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3ªEdição da Revista de Jurisprudência do Copeje

Published by Thiago Álvares da S. Campos, 2021-11-25 16:40:24

Description: Homenagem ao Ministro Luís Roberto Barroso

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“[...] a Constituição estabelece expressamente o que entende por eleições legítimas e normais, que são aquelas em que não haja condutas relacionadas ao abuso de poder, corrupção ou fraude, enfim, elementos cuja presença possa macular todo o processo eleitoral. Dessa forma, os parâmetros constitucionais previstos de normalidade e de legitimidade das eleições se fundamentam na verificação da ausência desses fatores no processo eleitoral” (KUFA, Amilton Augusto. “O abuso do poder religioso no processo eleitoral brasileiro”. In: FUX, Luiz; PELEJA JÚNIOR, Antonio Veloso; ALVIM, Frederico Franco; SESCONETTO, Juliana Sant’Ana (coords.). Direito Eleitoral: temas relevantes. Curitiba: Juruá, 2018, p. 347). Diante dessas impressões, é preciso considerar que quando o constituinte decide outorgar uma proteção jurídica sobressalente a certos valores ou princípios eleitorais, por meio da proscrição de determinadas condutas no diploma de máximo nível hierárquico, termina por evidenciar a especial importância que o Estado constitucional confere à salvaguarda da autenticidade democrática (GÓMEZ GARCÍA, Iván. “Régimen administrativo sancionador electoral”. In: MATA PIZAÑA, Felipe; COELLO GARCÉS, Clicerio (coords.). Tratado de Derecho Electoral. Ciudad de México: Tirant lo Blanch, 2018, p. 636). Na democracia não há verdadeira liberdade sem limites legítimos. Esse regime protetivo sinaliza, ao fim e ao cabo, a suprema relevância da legitimidade eleitoral, assegurada por meio da preservação de condições que o Estado julga essenciais para a materialização da democracia participativa. Dentro do catálogo de pressupostos legitimadores das consultas eleitorais, é inequívoca a indispensabilidade da máxima preservação da liberdade de escolha e do equilíbrio de condições entre candidatos e partidos, haja vista que, consoante inúmeros estandartes internacionais, a celebração de pleitos autênticos depende, de um lado, de decisões individuais tomadas em um ambiente “livre de toda espécie de violência, pressão e manipulação” (PÉREZ- MONEO, Miguel; GARROTE DE MARCOS, María; PANO PUEY, Esther. Derecho Electoral español. Curitiba: Juruá, 2009, p. 153) e, de outro lado, da dissipação de “posições de superioridade” que possam condicionar o resultado das disputas (SÁNCHEZ MUÑOZ, Óscar. La igualdad de oportunidad en las competiciones electorales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 75). Veja-se, mais, que, no cenário estrangeiro, a ausência de previsão legal expressa não figura como obstáculo à necessária tutela da legitimidade dos pleitos por parte das autoridades jurisdicionais constitucionalmente encarregadas dessa nobre tarefa. Destarte, no exame da ação de reclamação constitucional nº 604/2007, o Tribunal Eleitoral do Poder Judiciário Federal do México compreendeu que, a despeito da não contemplação expressa de uma causa de nulidade eleitoral por violação do princípio da separação entre Igreja e Estado, o reconhecimento de práticas religiosas violadoras de princípios constitucionais estruturantes da matéria eleitoral autoriza a invalidação do pleito. Isso porque, na visão da Corte: “[...] resulta incontroverso que, estando confirmada vulneração de uma norma constitucional, a consequência jurídica que se há de impor é a 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 51

privação dos efeitos legais do ato ou resolução que se encontre viciado. [...] Consectariamente, uma vez estabelecido que o ato é contrário às disposições da Lei Suprema, a consequência legal ineludível é privá-lo de efeitos, mediante a declaração da correspondente nulidade, visto não ser possível atribuir validade ou idoneidade a prática que contrarie a Constituição. Conforme assinalado, conclui-se legalmente sustentável assinalar que atos que afrontem as leis constitucionais devem ser declarados nulos” (SUP-JRC 604/2007, acórdão de 23 de dezembro de 2007 – tradução própria). Some-se que essa percepção vem ao encontro de premissas assimiladas pela Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, na direção de que a tarefa de custodiar a higidez na gênese dos poderes vinculantes pressupõe firmeza no dever de reprimir práticas que, de qualquer maneira, possam comprometer a pureza do pleito, mediante a descaracterização da autêntica vontade dos votantes (Corte Suprema de Justiça da Nação, Acórdãos 9:314, de 28 de abril de 1870, e 317:1469, de 8 de novembro de 1994). Em paralelo, adiciono que, em minha compreensão, o alcance de práticas abusivas por meio do indigitado processo hermenêutico não implica em ofensa frontal aos princípios da legalidade e da segurança jurídica. Em primeiro lugar porque, assim como assentado pela eminente Min. Rosa Weber, no julgamento do RO nº 5370-03 (DJe de 27.9.2018), uma leitura teleológica do art. 22, caput, da Lei Complementar nº 64/90 permite abarcar dentro do conceito de autoridade os atos emanados de dirigentes eclesiásticos, sobretudo a partir da impressão de que o legislador ordinário optou, por oposição à solução fechada inscrita no art. 14, § 9º da Constituição Federal – que alude ao “abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” -, por uma fórmula aberta, denotando a intenção de abrir o leque de fontes de constrição da liberdade e da paridade eleitoral. Frente a essa perspectiva, considerando que a lei infraconstitucional proscreve o abuso de poder de autoridade com o fim precípuo de assegurar a concorrência de opiniões livres e desimpedidas na conformação dos órgãos representativos, verifica-se de todo pertinente haurir uma compreensão a simili ad simile, apta a equiparar, no raio dos comportamentos rechaçados, práticas oriundas qualquer manancial autoritário, como forma de se preservar o “mínimo ético” legitimante de qualquer certame eletivo. Confiram-se, a esse respeito, as observações doutrinárias da professora Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, no caminho de que a entrada da religião nas campanhas eleitorais, embora legítima, à partida: “[...] torna-se mais delicada e limítrofe naquelas situações em que líderes espirituais transformam seus altares em palanques e fazem uso de sua ascendência espiritual para intimidar os fiéis, retirando-lhes a liberdade de escolha. Em tal ocorrendo, a liberdade de movimentação e organização das Igrejas enquanto legítimos grupos de interesse se desnaturará em típica prática 52 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

abusiva, altamente comprometedora da legitimidade e validade de um dado processo eleitoral. Pense-se, por exemplo, em situações nas quais líderes religiosos indicam determinados candidatos como os ‘escolhidos de Deus’; ou recomendam o voto em determinado concorrente, sob pena de incidirem as ‘sanções divinas daquele que tudo vê’; ou, ainda, mencionam que o voto em determinada pessoa qualifica-se como uma verdadeira prova de fé e lealdade à Igreja. Em todas essas situações, como visto, o que se vê é a subalterna manipulação da crença e da fé para fins de aniquilamento da própria liberdade de escolha do eleitor, em clara situação do que, para nós, poderia ser enquadrado como típico ‘abuso de autoridade’, passível de questionamento em sede de investigação judicial eleitoral (LC 64/90, art. 22)” (PINHEIRO, Maria Claudia Bucchianeri. “Religião e Política: entre a liberdade de manifestação do pensamento e o ‘abuso do poder religioso’”. In: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Direitos Humanos e Fundamentais: diálogos contemporâneos. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 495-496). Em segundo lugar, porque é possível depreender, a partir dos respectivos modais deônticos, que os dispositivos assinalados, situados em um plano transcendente ao da simples descrição das formas especificadas de exteriorização do fenômeno do abuso de poder, ocupam-se, em verdade, de proscrever as suas consequências relativas, de sorte que um comando negativo direcionado a uma ou outra espécie de abuso veicula, em verdade, um comando negativo subjacente, apto a marcar a antijuridicidade da estratégias que impeçam o exercício desembaraçado do sufrágio ou comprometam o equilíbrio mínimo da disputa. Com efeito, para além de assentar, por analogia, que a autoridade a que alude o art. 22, caput, da LC nº 64/90 é também a autoridade religiosa, é de se ver que a inexistência de referência explícita ao abuso de poder religioso como causa de cassação de mandatos não obsta, categoricamente, a hermenêutica sugerida que, ademais, não ofende a lógica ínsita ao princípio da legalidade. Isso porque, como assenta a doutrina, o argumento da plenitude do ordenamento jurídico é insuficiente para definir, automaticamente e por exclusão, a legalidade ou a ilegalidade de todos os comportamentos. Como ensina Josep Moreso i Mateos que a afirmação corrente no sentido de que “todo comportamento não proibido encontra-se permitido”, conquanto revele uma verdade analítica (i.e, uma tautologia), não resolve em termos definitivos a problemática jurídica, sobretudo porque a máxima em tela sujeita-se, ela mesma, a duas classes distintas de interpretação (MORESO i MATEOS, Josep Joan. Lógica, argumentación e interpretación en el Derecho. Barcelona: Editorial UOC, 2005, p. 151). Nessa trilha, observa o professor de Filosofia do Direito da Universidade Pompeu Fabra que, à luz do ordenamento, uma atividade humana pode ser considerada permitida tanto em um “sentido forte” (quando exista uma norma autorizativa expressa) como, alternativamente, em um “sentido débil” (quando falte uma norma que a proíba). 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 53

À diferença do que ocorre no primeiro caso, em que a permissão hialina retira do intérprete a possibilidade de decifração repressiva – por operar como uma “norma de clausura” que indica a completude do sistema –, na segunda hipótese o dilema jurídico remanesce um tanto aberto (MORESO i MATEOS, Josep Joan. Lógica, argumentación e interpretación en el Derecho. Barcelona: Editorial UOC, 2005, p. 152), tendo em vista que a permissão não pode ser determinada senão em conjunto com o restante do sistema. Por conseguinte, a falta de remissão específica ao poder religioso não enseja uma absoluta liberdade para o seu exercício, notadamente porque o direito eleitoral positivo, em seu conjunto sancionatório, proíbe – por meio de regra expressa – a manifestação abusiva da autoridade, e – por meio do quadro principiológico – o cerceamento da autodeterminação da vontade política e a depressão da igualdade de condições entre os postulantes. Nesse diapasão, a par de sublinhar que, no espaço jurídico, as regras encontram nos princípios o seu “elemento justificativo”, Manuel Atienza e Ruiz Manero defendem a existência de “ilícitos atípicos”, definidos não a partir do descumprimento frontal de proibições literais, mas da transgressão de “princípios de mandato” que orientam o sistema (ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Ilícitos atípicos. Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 25). Com forte nessa visão, firmam os autores espanhóis o entendimento de que, fora do âmbito penal, o direito sancionatório constrói-se não somente a partir de “tipos de garantia”, caracterizados pela alta precisão descritiva, mas ainda pela presença subjacente de tipos não escritos, assim considerados aqueles que “invertem o sentido de uma regra” por travarem oposição com algum(ns) princípio(s), sendo isso, precisamente, “o que ocorre com o abuso de direito, a fraude à lei e o desvio de poder” (ATIENZA, Manuel; RUIZ MANERO, Juan. Ilícitos atípicos. Sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 27). Visto pela doutrina como a corrupção de práticas religiosas “com vistas a manipular ou influenciar a formação da vontade política dos fiéis e interferir em seus comportamentos quando do exercício do sufrágio”, o abuso do poder de autoridade religiosa “vulnera princípios e valores que presidem o processo eleitoral” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 751). Em face do exposto, afigura-se inviável apurar, a partir da falta de proscrição inequívoca, a existência de um direito subjetivo à manipulação das consciências por intermédio do uso ilegítimo do argumento religioso. Afinal, “os direitos subjetivos não são absolutos e, portanto, não podem ser exercidos arbitrariamente, com qualquer intenção”. Pelo contrário, devem ter um “fim útil” e um “modo de manifestação normal”, para que existam em consonância com o direito. É o que defende o professor Roberto Rosas que, em ensaio seminal sobre o tema versado, preconiza que a preservação do indivíduo diante do poder “excedido ou abusado” constitui uma condição imperativa para que “a sociedade viva em perpétuo e constante respeito” (ROSAS, Roberto. Do abuso de direito ao abuso de poder. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 12 e 14). 54 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Acrescento por outra via, que, embora a sanção em matéria eleitoral tenha, como se sabe, um desígnio tendencialmente punitivo, as ações concebidas para a tutela da legitimidade dos pleitos restam caracterizadas pela proeminência de uma “vocação tutelar” (GÓMEZ GARCÍA, Iván. “Régimen administrativo sancionador electoral”. In: MATA PIZAÑA, Felipe; COELLO GARCÉS, Clicerio (coords.). Tratado de Derecho Electoral. Ciudad de México: Tirant lo Blanch, 2018, p. 636), conexionada com a preservação eficaz dos valores democráticos vitais Na senda dessa perspectiva, depreendo que, no enfrentamento de AIJEs e AIMEs, os tribunais são instados a apreciar a validade intrínseca de certames específicos, proferindo ao final juízos que, seguramente, sobrepujam a imposição de consequências negativas como medidas de prevenção específica. Tal como assentado por este Tribunal Superior, em raciocínio de todo aplicável às ações de investigação judicial eleitoral: “A ação de impugnação de mandato eletivo transcende a mera tutela de pretensões subjetivas (e.g., do titular que pretende não ter seu mandato eletivo desconstituído), conectando-se, precipuamente, com a salvaguarda de interesses transindividuais (e.g., a legitimidade, a normalidade das eleições, a higidez e a boa-fé da competição eleitoral), a revelar, com extrema nitidez, o caráter híbrido que marca o processo eleitoral” (REspe nº 2-94/ AM, relator Min. Luiz Fux, DJE de 2.5.2007).  Por isso é que, no âmbito das técnicas assinaladas, permite-se, consoante iterativos precedentes desta Corte, a invalidação de votos ainda que sem a participação direta dos candidatos implicados e, também por isso é que, em minha compreensão, a verificação de comportamentos com aptidão para comprometer, de modo geral e sistemático, os pressupostos medulares do pleito devem ser reconhecidos como possíveis causas de sua anulação, com o fim de assegurar que a circulação do poder político ocorra dentro das condições expectadas pela Constituição da República. Assim, se as eleições têm o sentido de fazer com que “a vontade dos indivíduos seja convertida em vontade do Estado” (AMAYA, Jorge. Los derechos políticos. Buenos Aires: Astrea, 2016, p. 59), a intervenção de práticas comprometedoras da liberdade de sufrágio ou da igualdade entre os competidores impede o alcance de seu objetivo, na medida em que a congruência entre a expressão aritmética das urnas e a vontade autêntica da comunidade política ressai esfacelada. Dentro desse cenário, é mister admitir que as razões debilitadoras do núcleo democrático do pleito comprometem a essência do sufrágio em sua inteireza. A fraude, a coação, o abuso de poder (em qualquer vertente) e os demais comportamentos proscritos pelos arts. 222 e 237 constituem, em substância, circunstâncias que comprometem, em um nível micro, o elemento volitivo das escolhas políticas e, em um nível macro, a validade jurídica do conjunto de manifestações apuradas em um certo sentido. Assim como resumido pelo eminente Min. Luiz Fux, em precedente já mencionado, na esteira da Constituição Federal “a legitimidade, a normalidade e a higidez as eleições 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 55

