ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS movimentos sociais referem-se a formas coletivas de organização que possuem o intuito de realizar reivindicações de direitos. Marx e Engels explicitam a importância da união e organização dos trabalhadores no processo de luta que objetive a emancipação: “o verdadeiro resultado das suas lutas [dos trabalhadores] não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores” (1998, p.16). Destarte, Entendemos, dessa forma, as lutas pela igualdade de direito de gênero, sexual, racial, pela defesa do meio ambiente, pelos direitos humanos, por demandas pontuais de uma comunidade, como lutas diferentes (nos seus campos de atuação, na sua organização, nos seus objetivos) mas constitutivas das lutas de classes. Lutas que não podem esperar \"a grande revolução\" para resolver seus problemas pontuais, mas cujo objetivos a curto prazo (como a igualdade de gênero, por exemplo) não necessariamente são antagônicos à finalidade de longo prazo (a superação da ordem burguesa). Articular o curto e o longo prazo, os objetivos alcançáveis \"agora\" com as finalidades de maior alcance, torna-se imprescindível. (MONTAÑO E DURIGUETTO, 2011, p. 119). Essas formas de organizações vão buscar estratégias para mobilizar grupos historicamente excluídos do acesso a direitos, vítimas de preconceito, discriminação, componentes das chamadas “minorias sociais” na busca por visibilidade, denúncia de desigualdades, e efetivamente garantia de direitos. 4. CONCLUSÃO Dado o exposto, apreende-se que a partir dos fatos mencionados, o referido texto esclarece que é na sociedade que o Estado e a classe dominante encontram sustentação, sendo, portanto, categorias intrínsecas e indissociáveis. Marx subordina o Estado à sociedade civil porque é ela que o define e estabelece a organização e os objetivos deste. Já para Gramsci, a sociedade faz parte do Estado, que é permeado por interesses e conflitos das classes sociais conformadas na estrutura econômica. Conclui-se que se faz necessária, segundo a perspectiva marxista, a busca pela emancipação humana e a superação do Estado, enquanto instância reguladora e exploratória da vida dos indivíduos, sendo a classe trabalhadora, a protagonista desse processo. A sublevação da classe operária para dominar os meios de produção e suprimir a exploração, visando a destruição do capital, que é a fonte de toda a contradição da sociedade, 501
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS provocaria o fim do Estado e das classes sociais. Dessa forma, uma sociedade culturalmente e moralmente fraca é mais vulnerável a manipulações ideológicas, portanto, os cidadãos não podem ser imparciais porque o Estado não o é, pelo contrário, sua função é a de administrar os males sociais e não os superar. Não basta reconhecer que o Estado e a sociedade se organizam contraditoriamente, mas analisar a sociedade para compreendermos as relações sociais e o domínio de uma classe sobre a outra, buscando não apenas explicar a realidade, mas visar sua transformação. Nesse sentido, a inserção dos profissionais do Serviço Social nos movimentos sociais contribui para a afirmação da categoria profissional porque sua intervenção visa as mudanças nas relações capital/trabalho e a superação de desigualdades sociais, posicionando-se a favor da classe trabalhadora e das organizações da sociedade, apesar de atender a interesses da classe dominante por suas requisições institucionais. A reduzida atuação profissional “[...] em organizações e associações próprias da classe trabalhadora, por elas criadas e geridas, assim como a falta de vínculos sólidos com seus movimentos sociais autônomos” (IAMAMOTO, 2004, p. 47) demonstra a necessidade de resgatar no espaço acadêmico e profissional a pesquisa acerca dessa temática. Dessa forma, o compromisso histórico do Serviço Social com os movimentos sociais visa contribuir com os grupos sociais e pessoas que lutam por melhores condições de vida e trabalho, articulando forças com os que sofrem opressões econômicas, de classes, gênero, de orientação sexual, entre outras, em recusa ao arbítrio e ao autoritarismo, com vistas a ampliação e consolidação de cidadania e na defesa intransigente dos direitos humanos, como é preconizado nos princípios fundamentais do Código de Ética da profissão. Destarte, destaca- se a importância de novas estratégias que fortaleçam os movimentos sociais, suas demandas e perspectiva societária, num sentido emancipatório, o que mostra profundo vínculo com a perspectiva profissional crítica e que também se expressa no Código de Ética (1993) que estabelece como um direito profissional \"apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações populares\" (art. 12, alínea b). Os movimentos sociais são fundamentais para o fortalecimento da classe trabalhadora, haja vista a formação de consciência crítica, condição fundamental para a identidade de classe, sem a qual não é possível a superação da ordem vigente. Na contemporaneidade, vivenciam desafios marcados pela despolitização e fragmentação de suas lutas, o que acaba por 502
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS descaracterizar a razão fundante dos mesmos, qual seja, a luta de classes. O desafio para o trabalho do assistente social seria o do fortalecimento dos movimentos sociais a partir de sua inserção nestes e da sua participação na elaboração de políticas públicas, “[...] alargando os canais de interferência da população na coisa pública, permitindo maior controle social, por parte da sociedade, nas decisões que lhe dizem respeito” (IAMAMOTO, 2000, p.142-143). Mediante o exposto, a sociedade se caracteriza por ser uma esfera da disputa de projetos societários pelos movimentos das classes sociais, diante da ordem hegemônica expressa pelo Estado na luta de classes que permeia o modo de produção capitalista. Diante disso, o Serviço Social, enquanto categoria profissional pertencente à classe trabalhadora, assim como os indivíduos inseridos em movimentos sociais, deve atingir a “consciência de classe para si”, que objetiva a emancipação humana a partir da superação da ordem do capital vigente e da constituição de uma sociedade sem classes, e não uma “consciência em si”, que busca apenas a obtenção de interesses de grupos individuais que conquistam apenas algumas garantias. Isso porque a emancipação não é possível de forma individualizada, mas em um contexto de relações sociais entre todos os sujeitos da transformação social. REFERÊNCIAS ABERS, Rebecca; BÜLOW, Marisa Uon. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre estado e sociedade? Sociologias [online]. 2011, v. 13, n. 28, pp. 52-84. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1517-45222011000300004>. BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. - 9. ed. rev. e atual. - [Brasília]: Conselho Federal de Serviço Social, [2011]. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf>. DURIGUETTO, Maria Lúcia. Movimentos Sociais e Serviço Social no Brasil pós-anos 1990: desafios e perspectivas. IN: ABRAMIDES, Maria Beatriz; DURIGUETTO, Maria Lúcia (Orgs.). Movimentos Sociais e Serviço Social: uma relação necessária. São Paulo, Cortez, 2014. DURIGUETTO, Maria Lúcia; MONTAÑO, Carlos. Estado, Classe e Movimento Social. 3ed. São Paulo: Cortez, 2011. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 2. ed. São Paulo, Expressão Popular, 2010. FALEIROS, Vicente de Paula. A política Social do Estado Capitalista. 10 º. Ed. São Paulo; Cortez, 2007. 503
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE KEYNES E SCHUMPETER: uma proposta conciliativa ON KEYNES AND SCHUMPETER: a conciliative proposal Gabriel Santos Perillo1 Francisco Prancacio Araújo de Carvalho2 RESUMO Keynes e Schumpeter são tradicionalmente vistos como antagônicos entre si pela academia. Opondo-se à essa ideia, põe-se a questão: independentemente de haverem algumas divergências teóricas entre eles, é possível alinhá-los num pensamento híbrido sobre crescimento e desenvolvimento econômico? Assim, o objetivo geral do presente artigo é apresentar alguns aspectos comuns entre as teorias de Keynes e Schumpeter que corroborem para um alinhamento conjunto de suas ideias. Para tanto, a pesquisa, de natureza básica e exploratória, teve procedimento bibliográfico e; alguns dos resultados apontam convergência entre os referidos autores que podem colaborar para expansão da abrangência teórica e melhoria das políticas econômicas e sociais. Palavras-chave: Keynes; Schumpeter; crescimento econômico; desenvolvimento econômico; política econômica. ABSTRACT Keynes and Schumpeter are seen as antagonistic to each other by the academy. Opposing this idea, the question arises: regardless of the existence of theoretical divergences between them, is it possible to align them in a hybrid way of thinking about economic growth and development? Thus, the main of this article is to present some aspects between the theories of Keynes and Schumpeter that corroborate to a common set of their ideas. Therefore, the research, of a basic and exploratory nature, had a bibliographic procedure and; Some results point to a convergence between the authors that can collaborate for the 1 Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Piauí (2021). [email protected]. 2 Professor no Departamento de Ciências Econômicas da UFPI. Doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente – REDE PRODEMA (2018). [email protected] 505
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS expansion and improvement of economical and social policies and theoretical proposals. Keywords: Keynes; Schumpeter; economic growth; economic development; economic policy. 1 INTRODUÇÃO Ao longo da História do Pensamento Econômico diferentes correntes teóricas emergiram. Cada uma com suas próprias contribuições e fruto de contexto histórico-cultural particular. Em função disso, muitas delas apresentam divergências quanto a determinados fenômenos da vida econômica ou mesmo quanto às premissas adotadas em suas teorias. Essas premissas reduzem a realidade econômica a um conjunto de regras e lógica dos modelos teóricos necessário para a formulação prática de suas proposições. Contudo, esse fenômeno reducionista da realidade pode significar a produção de um modelo teórico com pouco apelo empírico. Ou ainda, pode produzir teorias que se mostrem limitadas em abrangência temporal, quando o modelo teórico se torna obsoleto com o passar do tempo, ou em abrangência espacial, quando o modelo teórico não representa de maneira verossímil a realidade econômica de outros espaços geográficos. Keynes e Schumpeter escrevem a maior parte de suas obras num contexto histórico bastante fértil: a primeira metade do século XX. Ambiente marcado pela ascensão de regimes políticos autoritários na Europa e pela eclosão e resolução das duas Guerras Mundiais – fatos históricos que ameaçaram paradigmas teóricos pautados na noção de equilíbrio ou divergentes. O ambiente também é marcado pela quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 e por forte oscilação no nível de emprego nas economias estadunidense e inglesa – fatos históricos que colocaram em xeque o paradigma teórico da racionalidade dos agentes econômicos e a noção de que a plena mobilidade de fatores garantiria o Pleno Emprego. Esses fatos foram de encontro às principais premissas da teoria econômica neoclássica, que marcou a formação acadêmica de Keynes e Schumpeter. Frente a este descompasso, entre realidade presente e teoria, tanto Keynes quanto Schumpeter, propuseram modelos teóricos que, em certos aspectos, aproximam-se e se afastam das teorias que marcaram suas formações acadêmicas. 506
