricos e teoricamente bem-informados que elegeram ou trabalharam com mãos e mentes pela eleição do atual presidente.” “Precisam agora fazer mea culpa”, diz em outro trecho. (CONVERSA AFIADA, 2020). 342
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS seus altos lucros. Temos no Brasil o Estado assistencial para os ricos. Um governo dos ricos para os ricos. 2 A VERDADE FALSEADA EM FAVOR DO CONSENSO DAS ELITES BRASILEIRAS A partir dos anos 1980, o processo de expansão capitalista e acumulação de capital favoreceu a predominância do capital financeiro em uma atividade frenética de especulação, que em muito, superou os investimentos produtivos. Seus ideólogos passaram a difundir a ideia de que o trabalho teria perdido a centralidade dado o predomínio da tecnologia, da informação e do mundo do conhecimento. Esse discurso foi apresentado pela ortodoxia econômica, que passou desenvolver uma ciência em favor da política e da cultura amoral do sistema financeiro, encobrindo suas constantes práticas de desvio de conduta. Esse “desenvolvimento científico”4 legitimou todas as políticas de desregulamentação, liberalização, privatização, abandono das questões sociais, servindo para legitimar os interesses das burguesias, como ficou transparente nas últimas décadas (CARCANHOLO, 2011). No Brasil, o Ultraliberalismo levou a cabo uma luta pela hegemonia da opinião pública5 para construir o consenso social em favor do capitalismo desregrado de mercado livre. Na busca de viabilizar esse consenso hegemônico no seu significado mais profundo penetraram nas universidades brasileiras, principalmente nos cursos da Economia e nos cursos de Direito, conquistando os corações da classe média e da nova geração que passou a votar, comandar empresas e procurar trabalho, de modo que, para viabilizar-se implantou um golpe contra a democracia. A democracia ultraliberal é conservadora e limitada. 4 Esse assalto da consciência pública foi planejado, implantado com diabólica e com muitos recursos, aplicados na compra da imprensa, de universidades, de centros de pesquisa e de empresas da indústria cultural e de entretenimento. Se a complexa e multifacetada ofensiva simbólica para moldar a concepção de mundo das pessoas, o capitalismo financeiro não poderia se apropriar dos recursos do planeta inteiro, com veem fazendo. (SOUZA, 2018. P. 260/261). 5 O jornal Valor Econômico lista cerca de 60 blogs e colunas, com uma tribuna garantida a cada mês para pressupostos “formadores de opinião”, seja pública, seja especializada. Dentre eles (https://valor.globo.com/opiniao/colunistas/), assinam como economistas – e não como jornalistas – os seguintes colunistas: Portanto, entre os catorze colunistas, seis são relacionados à FGV, três à PUC-Rio, três relacionados a O Mercado Livre, e os demais representam individualmente à UNICAMP, FEA-USP, IE-UFRJ, UnB, INSPER. Considerando a dupla-contagem (formação e ocupação) e o classificado como professor do IE-UFRJ também representar o neoliberalismo e o do INSPER defender o social-desenvolvimentismo pró educação popular massiva, os desenvolvimentistas estão nitidamente sub representados, para a opinião pública se formar, posicionando-se em um debate plural, onde ocorra contrapontos de ideias. (NOGUEIRA DA COSTA 2022). 343
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Os defensores desse “Ultraliberalismo”, de Friedrich August Von Hayek a James McGill Buchanan Jr., defendem uma política que pretendem impor limites drásticos às “irresponsabilidades” da democracia de massa. Nesse sentido, os ultraliberais – por intermédio de um Estado forte – pretendem limitar a “Democracia majoritária”. Buchanan Jr., em colaboração com magnatas e institutos fundadas pelos super-ricos, desenvolveu o programa e o projeto político para suprimir a democracia em favor dos muito ricos. Os trabalhos de Buchanan na Universidade George Mason, cujos departamentos de Direito e Economia parecem muito mais think tanks corporativos que instituições acadêmicas, viabilizaram uma “revolução constitucional” procurando reduzir o Estado e as escolhas democráticas. James Buchanan foi patrocinado durante toda sua vida por fundações riquíssimas, bilionários e corporações, foi fortemente influenciado pelo neoliberalismo de Friedrich Hayek e Ludwig Von Mises e pelo supremacismo de proprietários de John Caldwell Carlhoun. Buchanan Jr. cria a “teoria da escolha pública” e foi quem primeiro propôs