se afiguram pressupostos materiais para a investidura do cidadão mais votado no escrutínio das urnas, bem como para a consequente fruição do mandato eletivo” (REspe nº 2-98/AM, relator Min. Luiz Fux, DJe de 2.5.2007). Pese o exposto, observa-se que a moldura fática do acórdão regional (ID 30998688) não descortina a presença de práticas capazes de coactar a liberdade para o exercício do sufrágio ou debilitar o equilíbrio do certame. Veja-se, a respeito, o teor do discurso levado a termo, na ocasião, pela candidata recorrente: “O que eu preciso de vocês? Eu preciso da ajuda de vocês, da força. Por que inventar mentira é fácil, eu quero ver provar. Por isso que eu não respondo nada no FACE, porque Jesus falou aqui comigo no púlpito; continua em silêncio. Você pode ver se eu dou uma resposta, em três anos e meio nunca falei nada. Deus vai responder por mim. E aí quando eu vou pensar em falar, Jesus: continua em silêncio. Domingo passado Deus falou comigo aqui: Deus vai fazer justiça, mas você continua em silêncio. Então hoje eu vim pedir a vocês compreensão, o apoio, nos ajude, nós tivemos aí três anos e meio ajudando, agora eu preciso da força de vocês. Por que eu estou com o Cristóvão? Porque foi ele que me ajudou a ajudar as igrejas, ele me atendeu, atendeu em tudo , por isso eu estou com ele, para ajudar, ele sempre me ajudou em todas as áreas sociais, ele sempre me ajudou. Então, jovens, me ajudem, eu peço a vocês o apoio, nós estamos com um projeto, eu sei que vai dar certo. A Fernanda vai passar pra vocês e eu só quero que vocês me ajudem, peço a força de vocês, porque vocês são minha família. Eu ia ser vice-prefeita, sabe porque eu não fui? Porque a igreja Católica, o pessoal católico, não aceita um crente lá no Executivo. Para eles é uma afronta. O Cristóvão queria que eu fosse a vice. Ele fez de tudo. Mas só que eles reuniram lá e falaram: \"Deus me livre\", de jeito nenhum. Eles não aceitam. Entendeu? Então a minha guerra não é só, a minha guerra é uma guerra espiritual. Quando eu chego na Câmara sabe o que eles falam comigo? Eles podem ta conversando, xingando, falando o que for, quando eu chego eles falam: ei gente, vamo parar que a Valdirene chegou. A Valdirene chegou. Para, para, a Valdirene chegou. Uma vez um deles, da oposição, uma vez chegou no microfone ao final da sessão e falou: Valdirene você não pode sair da Câmara, você não pode ser Secretária, porque você faz parte desse lugar. Você transmite paz. Sabe o que é isso? É Jesus. É Jesus que faz. Então, a minha guerra lá é uma , não é uma guerra carnal é guerra espiritual. Eu tenho uma guerra espiritual tremenda naquele lugar. Então eu estou pedindo ajuda a vocês, pedindo apoio, apóie esse projeto, é um projeto que foi Deus que nos deu, que humanamente falando é impossível. Então, eu queria que vocês me ajudassem na igreja 56 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

com os amigos e se tiver alguma dúvida, não tem problema, vá no grupo de Fernanda, do Leandro (...)” (ID 30998688, fls. 281-282). Ressai incontroverso, nos autos, que o discurso em tela foi proferido uma única vez, no contexto de uma reunião realizada nas dependências de um tempo da Igreja Assembleia de Deus na cidade de Luziânia/GO, tendo duração aproximada de 2 minutos e 50 segundos e contando com a presença de 30 a 40 pessoas (ID 30998688, fls. 281- 282). As suspeitas em torno da circulação de listas para que os pastores indicassem nomes de membros e obreiros da Igreja para possibilitar posteriores pedidos de voto foram descartadas por insuficiência probatória (ID 30998688). A despeito da brevidade, do alcance limitado, do caráter disperso e da ausência de elementos constritivos, contudo, a Corte Regional dessumiu desse contexto transgressão com gravidade suficiente para comprometer a legitimidade do processo eleitoral. Em uma perspectiva contrária, compreendo que, seja pelo aspecto quantitativo –relacionado com a duração, com a iteratividade e com o alcance -, seja pelo aspecto qualitativo – atinente à intensidade e ao conteúdo do discurso -, a solução de cassação não se justifica no caso concreto. Aponto, por oportuna, advertência doutrinária no sentido de que: “[...] ao julgador não é dado apontar a existência de abuso de poder religioso em toda e qualquer prática de proselitismo executada no interior de uma igreja. Muito pelo contrário. O perfazimento do ilícito em exame, ou seja, a transposição completa das fronteiras da legalidade é, sem dúvida, excepcional, e só fica caracterizada quando se percebam práticas excedentes do exercício da liberdade religiosa, porquanto destinadas à criação de climas supressores da liberdade de escolha eleitoral, em especial mediante práticas indutoras de “sujeição moral” ou “servilismo”. (LASSWELL; KAPLAN, 1979, p. 135). Em nossa opinião, descabe – nesse campo, como em outros – apontar a existência de abuso em uma análise “per saltum”, sem que se cogite, previamente, a hipótese de ocorrência de uma simples transgressão das normas que regem as atividades de propaganda eleitoral (art. 37, §4º, da Lei das Eleições), como é o caso da realização de proselitismo m bens de uso comum. Posto de outra forma, as autoridades jurisdicionais eleitorais devem evitar a pressuposição de uma gravidade automática intrínseca, inclusive a fim de evitar a prolação de sentenças fundadas numa visão míope e preconceituosa acerca do fenômeno, segundo a qual o fiel religioso seria visto, sempre, um embrutecido, ou seja, um espectador passivo e incapaz de lidar com as informações que recebe, e de que o poder incorporado pelos ministros religiosos, ao contrário de todas as outras manifestações de poder, não teria um alcance por natureza relativo. [...] No trato da questão, portanto, é crucial que se realize um acurado diagnóstico das condições particulares do ambiente. Nesse diapasão, defende-se que o desvalor da conduta cresce conforme o grau de asfixia virtualmente 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 57

gerado pela pressão social exercida; em outras palavras, o dano à liberdade responde proporcionalmente à carga e às potencialidades do clima de constrição efetivamente estabelecido. Nessa equação, quanto mais direta, incisiva, frequente, ardilosa, vil, dramática e/ou emocionalmente apelativa seja a aplicação do argumento religioso para a conquista do apoio político, maiores as chances de que se esteja diante de um caso de abuso do poder natural aos profissionais da religião” (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 286-287). Em razão do exposto, entendo que, ainda que confirmada a tese relativa à viabilidade do abuso de poder de autoridade religiosa como ilícito eleitoral autônomo, as circunstâncias do caso enfrentado não revelam gravidade suficiente para embasar a anulação da votação. De mais a mais, somo que o caráter inovador da compreensão ora expressada recomenda a sua não aplicação a feitos pretéritos, em homenagem ao princípio da proteção da confiança. Nesse norte, o esquema constitucional demanda que os órgãos de Estado se comportem como entes em quem se pode confiar, em ordem a que os cidadãos possam tocar a vida num ambiente juridicamente previsível (NOVAIS, Jorge Reis. Princípios estruturantes do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2019). Em face desses argumentos, venho propor ao Tribunal que, a partir das Eleições deste ano de 2020, seja assentada a viabilidade do exame jurídico do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das ações de investigação judicial eleitoral. Isso posto, dou provimento ao recurso especial e, ademais, julgo prejudicado o agravo interno interposto pelo Ministério Público. É como voto. COMPLEMENTO DE VOTO O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Senhor Presidente, tendo em vista alguns aspectos levantados após a apresentação do meu voto, peço vênia para tecer algumas considerações complementares, com o propósito de manter o debate dentro de seu correspondente contexto. À saída, reforço que o voto externado não inaugura, em sede jurisprudencial, a apreciação do abuso de poder de autoridade religiosa como uma possível modalidade de ilícito. Pelo contrário, o reconhecimento de que a ascendência eclesiástica encontra determinados limites no ordenamento eleitoral não é novidadeiro, fazendo-se presente, ao menos, desde o julgamento do RO nº 2653-08/RO, da relatoria do Min. Henrique Neves da Silva (DJe de 7.3.2017). Naquela oportunidade, esta Corte Superior firmou, à unanimidade, a compreensão de que a proteção constitucional da liberdade religiosa “não atinge situações em que o culto religioso é transformado em ato ostensivo ou indireto de propaganda eleitoral, com pedido de votos em favor de candidatos”. 58 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

De igual modo, a perspectiva de enquadramento da autoridade religiosa dentro do conceito de “autoridade” previsto no art. 22, caput, da Lei Complementar nº 64/90 já fora aventada pela eminente Min. Rosa Weber, na apreciação do RO nº 5370-03/MG (DJe de 21.8.2018), em voto do qual extraio este preciso excerto: “17. A modificação do prisma histórico-social em que se concretiza a aplicação da norma torna imperiosa uma releitura do conceito de \"autoridade\", à luz da Carta Magna e da teleologia subjacente à investigação judicial eleitoral, a revelar de todo inadequada interpretação da expressão que afaste do alcance da norma situações fáticas caracterizadoras de abuso de poder em seus mais diversos matizes - as quais manifestam idênticas e nefastas consequências -, sabido que a alteração semântica dos preceitos normativos deve, tanto quanto possível, acompanhar a dinâmica da vida.  18. Porque insofismável o poder de influência e persuasão dos membros de comunidades religiosas - sejam eles sacerdotes, diáconos, pastores, padres etc -, a extrapolação dessa ascendência sobre os fiéis deve ser enquadrada como abuso de autoridade - tipificado nos termos do art. 22, XII, da LC n? 64/1990, que veio a regulamentar o art. 14, § 9º, da CF - e ser sancionada como tal.  19. Nessa quadra, revelam-se passíveis, a princípio, de configuração do abuso de autoridade - considerada a liderança exercida e a possibilidade de interpretação ampla do conceito - os atos emanados de expoentes religiosos que subtraiam, do âmbito de incidência da norma, situações atentatórias aos bens jurídicos tutelados, a saber, a normalidade e a legitimidade das eleições e a liberdade de voto” (art. 19 da LC nº 64/1990)” (RO nº 5370-03/MG, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 21.8.2018; grifo nosso).  A bem da verdade, interessa recordar que a amplitude semântica da expressão em tela já havia sido esquadrinhada em um outro feito emblemático, a saber o REspe nº 287-84/PR, também relatado pelo Min. Henrique Neves (DJe de 7.3.2016), no qual se discutiu o possível encaixe da figura do cacique indígena como “autoridade”, para efeito do reconhecimento de atos reveladores de abuso de poder. Em tal ocasião, o Min. Luiz Fux, a par de tecer importantes lições acerca do multiculturalismo e do respeito à identidade das comunidades vulneráveis, indígenas em especial, atentou para o fato de que a aplicação de uma hermenêutica excludente poderia “subtrair do âmbito de incidência da norma situações potencialmente atentatórias aos bens jurídicos acobertados pelos comandos legais, i.e., liberdade do voto, normalidade e legitimidade das eleições”. Por ser assim, considerou que “não se pode descuidar dos desvios porventura ocasionados por essa interpretação estrita do conceito de autoridade”, tendo em vista que 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 59