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Keynes (1996) destaca logo nas primeiras páginas de sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda que muitas das premissas do pensamento Clássico, mainstream teórico de sua época e parte de sua própria formação acadêmica e de trabalhos iniciais, serão criticadas por ele no decorrer do livro. Na verdade, o autor expressa que essas premissas representam um caso especial de funcionamento da economia, quando há pleno emprego de recursos produtivos, enquanto a sua própria teoria é, na realidade, o caso geral, quando não há pleno emprego de recursos e, portanto, existem fatores produtivos ociosos na economia (KEYNES, 1996). Dessa forma, fica evidente que uma das principais preocupações da Teoria Geral de Keynes é metodológica, pois não se preocupa apenas com a apresentação de um modelo teórico que substituísse o anterior, mas também uma forma alternativa de se pensar a teoria econômica – sob o paradigma da ociosidade de recursos. Schumpeter (1997) em sua Teoria do Desenvolvimento Econômico depreende tempo para discutir sobre a verificação da validade de uma teoria. Segundo o autor, toda ciência reduz o seu campo de análise a alguns problemas fundamentais limitados e bem definidos para que seja possível a produção de modelos teóricos explicativos minimamente coesos e sucintos. Contudo, em seu entendimento, por vezes, há a verificação de que os dizeres ou projeções de uma teoria econômica não correspondem efetivamente ao que se verifica na realidade empírica. Isso pode acontecer em razão de dois tipos de mudanças, uma delas fora daquele conjunto de problemas fundamentais que a teoria econômica delimitou para embasar sua análise – por exemplo, quando há uma guerra, problema fundamental da ciência política, que afeta o nível de preços mundial, gerando um problema econômico. A segunda delas ocorre exatamente dentro do conjunto de problemas fundamentais da própria ciência econômica. Para Schumpeter (1997), quando o descompasso entre teoria e realidade decorre de uma mudança nos dados que não fazem parte do conjunto de problemas fundamentais da teoria econômica, não é plausível dizer que a teoria econômica era falha – já que houve transformação no conjunto de elementos externos a economia e não se pode exigir que os economistas dominem todas as áreas de conhecimento. Entretanto, quando a teoria econômica falha em explicar a realidade por mudança ocorrida nos dados do conjunto de problemas fundamentais da economia, nesse caso sim, pode-se dizer que é uma teoria falha/errada. E para o autor, a incapacidade da teoria econômica mainstream de sua época de explicar o que ele próprio chama de Desenvolvimento decorre exatamente de uma falha na 507
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS teoria clássica quanto à análise da inovação dentro do processo produtivo – o que evidencia, na Teoria do Desenvolvimento Econômico de Schumpeter, uma preocupação metodológica, análoga a de Keynes. Para melhor compreender esses aspectos e fortalecer reflexões mais complexas sobre o conhecimento econômico em Schumpeter e Keynes, o presente artigo assume como questão norteadora: independentemente de haverem algumas divergências teóricas entre eles, é possível alinhá-los num pensamento híbrido sobre crescimento e desenvolvimento econômico? Na busca de solução do problema, o objetivo geral é apresentar alguns dos aspectos comuns entre as teorias de Keynes e Schumpeter que corroborem para um alinhamento conjunto de suas idéias e, especificamente, apontar ponderações sobre a natureza e capacidade da política econômica a partir da união de elementos de ambos os autores. Como instrumento para solução do problema em pauta, seguiu-se o enquadramento exposto Prodanov e Freitas (2013), uma pesquisa básica quanto à sua natureza, pois produz conhecimento sem aplicação prática prevista; exploratória, quanto aos seus fins, pois explora conhecimentos de Keynes e Schumpeter para novo enfoque sobre o assunto; e bibliográfica, quanto aos procedimentos, pois utiliza a literatura dos referidos autores para gerar a resposta ao problema de pesquisa. A estrutura da apresentação do conteúdo nesse artigo subdividiu-se em três partes, incluindo esta introdução. Na segunda, o desenvolvimento, expõem-se os elementos fundamentais das teorias de Keynes e Schumpeter sobre os aspectos essenciais da pesquisa e; são apresentadas as elucubrações do pensamento híbrido entre os autores e suas associações com política econômica. Já na terceira, apresenta-se a conclusão. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 REVISITANDO KEYNES E SCHUMPETER Keynes (1996) apresenta uma teoria cujos três princípios basilares são: 1) Demanda Efetiva, ou seja, a noção de que é a decisão de gasto dos agentes econômicos que determinará os rumos da economia e que passa pelo crivo subjetivo das expectativas; 2) Efeitos Cumulativos, sintetizados pelo multiplicador de gastos, que implica que as decisões de gasto e investimento 508
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS terão efeito proporcionalmente maior que seu montante original e que os efeitos serão sentidos na economia de maneira gradativa; e 3) Estado Anticíclico, noção de que o governo tem a capacidade de agir contrariamente à tendência seguida pela iniciativa privada, de modo atuar de forma expansiva, mesmo durante as recessões econômicas, exatamente para revertê- las. A demanda efetiva é uma teoria, inclusive compartilhada por outros autores como Marx e Kalecki, enquanto argumento mais objetivo que fundamenta a decisão de investimento das firmas. Segundo Keynes (1996), é a expectativa, por parte das empresas, de ampliação da sua demanda no futuro, que depende da propensão a consumir e da renda disponível dos consumidores, que motivará decisões de longo prazo, ou seja, os investimentos. Ao mesmo tempo, as decisões de investimento passadas representam demanda no presente (sob forma de renda para os trabalhadores e produtores de bens intermediários). Os efeitos cumulativos são representados pelo multiplicador do investimento, que estima o impacto quantitativo mais do que proporcional sobre a renda agregada causado pelo investimento. E por fim, a capacidade anticíclica do Estado surge dos efeitos cumulativos do investimento aliados a capacidade do Estado de agir contrariamente à tendência do setor privado. Ou seja, ao Estado deve interessar estabilizar o nível de demanda na economia, a fim de evitar ou reverter as crises econômicas, assim, ele deve aumentar o nível de investimentos públicos quando os investimentos privados estiverem reduzidos, como forma de elevar a demanda efetiva e estimular novas expectativas otimistas na iniciativa privada. Vale destacar que para Keynes (1996) os investimentos públicos não têm, a priori, uma maior capacidade de multiplicadora quando comparados aos investimentos privados; nem que o Estado tenha, necessariamente, uma maior capacidade de coordenação de investimentos do que as empresas privadas. Entretanto, Keynes aponta a capacidade anticíclica do Estado em razão do seu interesse em manter a estabilidade econômica do país e da sua capacidade de recuperar, ao menos parte, dos gastos com investimento através do aumento da receita tributária decorrente da ampliação da renda gerada pelo seu próprio investimento. Em síntese, para Keynes (1996) a decisão de investir das empresas depende do volume que elas esperam de demanda no futuro. Mas o volume de demanda depende da efetivação do gasto em consumo de parte da renda dos consumidores, o que não pode ser previsto com 509
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS exatidão pelas firmas. Esta imprecisão não diz respeito a riscos ou cálculos probabilísticos, mas sim aos fatores subjetivos que motivam as ações dos consumidores e à falta de conhecimento pleno por dos agentes econômicos. O resultado é uma oscilação constante no volume de gasto efetivo de economia, tanto sob a forma dos investimentos privados, quanto sob a forma dos gastos dos consumidores. Os momentos de baixa na decisão de investir representam desaceleração no ritmo de crescimento da economia que, se persistente, pode dar início às recessões econômicas. Schumpeter (1997) fundamenta sua teoria em dois elementos primordiais: o processo de inovação e o ciclo econômico que decorre deste. A inovação é um processo complexo, pois depende da combinação sensível entre um Empresário, ou seja, agente econômico inventivo, capaz de agir dentro do processo econômico de maneira diferente e mais eficiente que a habitual; a Inovação propriamente dita, que pode se manifestar como uma nova mercadoria/qualidade ou uma nova forma de produzir ou comercializar; e do Crédito, recursos financeiros produzidos pelo sistema bancário com a finalidade de financiar as inovações. Para o autor, o processo de inovação é o elemento característico do capitalismo que rompe com o elemento estático descrito pelos economistas clássicos. É ele o responsável pelo fenômeno do desenvolvimento econômico que leva, a longo prazo, a melhoria de qualidade de vida da população (SCHUMPETER, 1961). Ele, porém, traz consigo o fenômeno da destruição criadora, processo pelo qual o novo (e melhor) substitui o velho (e pior) e que gera, ao menos no curto prazo, efeitos perversos como desemprego e inflação, mas cujo saldo líquido é positivo a longo prazo (desenvolvimento). O ciclo econômico, na visão de Schumpeter (1961), nada mais é do que a materialização empírica da destruição criadora. A fase ascendente do ciclo representa a entrada de inovações no mercado, que trazem consigo mais emprego, mais renda e inflação dada a disputa por recursos no mercado de fatores de produção. A sua fase descendente representa as consequências da disputa por mercado em que os vitoriosos (mais eficientes) eliminam os derrotados (menos eficientes) e que a liquidação dos créditos que financiaram as inovações, reduzindo emprego e o nível de preços. Em síntese, Schumpeter (1997) propõe um modelo teórico segundo o qual as empresas (com ênfase no protagonismo dos empresários como agentes individuais) deliberadamente se esforçam para produzir ou comercializar de maneira distinta do habitual. Esse esforço é o ato 510
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS de inovar, apresentado pelo autor como o motor do desenvolvimento capitalista. Assim como a decisão de investir em Keynes, a decisão de inovar em Schumpeter também depende de fatores subjetivos. Entre estes fatores figuram elementos como o desejo de criar e o anseio pela conquista, mais importantes para os empresários que o próprio lucro. Além desses fatores, que estimulam a atividade dos empresários, fatores institucionais podem se manifestar em oposição à decisão de inovar como, por exemplo, a oposição cultural das classes dominantes e a legislação do governo. O resultado é que a decisão de inovar dos empresários e o impulso desenvolvimentista da economia são oscilantes ao longo do tempo. Dessa forma, algumas semelhanças podem ser apontadas entre Keynes (1996) e Schumpeter (1997), a primeira delas é a franca oposição ao paradigma Clássico e Neoclássico de agente representativo de comportamento homogêneo e previsível ao longo do tempo, em razão de aspectos subjetivos que motivam a decisão dos agentes econômicos. A segunda delas é que o impulso fundamental da expansão econômica (Crescimento na visão de Keynes e Desenvolvimento na perspectiva de Schumpeter) passa pela decisão dos empresários quanto ao investimento (com vistas a atender o crescimento da demanda futura ou com vistas à inovação). Dessa forma, um modelo teórico que aproxima as teorias de Keynes e Schumpeter, torna-se mais plausível do que pareceria a primeira vista. Segundo ele, o motor da expansão econômica é a ação humana, que por sua vez depende principalmente de fatores subjetivos (embora não dependa apenas disso). Dessa forma, a dinâmica expansiva do sistema econômico é oscilante ao longo do tempo e as decisões de inovar e investir recaem sobre os mesmos agentes: os empresários. A efetivação de maiores volumes de investimento aproxima, no curto prazo, a economia do patamar de Pleno Emprego da capacidade produtiva. Nesta situação há um acirramento na competição entre firmas já que há um número maior de ofertantes no mercado (ou o mesmo número de ofertantes, porém com maiores volumes de produção) o que cria um ambiente, como o próprio Keynes (1996) aponta, de otimismo generalizado. Esse otimismo pode servir de estímulo adicional aos impulsos subjetivos da decisão de inovar dos empresários, bem como pode reduzir, ao menos em parte, a oposição das classes dominantes à ação criativa do empresário inovador. Já no longo prazo, os investimentos terão atingido sua maturidade e exercerão seu efeito expansivo sobre o potencial produtivo da economia. Assim, há espaço para 511