a privatização das universidades e cobrança de mensalidades, com o propósito de esmagar o ativismo estudantil. James Buchanan também recomendou a privatização da Seguridade Social e de diversas áreas do Estado, procurando a quebra da aliança democrática entre os cidadãos e o Estado, destruindo a confiança da sociedade nas instituições públicas (MONBIOT, 2019). Uma rede global ultraliberal6, composta por acadêmicos, jornalistas, ativistas, apoiada pelos ricos e pelo mundo dos negócios, além da criação de uma infinidade de think tanks, passou a promover essa ideologia ao redor do planeta. Nas universidades, ocorreu o financiamento de acadêmicos que passaram a justificar a defesa dos super-ricos. O discurso que interessa aos ricos e ao combate do Estado democrático é o objetivo central. Nos anos 1970, esse movimento resgatou esse grupo de intelectuais menores e desconhecidos (neoliberais), que o mundo ignorava, objetivando pregar a defesa e os interesses das elites e das classes médias conservadoras. Foram construídos mitos, na linha do senso comum, dirigindo um ataque às conquistas trabalhistas e sociais. Essa ideologia liberal passou a ser dominante em todos os países latino-americanos e foi, avassaladoramente, bancada pela mídia nativa brasileira, principalmente pelos ideológicos 6 Rede fruto da reunião em 1947 em um resto suíço Mont Pèlerin, onde um grupo de economistas, filósofos, cientistas políticos liberais criaram a Sociedade Mont Pèlerin. Desde cedo Hayek e von Misses entusiasmaram milionários e suas fundações para financiar o esforço de formulação do projeto neoliberal que somente encontrou alguma morada no Estados Unidos (MONBIOT, 2016) 344
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS comentaristas de economia da mídia conservadora, apoiados nos discursos de Financistas Profissionais, Analistas de Mercado, Economistas com PhD (formados nos EUA) e de publicistas vulgares. Foi uma época de predomínio do pessoal da “bufunfa”, principal divulgador da financeirização e dos notáveis benefícios da globalização financeira, que foi inicialmente implementado em diferentes países da América Latina, nos anos 80, e que somente penetrou no Brasil no início dos anos 90. Na sociedade brasileira, foram os partidos conservadores e de direita, unidos, que defenderam ardentemente a ideia do “Estado Mínimo” e vangloriavam o “Deus-Mercado”, classificando o Brasil como um país arcaico, de caipiras, que precisava mudar – mudar rumo à lógica ultraliberal, de entregar o patrimônio público ao setor privado. Os defensores ferrenhos do liberalismo, os institutos liberais que se disseminaram pelo país e a mídia conservadora, capitaneados pela imprensa e grande mídia, bombardearam as mentes dos brasileiros em favor desse projeto, procurando manter o Brasil refém da agenda conservadora dos ricos. Os colunistas econômicos disseminaram a noção de que a economia brasileira deveria seguir somente os ditames do “Deus-Mercado”. As demandas dos ricos foram vestidas com os adornos de uma teoria econômica sofisticada Assim, economia do Brasil passou a adaptar-se à nova realidade da dinâmica financeira e de globalização, para estarem aptas e em condições de atrair e receber a ajuda e o aporte de investimento estrangeiro e capital internacional. A política econômica dominante no contexto das finanças públicas ficou assentada no apregoado ajuste fiscal, no Estado Mínimo, com o patrimônio público sendo transferido graciosamente para a iniciativa privada (privatização) (BIONDI, 1999, 2000). A realização de reforma tributária beneficiou e deu isenção a livre circulação do capital dinheiro, além da garantia da redução nos gastos e nas despesas públicas, quer seja nos gastos de investimento, custeio da máquina pública e, principalmente, nos gastos sociais, condicionalidade decorrente da imposição dos organismos GBM, FMI e OMC. Nesse novo contexto, a política monetária é predominante. Banco Central Independente, metas de inflação, e taxa de juros elevadas são as medidas objetivando assegurar rentabilidade ao capital financeiro nacional e internacional. Os recursos, que anteriormente eram destinados aos investimentos produtivos, e a infraestrutura gastos nas áreas sociais, acabaram destinados ao 345