“a exclusão a priori do cacique do âmbito dos destinatários do ilícito eleitoral pode gerar um cenário generalizado de fraude à lei, mediante a proliferação de práticas abusivas”. No caso assinalado, a verticalização da discussão resultou prejudicada pelo fato de que o voto vistor acompanhava, no mérito, o encaminhamento da relatoria. Sem embargo, acredito que as observações externadas por Sua Excelência, mutatis mutandis, encontram lugar na presente discussão. É que, em minha compreensão, a discussão sobre o alcance do termo “autoridade” tende a encobrir uma questão subjacente e não menos fundamental para a disciplina eleitoral, relacionada com o grau de eficácia conferido ao denominado “princípio da proteção das eleições”, que, conforme a doutrina, constitui o “centro da preocupação” da organização democrática. Essa a expressão utilizada pelo prof. Guilherme de Salles Gonçalves, que afiança que a proteção à fidedignidade e à legitimidade dos pleitos, em função de sua prevalência, figura como o “vetor hermenêutico essencial de toda a atividade normativa, administrativa e jurisdicional circunscrita ao Direito Eleitoral” (GONÇALVES, Guilherme de Salles. In: GONÇALVES, Guilherme de Salles; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; STRAPAZZON, Carlos Luiz (coords.). Direito Eleitoral contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 213-215; grifo nosso). Isso posto, forçoso refutar a impressão – algures levantada – de que a proposta em debate ensejaria indevida invasão de espaço reservado ao Poder Legislativo, inclusive com a criação de nova hipótese de inelegibilidade pela via jurisdicional. Sendo inegável a existência de lei expressa a proscrever o abuso de poder de autoridade, a discussão levantada queda desde logo situada na descoberta do seu autêntico alcance, habitando, portanto, a seara legítima do labor hermenêutico. Cabe lembrar, para que não pairem dúvidas, que a interpretação jurídica não é senão a tarefa de atribuir significado a um texto normativo, muito em função do fato de que as expressões linguísticas, mais das vezes, abarcam mais de um sentido possível. Nesse norte, calha resgatar as sempre valiosas lições do prof. Eduardo García Máynez: “Todo preceito jurídico encerra um sentido. Este, porém, nem sempre se encontra manifestado com clareza. Se a expressão é verbal ou escrita, pode ocorrer que os vocábulos possuam acepções múltiplas, o que a construção seja defeituosa e torne difícil a inteligência da frase. Em tal hipótese, o intérprete vê-se obrigado a desentranhar o significado da mesma. O conjunto de procedimentos destinados ao desempenho dessa tarefa constitui a técnica interpretativa. O trabalho mencionado representa um esforço prévio, relativamente ao ato pelo qual as regras do direito resultam aplicadas nos casos concretos” (GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Introducción al estudio del Derecho. 53. ed. Ciudad de México: Porrúa, 2002; tradução própria). 60 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Ainda a propósito, na linha do que propugnam Helio Maldonado e Ricarlos Cunha, a própria “indeterminabilidade semântica” do conceito de abuso de poder enseja, como consequência natural, o surgimento de hard cases em princípio situados fora do seu âmbito de conformação. Nesses casos, pese a incidência manifesta de “um incremento sobre o ônus argumentativo do intérprete”, a atividade hermenêutica encontra um caminho legítimo, sempre que logre “explicitar razões compatíveis com o controle público da linguagem” que autorizem o reconhecimento de abuso de poder, em ordem a prestigiar o princípio da legalidade sem comprometer, cabalmente, a realização substancial da norma constitucional que exige a realização de eleições legítimas (MALDONADO, Helio David Amorim; CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano. Abuso de poder e seu reflexo na normalidade do pleito: da permanente necessidade de retorno ao mundo dos eventos para a revelação de seu significado pela judicialização do processo eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura. Tratado de Direito Eleitoral. Tomo 7: Abuso de poder e perda de mandato. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 214). Pois bem. No voto apresentado, trouxe à colação posições doutrinárias que assinalam a insuficiência do critério literal para a resolução da celeuma discutida. Não obstante, forçoso admitir que, mesmo por esse método, a expressão destacada engloba, sem qualquer dificuldade, os ministros religiosos em geral. Veja-se, de início, a doutrina de Guy Hermet, que define a autoridade como “a condição ascendente exercida pelo detentor de um qualquer poder, que leva aqueles a quem se dirige a reconhecer uma superioridade que justifique o seu papel de comando ou de orientação” (HERMET, Guy. Autoridade. In: HERMET, Guy; BADIE, Bertrand; BIRNBAUM, Pierre; BRAUD, Philippe. Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas. Lisboa: Escolar Editora, 2014, p. 31). Em fórmula econômica, Anthony Giddens e Philip Sutton trilham caminho semelhante, para definir a autoridade como “poder legítimo exercido por uma pessoa ou grupo sobre outros” (GIDDENS, Anthony; SUTTON, Philip W. Conceitos essenciais da sociologia. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp Digital, 2017, p. 301). No particular, agrega o professor José Adelino Maltez que a autoridade adentra uma relação social quando “[...] o emissor da palavra já não está no mesmo plano do receptor\", isto é, quando o emitente do discurso, “falando de um sítio superior”, faz efetivo uso da “posição onde se concentra o poder”. Dentro dessa visão, o decano do Instituto de Ciência Política da Universidade de Lisboa sustenta que “na fase da autoridade, já não se utiliza apenas a arte de convencer pelo argumento, eliminando-se da interação comunicativa os traços básicos da igualdade” (MALTEZ, José Adelino. Manuel de Ciência Política. Teoria Geral da República. Lisboa: ISCSP, 2018, p. 249). Em visão consentânea, Raymond Boudon e François Bourricaud enunciam a autoridade como um atributo próprio das relações de confiança, em função do qual uma pessoa ou instituição logra emitir conselhos, sugestões ou comandos 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 61

tendencialmente expostos a um baixo nível de hostilidade ou resistência (BOUDON, Raymond; BOURRICAUD, François. A Critical Dictionary of Sociology. London: Routeledge, 1989, p. 38; tradução própria). Cuida-se, como se repara, de um conceito demasiado fluido e abarcador, como bem esclarece Mario Stoppino, quando indica que o termo autoridade alude a uma espécie de “poder estável, continuativo no tempo, a que os subordinados prestam, dentro de certos limites, uma obediência incondicional”. Segundo o teórico italiano, a autoridade consiste em “um dos fenômenos sociais mais difusos”, presente em “praticamente todas as relações de poder mais duradouras”, figurando como um de seus exemplos mais emblemáticos, precisamente, “o poder do chefe de uma igreja sobre os fiéis” (STOPPINO, Mario. Autoridade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol. 1. 13. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 89). Em última análise, portanto, não há negar que, na quadra das interações humanos, designa-se por autoridade: “Qualquer poder exercido sobre um homem ou grupo humano por um outro homem ou grupo. O termo é bastante genérico e não se refere somente ao poder político. Ademais da ‘autoridade do Estado’, existe a ‘autoridade dos partidos políticos’ e a ‘autoridade da Igreja’, ou também a ‘autoridade científica’, à qual se atribui, por exemplo, o predomínio provisional de uma determinada doutrina” (ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofía. 2. ed. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 116; tradução própria; sem grifos no original). Acresço, por necessário, que a inteligência da autoridade como fator distinto do poder político encontra um eco crescente na doutrina do direito. Dentro dessa perspectiva, para além dos autores já citados no voto apresentado, trago, nesta oportunidade, a abalizada doutrina do eminente professor José Jairo Gomes, que, na edição mais recente de sua prestigiada obra, a despeito de reconhecer o tratamento coincidente vigente nos tribunais, preconiza que: “[...] é certo que o ilícito eleitoral consubstanciado no abuso de poder de autoridade incide em outras dimensões da vida social, não se restringindo ao âmbito público-estatal, devendo, pois, o seu uso ser alargado para tornar mais efetiva a proteção à integridade e legitimidade do processo eleitoral” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 738; grifo nosso). Na mesma direção, confiram-se ainda os ensinamentos de Matheus Henrique Carvalho: 62 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

“Embora alguns autores prefiram não distinguir o abuso de poder político do abuso de poder de autoridade, é de fundamental relevância a sua distinção, uma vez que o abuso de poder político será sempre de natureza pública, voltada ao uso da máquina estatal e de suas influências no sistema eleitoral. De outro lado, o abuso de poder de autoridade poderá ter natureza pública, e, então, poderá ser sinônimo de abuso de poder político, mas também poderá ser de natureza privada, como no caso do abuso de poder religioso ou sindical, que nada mais são do que subespécies do abuso de poder de autoridade. O poder político, portanto, caracterizar-se-á pelo uso da máquina pública para fins específicos, visando à permanência ou ampliação do poder de um grupo, partido ou candidato. Já o abuso de poder de autoridade caracterizar- se-á pelo uso ou proveito de seu cargo ou função, de sua hierarquia e liderança perante os demais, com o objetivo de impor um pensamento ou pretensão sobre os demais membros da sociedade como um todo ou de um grupo específico desta. Essa denominada ‘autoridade’ poderá ser pública ou não, mas sempre em condição de superioridade, com a capacidade de tomar decisões que repercutam na vontade de seus subordinados, de forma que aquela defina os termos dentro dos quais se espera que outras unidades coletivas ajam” (CARVALHO, Matheus Henrique. O abuso de poder e a incidência do art. 74 da Lei das Eleições. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura. Tratado de Direito Eleitoral. Tomo 7: Abuso de poder e perda de mandato. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 371). Ainda nesse campo, louvo a diligência do eminente Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, preocupado em buscar, na justificativa do Projeto de Lei Complementar nº 21/1990 – as origens do termo “autoridade” utilizado pelo atual Estatuto das Inelegibilidades. Sem embargo, com a devida vênia, extraio do seu achado uma conclusão divergente. Na visão de Sua Excelência, a expressão “autoridade” remeteria, exclusivamente, à autoridade política pelo fato de que o relator do projeto, o então Senador Jarbas Passarinho, traça como seu objetivo frenar “o poder de império dos controladores do dinheiro público” e, ainda, “a influência do comando sobre os comandados”. Em minha compreensão, se o primeiro aspecto deixa evidente que a autoridade política participa do sentido da autoridade em geral, o segundo desiderato sinaliza a possibilidade de abertura, designadamente porque, na quadra dos Estados democráticos, soa incongruente e inusual referir-se à relação entre governo e sociedade sob a forma do comando. Como cediço, na seara política o comando – designado como mecanismo de controle pleno sobre o comportamento das pessoas – pertence ao léxico do passado, tendo ficado obsoleto desde o advento dos ares democráticos, quando o esquema 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 63

de governação das sociedades substitui a figura do “citadino/súdito” pela figura do “citadino/cidadão” (MONDAINI, Marco. O respeito ao direito dos indivíduos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY; Carla Bassanezi (orgs.). História da cidadania. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 116). Isso posto, ressai improvável, em meu sentir, a associação divisada por Sua Excelência, tendo em vista não apenas a patente impropriedade da colocação, mas, em adição, o seu caráter insólito, mormente quando se tem em conta tratar-se de documento produzido no pináculo da retomada democrática, tempo em que a ideia do povo como única fonte de comando esteve, possivelmente, mais em voga do que nunca. Nesse panorama, tendo a acreditar que a expressão em comento – “influência do comando sobre os comandados” – reveste-se de um sentido mais geral, a situar o poder como ele realmente é, ou seja, como uma “possibilidade de eficazmente traçar a conduta alheia” (CAETANO, Marcello. Manual de Ciência Política e Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2003, p. 5), como um “choque produtor de obediência” (ANDRADE SÁNCHEZ, Eduardo. Introdución a la Ciencia Política. Ciudad de México: Oxford Press, 2013, p. 44) ou como uma “participação condicionante em processos decisórios” (LASSWELL, Harold D.; KAPLAN, Abraham. Poder e sociedade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1979, p. 127) que, à falta de controle, grassa não apenas a partir do Estado mas, especialmente, de uma forma “selvagem” no seio da sociedade civil (FERRAJOLI, Luigi. Poderes salvajes. La crisis de la democracia constitucional. Madrid: Editorial Trotta, 2011, p. 23). De todo modo, ainda que se tencione situar a referência aos “comandados” dentro do espectro redutor – e enviesado – da governação política, o certo é que, em minha leitura, a própria justificativa do projeto legislativo transparece, em um outro aspecto, a intenção de resguardar a essência democrática dos pleitos contra a intervenção desviante do poder em geral. Noto, nesse norte, que as razões resgatadas resultam estruturadas de forma segmentada e independente, sinalizando a existência cinco finalidades distintas visadas pelo dispositivo gestado, que prima pelo traçado de “limites éticos” no que concerne, não somente ao “poder de império dos controladores de dinheiro público” (poder político), ao “uso indevido dos meios de comunicação de massas” (poder midiático) e aos “efeitos espúrios do poder econômico” (poder financeiro), mas ainda à já comentada “influência do comando sobre os comandados” e, o que é mais importante, “ao exercício do poder” sem qualquer especificação. Para que fique claro, são estes, textualmente, os freios visados pela norma investigada: a) exercício do poder; b) influência do comando sobre os comandados; c) poder de império dos controladores de dinheiro público; d) uso indevido dos meios de comunicação de massa; e e) efeitos espúrios do poder econômico por parte dos que postulam funções eletivos e o exercício da administração pública. 64 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Em suma, com o respeito devido, em meu juízo o recurso à genealogia da norma resolve a questão jurídica versada em um sentido diverso do que propõe o eminente Ministro vistor, tendo em vista que aporta elementos que animam, em muitos sentidos, a perspectiva que acolho. Como resultado, não há como excluir os ministros religiosos do conceito investigado, haja vista ser conceitualmente irreprochável a afirmação de que “tem autoridade todo sujeito capaz de conferir eficácia moral a suas determinações de vontade” (BORJA, Rodrigo. Enciclopedia de la Política. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 58; tradução própria; grifo nosso). Em definitivo, a autoridade parece ser, a rigor, um conceito complexo que engloba, como argumenta Hannes Gissurarson, um modo de expressão “de jure” (autoridade do Estado) que não exclui uma faceta “de facto” (autoridade social) (GISSURARSON, Hannes H. Autoridade. In: OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (eds.). Dicionário do Pensamento Social do século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 38). Como se não bastasse, ressalto que a leitura que proponho encontra suporte seguro, também, em métodos adicionais de interpretação. Nessa esteira, abordo o tema versado pelo prisma sistemático que, segundo Erick Wilson Pereira, ostenta proeminência na dissolução das questões eleitorais, na medida em que propicia “analisar a essência” além da “mera existência”, levando à “exata visualização do sistema normativo” como forma de garantir a prevalência do direito coletivo em detrimento do direito individual” (PEREIRA, Erick Wilson. Direito Eleitoral: interpretação e aplicação das normas constitucionais-eleitorais. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 88-90). Assim como ensinam Corona Nakamura e Hilda Villanueva: “O critério de interpretação sistemático é aquele que justifica atribuir a uma disposição legal o significado sugerido (ou não impedido) pelo contexto de que forma parte, já que o direito é um sistema e, como tal, pressupõe-se coerente e ordenado” (CORONA NAKAMURA, Luis Antonio; VILLANUEVA NOMELÍ, Hilda. La argumentación judicial electoral interpretativa de la Sala Regional del Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación de la Primera Circunscripcipon plurinominal: caso Zapopan. In: CORONA NAKAMURA, Luis Antonio; MIRANDA CAMARENA, Ádrian Joaquín. La argumentación jurídica en el Derecho Electoral. Guadalajara: Universidad de Guadalajara, 2014, p. 165; tradução própria; grifo nosso). Na trilha desse raciocínio, o direito não pode ser visto como um “mero agregado de normas”, mas como uma estrutura coesa dentro da qual os componentes devem conviver harmonicamente, em estreita conexão (ARÉVALO GUTIERREZ, Alfonso. Fuentes del Derecho Electoral. In: PASCUA MATEO, Fabio. Estado Democrático y elecciones libres: cuestiones fundamentales de Derecho Electoral. Madrid: Civitas, 2010, p. 205). 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 65