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS uma nova fase de crescimento, para que se persiga, efetivamente, este novo volume de produção. O que por sua vez pode, novamente, criar um ambiente de otimismo e com isso estimular a ação inovadora dos empresários. 2.2 KEYNES E SCHUMPETER: INTEGRAÇÃO DE CONHECIMENTO E POLÍTICA ECONÔMICA É possível apresentar como razão para integrar as teorias de Keynes e Schumpeter inúmeros elementos, inclusive, Bresser Pereira (1992) define que o desenvolvimento econômico depende tanto da reorganização dos fatores empregados como do aumento na proporção de capital. Ideia que combina a ênfase qualitativa de Schumpeter (inovação) com a ênfase quantitativa de Keynes sobre crescimento (investimento). Além disso, Bresser Pereira (1992) também destaca que a decisão de inovar do empresário schumpeteriano é simultaneamente a decisão de investir presente na obra de Keynes. Ademais, pode-se acrescentar que: É o empresário que realiza o potencial produtivo que se encontra desarticulado entre o sistema econômico atual e o possível. O aparecimento de indivíduos com estas características e atribuições não é previsível (estatisticamente). O mundo aqui é semelhante ao da incerteza keynesiana. (CRUZ, 1988 p. 435). Passagem que permite alinhar a busca pelo Pleno Emprego promovida pela teoria de Keynes (1996) à luta pelo desenvolvimento promovida pela teoria de Schumpeter (1997). Também é possível fazer uma aproximação entre a figura do inovador e do investidor, a partir de Cruz (1988, p. 442-443) “O investidor Keynesiano também não se satisfaz com a racionalidade hedonista, dada a ênfase nos ‘espíritos animais’ que estão por trás do comportamento do investidor”. Conforme Burlamaqui e Proença (2003, p.94) “a presença de agentes econômicos com poder de escolha, mas também submetidos às dificuldades da escolha, significa que eles são criativos e, simultaneamente, conscientes de que podem errar”. O que permite, novamente, alinhar os argumentos de Keynes e Schumpeter. Dessa forma, um pensamento híbrido entre Schumpeter e Keynes se fundamenta na perspectiva de que é possível que o crescimento econômico crie um ambiente institucional favorável ao desenvolvimento, embora os dois fenômenos sejam caracteristicamente distintos 512
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS entre si. Vale ressaltar, porém, que a efetivação do crescimento econômico não é garantia da efetivação de um processo de desenvolvimento econômico. Também vale destacar uma divergência entre os autores para, então, aproximá-los: Keynes (1996) enfatiza o aspecto quantitativo dos investimentos como forma de manter elevada a demanda efetiva na economia. Já Schumpeter (1997) enfatiza o aspecto qualitativo dos investimentos empresariais em inovação, como forma de romper com os métodos tradicionais de produção. Um modelo híbrido Schumpeter-Keynes propõe que o aspecto qualitativo dos investimentos possa representar um efeito adicional sobre o multiplicador da renda proposto por Keynes (1996). Esse efeito adicional vem dos ganhos de eficiência e produtividade dos investimentos inovadores, sobre os quais Keynes relega menos ênfase dentro da lógica do multiplicador. Assim, à luz de Keynes e Schumpeter, o efeito dos investimentos sobre a renda pode ser visto da seguinte maneira: ∆Y=∆I∙(k'+s') Em que ∆Y é o crescimento da renda; ∆I é o aumento dos investimentos planejados (acima da depreciação); k’ é o multiplicador da renda3; e s’ representa os ganhos de eficiência oriundos da inovação. Como aponta Keynes (1996), k’ é maior do que uma unidade, portanto, variações no investimento causam variações mais que proporcionais sobre a renda. Quando há desenvolvimento, no sentido descrito por Schumpeter (1997), houve inovação e, portanto, s’ é maior que zero. Dessa forma, um pensamento híbrido Schumpeter-Keynes gera tanto os efeitos quantitativos dos investimentos, quanto seus efeitos qualitativos. Quanto às temáticas sobre o ciclo econômico e a intervenção pública do Estado, as teorias de Keynes e de Schumpeter possuem mais atrito entre si. Em primeiro lugar, aponta-se como divergência a origem do ciclo econômico: para Keynes (1996), trata-se de um choque de expectativas dos agentes, já para Schumpeter (1997) é o resultado inescapável da concorrência e do processo dialético de desenvolvimento econômico. 3 Conforme Keynes (1996) k’ = ∆������, onde Y é a renda nacional e I o montante de investimento. ∆������ 513
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Conforme Keynes (1996) o ar de otimismo ou pessimismo no presente, resultado das decisões passadas de produção e investimento, afetam as projeções futuras dos agentes econômicos. Essas projeções, fundamentadas em escassa base material e em base imaterial bastante volúvel, podem se manifestar frustradas no futuro: o que representa um choque de expectativas. No modelo teórico de Keynes, o choque de expectativas pode ser visto como uma força externa ao sistema já que, a princípio, pode acontecer mesmo que as demais variáveis do sistema se mantenham inalteradas. O resultado do choque é uma reversão de tendências, ou seja, a passagem de uma interpretação otimista (pessimista) para uma interpretação pessimista (otimista) sobre o futuro. Dessa forma, os planos de produção e investimentos das firmas se modificarão para se adequar às novas projeções do futuro (principalmente estes últimos, já que o volume de produção é mais constante). Na medida em que há essa mudança nas decisões de investir, e que estas se generalizam para outros setores da economia através da mudança no volume de emprego e consumo, tem-se a oscilação no nível de atividade produtiva que caracterize o movimento de ciclo econômico. A resposta à oscilação econômica proposta por Keynes (1996) se sustenta, então, no combate ao choque de expectativas dos empresários, feito através da ação anticíclica do Estado. A resposta se dá de duas maneiras: uma objetiva via política fiscal, através da expansão do gasto público como forma de alavancar a demanda efetiva, em especial sob a forma de investimentos, pois estes geram emprego e renda imediatamente;e uma subjetiva (que pode se manifestar seja via política fiscal, seja via política monetária), funcionando como uma âncora de expectativas, já que a intervenção pública confere algum grau de estabilidade frente a existência de renda e emprego, o que pode repercutir positivamente sobre as expectativas empresariais. Por outro lado, Schumpeter (1961) aponta causa diversa para o ciclo econômico. Para ele, a decisão de inovar leva a um tipo diferente de concorrência no mercado: a disputa entre as velhas mercadorias e os velhos métodos de produção contra os produtos e métodos inovadores postos no mercado. A esse fenômeno se nomeia destruição criadora4, e ele explica 4 Vale destacar que o termo destruição criadora é cunhado em Capitalismo, Socialismo e Democracia, originalmente publicado em 1942, e não aparece explícito na Teoria do Desenvolvimento Econômico, originalmente publicada em 1911, mas a ideia já era presente nesta. 514
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS os momentos de recessão econômica: falência de empresas e aumento do desemprego, resultado da derrota de parcela das antigas firmas através desta concorrência. Dessa forma, a oscilação do ciclo econômico é resultado da própria dinâmica do desenvolvimento econômico (dialética). É, portanto, resultado de forças internas do sistema capitalista. Em razão disso, Schumpeter (1997) é crítico à intervenção pública do Estado na economia, em especial sob a forma de política fiscal expansionista, já que combater a fase recessiva do ciclo econômico seria combater a própria dinâmica capitalista. Entretanto, Schumpeter (1997) reconhece que, pelo menos em parte, as recessões se devam (ou sejam enfatizadas por elas) à forças externas ao sistema. Em especial ao pessimismo e à especulação como mecanismo de defesa das firmas frente às incertezas, que podem afetar as decisões dos empresários em meio às crises. Essas particularidades levam Schumpeter a uma interpretação diversa em relação à política monetária. Para o autor, uma vez que a autoridade monetária seja munida de conhecimento técnico adequado, ela pode ser capaz de selecionar de forma eficiente a concessão de crédito às firmas mais aptas, bem como identificar e combater aquela parcela de movimentos especulativos que forem danosas ao desenvolvimento econômico. Um pensamento híbrido entre Schumpeter e Keynes propõe ponderação quanto à dualidade volume/qualidade dos investimentos. O planejamento da intervenção pública como propõe Keynes, enfatiza o aspecto puramente quantitativo dos investimentos, como mecanismo de manutenção da demanda efetiva e da possibilidade de crescimento econômico, o que pode se tornar prejudicial (embora, o próprio Keynes proponha que deva haver equilíbrio orçamentário na medida do possível) ao orçamento público. Acrescer a perspectiva de Schumpeter à política fiscal expansionista significa enfatizar o aspecto qualitativo dos investimentos públicos. Nesse caso, há preocupação não apenas com a capacidade do investimento alavancar a demanda efetiva, mas também com a capacidade destes investimentos modernizarem a estrutura produtiva, criando oportunidades para a ação criativa dos empresários. Além disso, a ênfase da qualidade dos investimentos significa também distinguir quais setores da economia nacional tem maior efeito multiplicador da renda, o que resulta em um efeito quantitativo adicional (o que por sua vez pode ter efeito positivo também sobre o financiamento e a manutenção da política fiscal). 515
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 3 CONCLUSÃO Em síntese, apontam-se algumas considerações. Em primeiro lugar, é possível alinhar os autores num pensamento híbrido. Não se trata de afirmar que inexistem divergências teóricas entre as obras de Keynes e Schumpeter, mas de propor que elas possuem alguns elementos complementares entre si, mais importante do que as divergências apontadas. Além disso, parte das divergências também serve para produzir um pensamento híbrido, pois se as teorias não tivessem divergências, não se poderia produzir nada de novo em combiná-las. Em segundo lugar, vale destacar que o fenômeno da inovação descrita por Schumpeter pode representar um bônus adicional ao multiplicador descrito por Keynes. Em terceiro lugar, reconhecer diferentes causas para o ciclo econômico viabiliza o melhor entendimento sobre a necessidade e forma de atuação do setor público frente às crises. Diferentes crises podem ter causas diversas, o que pede respostas distintas por parte do Estado. Keynes e Schumpeter propõem dois exemplos específicos de crise (choque de expectativa e concorrência), o que os leva a propor formas diferentes de atuação Estatal. Por fim, reitera-se que a ênfase qualitativa de Schumpeter pode ser mais benéfica ao planejamento dos investimentos públicos, pois acrescenta à perspectiva de Keynes maior preocupação com relação ao retorno positivo dos investimentos e equilíbrio orçamentário e, consequentemente, à manutenção da própria política. REFERÊNCIAS BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento econômico e o empresário. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 6-12, jul/ago, 1992. BURLAMAQUI, Leonardo; PROENÇA, Adriano. Inovação, recursos e comprometimento: em direção a uma teoria de estratégia da firma. Revista Brasileira de Inovação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 79-110, jan/jun, 2003. CRUZ, Hélio Nogueira da. Observações sobre a mudança tecnológica em Schumpeter. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 433-448, 1988. KEYNES, John Maynard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 516