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS pagamento de dívidas junto ao mercado financeiro e financiando os desequilíbrios nas contas- correntes dos balanços de pagamentos (CARCANHOLO, 2011; 2011a). No Brasil, as mesmas taxas de juros elevadas produziram uma enorme dívida pública interna e, dado a política de metas de inflação que com os níveis de inflação sempre elevam essas taxas de juros, todo o esforço fiscal de superávit primário não possibilitou nem o pagamento do total de juros, acarretando um crescimento da dívida pública interna. Operou- se até uma política de troca da antiga dívida externa composta de títulos podres pela elevada dívida interna. O fracasso da “década dos mitos”7, nos anos 90, obrigou a ortodoxia a reintroduzir uma nova visão teórica do papel do aparelho do Estado para a economia capitalista. O mainstream constatou as dificuldades e falhas institucionais na economia de mercado com a política de reduzir o Estado ao mínimo, de modo que, o Estado se fazia necessário e deveria ser reconciliado com o mercado. Na abordagem neoinstitucionalista e da Nova Economia Política, o papel do Estado deve ser o de regulador na defesa da produtividade do sistema. Essas correntes defendem que o mercado é que deve realizar as atividades econômicas que lhe compete e pode fazer melhor que os realizados pelas empresas estatais ou os que são desenvolvidos pelos funcionários do setor público. É o início da era do Estado Gerente, do business administration de Estado, na visão de que o que promove o crescimento da economia são concorrência e competição no mercado. Diante dessa nova forma de visão, o Estado Gerente, também, apoia-se em ajuste, regulamentos e limites na área de atuação do Estado. Continuou predominando a ideologia 7 Segundo Pochmann (2001), o neoliberalismo produziu oito mitos no Brasil: 1) mito que o esvaziamento do papel do Estado levaria o país ao crescimento econômico sustentado, com elevação no nível de ocupação; 2)mito de que a abertura comercial e a internacional da economia permitiriam a modernização do parque produtivo, assim como a redução do desemprego; 3) mito da hipótese heroica de que o avanço da chamada “nova economia” seria favorecido no Brasil diante da aceitação passível do tecnoglobalismo (abandono das políticas nacionais de ciência e tecnologia pela possível compra de tecnologia no mercado internacional reduziria o atraso técnico e capacitaria para receber novos investimentos, gerando novas ocupações); 4) mito de que o rompimento com políticas de desenvolvimento regional no Brasil possibilitaria a conformação de um país menos desigual, acentuando expansão das regiões menos desenvolvidas; 5) mito da defesa da desconcentração da renda a partir do estabelecimento da estabilização monetária; 6) mito da tese do custo do trabalho no Brasil ser muito elevado, ocasionando a perda de competitividade empresarial e gerando desemprego e ocupações informais; 7) mito da desresponsabilização do Estado para com o rendimento dos trabalhadores de salário-base, como forma de levar a redução da desigualdade dos rendimentos e à elevação dos salários de acordo com os ganhos de produtividade; e 8) mito da ideia-força de todo o projeto neoliberal dos anos 1990: acabar com a Era Vargas. 346
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS dominante de limitação do papel do Estado, mesmo em uma fase de transformações do capitalismo na linha da mundialização e da financeirização da economia capitalista. Essa base analítica adequada à nova ideologia dominante continuou não compreendendo o papel e das funções do Estado Burguês. É o Estado mínimo sendo substituído pelo Estado Gerencial. Nos últimos trinta anos, todo o pensamento ortodoxo foi incentivado pelo sistema financeiro a construir uma teoria liberal em defesa do capital financeiro. Esse discurso econômico dominante aumentou sua influência nas instituições acadêmicas e de pesquisa em todo mundo, de forma que as análises críticas foram fortemente desestimuladas. A realidade social e econômica passou cada vez mais a ser vista através de um único conjunto de relações econômicas acríticas, cuja finalidade é dissimular as manipulações do sistema econômico global. Estudiosos das principais correntes econômicas produzem teoria sem fatos (“teoria pura”) e fatos sem teoria (“economia aplicada”). A função das universidades passou a ser produzir uma geração de economistas leais e confiáveis que sejam incapazes de desvendar os fundamentos sociais da economia de mercado global. Da mesma forma, intelectuais do Terceiro Mundo são cada vez mais recrutados para apoiar o paradigma