Nesse panorama, a concepção abrangente do termo autoridade é a única capaz de equacionar o arranjo do art. 22 da Lei Complementar 64/90 com o modelo constitucional de proteção das eleições (art. 14, § 9º, CRFB), haja vista que a interpretação estrita, no limite, traz como consequência o reconhecimento de que existiriam formas de abuso de poder toleradas pela Constituição. Cuida-se, obviamente, de um olhar equivocado: a uma, porque um Estado qualificado como democrático não pode prescindir da lisura de seus pleitos; a duas, porque o pilar axiomático constitucional determina que qualquer tentativa de macular a legitimidade das eleições atenta contra o Estatuto Político, visto que toda condescendência com o excesso de poder viola em seu âmago os princípios fundamentais que sustentam o edifício da cidadania (BIM, Eduardo Fortunato. O polimorfismo do abuso de poder no processo eleitoral: o mito de Proteu. Revista de Julgados do TRE-RS, v. 8, n. 17, jul./dez. 2003, p. 50; grifo nosso). Voltando a registrar que o direito é de ser visto como um sistema coerente, soa inconcebível sustentar que o constituinte, ao exigir a legitimidade no processo de designação dos representantes políticos, tenha pretendido excluir da disputa os excessos de poder em apenas uma ou outra forma, admitindo, serenamente, a violação da liberdade de sufrágio ou a quebra da igualdade de oportunidades entre os candidatos quando concretizadas a partir de outras fontes (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 271). Por outro lado, é sabido que o método teleológico ressai prestigiado pelo ordenamento brasileiro, explícito em dispor que “na aplicação da lei eleitoral o juiz atenderá sempre aos fins e resultados a que ela se dirige, abstendo-se de pronunciar nulidades sem demonstração de prejuízo” (art. 219 do Código Eleitoral). A técnica em questão tem por objeto cumprir a missão fixada pelo legislador e, nesse sentido, busca ver concretizado “o propósito geral para o qual a norma foi elaborada” (ANDRADE SÁNCHEZ, Eduardo. Derecho Electoral. Ciudad de México: Oxford Press, 2010, p. 18; tradução própria). Dito a partir de outros termos, o critério funcional tem como propósito estabelecer o significado de uma norma, tomando como referência os seus fins, partindo do princípio de que o Direito é, por definição, uma ordem intencional e que, portanto, sempre deve ser compreendido como um instrumento que persegue determinados objetivos (ARENAS BATIS, Carlos Emilio. Marco teórico del Derecho Electoral. In: TRIBUNAL ELECTORAL DEL PODER JUDICIAL DE LA FEDERACIÓN. Apuntes de Derecho Electoral. Una contribución institucional para el conocimiento de la ley como valor fundamental de la democracia. Ciudad de México: TEPJF, 2000, p. 93). Nesse diapasão, no processo de extração do sentido de um dispositivo eleitoral de interpretação dúbia, não há negar que os mais altos valores democráticos hão de jogar um papel primordial. Daí a ideia, anteriormente lançada, de que na quadra das democracias autênticas não existe mandato legítimo à margem do respeito à liberdade dos eleitores ou da igualdade de oportunidades entre os concorrentes. 66 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Da forma como expõe, dentre muitos outros, o professor Celso Ribeiro Bastos, “no mundo moderno as eleições obedecem a alguns princípios gerais cuja ausência pode descaracterizar o processo como de natureza democrática”. Entre eles figuram, conforme o autor, a paridade entre os adversários e a liberdade dos votantes, a qual, em suas palavras, “significa que nem aos particulares nem ao Estado é lícito exercer pressões sobre o eleitor no sentido de determinar o conteúdo do seu voto” (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 5. ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2002, p. 241 e 243; grifo nosso). Por esse prisma, é cediço que o princípio da legitimidade e da normalidade das eleições veicula um: [...] mandamento constitucional visando à higidez do prélio eleitoral. Uma eleição normal e legítima será aquela na qual a contenda fica imune de vícios, de possíveis fraudes e, consequentemente, a escolha da maioria da população fez-se representar por meio do voto. O escrutínio normal e legítimo é aquele no qual candidatos, partidos, coligações e demais atores do jogo eleitoral respeitam todas as regras e procedimentos legais, e no qual há busca para garantir a todos os candidatos a equiparação de armas e a igualdade de oportunidades, para que, assim, o eleitor possa fazer a melhor escolha (RAIS, Diogo; FALCÃO, Daniel; GIACHETTA, André Zonaro; MENEGUETTI, Pamela. Direito Eleitoral digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 29; grifo nosso). Assim como propugna Andreas Schedler, o conceito de eleições autênticas está preso à ideia de que os pressupostos axiológicos da competição política devem se manter presentes e hígidos, formando uma espécie de “corrente metafórica” que só permanece intacta quando preservados, em termos aceitáveis, todos os seus elos essenciais (SCHEDLER, Andreas. The politics of uncertainty: sustaining and subverting electoral authoritarianism. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 83). Quanto à identificação desses pressupostos, não há negar que o caráter democrático das eleições supõe a salvaguarda da liberdade para o exercício da opinião eleitoral e, ademais, a manutenção de um nível razoável de competitividade entre as forças antagônicas. Tais exigências conformam a essência da legitimidade eleitoral, cujos pontos nodais, paralelos a outros requisitos, encontram-se resumidos na proteção da igualdade de oportunidades entre os candidatos e na blindagem da liberdade de escolha política mediante a completa exclusão de todas as formas de expressão do abuso de poder político ou social (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 43). Com forte na premissa de que a incidência de excessos sistemáticos prejudica a identificação da vontade autêntica do povo, pontuo – com Steve Bickerstaff – que o requisito essencial para a validação de qualquer certame eleitoral reside na 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 67

certeza de que os resultados refletem, com acurácia, o livre desejo dos votantes (BICKERSTAFF, Steve. Contesting the Outcome of Elections. In: YOUNG, John Hardin (ed.). International Election Principles. Boston: American Bar Association, 2009, p. 312). Postas essas premissas, passo a comentar, sucintamente, algumas ressalvas direcionadas à compreensão por mim externada, tanto nos votos já proferidos como nos memoriais entregues a todos os pares pelo respeitável Instituto Brasileiro de Direito e Religião. Com o fim de evitar redundâncias, porém, opto, nessa porfia, por limitar as achegas específicas aos argumentos não expungidos nas linhas preliminares da presente exposição. 1. DO ABUSO DE PODER DE AUTORIDADE RELIGIOSA FRENTE A OUTRAS FORMAS DE ABUSO CARENTES DE ALUSÃO NORMATIVA ESPECÍFICA Na sessão do dia 25 de junho, o eminente Min. Alexandre de Moraes externou legítima preocupação quanto ao aparente destaque dado à figura do abuso de poder de autoridade religiosa, frente a outras formas de poder social não expressamente previstas em lei, como o “abuso de poder sindical” ou o “abuso de poder empresarial”. A esse respeito, esclareço que, na espécie, a compreensão divulgada guarda conexão direta com o suporte fático dos autos, sendo, portanto, reativa ao recorte específico trazido à apreciação deste Tribunal. Daí a inexistência de reflexões comparativas no voto emitido. Sem embargo, tendo a extrair de suas observações não um vício, mas uma virtude da proposta levantada, tendo em vista que, em meu sentir, o esquema de salvaguarda da integridade dos pleitos deve, em tese, absorver as ameaças ao real exercício da cidadania. Abro um parêntese, nesse ponto, apenas para lembrar que o legislador, ao conceber as técnicas processuais de combate ao abuso de poder, descurou de sua faceta mais antiga e evidente, silenciando sobre o antigo – e infelizmente resgatado – problema da violência nas competições eleitorais. De todo modo, compreendo que as premissas gerais – em especial a que se relaciona com o alcance semântico do termo “autoridade” – são, em princípio, aplicáveis a outros poderes sociais, na esteira das já comentadas lições do professor José Jairo Gomes. Tal como afirmado pelo filósofo britânico Bertrand Russel: “O poder tem muitas formas, tais como riqueza, armamentos, autoridade civil, influência sobre a opinião. Nenhuma dessas formas pode ser considerada subordinada a qualquer outra, e não há uma forma única das quais as outras derivem” (RUSSELL, Betrand. El poder. Barcelona: RBA Libros, 2013, p. 13; tradução própria). 68 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Dentro desse panorama, considero que a preservação da higidez das eleições exige a defesa contumaz da liberdade dos votantes e da paridade de armas entre os concorrentes, o que, por sua vez, conduz à inadmissão do recurso à autoridade como elemento de pressão. É de se ver, nesse diapasão, “que os fenômenos políticos são obscurecidos pela pseudo- simplificação que se alcança com qualquer concepção unitária do poder como sendo sempre e em toda parte o mesmo” (LASSWELL, Harold D.; KAPLAN, Abraham. Poder e sociedade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1979, p. 127). As formas de poder são múltiplas e independentes, e a sua aplicação ilegítima deve ser recusada pelos órgãos eleitorais, sempre que comprometam – em termos generalizados e significativos – os pilares que sustentam a estrutura básica das consultas eletivas. De todo modo, toca frisar que as formas de poder social, conquanto semelhantes em perspectiva geral, reservam entre si algumas peculiaridades que devem ser consideradas no momento de sua avaliação. Trata-se de reconhecer – com Philippe Braud – que “as relações de poder somente são corretamente compreendidas quando considerados os meandros do sistema em que se inserem”, tendo em vista que as interações sociais “não seriam inteligíveis se abstraídos os condicionamentos que as tecem” (BRAUD, Philippe. Poder. In: HERMET, Guy; BADIE, Bertrand; BRAUD, Philippe. Dicionário de Ciência Política e das Instituições Políticas. Lisboa: Escolar Editora, 2014, p. 236). É preciso, portanto, estar atento às especificidades das relações implicadas e, nesse caminho, cabe reconhecer que as trocas religiosas “criam substantivas oportunidades para o exercício da liderança moral, da influência e do poder” (AGOZINO, Adalberto. Ciencia Política y Sociología Electoral. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2000, p. 217), mormente em razão do fato de que, à diferença de outras manifestações da autoridade, as ideias religiosas comportam, por natureza, um “denso ingrediente normativo”, seja porque formulam mandamentos explícitos, seja porque pautam a compreensão da realidade segundo grades específicas de valoração (VILAS, Carlos María. El poder y la política: el contrapunto entre razones y emociones. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2013, p. 108). 2. DOS EFEITOS SOBRE A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS FIÉIS, DA PRESERVAÇÃO DO PLURALISMO, DA INEXISTÊNCIA DE UMA ABORDAGEM DISCRIMINATÓRIA E DA PERFEITA LEITURA DOS MODAIS DEÔNTICOS O voto apresentado assenta, com muita clareza, a legitimidade da persecução de interesses políticos por parte de grupos religiosos. Apenas sublinha a inflexão, óbvia aliás, de que a busca de votos, nesse segmento, como em outros, deve ser pautada pelo respeito à liberdade para o exercício de sufrágio, havendo, então, de prescindir dos mecanismos típicos de constrição, nomeadamente ameaças, coações ou admoestações. 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 69

Paralelamente, tem a intenção de sinalizar a importância de cautelas, igualmente manifestas, no sentido de evitar que as estruturas eclesiásticas sejam utilizadas em ordem a comprometer o equilíbrio global do certame, especialmente a partir da violação substancial e sistemática de proibições expressas no quadro regente da propaganda eleitoral e da contabilidade das campanhas. Posto o que precede, descabe depreender, das reflexões expostas, um efeito de desestímulo da participação política das comunidades religiosas, uma vez que essa, de acordo com o voto apresentado, ressai categoricamente validada, não sendo diminuída pelo apontamento de ressalvas que, por serem universalmente extrapoláveis a todos os competidores, não são discriminatórias, não ofendem a lógica deôntica e, como mais, afiguram-se justas e equitativas. 3. DA INEXISTÊNCIA DE CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA A CONSTATAÇÃO DE EVENTUAIS ABUSOS A ausência de critérios específicos para a aferição de ilícitos é, como se sabe, algo inerente à disciplina normativa do abuso de poder. Com efeito, o enfrentamento judicial das hipóteses de cassação de mandatos requer, por natureza, a aplicação de uma “técnica de apreciação casuística” (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 348), haja vista que “o conceito de abuso de poder é indeterminado, aberto e fluido”, fazendo com que sua delimitação semântica em regra só possa ser feita na prática, diante das circunstâncias que o evento apresentar” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, p. 729). Vê-se, nesse quadro, que a proposta não enseja, por si, nenhum câmbio significativo no sistema de verificação de abusos, que, de todo modo, seguiria pautado pela análise tópica da gravidade das circunstâncias, sempre criteriosa e premida, a um lado, pela necessidade de fundamentação exaustiva e, a outro, pela certeza de que os casos limítrofes tendem a atrair a absolvição, em nome da máxima in dubio pro suffragio. No particular, faço questão de reiterar um aspecto já ressaltado no desenvolvimento de meu voto, que o reconhecimento do abuso em discussão não admite, por nenhum ângulo, a banalização, sendo, pelo contrário, reservado para casos extremos e excepcionais, reveladores de comportamentos que, muito além da dúvida razoável, tenham comprometido em termos agudos e sistemáticos a paridade de oportunidades entre os candidatos ou a liberdade para o exercício da opinião eleitoral. Em seu sentido geral, a proposta apresentada não estimula nem autoriza o policiamento das práticas religiosas, tampouco o cerceamento da liberdade de expressão nessa matéria específica. 70 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