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS PRODANOV, C. C; FREITAS, E. C. de. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2ª Ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013. SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Nova Cultural, 1997. SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3812152/mod_resource/content/2/Capitalis mo%2C%20socialismo%20e%20democracia.pdf. Acesso em: 03 maio 2020. 517
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EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIEDADE E ESTADO: uma atuação conjunta para garantia de direitos por meio de políticas públicas SOCIETY AND ESTATE: a joint action to guarantee rights through public policies Jessica Katherine Alves Arraz Do Carmo1 Ana Keuly Luz Bezerra2 RESUMO A garantia de direitos da sociedade depende de uma relação entre a sociedade e o Estado. Essa dinâmica ressalta a importância do trabalho em conjunto dessas entidades sociais em prol de um ideal de garantias e benefícios indispensáveis para um bem-estar social, o que podemos observar é que essa busca por uma sociedade munida de direitos garantidos sofre com o enfraquecimento desta seguridade. O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão a respeito do papel do Estado e da sociedade, e os desafios no decorrer do tempo na garantia de direitos por meio de políticas públicas. Palavras-chave: Colaboração institucional; Arranjos; Efetividade. ABSTRACT The guarantee of society’s rights depends on a relation between society and the state. This dynamic emphasizes the importance of a collective work of these social entities on behalf of an ideal of guarantees and essential benefits for a social well-being. What we can observe is that this search for a society equipped with guaranteed rights suffers from the weakening of this security. The aim of this study is to propose a reflection over the role of the state and society and the challenges in guaranteeing rights through public policies over time. Keywords: Institutional collaboration; arrangements; Effectiveness. 1 Universidade Federal do Piauí. 2 Universidade Federal do Piauí. 519
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como objetivo fomentar uma reflexão sobre Estado, sociedade e políticas públicas em uma abordagem dinâmica e organizada, identificando suas evoluções e desafios ao longo da história para efetivação de direitos. Essa análise sistematizada, ressalta a importância do trabalho em conjunto da sociedade e do Estado no que diz respeito à garantia de direitos por meio de políticas públicas, considerando que atualmente a realidade destoa desse ideal. A análise a respeito do Estado, apresenta seu conceito, sua estrutura, sua evolução ao longo do tempo até os dias de hoje, e seu papel fundamental na garantia e implementação de direitos da sociedade. No que tange à sociedade, destaca-se suas transformações, com diferentes formas de associação, a importância do exercício da cidadania na busca de um bem comum. O Estado tem a função de manter a coesão, garantindo direitos, o avanço da aquisição de benefícios coletivos tornando-o provedor, juntamente com a sociedade do bem-estar-social. Também se ressalta a trajetória acerca das conquistas dos direitos adquiridos pela sociedade em diferentes contextos históricos. Faz um breve desenvolvimento, sobre a importância das declarações de direitos que marcaram a história, e que apesar de estarem assegurados, com o passar do tempo eles sofrem um processo de enfraquecimento. Neste sentido, é de fundamental importância a sociedade presente, e à frente na luta por direitos, por meio de uma atuação em conjunto com o Estado, como uma ferramenta indispensável no processo de implementação das políticas públicas de maneira eficiente. O presente trabalho foi baseado em uma revisão bibliográfica, das três categorias destacadas no estudo: Estado, sociedade e Políticas Públicas. Concluindo-se a partir da análise dos dados obtidos, sobre a importância do papel positivo do Estado, como guardião e um agente de implementação dos direitos que visam um bem comum, assegurando a participação popular nas etapas de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas efetivas. 2 ESTADO: EVOLUÇÃO E GARANTIAS DE DIREITOS O homem sendo um ser político e social é o principal agente de transformação da sua realidade. Essas mudanças são advindas de algumas ferramentas que foram implementadas 520
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS com o desenvolvimento da sociedade com o passar dos anos, principalmente com a consolidação do Estado moderno, permitindo que cada indivíduo pertencente a uma organização estatal possua direitos, e que os mesmos assegurem uma vida digna dentro da sociedade. A evolução do Estado é constante e tem um caráter dinâmico, caracterizada por fenômenos históricos, sociais, culturais, econômicos, religiosos, entre outros, que se manifestam na sociedade. Em seu livro teoria geral do estado, Pinto Ferreira resume em cinco fases esse progresso do estado: a) o Estado latente, em potencial, na organização tribal; b) o Estado primitivo de conquistadores; c) o Estado feudal; d) o Estado absoluto; e) e o Estado democrático e constitucional. O desenvolvimento do comércio foi um ponta pé inicial para a constituição de uma sociedade mais complexa. Com a criação da moeda o comércio passa a ser exercido em locais públicos, o que acaba contribuindo para a dissolução de aldeias isoladas e suas linhagens tribais. O assunto público se amplia e começa a interessar não só pequenos grupos e se estende a uma maioria, não só a prática comercial, mas discussões sobre a vida, a defesa da cidade passa a ser feita pelos cidadãos. As primeiras noções de Estado surgiram na Grécia com o Estado-cidade, chamada, polis, e civitas, em Roma. Esses aspectos causam uma revolução política e do pensamento humano, proporcionando uma evolução da polis. A polis, se caracteriza pela preponderância da razão, da palavra e o poder de persuasão dos oradores e passa a ter um caráter político, com interferência do povo nos assuntos de aplicação da justiça e interesse do estado. Segundo Hannah Arendt, em seu livro a condição humana: A polis se assegurava que os atos, palavras e ações fossem imperecíveis. A esfera da polis, surge no ato de compartilhar ações e palavras. A ação é o único ato que constitui o ambiente comum. O espaço da aparência precede a constituição da esfera pública, existe sempre que os homens se reúnem na modalidade do discurso e da ação. (ARENDT, 1999). A denominação civitas, não se diferencia tanto da polis. O estado romano tem como seu principal núcleo, a família, onde o poder era exercido pelo patriarca. A base para a constituição dessa sociedade está nos vínculos de parentesco e nas práticas religiosas. Os conceitos de 521
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS cidade e urbe se diferenciavam e não constituíam o mesmo significado, sendo a cidade um local de associação das famílias e das tribos e urbe, um santuário dessa sociedade. O surgimento do estado depende de uma pluralidade, na qual esses grupos saem da sua condição de isolamento motivados por uma necessidade maior para formar um grupo mais vasto que se unem por interesses em comum. Alguns teóricos se dividem a respeito de como surgiu o estado, alguns apontam que a formatação de como entendemos o estado hoje surgiu na idade média, com a expressão stato, porém a sua definição é muito vaga. No século XV, na Inglaterra, a palavra estado passa a ter um significado de ordem pública, na França e na Alemanha somente no século XVII. Somente no livro o príncipe o termo, estado passou a ser usado com caráter científico, segundo Maquiavel, “o estado seria todo domínio que exerce império sobre o homem, ressaltando, ainda, que seria justificável a utilização de todo e qualquer meio com o fim de manter, o príncipe, seu Estado”. Essa ideia de poder, abrange outra teoria mais remota, a origem violenta do Estado, sugerindo que o estado nasce, sempre, da submissão dos mais fracos pelos mais fortes, essa teoria surgiu a partir do darwinismo, no qual se acreditava na sobrevivência do mais forte. Sobre isso Hannah Arendt afirma: O poder preserva a esfera pública, não pode ser armazenado. O poder é sempre um potencial do poder. Só há poder onde não se separam atos e palavras. A força é indivisível. A força e a violência podem destruir o poder. A violência destrói com mais facilidade que a força. (ARENDT, 1999). A teoria contratual do Estado, atualmente é a que possui mais adeptos dos racionalistas ou pacifistas, o surgimento de acordos de vontades, isto é um contrato social. De acordo com essa teoria, por conta de uma ameaça iminente pela desagregação os indivíduos buscaram uma maneira de se manter seguro, assegurando assim direitos primordiais para a vida em sociedade. O estado era fruto da vontade geral, na qual prevalece a vontade da maioria dos indivíduos, sobrepondo-se à vontade do rei. Durante o século XVIII, com regime absolutista, as virtudes do monarca eram associadas às qualidades do Estado, associando o poder público como um grande inimigo da liberdade individual, nesse contexto surge o estado liberal, tendo como princípio fundamental a não intervenção estatal nas esferas de interesse do indivíduo, assumindo o caráter de abstencionista, o “estado mínimo”. Porém com o passar dos séculos, por conta de algumas 522
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS crises econômicas, recessões, desempregos, houve a necessidade de uma intervenção do estado, afim de garantir condições mínimas de existência e reduzir as desigualdades. Surgindo a partir daí um estado mais atuante, com o objetivo de assegurar um bem-estar geral garantindo o desenvolvimento da pessoa humana, o que foi denominado como estado democrático de direito. O estado democrático de direito, é uma expressão que referência especificamente aos parâmetros de desempenho de um estado moderno, e expande além dos direitos de propriedade, através de leis e uma grande variedade de garantias fundamentais, que são baseadas no chamado “princípio da dignidade humana”, esses princípios garantem as necessidades vitais de um indivíduo. O termo democracia, origina-se do grego antigo δημοκρατία (dēmokratía ou \"governo do povo\"), refere-se a quem vai exercer o poder no estado e estabelece condições legais para que seus governantes possam legalmente serem eleitos e assim poder exercer o poder, sendo a manutenção pacífica do poder umas das principais características desse modelo, como afirma Juguen Habermas: Seu objetivo de prova se esgota na demonstração em que seus envolvidos, mesmo quando se autodescrevem de modo empirista, podem ter boas razões para manter as regras estabelecidas em uma democracia de massas. Isso vale em primeiro lugar, para manutenção dessas normas através dos partidos detentores do poder. (HABERMAS, 2003). A estrutura do Estado de direito pode ser, assim, sistematizada como: 1) Estrutura formal do sistema jurídico, garantia das liberdades fundamentais com a aplicação da lei geral-abstrata por parte de juízes independentes. 2) Estrutura material do sistema jurídico: liberdade de concorrência no mercado, reconhecida no comércio aos sujeitos da propriedade. 3) Estrutura social do sistema jurídico: a questão social e as políticas reformistas de integração da classe trabalhadora. 4) Estrutura política do sistema jurídico: separação e distribuição do poder (F. Neumann, 1973). (BOBBIO,1998.) Em resumo, este estado de direito está conectado a direitos e normas fundamentais, o qual todos os representantes políticos estarão sujeitos às legislações vigentes limitando assim o poder do governo. 523