neoliberal (CHOSSUDOVSKY, 1999, p.33). A política implementada é de liberalização dos mercados, privatizações e entrega do patrimônio público ao capital nacional e internacional. Prioriza os cortes de impostos das empresas e das elites econômicas. Reduzir a qualidade e a quantidade de serviços públicos e aplicar medidas de desproteção social, abrir espaço para o inciativa privada (mercado de saúde, educação, água, saneamento, energia etc.). Respaldada pela teoria econômica ortodoxa a política fiscal ficou sob o domínio do setor financeiro que viabiliza a transferência de renda da sociedade para o pagamento ao capital financeiro. Regras de discurso ideológico em defesa da finança capitalista (Regras de Ouro, lei de Responsabilidade Fiscal e Lei do Teto) foram implementadas no Brasil, legalizando o domínio da sociedade e do Estado dos ricos para os ricos. Na sociedade brasileira, a burguesia tem usado os seus intelectuais e a grande imprensa para distorcer a percepção dos problemas econômicos e sociais do Brasil, procurando tornar hegemônica a visão de mundo de seu interesse, influenciando, introjetando, dominando e colonizando as personalidades, as convicções e visões de mundo do povo na defesa dos seus 347
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS interesses, em um processo de ampliação de sua dominação econômica, social e simbólica (SOUZA, 2018). Os principais meios de comunicação do país produzem uma falsa ideia de homogeneidade de pensamento econômico e em conformidade com os interesses do capital financeiro, passando uma visão parcial e interesseira sobre a realidade econômica, fraudando sistematicamente a forma como a sociedade deveria entender as questões (SOUZA, 2016). Nesse sentido, o pensamento único da ortodoxia – hegemônico e homogêneo – construiu um consenso e suas ideias são assimiladas pela sociedade sem que esta tenha possibilidade de refletir a respeito das políticas econômicas do interesse do financismo. Os indivíduos são impedidos de poder avaliar as opiniões alternativas e formar um julgamento próprio e autônomo do que é melhor para o futuro da nação. Esse consenso joga todos os defeitos do capitalismo brasileiro no colo do Estado e dos políticos, procurando criar as condições para atrair o capital financeiro e investidores externos via plena liberdade privada de acumulação. No Brasil, a visão burguesa do mundo sempre foi e é hegemônica e, nunca as ideias heterodoxas do Bem-Estar Social, socialistas e comunistas8 viabilizaram qualquer projeto de hegemonia e, muito menos, ameaçaram a superioridade da ordem liberal (SOUZA, 2019). O conservadorismo dominante na sociedade brasileira pode ser constatado na revolta e indignação da elite paulista contra o governo Getúlio Vargas, no golpe militar e imposição de uma ditadura em 1964, quando da destituição do governo de um latifundiário gaúcho, o presidente João Goulart, que tentava apenas fazer reformas econômicas e sociais para colocar o país na modernidade capitalista. O último exemplo foi o golpe contra democracia que aconteceu contra o governo do Partido dos Trabalhadores de Dilma Rousseff. Esse golpe foi executado pelo complexo midiático-jurídico-legislativo, dado que a burguesia não aceitou o PT ter abandonado o projeto ultraliberal e recolocado o Estado na dinamização da economia brasileira e, também começara a fazer valer a Constituição de 1988, ao incluir grande parte do povo brasileiro na ordem 8 Trata-se, na verdade, das armas do obscurantismo apontadas por políticos, pastores, empresários, além dos palhaços e ignorantes do governo e dessa gente tosca que chega a empunhar faixas nas ruas pedindo a bizarra “criminalização do comunismo”. Essa gente nem sabe o que é comunismo, aliás, como também muitas pessoas intelectualmente bem-intencionadas que não estudaram história e acreditam compreendê-la somente com supostos olhos do século XXI. (MIRANDA, 2020b). 348