4. DA AUSÊNCIA DE PREJUÍZOS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM MATÉRIA RELIGIOSA Por fim, reafirmo que meu voto contempla uma vasta fundamentação em favor da legitimidade da intersecção entre a religião e a política, apenas reconhecendo que, sob o pálio do Estado constitucional, inexistem direitos isentos de limites. Ditos limites, no entanto, têm o sentido de conferir eficácia à razão substancial do ordenamento eleitoral, em especial para a proteção da liberdade para o exercício do sufrágio e para a manutenção do nivelamento razoável das condições do certame. Insisto, para que quede claro: as igrejas têm legitimidade para almejar espaços nas instâncias representativas do Estado, seja nos parlamentos ou nos gabinetes do Poder Executivo. Suas autoridades, portanto, não estão amordaçadas – e nem se pretende que passem a estar. Fora do arco das proibições legais – que impedem, por exemplo, o proselitismo eleitoral no interior dos templos (art. 37, § 4º da Lei das Eleições) e a concessão de suporte financeiro a campanhas (art. 24, VIII da Lei das Eleições), o falar e o agir são livres, bastando que sejam respeitados os limites mais intuitivos do jogo eleitoral. O que proponho, em última instância, não é impor às autoridades religiosas limitações não aplicáveis aos outros atores políticos, mas o contrário: levo a intenção de ver reconhecida a lógica – comezinha, em minha opinião – de que excessos que deponham contra a liberdade dos eleitores ou contra o balanço da disputa, independentemente da fonte, não encontram abrigadouro no direito eleitoral. Não há, repito, qualquer sinal discriminatório nesta minha visão. Recorro, por medida didática, a lição doutrinária a pregar que “a legitimidade eleitoral convive em termos relativamente tranquilos com a aplicação de determinados recursos de influência”, haja vista que “o ambiente em que se desenvolve a competição pelo voto não pode deixar de ser visto como uma arena de poder” (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 127). Nesse diapasão, o problema do abuso de poder não existe ex ante, podendo surgir, ou não, a partir das circunstâncias de um caso concreto. Exposto com outras palavras, nesse ambiente, em geral, será: “[...] uma questão de origem, forma ou intensidade o que permite distinguir entre a interferência (tolerada) e o abuso (intolerado) do fenômeno em causa. Em nosso sentir, o limite da tolerância jurídica reside na preservação da legitimidade eleitoral nuclear, de sorte que o limiar permissivo é de ser considerado transposto somente quando resulte alquebrada a liberdade para a emissão do voto ou, alternativamente, quando seja contaminado pela falta de equidade o ambiente no qual concorrem os sujeitos antagonistas que buscam canalizar a aclamação política popular” (ALVIM, 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 71

Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 128). Repare-se que, uma vez assentado o legítimo interesse dos grupos religiosos nos assuntos de Estado, o abuso de poder de autoridades eclesiásticas tangencia o problema da origem, resultando centrado, especialmente, no seu modo de exercício. Não se trata, pois, de censurar a priori a participação das igrejas nos processos políticos, mas de ressalvar o detalhe de que tal intervenção tem de ser levada a termo de modo compatível com as máximas da liberdade e da igualdade que, em definitivo, conferem sentido ao viver compartilhado nas sociedades democráticas. Como assim, assim como pondera o professor Juan Antonio García Amado, a liberdade de expressão de ideias necessita de limites, uma vez que deve ser conciliada com um plexo mais amplo de garantias fundamentais. A liberdade de expressão religiosa segue esse princípio para todos os efeitos, descabendo extrair, de sua importância, a sujeição a um regime ilimitado ou excepcional (GARCÍA AMADO, Juan Antonio. Libertad de expresión y religiones. In: GARCÍA CONLLEDO, Miguel Díaz et al. Libertad de expresión y sentimientos religiosos. Curitiba: Juruá, 2012, p. 15-16). Senhor Presidente, Senhores Ministros: ao fim e ao cabo, as questões discutidas são, como visto, demasiado complexas e atraem percepções radicalmente distintas acerca da preservação da legitimidade eleitoral. Não obstante, em virtude desse conjunto de argumentos, reafirmo, respeitosamente, o sentido do meu voto original. 72 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (MINISTRO DO STF E DO TSE) STF - ACÓRDÃO - RECURSO EXTRAORDINÁRIO - N. 848.826/2021/CE TEMA COMPETÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL PARA O JULGAMENTO DAS CONTAS DE GOVERNO E DE GESTÃO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 848.826 - CEARÁ EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. PARECER PRÉVIO DO TRIBUNAL DE CONTAS. EFICÁCIA SUJEITA AO CRIVO PARLAMENTAR. COMPETÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL PARA O JULGAMENTO DAS CONTAS DE GOVERNO E DE GESTÃO. LEI COMPLEMENTAR 64/1990, ALTERADA PELA LEI COMPLEMENTAR 135/2010. INELEGIBILIDADE. DECISÃO IRRECORRÍVEL. ATRIBUIÇÃO DO LEGISLATIVO LOCAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. I - Compete à Câmara Municipal o julgamento das contas do chefe do Poder Executivo municipal, com o auxílio dos Tribunais de Contas, que emitirão parecer prévio, cuja eficácia impositiva subsiste e somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da casa legislativa (CF, art. 31, § 2º). II - O Constituinte de 1988 optou por atribuir, indistintamente, o julgamento de todas as contas de responsabilidade dos prefeitos municipais aos vereadores, em respeito à relação de equilíbrio que deve existir entre os Poderes da República (“checks and balances”). III - A Constituição Federal revela que o órgão competente para lavrar a decisão irrecorrível a que faz referência o art. 1°, I, g, da LC 64/1990, dada pela LC 135/ 2010, é a Câmara Municipal, e não o Tribunal de Contas. IV - Tese adotada pelo Plenário da Corte: “Para fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 73

de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores”. V - Recurso extraordinário conhecido e provido. VOTO O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski: Trata-se de recurso extraordinário representativo da controvérsia, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, cujo objeto é a reforma de acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, que entendeu ser possível examinar, no registro de candidatura, a inelegibilidade prevista na alínea g do inciso I do art. 1° da Lei Complementar 64/1990, a partir de decisão irrecorrível dos Tribunais de Contas que rejeitam as contas de Prefeito que age como ordenador de despesas, diante da ressalva constante no final do referido dispositivo. A Corte Eleitoral decidiu a questão posta nos seguintes termos: “ELEIÇÕES 2014. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO FEDERAL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO. REJEIÇÃO DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS. PREFEITO. ORDENADOR DE DESPESAS. INELEGIBILIDADE. ALÍNEA G. CARACTERIZAÇÃO. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Conforme decidido no julgamento do Recurso Ordinário n° 401-37/CE, referente a registro de candidatura para o pleito de 2014, a inelegibilidade prevista na alínea g do inciso I do art. 1º da Lei Complementar n° 64/90 pode ser examinada a partir de decisão irrecorrível dos tribunais de contas que rejeitam as contas do prefeito que age como ordenador de despesas, diante da ressalva final da alínea g do inciso I do art. 1º da LC n° 64/90. 2. O descumprimento da lei de licitações constitui irregularidade insanável que configura ato doloso de improbidade administrativa. Precedentes. 3. Rejeitadas as contas, a Justiça Eleitoral não só pode como deve proceder ao enquadramento jurídico das irregularidades como sanáveis ou insanáveis, para incidência da inelegibilidade da alínea g. 4. Agravo regimental desprovido\" (RO 0000879-45.2014.6.06.0000/CE, Rel. Min. Henrique Neves). O julgado foi mantido nos julgamentos do agravo regimental e dos embargos de declaração em agravo regimental. A repercussão geral da controvérsia foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em acórdão, cuja ementa transcrevo a seguir: 74 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

“DIREITOCONSTITUCIONALEELEITORAL.RECURSOEXTRAORDINÁRIO.JULGAMENTO DAS CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO COMO ORDENADOR DE DESPESAS. COMPETÊNCIA: PODER LEGISLATIVO OU TRIBUNAL DE CONTAS. REPERCUSSÃO GERAL. 1. Inadmissão do recurso no que diz respeito às alegações de violação ao direito de petição, inafastabilidade do controle judicial, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e fundamentação das decisões judiciais (arts. 5º, XXXIV, a, XXXV, LIV e LV, e 93, IX, da CF/1988). Precedentes: AI 791.292 QO-RG e ARE 748.371 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes. 2. Constitui questão constitucional com repercussão geral a definição do órgão competente –Poder Legislativo ou Tribunal de Contas –para julgar as contas de Chefe do Poder Executivo que age na qualidade de ordenador de despesas, à luz dos arts. 31, § 2º; 71, I; e 75, todos da Constituição. 3. Repercussão geral reconhecida”. Portanto, a questão debatida nos autos consiste em saber qual seria o órgão competente para o julgamento das contas dos prefeitos municipais, a saber, os Tribunais de Contas ou as Câmaras Municipais. Adianto que, após detida análise dos autos, pedindo vênia aos Ministros que votaram pela negativa de provimento, cheguei à conclusão de que o recurso merece prosperar, mantendo, assim, a posição que defendi quando fui julgador no Tribunal Superior Eleitoral. Naquela Corte Especializada, enunciei, no REsp 29.681/MG, que \"compete ao Poder Legislativo Municipal julgar as contas do chefe do Poder Executivo, atuando o Tribunal de Contas como órgão auxiliar, mediante emissão de parecer prévio. Parecer, contudo, que ‘só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal’ (art. 31, § 2°, da Constituição)\". Observo, ademais, que tal compreensão foi mantida hígida pelo TSE até recentemente, como pode se ver no trecho do voto condutor da Ministra Laurita Vaz, relatora do Resp 65.895 AgR/RN, ao consignar que: \"[...] a competência para o julgamento das contas prestadas por prefeito, inclusive no que tange às de gestão relativas a atos de ordenação de despesas, é da respectiva Câmara Municipal, cabendo aos Tribunais de Contas tão somente a função de emitir parecer prévio, conforme o disposto no art. 31 da Carta Magna\". O entendimento ficou consolidado em acórdão assim ementado: 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 75

“RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. PREFEITO. REJEIÇÃO DE CONTAS ESTADUAL. CAUSA DE INELEGIBILIDADE. JULGAMENTO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. COMPETÊNCIA DA CÂMARA DE VEREADORES. PRECEDENTES. AGRAVOS REGIMENTAIS DESPROVIDOS. 1. À exceção das contas relativas à aplicação de recursos oriundos de convênios, a competência para o julgamento das contas prestadas por prefeito, inclusive no que tange às de gestão relativas a atos de ordenação de despesas, é da respectiva Câmara Municipal, cabendo aos Tribunais de Contas tão somente a função de emitir parecer prévio, conforme o disposto no art. 31 da Constituição Federal. 2. Agravos regimentais desprovidos”. Desse modo, anoto que conservo o entendimento do TSE, segundo o qual o órgão competente para julgar as contas dos prefeitos municipais - tanto as de natureza política quanto as contas de gestão - é a Câmara Municipal, órgão que representa a soberania popular, em particular o contribuinte, que tem toda a legitimidade para examinar as contas municipais, nos termos do art. 31, § 3° da CF. Entendo que não se mostra apenas recomendável, mas, de todo necessário, especialmente no Estado Democrático de Direito, privilegiar a soberania popular. Digo isso porque são os vereadores que evidentemente representam o povo, os cidadãos, os munícipes, praticando atos em nome destes, nos termos do art. 1°, parágrafo único, da Constituição Federal, o qual prevê que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. Portanto, são os edis que têm, por força da própria Constituição, o direito de julgar todas as contas do prefeito, sem nenhuma distinção. Observo, também, que a dicção do art. 31, § 1°, da Carta Magna, é muito clara no sentido de estabelecer que cabe ao parlamento municipal, com o auxílio do Tribunal de Contas, o controle externo das contas municipais, verbis: \"Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei. § 1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver\". No mesmo sentido, o art. 71 da Constituição Federal, dispõe que “o controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União [...]”. 76 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Portanto, estou certo de que não é possível obter o reforço de outro dispositivo constitucional para alterar o transparente entendimento que decorre dos dispositivos supratranscritos. O “auxílio” a que se refere o texto constitucional deve ser entendido como ajuda, assistência ou amparo fornecido pelo órgão técnico administrativo ao órgão legislativo. Nesse sentido: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 17, III, E 172, VI, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO, QUE PREVÊEM A DECRETAÇÃO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO EM MUNICÍPIO, PROPOSTA PELO TRIBUNAL DE CONTAS. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 34, VII, d; 36; 70, XI E 75, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A tomada de contas do prefeito Municipal, objeto principal do controle externo, é exercido pela Câmara Municipal com o auxílio do Tribunal de Contas, órgão a que cumpre emitir parecer prévio, no qual serão apontadas eventuais irregularidades encontradas e indicadas as providências de ordem corretiva consideradas aplicáveis ao caso pela referida casa legislativa, entre as quais a intervenção. Tratando-se, nessa última hipótese, de medida que implica séria interferência na autonomia municipal e grave restrição ao exercício do mandato do Prefeito, não pode ser aplicada sem rigorosa observância do princípio do due process of law, razão pela qual o parecer opinativo do Tribunal de Contas será precedido de interpelação do Prefeito, cabendo à Câmara de Vereadores apreciá-lo e, se for o caso, representar ao Governador do Estado pela efetivação da medida interventiva. Relevância da questão, concorrendo o pressuposto da conveniência da medida requerida. Cautelar deferida, para suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados” (ADI 614 MC/MA, Rel. Min. Ilmar Galvão; grifei). Ademais, observo que não há propriamente um julgamento de contas pelo órgão técnico. O relevante papel dos tribunais de contas restringe-se apenas a produzir parecer prévio à decisão do órgão legislativo. Nesse sentido, reproduzo a disposição constante no § 2° do art. 31, da Constituição Federal: \"Art. 31. [...] § 2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal\". 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 77