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Surgindo assim uma nova relação política que não prioriza mais um soberano e sim o indivíduo, sendo o grande destaque dessa evolução foi o desenvolvimento dos direitos do cidadão. Dentro dessa nova visão, a sociedade ganha um maior destaque, pois esses direitos visam uma maior democratização do poder atribuindo para esses indivíduos um maior exercício da cidadania, no qual o estado se apresenta como o maior assegurador desses direitos com um conjunto de normas enfatizando a importância dessa conquista para cada cidadão. Com base nessas afirmações se destaca a necessidade de uma atuação positiva do estado em proporcionar o mínimo para a existência digna e desenvolvimento do indivíduo humano, presente nessa sociedade que vai passar por vários processos de evolução. 3 SOCIEDADE: CONCEITO E EVOLUÇÃO A sociedade está presente em todas as dimensões da vida humana: Na distribuição de riquezas, em um sistema político e jurídico que proteja a integridade da vida, interesses em comum, solucione conflitos, que faça punições para aqueles que descumpram as regras; um sistema de educação que engloba instituições religiosas, escola, família, cultura entre outros. A união moral de seres racionais e livres, organizados de maneira estável e eficaz entorno de um fim comum e conhecido por todos interessados, se caracteriza como sociedade. A primeira sociedade natural é a família. Com o passar do tempo o indivíduo acaba se envolvendo em outras sociedades, movidos por fins profissionais, econômicos e morais. A junção desses diversos grupos constitui uma sociedade, com abrangências, municipais, estaduais, escalonando até uma mundial, sendo essa uma sociedade humana, a humanidade. A divisão dessas sociedades se dá de vários tipos. Marx e Engels dividiram as sociedades em seis: a comunidade tribal, agrupamento primitivo de famílias; a sociedade asiática, caracterizada pelo despotismo; a sociedade antiga, na qual as relações de classe estabeleciam- se entre cidadãos e escravos; a sociedade germânica, rural e profundamente individualista; a sociedade feudal, extremamente hierarquizada; e a sociedade capitalista, marcada pelo domínio da burguesia e com relações de classe nitidamente afirmadas. Previram o surgimento de uma sétima, a comunista, na qual desapareceriam as classes sociais. Segundo o sociólogo, Durkheim, a sociedade primitiva se divide em solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. A mecânica, é pré-capitalista e a divisão de trabalho era 524
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS feito por gênero e não havia muitos trabalhadores várias desempenhando funções, existindo uma igualdade de funções entre os indivíduos. A orgânica, pós-capitalista, na qual a divisão do trabalho e os membros desempenham diferentes tipos de funções e os membros dessas comunidades são interdependentes. Outro tipo de divisão é a sociedade moderna e tradicional. A tradicional é caracterizada pela importância da família e dos papéis sociais tradicionais, seguindo regras e costumes pré- estabelecidos e comprovados ao longo dos tempos, as instituições religiosas são as principais responsáveis por ditar os códigos de conduta dos cidadãos. Segundo weber, algumas sociedades adotam esse conceito de autoridade tradicional, “as coisas sempre foram feitas dessa maneira”. Os governantes não possuem flexibilidade de poder, apenas aquela que lhe foi concedida pela tradição, em carisma ou racionalidade. A moderna, seu surgimento vem com a ascensão do iluminismo, se organiza uma nova visão do mundo: Sobre noções clássicas de verdade (universal/transcendental), razão (universal), identidade (centrada, una, estável) e objetividade, sobre as ideias de progresso e emancipação, e sobre as grandes narrativas fundadoras com seus sistemas totalizantes e explicações generalizáveis e definitivas. (COSTA, 2005, p. 210). A ciência produz conhecimentos que visam ordenar as práticas humanas e construí modelos ideais, afirmando uma identidade humana, transformando o homem em um sujeito político, atribuindo liberdade de expressão, autonomia na vida individual, integração na visão racional e evoluída. Essa estrutura social organiza esses grupos dentro de um sistema, no qual são unidos por uma rede de relações de obrigações, sendo eles os direitos e deveres aceitos e praticados entre si. O indivíduo vem antes da sociedade, e são controlados pelas regras sociais impostas a eles, sua participação nessa associação está diretamente ligada com a função que ele desempenha nela. Tendo isso em vista, o que podemos perceber é que à medida que a sociedade vai se estruturando algumas questões se evidenciam como a sobreposição de alguns grupos sobre os demais, possibilitando as desigualdades sociais. De acordo com Marx, em sua teoria das classes, é apresentada a presença de uma classe dominante e a classe dominada e o surgimento dessa divisão ocorre em razão da divisão social do trabalho, de um lado existindo quem possui os meios de produção e do outro os não detentores. 525
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Outra visão que podemos levar em consideração é a do sociólogo T.H. Marshal, em seu estudo sobre cidadania, classes sociais e status, diferencia essas classes em dois tipos, sendo o primeiro: “a classe se assenta numa hierarquia de ‘status’ e expressa a diferença entre uma classe e outra em termos de direitos legais e costumes estabelecidos que possuem o caráter coercivo essencial da lei” (MARSHAL,1967). Com isso observamos que essa classificação não favorece o exercício da cidadania, pois favorece apenas um grupo em detrimento de outros e feri o exercício da liberdade individual e os direitos naturais, como o mesmo expressa em seu texto: “Uma justiça nacional e uma lei igual para todos devem (...) enfraquecer e, eventualmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como um direito natural universal, deve eliminar a servidão”. O segundo tipo, não aborda sobre um desdobramento de outras instituições, mas dos fatores relacionados com as instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional. O indivíduo ativo no mercado de trabalho e a possibilidade de acúmulo e sucesso material, se cria uma “necessidade proposital”, que pode acarretar uma busca destrutiva e excessiva. Essa necessidade a priori não demonstra a incompatibilidade com a igualdade de status, Patrick Colquhoun citado na obra de Marshal dizia: “Sem uma grande proporção de pobres não poderia haver ricos, já que os ricos são o produto do trabalho (...). A pobreza, portanto, é um ingrediente indispensável e por demais necessário da sociedade, (...)”. Em um contexto mais recente podemos citar, Antunes, em seu livro o privilégio da servidão, que destaca o surgimento de uma nova classe de trabalho, “novo proletariado na era digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TIC (Tecnologia da informação e comunicação), que conectam, pelo celular, as mais distintas modalidades de trabalho”.O que podemos observar é que saímos de uma organização de trabalho fabril e migramos para uma nova flexibilização do trabalho que surge com novas maneiras de produção: Dadas as profundas metamorfoses do mundo produtivo, o conceito ampliado de classe trabalhadora, em sua nova morfologia, deve incorporar a totalidade dos trabalhadores e trabalhadoras, cada vez mais integrados pelas cadeias produtivas globais e que vendem sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário, sendo pagos por capital-dinheiro, não importando se as atividades que realizam sejam menos predominantemente materiais ou imateriais, mais ou menos regulamentadas. (ANTUNES,2018). 526
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Com todos os contextos e visões compartilhados acima, o que podemos observar é que o despertar de uma consciência social é essencial, a fim de se garantir direitos que visam diminuir a influência das classes. Uma ferramenta essencial para exercer o papel da cidadania que reside dentro dos direitos civis, são as políticas públicas que viabilizem tais garantias, pois a abrir mão destes contribui para uma sociedade mais desigual. 4 DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS A humanidade, em seu estado natural é livre, possui direitos decorrentes da própria natureza, a exemplo disso citamos a liberdade. Apesar desses direitos fundamentais, a sua existência é fruto de ações anteriores na história da humanidade, os mesmos podem sofrer alterações, pois essas normas se modificam à medida em que os novos interesses vão surgindo. Há várias teorias provenientes das garantias de direito durante a história, na idade antiga, idade média, e no começo da idade moderna, já se despontavam algumas fundamentações a respeito de alguns direitos. A Revolução Francesa foi um importante fato histórico responsável pela propagação da reflexão sobre os direitos essenciais. Com a quebra do regime absolutista, se estabeleceu um intenso governo democrático popular, os grandes destaques desses desdobramentos, os modelos de organização técnica e científica, a declaração universal de direitos do homem, a consolidação do código legal, elaborações teóricas sobre constituição, representação política entre outras. O iluminismo, foi uma corrente filosófica que teve uma influência direta na revolução Francesa, defendia que os direitos eram indissociáveis da condição de ser humano. A relação entre a garantia de direitos e um governo democrático é recíproca e de suma importância, já que para se manter um governo com essas características é preciso respeitar os direitos humanos. Portanto, os iluministas entendem que a liberdade é garantida pelo Direito, cujo conteúdo é legítimo se for determinado a partir do procedimento democrático. De acordo com Habermas (2003), para que se constitua um processo legislativo legítimo é de extrema importância que ele tenha como base os processos de comunicação e participação política, essas manifestações de uma vontade legítima que emana do povo são motivadas pelo direito positivo. Somente nessas circunstâncias o direito pode ser constituído como uma fonte de integração social. 527
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS A declaração de direitos de 1689, foi aprovada pelo parlamento da Inglaterra. Cem anos depois a revolução francesa redigiu a própria carta, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 26 de agosto de 1789, seu principal objetivo limitar os poderes das monarquias e garantir direitos comuns a todos, o documento foi inspirado pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Porém a consolidação desses direitos só veio acontecer com a criação da ONU, no dia 24 de outubro de 1945, como resposta aos horrores da segunda guerra mundial, três anos depois foi redigido a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um documento marco na história mundial que estabeleceu, pela primeira vez, normas comuns de proteção aos direitos da pessoa humana, a serem seguidas por todos os povos e todas as nações. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais, sua aprovação foi feita pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, realizada no dia 10 de dezembro. A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição. (UDH,1948). A declaração versa sobre direitos civis (privacidade, protestos pacíficos...) e políticos (votar, iniciativa popular...), direitos econômicos (previdência pública, trabalho...) sociais e culturais (moradia, saúde, educação, saneamento, cultura...), direitos difusos e coletivos (ambiente sadio, vedação a propagando enganosa...): Art. 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Art. 2° Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania. Art. 3° Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Art. 4° Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. 528