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS capitalista do consumo (shopping Centers e aeroportos, por exemplo), na educação (nas escolas técnicas, nas universidades federais e via programas de financiamento que viabilizaram o ingresso nas faculdades privadas), com a expansão dos direitos sociais e trabalhistas. O capital financeiro, a agricultura do atraso, a classe média conservadora e diversos setores atrasados se sentiram ameaçados. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nos últimos 40 anos, a execução do projeto de ação contra o Estado Democrático procurou apresentar o liberalismo e o capitalismo como virtuosos, via a constituição de uma rede global ultraliberal composta por think tanks, acadêmicos, jornalistas, ativistas, apoiada pelos ricos e pelo mundo dos negócios, por meio de ações que passaram a promover essa ideologia ao redor do planeta. Esse processo desenvolveu um projeto consciente, paciente e persistente para remodelar a vida humana e alterar o foro de poder em favor dos ricos (controlando o Estado e a democracia) para os ricos, defendendo que sociedades igualitárias são apresentadas como moralmente corrosivas, irresponsáveis, imprevidentes e contraproducentes (MONBIOT, 2016, 2019). O ataque ao Estado Democrático na atualidade é fruto da contrarrevolução conservadora, ultrarradical (ultraliberal) iniciada no mundo desenvolvido: Estados Unidos da América (EUA), Inglaterra, Alemanha, que orientou um plano das elites do sistema capitalista louvando a competição desenfreada, a livre iniciativa, o mercado. Nesse período, a sabedoria convencional desenvolveu um pensamento econômico de fraudes, nada inocentes, a respeito do comportamento do Estado capitalista, objetivando controlar a democracia em favor dos ricos. Na atualidade, a extrema direita procura aprofundar um sistema que inibe o desenvolvimento econômico, tolhe o futuro da nação e reduz as oportunidades para a grande maioria do povo brasileiro. Assiste-se a um ataque contra as iniciativas democratizantes, humanizadoras e solidárias criando um inimigo: o marxismo cultural. Acontece que o marxismo nunca teve grande penetração no Brasil, nem mesmo nas universidades, nos sindicatos ou nos partidos progressistas. A evolução democratizante e progressista ocorrida na sociedade brasileira ao longo do século XX se deveu às lutas populares inspiradas no sentido cristão de 349
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS dignidade, um valor que foi capaz de produzir os consensos necessários a essa evolução e, não nas concepções inspiradas no socialismo científico que sempre foram minoritárias, mesmo no campo progressista (ANDRADE, 2019). No Brasil, os que produzem as riquezas são convencidos que os privilégios econômico, social, cultural e político das elites são merecidos9. Essas ideias passam a ser dominantes e ganham legitimidade, encobrindo como ocorre a produção da riqueza, o processo de exploração e, como se dá a reprodução desses privilégios. As ideias do conservadorismo são disseminadas para todas as outras classes encobrindo a verdadeira dinâmica da economia e distorcendo a compreensão de todos no que diz respeito à realidade da economia e sociedade brasileiras, impedindo de perceber quais são os objetivos dessas economias. O padrão ultraliberal de dominação social das elites brasileiras pela via da nova forma de inserção externa, ajustadas e adaptadas segundo as necessidades do capital financeiro e da acumulação de capital comandada pelos países hegemônicos foi viabilizado através de pacto político ultraliberal. Esse pacto político é composto pelos mais diversos segmentos das elites articulando diversos interesses ligados ao complexo agroexportador, setores do capital financeiro e capital industrial com um processo de rearranjo das relações do complexo brasileiro capitalista industrial, financeiro, comercial e agrário que aprofunda a submissão, dependência e sua constante fuga para diante com o capital internacional. É a implantação de um projeto radial, representando e aprofundando do caráter antinacional e socialmente excludente do modelo brasileiro, elevando as gritantes desigualdades sociais do país. Como destaca Nassif (2022, p.1): A partir de agora, desenrola-se a, provavelmente, mais importante batalha mundial do ultraliberalismo. De um lado o liberalismo destruidor de estados e de direito. Do outro, a social-democracia redesenhada – formada pela social-democracia europeia e países da América Latina – empenhada na reconstrução dos estados nacionais e das instituições multilaterais. (Nassif, 2022, p.1). 9 “Foi precisamente isso que fez o capitalismo financeiro, aliciando um exército simbólico de intelectuais e jornalistas, apropriando-se de todos os jornais e de toda a imprensa, subsidiando e manipulando a produção de filmes, espetáculos musicais e todo tipo de expressão artística” (SOUZA, 2018, P.54). 350
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