Transcrevo, ainda, elucidativo trecho, do ponto de vista do professor José Afonso da Silva, sobre a natureza desse parecer: \"[...] não tem apenas o valor de uma opinião que pode ser aceita ou não - o parecer do Ministério Público. Não é, pois, um parecer no sentido técnico de opinião abalizada, mas não-impositiva. Ao contrário, ele vale e tem a eficácia de uma decisão impositiva. Sua eficácia pode, porém, ser desfeita se dois terços dos membros da Câmara Municipal votarem contra ele. Só assim não prevalecerá\" (In Comentário contextual à Constituição. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 317; grifei). Isso significa que a manifestação do Tribunal de Contas é um parecer qualificado, que subsiste até ser derrubado por uma maioria de dois terços do parlamento. Nesse sentido, inclusive, é a lição de Lucas Rocha Furtado, para quem, “No caso das contas prestadas anualmente pelos prefeitos, todavia, o parecer prévio aprovado pelo Tribunal de Contas Estadual ou dos Municípios, conforme o caso, ‘só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal’. (CF, art. 31, §2º). Ou seja, os pareceres prévios emitidos pelo TCU e pelos TCEs, em relação às contas do Presidente da República e dos governadores, somente têm efetividade se forem aprovados (julgados pelo Congresso Nacional ou pelas assembleias legislativas, respectivamente. No caso de contas anuais de governo prestadas pelos prefeitos, o parecer emitido pelo Tribunal de Contas se torna efetivo, independentemente de ser confirmado pela câmara de vereadores. Esta, ao contrário, somente pode desconstituir o parecer aprovado pelo Tribunal de Contas por decisão de dois terços dos seus membros” (In Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 1142; grifei). Assim, a meu ver, o parecer do Tribunal de Contas apresenta uma na natureza sui generis, não constitui mera opinião, não é emitido salvo melhor juízo, pois prevalece até que seja neutralizado por maioria de dois terços da Câmara Municipal. Reitero, por oportuno, que, enquanto tal deliberação não é tomada, prevalece, para todos os efeitos, o parecer emitido pelo Tribunal de Contas. A nova Constituição deu grande relevo ao parecer do Tribunal de Contas. No entanto, sopesando valores, deu ênfase maior ao pronunciamento da Câmara Municipal. Prevalece ao final, destarte, a manifestação de quem detém poder para, de fato, exercer a fiscalização sobre as contas daquele que exerce o Poder Executivo local. Compete, pois, às Câmaras Municipais o direito de julgar todas as contas do prefeito, sem nenhuma distinção. A competência do órgão legislativo para o julgamento não é determinada pela natureza das contas, se de gestão ou de governo, mas pelo cargo 78 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

de quem as presta, no caso, o de Prefeito Municipal. Esta Corte já teve, inclusive, a oportunidade de destacar a referida competência no julgamento da ADI 3.715/TO, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Constituição do Estado do Tocantins. Emenda Constitucional n° 16/2006, que criou a possibilidade de recurso, dotado de efeito suspensivo, para o Plenário da Assembleia Legislativa, das decisões tomadas pelo Tribunal de Contas do Estado com base em sua competência de julgamento de contas (§5º do art. 33) e atribuiu à Assembleia Legislativa a competência para sustar não apenas os contratos, mas também as licitações e eventuais casos de dispensa e inexigibilidade de licitação (art. 19, inciso XXVIII, e art. 33, inciso IX e § 1º). 3. A Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados-membros. Precedentes. 4. No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) e a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88. Precedentes. 5. Na segunda hipótese, o exercício da competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo. Precedentes. 6. A Constituição Federal dispõe que apenas no caso de contratos o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional (art. 71, § 1º, CF/88). 7. Ação julgada procedente” (grifei). Nesse ponto, ressalto que a Lei da Ficha Limpa não alterou o entendimento constitucional sobre a matéria. E nem poderia. A inelegibilidade pela rejeição de contas não foi uma inovação da Lei Complementar 135/2010. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “Desde a Lei Complementar federal 64, de 18.5.90 (art. 1º, letra ‘g’), a consequência da rejeição, pelo Congresso, das contas do Chefe do Poder Executivo é a inelegibilidade deste para as eleições que se realizarem nos cinco anos seguintes à decisão” (In Curso de direito administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 835; grifos no original). A nova redação do art. 1°, I, g, da LC 64/1990, dada pela LC 135/ 2010, passou a ser a seguinte: “g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável  que configure ato doloso de 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 79

improbidade administrativa,  e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo  se esta houver sido suspensa ou anulada pelo  Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos  8 (oito)  anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II, do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição” (grifei). Ora, não se pode interpretar a referida lei apartada do texto constitucional, nem interpretar a Carta Magna à luz da Lei Complementar 64/1990. Assim, a referida Lei Complementar deve ser interpretada com base nos dispositivos constitucionais. A Constituição Federal de 1988, de maneira direta e sem rodeios, revela que o órgão competente para lavrar a decisão irrecorrível a que faz referência a Lei da Ficha Limpa é, sem risco de dúvidas, a Câmara Municipal, porque a decisão é do órgão legislativo, e não do Tribunal de Contas. Como se vê, a opção do constituinte foi a de destinar o julgamento de todas as contas à Câmara, em clara demonstração de respeito à relação de equilíbrio que deve necessariamente existir entre os Poderes da República, na sistemática de “checks and balances”. Não caberia, portanto, tal encargo aos técnicos dos Tribunais de Contas, que não são detentores de poder. O respeito às leis e à Constituição da República representam condição indispensável ao regular exercício da função fiscalizadora do Poder Legislativo, não podendo legitimar-se a inelegibilidade de candidato ou exercente do cargo de Prefeito Municipal por “decisão” de quem não tem competência para tanto. Nesse ponto, transcrevo trecho de lição de José Afonso da Silva: “A função de fiscalização, que surgira com o constitucionalismo e o Estado de Direito implantado com a Revolução francesa, sempre constituiu tarefa básica dos parlamentos e assembleias legislativas. No sistema de separação de poderes, cabe ao órgão legislativo criar as leis, por isso é da lógica do sistema que a ele também se impute a atribuição de fiscalizar seu cumprimento pelo Executivo, a que incumbe a função de administração. Por outro lado, no que tange ao aspecto específico que nos interessa aqui – o do controle da administração financeira e orçamentária – reserva-se ao Legislativo o poder financeiro, como uma de suas conquistas seculares, pela qual firmara mesmo sua autonomia, sendo, portanto, também de palmar evidência que a ele há de pertencer, em última análise, aquele controle, denominado controle externo, sem embargo de que se erija e se desenvolva, na Administração moderna, eficiente sistema de autocontrole – o chamado controle interno – de que é titular cada um dos Poderes onde ele atua (art. 70)” (In Curso de direito constitucional positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 723-724; grifos no original). 80 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

Percebe-se que o juiz natural das contas do prefeito sempre será a Câmara Municipal, prestigiando-se, portanto, a democracia, a soberania popular, a independência e a autonomia do órgão legislativo local. Destaco, entretanto, que o caráter puramente político das Câmaras Municipais é amenizado, justamente, pelo exame do parecer prévio das contas por parte dos Tribunais de Contas. Observo que há, no caso, um balanço, um mix, muito prudente que foi elaborado pelo constituinte de 88. Verifico que a distinção entre as contas políticas e as contas de gestão passou a ser feita pela Lei Complementar 135/2010. No entanto, percebo que houve um exacerbamento hermenêutico em relação aos seus dispositivos, de modo a atribuir-se aos Tribunais de Contas, indevidamente, força vinculante aos seus pareceres, em se tratando de contas de gestão. Isso porque um número enorme de candidatos ou representantes, notadamente Prefeitos, que vem crescendo de maneira exponencial, tornaram-se inelegíveis por um pronunciamento do Tribunal de Contas, órgão de natureza eminentemente administrativa, ainda sujeito à apreciação do órgão legislativo. Observo, ad argumentandum tantum, que a dicotomia nas contas seria, de certa forma, inócua, uma vez que, a partir da mudança da orientação jurisprudencial do TSE, os prefeitos deixaram paulatinamente de ser ordenadores de despesas, passando a gestão, por exemplo, para os secretários municipais, diretores de departamentos e outros servidores subalternos. Entendo, assim, não ser juridicamente relevante a distinção dos tipos de contas a serem prestadas pelos chefes do Poder Executivo municipal para efeitos de determinação da competência para julgamento destas. Ante o exposto e o mais que consta dos autos, dou provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão recorrido, a fim de que se defira o registro de candidatura do recorrente. Por fim, proponho que seja afirmada por esta Corte a seguinte tese de repercussão geral: “Para fins do artigo 1°, g, inciso I, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas dos prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores”. É como voto. 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 81

MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO: (MINISTRO DO STF E DO TSE) TSE - ACÓRDÃO - CONSULTA Nº 0600306-47.2019.6.00.0000/DF TEMA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA. TEMPO DE ANTENA E RECURSOS PARA CANDIDATAS E CANDIDATOS NEGROS DIREITO ELEITORAL. CONSULTA. RESERVA DE CANDIDATURAS, TEMPO DE ANTENA E RECURSOS PARA CANDIDATAS E CANDIDATOS NEGROS. CONHECIMENTO. QUESITOS 1, 2 E 4 RESPONDIDOS AFIRMATIVAMENTE. 1. Consulta a respeito da possibilidade de: (i) garantir às candidatas negras percentual dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas no montante de 50%, dada a distribuição demográfica brasileira; (ii) instituir reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos termos da cota de gênero prevista na Lei nº 9.504/1997; (iii) determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, desti- nando-se a estes no mínimo 30% do total do FEFC; e (iv) assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão pro- porcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%. 82 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

I. CONHECIMENTO DA CONSULTA 2. A consulente é autoridade com jurisdição federal e as indagações formuladas tratam de matéria afeta à legislação eleitoral e são dotadas de abstração e objetividade. Ademais, esta Corte já fixou que cabe à Justiça Eleitoral apreciar, no exercício de sua função consultiva, temáticas que digam respeito à garantia de igualdade material entre as c a n d i d a t u r a s . C o n s u l t a c o n h e c i d a . II. RACISMO, DESIGUALDADE RACIAL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 3. O racismo no Brasil é estrutural. Isso significa que, mais do que um problema individual, o racismo está inserido nas estruturas políticas, sociais e econômicas e no funcionamento das instituições, o que permite a reprodução e perpetuação da desigualdade de oportunidades da população negra. 4. A desigualdade racial é escancarada por diversas estatísticas, que demonstram que, em todos os campos, desde o acesso à educação até a segurança pública, negros são desfavorecidos e marginalizados. O Atlas da Violência de 2019 demonstrou que 75,5% de todas as pessoas assassinadas no Brasil eram negras. Esse dado é cruelmente ilustrado pelas mortes das crianças João Pedro Mattos, Ágatha Félix e Kauê Ribeiro dos Santos, que demonstram a importância do movimento social “Vidas negras importam”. 5. Como fenômeno intrinsecamente relacionado às relações de poder e dominação, o racismo se manifesta especialmente no âmbito político-eleitoral. Nas eleições gerais de 2018, embora 47,6% dos candidatos que concorreram fossem negros, entre os eleitos, estes representaram apenas 27,9%. Um dos principais fatores que afetam a viabilidade das candidaturas é o financiamento das campanhas. Quanto ao tema, verifica-se que, em 2018, houve efetivo incremento nos valores absolutos e relativos das receitas das candidatas mulheres por força das decisões do STF e do TSE. Enquanto em 2014 a receita média de campanha das mulheres representava cerca de 27,8% da dos homens, em 2018, tal receita representou 62,4%. No entanto, ao se analisar a intersecção entre gênero e raça, verifica-se que a política produziu efeitos secundários indesejáveis. Estudo da FGV Direito relativo à eleição para Câmara dos Deputados apontou que mulheres brancas candidatas receberam percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) proporcional às candidaturas (também de 18,1%). No entanto, candidatos negros continuaram a ser subfinanciados pelos partidos. Embora mulheres negras representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% dos recursos. Também os homens negros receberam dos partidos recursos (16,6%) desproporcionais em relação às candidaturas (26%). Apenas os homens brancos foram sobrefinanciados (58,5%) comparativamente ao percentual de candidatos (43,1%). 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 83

III. IGUALDADE, DIVERSIDADE E REPRESENTATIVIDADE 6. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças. A ordem constitucional não apenas rejeita todas as formas de preconceito e discriminação, mas também impõe ao Estado o dever de atuar positivamente no combate a esse tipo de desvio e na redução das desigualdades de fato. 7. Sob o prisma da igualdade, há um dever de integração dos negros em espaços de poder, noção que é potencializada no caso dos parlamentos. É que a representação de todos os diferentes grupos sociais no parlamento é essencial para o adequado funcionamento da democracia e para o aumento da legitimidade das decisões tomadas. Quando a representação política é excludente, afeta- se a capacidade de as decisões e políticas públicas refletirem as vontades e necessidades das minorias sub-representadas. Para além do impacto na agenda pública, o aumento da representatividade política negra tem o efeito positivo de desconstruir o papel de subalternidade atribuído ao negro no imaginário social e de naturalizar a negritude em espaços de poder. 8. O imperativo constitucional da igualdade e a noção de democracia participativa plural justificam a criação de ações afirmativas voltadas à população negra. No entanto, o campo de atuação para a efetivação do princípio da igualdade e o combate ao racismo não se limita às ações afirmativas. Se o racismo no Brasil é estrutural, é necessário atuar sobre o funcionamento das normas e instituições sociais, de modo a impedir que elas reproduzam e aprofundem a desigualdade racial. Um desses campos é a identificação de casos de discriminação indireta, em que normas pretensamente neutras produzem efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a grupos marginalizados, de modo a violar o princípio da i g u a l d a d e e m sua vertente material. IV. APRECIAÇÃO DAS INDAGAÇÕES FORMULADAS NA CONSULTA Quesito (i): Repartição entre as mulheres dos recursos financeiros e tempo de rádio e TV 9. O STF, na ADI nº 5.617, e o TSE, na Cta nº 0600252-18/DF, deram um passo decisivo no sentido do incremento da efetividade das cotas de gênero ao equiparar o percentual de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário e do FEFC a lhes serem destinados, bem como do tempo de rádio e TV, respeitando-se, em todo caso, o mínimo legal de 30%. Em 2018, o número de candidatas 84 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