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Art. 5° Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes(..).” (UDH,1948). Para Bobbio, a “Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre”. Com isso se apresenta o desafio de se aperfeiçoar, aprimorar, atualizar, fazendo com que o mesmo não venha a se cristalizar e enrijecer, sempre se mantendo a necessidade de se manter viva a consciência histórica do documento. As conquistas desses direitos fundamentais é inegavelmente um importante passo para se garantir uma existência digna para todos os indivíduos. Porém outros passos são necessários para a efetivação desses direitos que envolvem uma parceria, do indivíduo exercendo sua cidadania e do estado, que se mostra um importante aliado na garantia desses direitos. Ainda que a constituição estabeleça a aplicabilidade das normas previstas, o próprio texto constitucional guia que alguns direitos vão necessitar de leis para sua efetividade. O estado de fato se apresenta uma peça chave para promover os direitos fundamentais através do poder público, agindo em nome da sociedade e das carências que ela aponta. No século XX houve um intenso estudo liderado pelas produções acadêmicas americanas e europeias, sobre o impacto do estado na vida em sociedade, as políticas públicas são uma importante ferramenta para mediação da relação estado e sociedade. Elas podem ser desenvolvidas em parcerias com organizações não governamentais ou com iniciativas privadas. Os campos da economia, administração, direito e das Ciências Sociais pertencem ao âmbito das políticas públicas, que são traduzidas em políticas econômicas, políticas externas, políticas administrativas entre outras. As políticas públicas que mais se aproximam da vida cotidiana são as políticas sociais, como por exemplo, saúde, educação, saneamento básico, transporte, segurança etc. A intencionalidade pública e a resposta a um problema público, são os dois elementos fundamentais para as políticas públicas, sendo que a sua elaboração apresenta um procedimento ou a solução de problema de relevância social. O problema se apresenta em uma condição de desigualdade que foge de uma situação ideal, a sua implementação não se fundamenta é um problema de cunho técnico e sim de um complexo de elementos políticos e sua avaliação se analisa a aplicabilidade se o propósito pode ser alcançado. Os seus tipos variam 529
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS de acordo com os aspectos da problemática direcionando uma solução mais adequada para a mesma: Políticas Públicas distributivas: Não levam em conta limitação dos recursos públicos, e agem não em um todo, mas em uma parcela especifica da população. Políticas Públicas redistributivas: Através dessa modalidade os bens e serviços são alocado para uma parte especifica da sociedade por meios de recursos extraídos de outros grupos específicos. Políticas Públicas regulatórias: São facilmente reconhecidos e envolvem os formuladores de política, a administração pública e a burocracia estatal, e outros grupos de interesse. Se concretizem em ordens e proibições, decretos e portarias. Políticas Públicas constitutivas: São elas que estabelecem, as normas e procedimentos a partir das quais devem ser formuladas e implementadas outras políticas. (Cartilha políticas públicas e o ciclo orçamentário, 2016.) Para se entender o desenvolvimento das políticas públicas, o ciclo de políticas públicas é um esquema de visualização que organiza as fases envolvidas nesse processo: 1. É do olhar técnico-administrativo da gestão pública em conjunção com as demandas sociais que os problemas são identificados; 2. Forma-se uma agenda de itens que precisam ser trabalhados com urgência e prioridade pelo governo; 3. A formulação de alternativas é fundamental para que os gestores identifiquem soluções possíveis; 4. Nesta etapa é tomada a decisão de qual a solução mais viável; 5. A política pública passa a ser implementada; 6. É importantíssimo que haja avaliação e monitoramento constante por parte dos gestores públicos e da sociedade civil. Só assim é possível observar se a política pública em questão conseguiu ser eficiente, eficaz e efetiva em relação ao problema identificado. (Centro de lideranças públicas, 2019.) A participação da sociedade nesses processos é indispensável no exercício do poder, na luta para que seus direitos sejam atendidos, o estado democrático de direito, tem como base a soberania popular, legitimando a participação política, a fim de fortalecer esses vínculos foi implementado o conselho de direitos que contam com a participação: Do Estado, da sociedade civil e das unidades produtivas. Sua função básica é propor, supervisionar, avaliar e fiscalizar as políticas públicas, sendo sua maior importância o aperfeiçoamento dessas políticas e que se faça um uso adequado dos recursos públicos. Sendo assim, dentro do processo administrativo político o indivíduo exerce sua cidadania. No que se diz respeito a fiscalização da implantação de políticas eficientes, a participação popular na aplicabilidade desses direitos, estando presente em todas etapas do 530
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS processo é o mecanismo mais eficiente para que esses direitos fundamentais se tornem palpáveis e efetivos. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A união do estado, sociedade e políticas públicas é a principal maneira de garantir os direitos fundamentais, em especial dos direitos sociais, em busca de um bem comum. O contrário desse ideal não favorece um bom funcionamento desse processo denotando um retrocesso para o progresso de tudo que foi conquistado ao longo do tempo até os dias de hoje. Concluímos que para se existir uma realidade mais igualitária, o estado tem responsabilidade de promover uma vida digna para todos os indivíduos pertencentes a uma sociedade, sendo essa uma característica do Estado Democrático de Direito, que se fundamenta na soberania popular, que é a base do atual modelo de Estado, além de validar a participação da sociedade, assim como nas escolhas orçamentárias e no planejamento dos fins. Constatamos que as políticas públicas são de extrema importância para trilhar um caminho e efetivar os direitos fundamentais sociais, e que estes se tornem palpáveis e eficientes sendo indispensável a ampla participação social na eleição das prioridades. A participação popular age com a função de oferecer informações que facilitam, a correção, a iniciativa de novos planejamentos e o controle e a avaliação dessas políticas. Com isso o cidadão exerce sua capacidade plena dentro do processo administrativo político, contribuindo para um bem-estar geral. REFERÊNCIAS ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2018. ARENDT, Hannah. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. BEHRING, Elaine Rossetti. As novas configurações do Estado e da Sociedade Civil no contexto da crise do capital. In: Serviço Social: Direitos sociais e competências profissionais. CFESS, Brasília, 2009. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.11. ed. Rio de Janeiro: Campos; Elsevier, 2004. 531
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 1 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília,1998. COSTA, Marisa Vorraber. Velhos temas, novos problemas – a arte de perguntar em tempos pós-modernos. In: COSTA, Marisa e BUJES, M. Caminhos Investigativos III. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 199-214. DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política & Sociedade. v. 3, n.05,2004. FERREIRA, Pinto. Teoria geral do estado. São Paulo: Saraiva, v.II,1975. HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v. II, 2003. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. 1 ed. São Paulo: Pé da letra, 2019. MARSHAL, T. H. Cidadania, classe social e status. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. POULANTZAS, N. O Estado, o poder e o socialismo. 1 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,1985. QUEIROZ, Antônio Augusto de. Cartilha políticas públicas e o ciclo orçamentário. Brasília: DIAP, 2016. Disponível em: https://www.diap.org.br/images/stories/cartilha_pp.pdf. Acesso em: Maio/2022. 532
EIXO TEMÁTICO 1 | ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS TRIBUTAÇÃO REGRESSIVA DA PROPRIEDADE E A DESIGUALDADE SOCIAL NO BRASIL REGRESSIVE TAXATION OF PROPERTY AND SOCIAL INEQUALITY IN BRAZIL Thiago Dutra Hollanda de Rezende1 RESUMO O presente texto investiga a forma como estão estabelecidos os impostos sobre a propriedade no Brasil. Além de sua baixa relevância na estrutura tributária brasileira, constata-se qualitativamente que sua composição é regressiva, apesar do seu caráter de tributo direto, o que configura um financiamento do fundo público que tende a favorecer o capital em relação ao trabalho, promovendo a desigualdade social e reduzindo as possibilidades de sua amenização por meio das políticas sociais. Palavras-chave: Fundo público; Sistema tributário brasileiro; desigualdade. ABSTRACT This text investigates the way in which property taxes are established in Brazil. In addition to its low relevance in the Brazilian tax structure, it is qualitatively verified that its composition is regressive, despite its direct tax character, which configures a public fund that tends to favor capital over labor, promoting inequality and reducing the possibilities of its softening through social policies. Keywords: Public fund; Brazilian tax system; Inequality. 1 Consultor técnico-legislativo – assistente social em Câmara Legislativa do Distrito Federal, Doutor em Política Social pela Universidade de Brasília, e-mail: [email protected]. 533
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS 1 INTRODUÇÃO O modo de produção capitalista tem por característica tendencial a concentração e a centralização de capitais, as quais tendem a conformar uma cisão cada vez maior entre os ganhos das classes dominantes e os ganhos das classes trabalhadoras. Essa tendência geral detalhada por Marx (2013), sofreu o efeito de mecanismos amenizadores ao longo do século XX, especialmente quando a partir da organização e luta de trabalhadoras e trabalhadores pelo mundo foi possível positivar direitos sociais e mecanismos que aliviaram a espoliação do trabalho pelo capital, ainda que em um número reduzido de países e bem distante de se generalizar para a maioria da população mundial (MÉSZÁROS, 2002). O sistema tributário foi um dos mecanismos que atenuou a tendência geral das desigualdades de mercado que promovem a concentração de riqueza. Isso permitiu que alguns países passassem a ser relativamente menos desiguais em relação a outros, especialmente alguns da Europa ocidental, os quais desenvolveram sistemas de bem-estar social financiados com estruturas tributárias em que os impostos diretos tinham considerável relevância. Por meio da combinação entre gastos sociais e tributação progressiva, foi possível promover a atenuação da desigualdade dos dois lados da intervenção estatal na economia, embora sempre apenas como contratendência. Esse foi o processo de ampliação do fundo público, entendido enquanto a capacidade que o Estado tem de mobilizar recursos para sua intervenção numa economia capitalista (SALVADOR, 2010). Essa capacidade se dá pelo financiamento por meio de diferentes proporções de taxação do trabalho excedente e o trabalho necessário (BEHRING, 2021). Trata- se da relação entre tributação direta e indireta. No caso da tributação direta, essa ocorre por meio da incidência sobre a renda ou sobre a propriedade. No presente trabalho, analisamos esta última forma. A discussão sobre a questão tributária é premente, uma vez que ela é resultante e ao mesmo tempo balizadora dos antagonismos sociais, da disputa pelo fundo público, das possibilidades de atenuação da desigualdade social, da ampliação da proteção social e da implementação das políticas sociais. Os anos de 2020 e 2021 colocaram mais uma vez o tema da reforma tributária na ordem dia, quando trilhões de dólares foram injetados por Estados na tentativa de combater a recessão e as consequências sanitárias provocadas por uma pandemia. 534
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS Novamente torna-se urgente repensar a relação entre o fundo público e a sociedade, o papel da política fiscal, e as consequências da escolha entre ajuste fiscal ou investimento público como solução contra crises e contra as mazelas provocadas pelo desenvolvimento econômico desigual. 2 OS TRIBUTOS SOBRE A PROPRIEDADE NO BRASIL Fandiño e Kerstenetzky (2019) identificam que a atual configuração regressiva do sistema tributário brasileiro encontrar-se-ia já na Constituição Federal de 1988. Embora a Constituição Cidadã tenha estabelecido direitos sociais e vinculado mecanismos de financiamento público diretamente à educação, saúde e à seguridade social, não houve o estabelecimento de uma estrutura tributária progressiva que correspondesse aos anseios e objetivos propostos pela nova Carta Magna. Isso configurou um paradoxo constitucional em relação à questão fiscal no Brasil. A Constituição, segundo os autores, manteve e criou mecanismos e formas de arrecadação que gradativamente viriam a comprometer a equidade do sistema tributário. E, a partir dessa base, com as contrarreformas que ocorreriam no período imediatamente posterior, foi desenvolvido um sistema com baixo grau de progressividade dos tributos diretos e uma carga tributária que se apoia em tributos indiretos. No caso da tributação sobre a propriedade, seus limites também começam na estrutura tributária prevista na Constituição Federal e regulamentada pelo Código Tributário Nacional. Há apenas um tributo de competência federal para atuar sobre a propriedade no país, o imposto sobre a propriedade territorial rural – ITR. Os demais impostos incidentes sobre a propriedade são de competências estadual e municipal. Outro imposto que poderia atuar também sobre a propriedade seria o imposto sobre grandes fortunas – IGF, de competência federal, entretanto, este tributo previsto desde 1988 nunca foi instituído, tendo como barreira o fato de ser o único tributo a ser necessariamente aprovado por meio de lei complementar, a qual exige maioria absoluta para sua aprovação. Já neste ponto, das competências tributárias, fica já exposta boa parte dos limites da tributação sobre a propriedade no Brasil. Em um país em que de desigualdades sociais e regionais profundas, bem como com a fluidez cada vez maior do capital financeirizado, impostos municipais ou estaduais têm limites territoriais muito restritos para atuar sobre 535
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS relações de desigualdade e injustiça que se colocam nacionalmente. É muito difícil que impostos com escopo restrito localmente ou regionalmente possam alterar relações de concentração de renda e propriedade que se conformam no país todo, as quais são determinadas a partir da dinâmica da acumulação capitalista no país como um todo. Além dos limites de escopo, a capacidade política dos agentes públicos de conformar estruturas tributárias progressivas é cada vez mais difícil de acordo com a proximidade cada vez maior do poder político junto às elites locais ou regionais de cada ente federativo. A tendência política tende a evitar que interesses dos grupos próximos ao poder político local ou regional sejam prejudicados em prol do estabelecimento de uma restrita justiça fiscal, a qual não valeria o risco para os mais bem-intencionados agentes políticos locais, os quais estão tendo sempre que lidar com um financiamento público restrito e sem maiores instrumentos de política fiscal e nenhum de política monetária. Os limites apontam para a fundamental relevância de uma tributação sobre a propriedade que parta da esfera federal, a qual pode atuar de modo planejado e consequente sobre as desigualdades econômicas, sociais e regionais, com maior escopo em termos de território bem como de dados e meios de estabelecer uma intervenção mais incisiva sobre a concentração da riqueza no país. Entretanto, a análise da estrutura tributária brasileira aponta que no país vigora o extremo oposto dentro dos tributos existentes sobre a propriedade no país. Tabela 4 - Tributação sobre a propriedade. Brasil. 2020 Esfera Tributo % PIB % CT Federal ITR 0,02% 0,07% Estadual IPVA 0,65% 2,05% Estadual ITCD 0,11% 0,36% Municipal IPTU 0,60% 1,91% Municipal ITBI 0,18% 0,56% Total 1,57% 4,96% Fonte: Receitadata. Elaboração própria. Os impostos sobre a propriedade no país representaram o montante equivalente a 1,57% do PIB em 2020, tendo sido responsáveis por apenas 4,96% da totalidade da arrecadação tributária no país. O ITR teve arrecadação equivalente a apenas 0,02% do PIB, sendo responsável por 0,07% da arrecadação tributária nacional em 2020. Portanto, o único tributo 536
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS sobre a propriedade de alcance nacional é o que tem a menor participação na estrutura tributária. Por outro lado, os tributos com maior relevância dentro do grupo de tributos que tem a propriedade como base de incidência são o imposto sobre a propriedade de veículos automotores – IPVA, de competência estadual, e o imposto sobre a propriedade territorial urbana – IPTU, de competência municipal. Tal proeminência não se explica pelo melhor potencial progressivo sobre a concentração da riqueza dessas duas figuras tributárias, mas pela maior facilidade de sua cobrança, uma vez que a sua aferição, regulação e fiscalização são mais simples que as do imposto sobre a transmissão de bens imóveis – ITBI e do imposto sobre a transmissão “causa mortis” e doações – ITCD. Este último, que abarca a tributação sobre a heranças, tem um maior potencial progressivo em comparação com os demais, uma vez que poderia atingir com maior precisão a transmissão de riqueza, tendo em vista que na transmissão da herança são subtraídos os passivos antes da formação da base de incidência, o que torna o ITCD uma forma potencial de imposto sobre o patrimônio líquido, com maior potencial de ser um instrumento de justiça fiscal. Entretanto, conforme se observa na tabela 1, o ITCD, além de sua limitação regional, se coloca apenas acima do ITR em termos de arrecadação dentro do grupo dos tributos sobre a propriedade no Brasil. Em 2020, sua arrecadação em todo o país representou um montante equivalente a apenas 0,11% do PIB, ou 0,36% da arrecadação tributária nacional. Além dos baixos valores em termos de arrecadação, a forma como os tributos sobre a propriedade está estabelecida no país também fomenta a desigualdade por meio de uma incidência regressiva, a qual esclarecemos a seguir. 3 O CARÁTER REGRESSIVO DOS IMPOSTOS SOBRE A PROPRIEDADE NO BRASIL O imposto sobre a propriedade de veículos automotores – IPVA foi o principal tributo sobre a propriedade arrecadado no Brasil em 2020, conforme constatado na tabela 1. Embora seja um tributo direto, ele tem caráter regressivo. De acordo com a figura 1, elaborada por Carvalho Jr. (2018a), ao analisar a incidência do IPVA numa amostra de 55.589 famílias, a partir dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares – POF de 2008-2009, constatou-se que até o percentil 55-65, renda domiciliar mensal familiar de R$ 1.700,00 a R$ 2.500,00, o IPVA era 537
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS progressivo, mas a partir desse ponto, quanto maior a renda, menor o seu impacto no orçamento familiar, caracterizando a sua incidência com efeitos regressivos. No caso dos domicílios com renda mensal superior a R$ 50.000,00, a participação do IPVA na despesa domiciliar era de apenas 0,09%. FIGURA 1 - Participação do pagamento do IPVA na despesa domiciliar de todos os domicílios, por estratos de renda domiciliar mensal. Em %. 2008 e 2009 Fonte: CARVALHO JR. (2018a, p. 430) Quando se consideram apenas os orçamentos familiares dos domicílios com contribuintes do IPVA, a regressividade é ainda maior, começando da base, sem nem mesmo haver um ponto de inflexão, conforme se observa na figura 2. FIGURA 2 - Participação do pagamento do IPVA na renda domiciliar dos contribuintes do imposto, por estratos de renda domiciliar mensal. Em %. 2008 e 2009 Fonte: CARVALHO JR. (2018a, p. 430) Os contribuintes na faixa dos 40% com menores rendas tinham uma participação do IPVA de 2,79% de sua renda mensal, enquanto o 1% com maiores rendas, tinham uma participação do IPVA na renda domiciliar de 0,56%. Portanto, o IPVA, o tributo sobre a 538
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS propriedade de maior relevância na carga tributária brasileira em 2020 demonstra-se ser um tributo regressivo. A ausência de progressividade também decorre da ausência de progressividade de alíquotas, as quais são sempre proporcionais, o que colabora para a incidência regressiva do IPVA. Ocorre, assim, uma desoneração progressiva dos bens provenientes do consumo de luxo, os quais se beneficiam de uma certa seletividade. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embarcações e aeronaves não devem pagar o IPVA, por exemplo. Portanto, no IPVA, um imposto sobre a propriedade, está oculto um mecanismo de desoneração do consumo de luxo, que é uma desoneração em favor da manutenção da concentração da propriedade e dos ganhos possíveis advindos da concentração e centralização da riqueza. O IPTU é o segundo tributo de maior relevância dentre os cinco tributos que incidem sobre a propriedade na estrutura tributária brasileira. O IPTU respondeu por 1,91% da carga tributária bruta total e ao montante de 0,60% do PIB. De acordo com Orair e Albuquerque (2017), haveria potencial, pelo menos, da arrecadação da ordem de 0,85% do PIB, considerando o ano de 2014, quando a arrecadação do IPTU no país equivaleu a 0,51% do PIB. Os autores destacam que há uma relação significativa entre a dependência de transferências e o menor esforço fiscal, que é maior dada a ineficiência técnica na cobrança do IPTU pelos municípios. Caso os municípios fossem mais eficientes e explorassem plenamente sua estimativa de capacidade fiscal, a arrecadação do IPTU poderia chegar a 1,16% do PIB, o que os autores consideram uma hipótese com a melhor eficiência possível. A Constituição Federal permite que o IPTU seja progressivo em dois sentidos. No primeiro, ela permite a progressividade no tempo, de modo que seja feita a sua utilização de acordo com o adequado aproveitamento definido no plano diretor de desenvolvimento urbano do município. No segundo sentido, trata-se da progressividade em razão do valor do imóvel, da sua localização e do seu uso, portanto, da manifestação da riqueza. Esse segundo sentido, que tem um caráter redistributivo, somente foi incluído pela Emenda Constituição nº 29, de 2000, portanto, após 12 anos da promulgação da Constituição. Até então, não era permitida a progressividade fiscal do IPTU, e o STF chegou a emitir a Súmula nº 668, a qual estabeleceu como inconstitucionais alíquotas progressivas para o IPTU, antes de 2000, salvo as de caráter fiscal relacionadas ao plano diretor. Portanto, foi mais de uma década da promulgação do texto constitucional até que esse imposto realmente pudesse ser um tributo sobre a propriedade 539