eleitas para a Câmara dos Deputados cresceu 51% em relação à eleição de 2014, enquanto que, nas assembleias legislativas, o c r e s c i m e nt o f o i d e 4 1 , 2 %. 10. A despeito desses importantes avanços, os dados citados demonstraram que a não consideração das mulheres negras como categoria que demanda atenção específica na aplicação da cota de gênero produziu impacto desproporcional sobre as candidatas negras, caracterizando hipótese de discriminação indireta. É que, a despeito de se tratar de norma geral e abstrata destinada a beneficiar todas as mulheres na disputa política, diante do racismo estrutural presente nas estruturas partidárias, seu efeito prático foi o de manter o subfinanciamento das candidaturas das mulheres negras e, logo, sua sub-representação. 11. A acomodação razoável para mitigar os efeitos adversos verificados não é a repartição dos recursos entre mulheres brancas e negras à razão de 50%, mas sim a aplicação da mesma lógica adotada nas decisões do STF e do TSE no sentido de que a repartição deve se dar na exata proporção das candidaturas de mulheres brancas e negras. Quesitos (ii), (iii) e (iv): Criação de reserva de candidaturas para pessoas negras com destinação proporcional dos recursos públicos e direito de antena 12. Compete prioritariamente ao Congresso Nacional estabelecer polí- tica de ação afirmativa apta a ampliar a participação política de mi- norias não brancas, atendendo ao anseio popular e à demanda cons- titucional por igualdade. À mingua de uma norma específica que institua ação afirmativa nessa seara, o Poder Judiciário não deve ser protagonista da sua formulação. Isso, porém, não quer dizer que não haja papel algum a desempenhar. É legítima a atuação do Poder Judiciário para assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis, como mulheres, negros ou homos- sexuais, contra discriminações, diretas ou indiretas. Assim, o TSE pode e deve atuar para impedir que a ação afirmativa instituída pela Lei nº 9.504/1997 produza discriminações injustificadas e pe rpetue a desigualdade racial . 13. Verifica-se que o funcionamento da reserva de gênero importou em uma forma adicional de discriminação indireta em desfavor das candi- daturas de homens negros. Como os recursos públicos para as campa- nhas são limitados, ao destinar às candidaturas de mulheres recursos proporcionais aos patamares percentuais de suas candidaturas, esses recursos são naturalmente desviados das candidaturas dos homens. Ocorre, porém, que, devido ao racismo estrutural e à marginalização histórica, são as candidaturas dos homens negros que tendem a ser desproporcionalmente afetadas com a diminuição dos recursos dis- poníveis. Para mitigar tal efeito adverso, deve-se determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros e assegurar tem- po de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão proporcio- nal às candidaturas de pessoas negras, na exata proporção do número d e candidaturas . 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 85

V. PARÂMETROS PARA CÁLCULO E FISCALIZAÇÃO DA DESTINAÇÃO DE RECURSOS A CANDIDATURAS DE PESSOAS NEGRAS 14. O volume de recursos destinados a candidaturas de pessoas negras devesercalculado a partir do percentual dessas candidaturas dentro de cada gênero, e não de forma global. Isto é, primeiramente, deve- se distribuir as candidaturas em dois grupos – homens e mulheres. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima de recursos a ser destinada a pessoas negras desse gênero. 15.Ademais, devem-se observar as particularidades do regime do FEFC e do Fundo Partidário, ajustando-se as regras já aplicadas para cálculo e fiscalização de recursos destinados às mulheres. 16. A aplicação de recursos do FEFC em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em âmbito nacional. Assim, o cálculo do montante mínimo do FEFC a ser aplicado pelo partido, em todo o país, em candidaturas de mulheres negras e homens negros será realizado a partir da aferição do percentual de mulheres negras, dentro do total de candidaturas femininas, e de homens negros, dentro do total de candidaturas masculinas. A fiscalização da aplicação dos percentuais mínimos será realizada pelo TSE apenas no exame das prestações de contas do diretório nacional. 17. A aplicação de recursos do Fundo Partidário em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em cada esfera partidária. Portanto, havendo aplicação de recursos do Fundo Partidário em campanhas, o órgão partidário doador, de qualquer esfera, deverá destinar os recursos proporcionalmente ao efetivo percentual de (i) candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o volume mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; e de (ii) candidaturas de homens negros. Nesse caso, a proporcionalidade será aferida com base nas candidaturas apresentadas no âmbito territorial do órgão partidário doador. A fiscalização da aplicação do percentual mínimo será realizada no exame das prestações de contas de campanha de cada órgão partidário que tenha feito a doação. VI. CONCLUSÃO 18.Primeiro quesito respondido afirmativamente nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, pela aplicação das decisões judiciais do STF na ADI nº 5617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações. 86 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

19. Segundo quesito é respondido negativamente, não sendo adequado o estabelecimento, pelo TSE, de política de reserva de candidaturas para pessoas negras no patamar de 30%. Terceiro e quarto quesitos respondidos afirmativamente, nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV devem ser destinados ao custeio das candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas a p r e s e n t a d a s p elas agremiações. 20. Aplicação do entendimento a partir das Eleições 2022, vencido, neste ponto, o relator. Impossibilidade de alteração das regras de distribuição de recursos aplicáveis às Eleições 2020, uma vez já apresentados pelos partidos políticos os critérios para a distribuição do FEFC e, também, iniciado o período de convenções partidárias. Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por maioria, em responder afirmativamente quanto ao primeiro, ao terceiro e ao quarto quesitos, e negativamente quanto ao segundo, nos termos e fundamentos constantes do voto do relator. Também por maioria, em decidir pela aplicabilidade da decisão a partir das eleições de 2022, mediante a edição de resolução do Tribunal, nos termos do voto do Ministro Og Fernandes. Brasília, 25 de agosto de 2020. MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – RELATOR RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO: Senhores Ministros, trata-se de consulta formulada pela Deputada Federal Benedita Souza da Silva Sampaio, com apoio da organização Educafro, sobre se: 1. os recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão das cotas de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas, de acordo com o percentual de 50% para cada grupo, dada a distribuição demográfica brasileira; e (ii) deve haver reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a consequente destinação proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão para candidaturas de pessoas negras (ID 11856638). 2. Preliminarmente, a consulente requereu a distribuição do feito à minha relatoria, por sua relação com a Consulta nº 0600587- 37.2018.6.00.0000, que não foi conhecida em razão do início 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 87

do período eleitoral (ID 11856588). Na sequência, traz dados minuciosos, a partir de estudos do professor Irapuã Santana, que demonstram a desproporção no número de candidatos negros em relação à população do país, notadamente em disputas de cargos federais considerados de maior proeminência. Segundo alega, esses dados se justificam pelo elevado custo das campanhas, pelo acesso desigual aos recursos econômicos por parte da população negra, bem como pelo racismo estrutural existente em nossa sociedade. 3. O STF, na ADI nº 5617/DF, de relatoria do Min. Edson Fachin, e o TSE, na Consulta nº 0600252-18/DF, de relatoria da Min. Rosa Weber, firmaram o entendimento de que a distribuição de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), bem como do tempo de propaganda gratuita na rádio e na TV, deve ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, respeitado o patamar mínimo de 30% de candidatas mulheres previsto no art. 10, § 3º, da Lei n° 9.504/1997. Sustenta a consulente que tais precedentes dão ensejo à discussão sobre como esses recursos devem ser repartidos entre as candidatas mulheres, bem como à possível extensão da cota para os candidatos negros, “haja vista a identidade do pano de fundo envolvendo os casos: a proteção e promoção das minorias subrepresentadas [sic] politicamente”. A consulente discorre, ainda, sobre a importância da representatividade, trazendo à baila a obra de Hannah Pitkin e Teresa Sacchet, bem como sobre as dimensões da igualdade, a partir do julgamento, pelo STF, da ADC nº 41/DF, de minha relatoria, relativa à constitucionalidade da instituição de reserva de vagas oferecidas em concursos públicos para ingresso no serviço público federal. Segundo alega, o fundamento constitucional da presente consulta é a “dimensão da igualdade como reconhecimento”. 4. A respeito da repartição entre as candidatas mulheres dos recursos financeirosedodireitodeantenaoriundosdacotadegênero,argumenta que as mulheres negras, embora correspondam a 50% das mulheres brasileiras, têm condições socioeconômicas de acesso ao mercado de trabalho e de educação menos privilegiadas que as mulheres brancas. Desse modo, alega que “é uma medida lógica a distribuição das cotas pecuniária e de tempo de propaganda proporcionalmente à razão existente de mulheres negras, conforme o IBGE”. 5. Já em relação à reserva de candidaturas para pessoas negras, alega que, apesar de ausente “norma eleitoral específica que estabeleça um incentivo estatal” equiparável ao art. 10º, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, seria possível fixar as ações afirmativas por meio de reinterpretação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), considerando-o como norma dotada de aIIu, tIoIIe, xVe, cVuItIo, priaerdáagdraef,nooútnaidcaom, een3t9e1d. iPaanrtae do disposto nos arts. 2º, 4º, justificar referida medida, expõe dados que apontam os “obstáculos de ordem hercúlea para a população negra”, dentre os quais: a média salarial, o índice de analfabetismo; a escolaridade; o número de vítimas de homicídio; e a composição da população carcerária. Argumenta, ainda, que é preciso garantir maior participação política da população negra 88 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

para que seja possível criar políticas públicas voltadas para seus interesses, de modo a permitir a reversão dos índices negativos apresentados: “Não é exagero afirmar que a população negra luta ainda para ter acesso a bens básicos da vida, como manter-se viva, livre e completando o ensino su- perior. Consequentemente, é preciso perguntar que espécie de democracia é possível construir, enquanto a sociedade não pode aproveitar inteiramen- te sua capacidade de representação, quando não há uma estrutura plena- mente formulada a ponto de asfixiar possíveis lideranças que possam o l h a r p e l o s e u ‘ p o v o ’ ?Como essa discrepância pode influenciar nas po- líticas públicas focadas em favor de parcela tão significativa d a p o p u l a ç ã o , q u e f o r m a a m a i o r i a n a c i o n a l ? Daí a importância de se alargar o espectro de incentivos de participação eleitoral, prevendo a inclusão da comunidade negra, a fim de que seja possível reverter os índices apresenta- dos no bojo da presente consulta, concretizando a vontade da Constituição e do legislador ao instituir o Estatuto da Igualdade Racial como diploma normativo de observância obrigatória nacional”. 6. Por fim, submete as seguintes indagações ao Tribunal Superior Eleitoral: a) “As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252- 18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira? Motivo? Vários! Entre eles: Deputados e Senadores com seus sobrenomes consolidados estão trazendo suas mulheres, filhas e outras da família com o mesmo sobrenome para terem acesso a este dinheiro, exclusivo para mulheres. Sendo membros das famílias destes tradicionais Deputados e Senadores, este dinheiro corre o perigo de ser desviado, não chegando às mulheres negras que estão fora deste círculo de poder. b) É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres? Motivo? Vários! Entre eles: conforme mostrado no texto acima, mesmo tendo um número razoável de candidatos homens negros, por causa da discriminação institucional, poucos c a n d i d a t o s n e g r o s s ã o d e fa t o , e l e i t o s . c) É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina? d) É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 89

televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”. 1. A Assessoria Consultiva – ASSEC opinou no sentido de responder negativamente aos questionamentos, “ante a necessidade de observância do devido processo legislativo” (ID 21912388). Isso porque “o exercício do poder normativo pelo TSE na direção de criar novas cotas em razão da raça configuraria inovação na legislação eleitoral, de modo a transgredir o processo legislativo pátrio”. 2. O Ministro Edson Fachin submeteu, então, à Presidente, Ministra Rosa Weber, a dúvida relativa à distribuição do feito, nos termos do art. 9º, “e”, do Regimento Interno do TSE (ID 22530638)2. A Ministra Presidente determinou a redistribuição dos aduotoCsPCà3m. Iisnshoaproerlqautoerioas, por dependência, nos termos do art. 286, II, questionamentos nela apresentados reiteram aqueles da Consulta nº 0600587-37.2018.6.00.0000, também submetida pela deputada federal Benedita Souza da Silva Sampaio em conjunto com outros parlamentares e que não foi conhecida em razão do início do período eleitoral. 3. A Procuradoria-Geral Eleitoral manifestou-se pelo conhecimento da consulta e pela resposta negativa aos questionamentos da consulente, em parecer assim ementado (ID 25568638): “Consulta. Candidatos negros. Distribuição de recursos financeiros. Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Tempo em rádio e televisão. Reserva de vagas nos partidos políticos. Ausência de previsão legal. Possibilidade no âmbito da autonomia partidária. 4. O legislador adotou medidas com reserva de quantitativos mínimos de recursos financeiros e de candidaturas para mulheres, mas não o fez para negros. 5. Embora seja louvável a pretensão de serem adotadas medidas ampliativas de representação política da população negra, a obrigatoriedade de o Estado discriminar positivamente candidaturas com recorte de etnia e cor da pele, impondo aos partidos políticos o dever de recrutar candidaturas no grupo vulnerável dos negros, carece de fonte legislativa que a imponha. 6. A legislação impõe que o Poder Público, aí incluída a Justiça Eleitoral, adote medidas para superação da desigualdade, mas não chega ao ponto de impor aos Partidos Políticos a reserva de vagas e financiamento a i n t e g r a n t e s d a p o p u l a ç ã o n e g r a. 7. Ao mesmo tempo que a legislação não impõe a reserva de vagas e recursos financeiros, ela seguramente consente com a sua prática dentro da constitucional autonomia partidária. 8. Em outras palavras, é possível, sim, que partidos políticos deliberem por reservar vagas nos partidos políticos para candidatos negros; por 90 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

destinar a campanhas dos candidatos negros 30% o Fundo Especial de Financiamento de Campanha; por distribuir o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão p a r a c a n d i d a t o s d apopulaçãonegra. 9. Parecer pela resposta negativa a todos os quesitos da consulta, por ausência de previsão legal, mantendo-se legítima, contudo, a opção de determinada agremiação partidária, no exercício de sua autonomia, por fixar critérios de reserva de vagas e recursos financeiros para candidatas e candidatosnegros”. 10. Por petição (ID 34678938), o Movimento Negro Unificado postula sua habilitação como amicus curiae. Ademais, o Senador Paulo Paim manifestou-se favoravelmente à inclusão em pauta e ao deferimento da presente consulta. Por fim, o Instituto da Advocacia Negra Brasileira apresentou, por e-mail, parecer técnico no qual opina pela resposta positiva às indagações formuladas. 11. É o relatório. Lei no 12.288/2010, Art. 2º É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. Art. 4º A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de: (…) II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa; III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica; (…) V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada; (…) VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros. Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir- se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País. Art. 9º Compete ao presidente do Tribunal: (...) e) distribuir os processos aos membros do Tribunal, e cumprir e fazer cumprir as suas decisões; Art. 286. Serão distribuídas por dependência as causas de qualquer natureza: (...) II - quando, tendo sido extinto o processo sem resolução de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda; 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 91