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS com caráter progressivo em termos fiscais e de manifestação da riqueza do proprietário de imóvel, ainda que limitado localmente. Cesare (2018) demonstra que a cobrança do IPTU é simbólica em muitos municípios, tendo como expressão o fato de que, em 2012, enquanto a média do IPTU per capita foi de R$ 108,31, 50% dos municípios arrecadaram até R$ 17,15 por habitante. A autora também destaca as fortes diferenças regionais e locais. Como razões para a essa desigualdade e insuficiência, destaca a cobertura insuficiente do cadastro de imóveis, com a média de cobertura nacional sendo de 75%; a avaliação baixa dos imóveis para fins ficais, em média a 46% do seu valor de mercado; a baixa eficiência da arrecadação, com os municípios arrecadando, em média, 65% da receita lançada; a quantidade de isenções, que somadas aos imóveis não cadastrados, chega- se a 36% dos imóveis brasileiros que não são tributados. Se a situação é desigual no território urbano, ela piora no campo de incidência do imposto territorial rural – ITR. A arrecadação desse tributo no período de 2015 a 2019, foi, em média, o equivalente a 0,02% do PIB ao ano, o equivaleu a 0,06% da carga tributária total e a 1,32% da arrecadação dos tributos sobre a propriedade no Brasil. É o imposto direto com menor relevância no Brasil, justamente em um país marcado pela concentração de terra. Tabela 5 - Imposto territorial rural – participação e evolução recente – 2002-2019 Ano 2002 2006 2010 2014 2018 2019 % PIB 0,013% 0,012% 0,012% 0,016% 0,021% 0,022% % CT 0,040% 0,036% 0,038% 0,049% 0,062% 0,068% Elaboração própria. A arrecadação do ITR tem aumentado em relação à carga tributária total, especialmente com a regulamentação dos convênios entre União e município pelo Decreto nº 6.433/2008 e pela Instrução Normativa RFB nº 884/2008, e em relação ao PIB, mas ainda assim, representa um monte extremamente baixo da arrecadação, e alia-se a mais uma das benesses ao agronegócio brasileiro e a histórica concentração fundiária no país. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, realizado pelo IBGE, de 5.073.324 propriedades rurais, apenas 51.203, ou 1,01% do total, correspondentes as propriedades com mais de 1.000 ha, concentravam 47,6% das terras agrícolas ocupadas. Em 2006, o mesmo grupo de propriedades acima de 1.000 ha concentrava 44,4% das terras, ou seja, houve um aumento da concentração no topo da 540
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS propriedade rural nas últimas décadas no país. Pochmann (2015) demonstra que o Brasil fica atrás de apenas 4 países (Paraguai, Barbados, Peru e Bahamas) entre os índices de Gini da desigualdade na distribuição da propriedade rural mais elevados. Há muitas determinantes para essa concentração, como o aumento do agronegócio, a redução dos incentivos à agricultura familiar e a financeirização da terra e da produção agrícola. Appy (2015) destaca o baixo valor cobrado por hectare por meio do ITR, que, em 2012, ficou em torno de R$ 2,00, havendo pouca variação em função do porte do imóvel, apesar da progressividade prevista nas tabelas de alíquotas do ITR. Tabela 6 - Tributação do ITR por tamanho do imóvel. Brasil. 2012 Tamanho do Área média Valor da terra nua Imposto Alíquota VTNt devido média (%valor do imóvel do imóvel tributável (R$/ha) (R$/ha) (%VTNt) imóvel) Pequeno 19,9 2.269 1,50 0,07% 50,50% Médio 215,9 0,18% 45,80% Grande 2.239,4 1.336 2,39 0,30% 34,40% Total 92,2 0,18% 42,40% 733 2,17 1.174 2,11 Fonte: APPY (2015, p. 17) É possível observar que os imóveis maiores pagam menos por ITR por hectare do que os imóveis de tamanho médio, tendo em vista dificuldade encontrada pelo modelo de avaliação do valor da terra nua tributável, o qual se dá por declaração do contribuinte. De acordo com APPY (2015), a tendência é que no preenchimento da declaração do ITR os proprietários reduzam o valor do imposto devido por meio da subavaliação do valor de mercado da terra nua; superestimando a área não tributável (de interesse ambiental) do imóvel e superestimando o grau de utilização da área aproveitável. Portanto, o ITR só poderia ter algum papel relevante num conjunto de medidas articuladas dentro de uma política estratégica que demandaria forte apoio popular e organização classista. Além disso, o ITR, como qualquer outro imposto, é limitado pelo princípio constitucional que veda a utilização do tributo com efeito de confisco. Apesar desses limites, ainda é um instrumento com uma utilização muito aquém do seu potencial, como manifesta a contradição entre o crescimento da relevância do agronegócio na economia brasileira e a manutenção da irrelevância da tributação sobre a propriedade rural cada vez mais concentrada e tornada produto de especulação financeira. 541
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS O imposto sobre a transmissão de bens imóveis – ITBI, de competência municipal, é um imposto sobre transações, refletindo assim, o estado econômico, diferente do que acontece com IPVA, IPTU e ITR, os quais tendem a ter uma participação na arrecadação em proporção ao PIB mais constantes. No caso, o ITBI reflete, relativamente, especialmente o mercado imobiliário, como é possível observar no gráfico 1, de 2002 a 2014, em valores reais deflacionados pelo IGP-DI a valores de 2019, a arrecadação do ITBI subiu de cerca de R$ 5,94 bilhões para R$ 14,78 bilhões, o que representou um aumento real de 148,5%. Gráfico 1 - Relação entre arrecadação do ITBI e indústria da construção civil. Brasil. 2002-2019. % PIB. 0,20% 7 0,18% 6 0,16% 5 0,14% 0,12% 4 0,10% 3 0,08% 0,06% 2 0,04% 1 0,02% 0,00% 0 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 ITBI (% PIB) Construção Civil (% PIB) Fonte: ITBI: Receitadata. Construção civil: Ipeadata. Elaboração própria. A divergência entre 2017 e 2019 deve-se ao fato de que o PIB da construção civil se refere a construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para a construção, o que pode divergir dos números de comercialização, seja pelas transferências de imóveis usados ou de imóveis novos em estoque. Como exemplo, de acordo com dados do Sindicato da Habitação do Estado de São Paulo (SECOVI-SP), o número de imóveis vendidos residenciais novos vendidos na cidade de são aumentou em 108% de 2017 a 2019, quando comprados o número de unidades vendidas no acumulado de cada ano. Além disso, o ITBI varia de acordo com o valor dos imóveis, refletindo também a especulação imobiliária. Por ausência de manifestação explícita da Constituição, o ITBI não é um imposto progressivo, pelo menos se ainda for válida a Súmula nº 656 do STF, aprovada em 2003, que diz 542
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ser inconstitucional lei que estabelece alíquotas progressivas para o ITBI com base no valor venal do imóvel. Ocorre que, em 2013, no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045/RS, o STF reconheceu como possível a adoção de alíquota progressiva para o ITCMD e o voto vencedor afirmou que o princípio da capacidade contributiva é extensivo a todos os impostos. Essa situação demonstra o estado lamentável da justiça fiscal no Brasil, em que a Constituinte foi omissa e ficou por conta da judicialização a resolução de questões relativas à progressividade dos tributos sobre a propriedade que não têm expressão explícita da adequação do princípio da capacidade contributiva. A partir dessa insegurança jurídica, os municípios tendem adotar baixas alíquotas do ITBI, tendo em vista a impossibilidade da sua progressividade. De acordo com Carvalho Jr. (2018b), países como Portugal, Hungria, Reino Unido, Irlanda, Austrália, África do Sul e Canadá. Além disso, China, Coreia do Sul e Canadá aplicam alíquotas punitivas como forma de coibir a especulação imobiliária. As alíquotas médias do ITBI no Brasil variam de 2% a 3% do valor do imóvel transacionado. Por fim, o imposto de transmissão causa mortis e doação – ITCMD é o equivalente ao imposto sobre heranças adotados em outros países. Esse tributo respondeu 7,47% da arrecadação dos tributos sobre a propriedade em média anual de 2015 a 2019, o que equivaleu a 0,37% da carga tributária anual e a 0,11% do PIB. A sua irrelevância só não é maior que a do ITR, e reflete como os tributos sobre a propriedade com maior possibilidade de progressividade sobre o estoque da riqueza em um país fundado sobre a base latifundiária são justamente os com menor participação. O ITCMD é especialmente restringido pela Resolução nº 9, de 5 de maio de 1992, a qual limitou em 8% a alíquota máxima desse imposto. Tal limite se mantém até o momento, o que coloca o Brasil entre os países que menos exploram esse tributo direto sobre a propriedade. De acordo com Carvalho Jr. (2018c), o Brasil, entre países que exploram esse tributo, é um dos que menos exploram seu potencial progressivo, tendo em vista a baixa alíquota máxima, a qual, mesmo podendo ser aplicada de maneira progressiva, está dentro de um limite muito restrito. Além da Resolução do Senado, o problema se agrava pelo fato de que a maioria dos estados que não chegam a utilizar a alíquota máxima de 8%, nem mesmo a instituição de alíquotas progressivas. De acordo com Gassen e Valadão (2020), em 2015, apenas 5 estados das 27 unidades federativas praticavam alíquotas acima de 4% e a maioria não praticava a progressividade das alíquotas para heranças e doações. Embora a tributação de heranças e 543
ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS doações passe longe de ser hegemônica em qualquer país, mesmo os com maior taxa D/I, uma vez que no modo de produção capitalista tributa-se muito mais a renda enquanto tributação direta, protegendo-se o estoque e a riqueza acumulada, o Brasil tem taxas de sua arrecadação bem inferiores aos países que o utilizam de maneira mais ativa. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise qualitativa dos tributos da propriedade no Brasil demonstra que estes estão bem longe de promover alguma forma de justiça fiscal, pelo contrário, apresentam caráter regressivo e assim não realizam seu potencial redistributivo, reforçando a desigualdade entre as classes sociais e entre as regiões do país. A tributação sobre a propriedade no Brasil apresenta uma baixa relevância em termos de arrecadação, sendo responsável por apenas 4,2% da arrecadação tributária do país, o que equivalente a 1,3% do PIB, enquanto a tributação sobre o consumo é responsável por 62,9% da arrecadação tributária, e a tributação sobre a renda por 30,9% da carga tributária nacional, de acordo com os dados consolidados pela Receita Federal. Além dos limites quantitativos restritivos do estabelecimento da progressividade tributária por meio da tributação sobre a propriedade no Brasil, a análise qualitativa dos tributos sobre a propriedade no país demonstra que estes também são regressivos internamente, o que torna ainda mais crítica a questão tributação sobre a propriedade em um país marcado pela forte concentração do capital e pela cada vez mais inaceitável desigualdade social. O financiamento regressivo do fundo público tende a reforçar a desigualdade e a reduzir as possibilidades das políticas sociais atuarem sobre a questão social de maneira mais efetiva. REFERÊNCIAS APPY, B. O imposto territorial rural como forma de induzir boas práticas ambientais. Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia – IPMA. Junho de 2015. BEHRING, E. R. Fundo Público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Acesso em: 20/04/2022. 544
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ANAIS IV SINESPP SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS ANAIS DO IV SINESPP 2022 Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas/: Teresina-PI: EDUFPI/LESTU, 2022) Editoração: Lestu Publishing Company Disponível versão digital: https://sinespp.ufpi.br/anais.php 548
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