VOTO O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (relator): Senhores Ministros, o Brasil é um país racista. Somos uma sociedade racista. E cada um de nós reproduz o racismo em alguma medida – ainda que de forma não intencional, pela mera fruição ou aceitação dos privilégios e das vantagens que decorrem de um sistema profundamente desigual. Não é confortável reconhecer esse fato, mas é preciso fazê- lo. Essa afirmação pode, inclusive, soar desagradável para alguns, mas, justamente por isso, é preciso pronunciá-la. A superação do racismo passa, necessariamente, pelo seu reconhecimento e pela mudança individual de postura de cada um de nós, brancos. Mas muito mais do que isso: é preciso perceber que o racismo também é reproduzido e perpetuado pelo modo de funcionamento das nossas instituições (políticas, econômicas e sociais) e, assim, criar políticas públicas voltadas para combatê-lo onde quer que ele se encontre. 2 No entanto, a realização desse objetivo evidencia um paradoxo: as pessoas negras são atualmente sub-representadas nos poderes eleitos, aos quais compete prioritariamente formular tais políticas públicas. Por isso, a representação política é uma das preocupações prioritárias da pauta antirracista. É certo que, à mingua de uma norma específica que institua ação afirmativa nessa seara, o Poder Judiciário não deve ser protagonista da sua formulação. Porém, o Poder Judiciário – e o Tribunal Superior Eleitoral, em particular – pode e deve exercer o relevante papel de impedir que as políticas e ações afirmativas já existentes (como as cotas de gênero na política) produzam como efeito secundário indesejável a perpetuação da desigualdade racial nos espaços públicos eletivos. É esse o pano de fundo da presente consulta. I. CONHECIMENTO DA CONSULTA 3. O art. 23, XII, do Código Eleitoral4 estabelece que compete privativamente ao TSE responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político. Diante disso, o conhecimento de consultas ao TSE pressupõe: (i) legitimidade do consulente (autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político); (ii) abstração (não se relacionar a nenhum caso concreto); (iii) pertinência temática (tratar de direito eleitoral); e (iv) objetividade (a pergunta deve ser formulada de forma a não comportar múltiplas respostas). 4. No caso, a consulente, Deputada Federal Benedita Souza Silva Sampaio, é autoridade com jurisdição federal. Além disso, as indagações formuladas, relativas à repartição entre as candidatas mulheres dos recursos financeiros e do direito de antena oriundos 92 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

da cota de gênero, bem como à reserva de 30% das candidaturas de cada partido e à distribuição proporcional dos recursos do Fundo Partidário, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de rádio e TV às pessoas negras, versam sobre matéria afeta à legislação eleitoral e são dotadas de abstração e objetividade. 5 Relembro, ademais, que, na Consulta nº 0600252-18/DF, de Relatoria da Ministra Rosa Weber, j. em 22.05.2018, esta Corte fixou que cabe à Justiça Eleitoral apreciar, no exercício de sua função consultiva, temáticas que digam respeito à garantia de igualdade material entre as candidaturas, naquela hipótese, as femininas e masculinas. Isso porque essa “estruturação de novos paradigmas políticos, jurídicos e culturais intrapartidários” tem reflexo direto no processo eleitoral, não se tratando, portanto, de “típica matéria interna corporis dos partidos”. Assim, deve ser conhecida a consulta. 6 Antes de passar à análise do mérito, registro que a consulta eleitoral não comporta, em princípio, intervenção de amici curiae, tendo em vniesstsaeqsueenntiãdoopnoasRsueisí.-nTdSoElenjºu2ri3s.d4i7c8io/n2a0l1e6p5o. rPhoraveesrseprmevoitsivãoo,edxepixreosdsea admitir como amicus curiae o Movimento Negro Unificado. Registro, contudo, que considerei todas as manifestações apresentadas, em homenagem ao princípio democrático e dada a relevância da matéria submetida a esta Corte. II. RACISMO, DESIGUALDADE RACIAL E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 7. A consulente, apoiada pela organização Educafro, evidencia a desigualdade racial persistente no país: seja no acesso à educação, no mercado de trabalho, na segurança pública ou na política. Essa análise é corroborada por dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE referentes ao ano de 2018, que apontam que a taxa de banraanlfcaobse(t3is,m9%o )d6e; pretos e pardos (9,1%) é maior que o dobro da de enquanto que o rendimento médio domiciliar per capita dos negros (R$ 934,00) corresponde a cerca da metade daquele dos brancos (R$ 1.846,00). Na perspectiva da segurança pública, o Atlas da Violência de 2019, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstra que 75,5% de todas as pfeemssionaicsídasiosaesrsainmadmauslnhoerBesranseilgerraasm7. negras e que 61% das vítimas de Esses dados são cruelmente ilustrados pelas mortes das crianças João Pedro Mattos, Ágatha Félix e Kauê Ribeiro dos Santos, e da vereadora Marielle Franco, entre tantos outros, que demonstram a importância do movimento social “Vidas negras importam” (Black lives matter), que ganhou ainda maior visibilidade no último mês após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. 8. Peesrtcruebtuer-asel8, . a partir dessas estatísticas, que o racismo no Brasil é Conforme explica o Professor Silvio de Almeida, isso significa que, mais do que um problema individual ou um fator institucional, o racismo “é usomcieedleamdee”n9t.oLqiguaedointaeogrcaolaonoiragliasnmizoaçeãoà econômica e política da 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 93

escravização em sua origem, o racismo criou raízes profundas na sociedade brasileira e incotennticniounaale1v0id, menatsetanmãboémsónaemdessiigtuuaalçdõaedse de discriminação direta ou de oportunidades da população negra enenuatrpaelridmaadneêrnacciiaald1e1e. stereótipos culturais, disfarçados pela noção de 9. Portanto, trata-se aqui do racismo que é incorporado nas estruturas políticas, sociais e econômicas e no funcionamento das instituições. Essa forma de racismo se reflete na institucionalização, naturalização e legitimação de um sistema e modo de funcionamento social que reproduz as desigualdades raciais e afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas. 10. Como fenômeno intrinsecamente relacionado às relações de poder e dominação, esse racismo não deixa de se manifestar no âmbito político-eleitoral. Nesse ponto, observa-se que, nas eleições gerais de 2018, 52,4% dos candidatos que concorreram eram brancos e 47,6% eram negros (35,7% pardos e 10,86% pretos). No entanto, a despeito sdoomneúnmteer2o7d,8e6c%anedriadmatunreagsr,oesn(tprereotsoseloeuitopsa,r7d1o,s9)21%2. eram brancos e Do total de cerca de 13 mil candidatos negros, a maioria concorria por uma vaga nas Assembleias Legislativas e “apenas cerca de 3% decidiram disputar sceanrgaodsorm(a1j,o9r%it)á”r1io3s. de presidente (0,07%), governador (1,1%) e 11. Nas eleições municipais de 2016, o cenário das candidaturas não era muito diverso: 51,45% dos candidatos eram brancos, 39,12% eram pardos e 8,64% pretos. Embora distante de corresponder à proporção da população brasileira, em que 55,8% se autodeclaram pretos ou pardos, nessas eleições, 40,40% de todos os candidatos eleitos eram negros. Quando consideradas especificamente as candidaturas à chefia do executivo municipal, constata-se, porém, que 45% dos 5.568 mosupnriecfípeiitoossberlaesitiloesi,roapsetinnahsa2m9%apeenraams cnaengdriodsa1to4s. brancos e que, entre 12. A consulente correlaciona a diferença entre a representatividade de negros em eleições gerais (2018) e municipais (2016), bem como o reduzido número de candidatos negros que concorrem e são eleitos a cargos majoritários, a um fator de grande relevância: os custos das candidaturas. Esses custos são, em regra, superiores nas eleições gerais e para cargos de chefia do Poder Executivo e discrepam da renda média da população negra. Nesse sentido, destaca o pesquisador Osmar Teixeira que, nos pleitos estaduais, os candidatos negros têm pdeatmriemsômnaioesecqoulaivraidleandtee1a5.uAmindqauasertgounddaqouoeelestduodsiocsaon, adsiddaistocrsebprâannccioass dmeulphaetrreims nônegiorasse16a.gravam de maneira relevante quando se trata de 13. Nesse contexto, o financiamento das campanhas assume papel central na viabilidade das candidaturas. Importante estudo da FGV Direito São Paulo em parceria com a CEPESP analisou as campanhas eleitorais, o financiamento e a diversidade de gênero nas eleições de 94 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

201817. O estudo identificou que a distribuição proporcional de 30% dos recursos do FEFC e do Fundo Partidário às candidaturas femininas promoveu um efetivo incremento nos valores absolutos e relativos das receitas das candidatas mulheres comparativamente às eleições de 2014, nas quais estas eram o grupo mais subfinanciado. Por exemplo, enquanto em 2014 a receita média de campanha das rmeucelhiteareresprreepsreensteonuta6v2a,4%ce1r8ca. Addee2m7a,8is%, vedraifdicoosuhqoume eantsa,xeamde2s0u1c8estsaol na eleição aumenta na medida em que aumentam os recursos investidos nas campanhas: “o acesso a recursos financeiros continuou bastante correlacionado com a quantidade de votos e, consequentemente, com a possibilidade de eleição, em2018”. 14. Referido estudo explorou, ainda, a questão da intersecção entre gênero e raça no financiamento eleitoral dos candidatos a deputado federal. Nessa análise, identificou que houve uma mudança significativa no financiamento de candidaturas femininas a partir das eleições de 2018. Enquanto em 2014 as candidatas mulheres, tanto brancas como negras, eram o grupo mais subfinanciado, tal realidade mudou em 2018, quando as mulheres passaram a receber recursos oriundos dos partidos de forma proporcional às candidaturas em razão das decisões do STF e do TSE, e foi proibido o financiamento empresarial. 15. Nesse novo contexto, o relatório da FGV Direito SP demonstrou que as mulheres brancas candidatas a deputada federal passaram a receber percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) proporcional ao percentual de candidaturas (também 18,1%). No entanto, as candidaturas das mulheres negras continuaram a ser subfinanciadas pelos partidos: embora representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% dos recursos. Também os homens negros receberam dos partidos recursos (16,6%) desproporcionais em relação às candidaturas (26%). Apenas os homens brancos foram sobrefinanciados (58,5%) comparativamente ao percentual de candidatos (43,1%). 16. Adicionalmente, o estudo verificou que, nas eleições de 2018, as doações de pessoas físicas para candidatos a deputado federal foram majoritariamente destinadas às candidaturas de homens brancos (72,5%), com uma pequena parcela destinada a homens negros n(1e5g,r7a%s ()2e,1m%u)lh1e9r. eCsobmroanrceassu(lt9a,d6o%, )o e ínfima parcela para as mulheres estudo da FGV Direito SP concluiu que, para as eleições de 2018, a raça dos candidatos passou a ser aspecto preponderante em relação ao gênero na determinação do acesso ao financiamento oriundo dos partidos, tendo em vista que a receita média dos homens negros (16,6%) foi menor do que a das mulheres brancas (18,1%). 17. No mesmo sentido, levantamento do jornal O Globo demonstrou que, nas Eleições 2018, “ as candidaturas de pessoas negras ao Congresso foram minoria entre as que receberam mais recursos dos principais partidos políticos do Brasil”. Isso independentemente da posição das agremiações no espectro ideológico. Assim, “dos 586 candidatos que obtiveram os maiores repasses designados por diretórios nacionais das 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 95

11 maiores siglas, apenas 24% haviam se autodeclarado negros (pretos e pardos), enquanto 74,9% disseram ser brancos”20. Na ocasião, o Congresso contava com exatamente 23,9% de parlamentares que se autodeclararam negros. Na mesma linha, nas eleições de 2016, em análise realizada em 18 de setembro do ano eleitoral, o Estadão 6ve5r%ifiacomuaqiusedaocqaumepaadnehaumdepcaarnddoidoautonsebgrraon2c1o.s à prefeitura arrecadou 18. Nota-se, portanto, que as candidaturas negras contam, em regra, com menor apoio das estruturas partidárias. Tanto é assim que, mesmo vencido o desafio das eleições, o cenário de desigualdade se repete na organização do Parlamento: no final de 2019, verificou- se que, entre 30 postos de líderes na Câmara, somente quatro, todos homens, autodeclararam-se pardos22. No Senado, de 22 posições de liderança, apenas seis líderes se autodeclararam negros. Também na relatoria da Câmara é possível verificar desigualdade: “brancos, que são 75% dos deputados, foram responsáveis por 87% dos relatórios de 2019”. Ademais, “dos 4.125 pareceres apresentados, apenas 65 foram adessdineapduotasdpoosrpcaorndgorse”2ss3is. tas que se declaram pretos, enquanto 423 são 19. Do mesmo modo, para as autoras do estudo “Mulheres e Negros na Política”, que avaliou o desempenho eleitoral desses grupos em 2010, a conclusão é de que o problema da sub-representação política perpassa a distribuição desigual de recursos, além da ddiefilcibueldraaçdãeo2d4e. acesso e participação nas instâncias partidárias de Nesse sentido, ainda, a Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos, referente às Eleições 2018 no Brasil, identificou que “a inclusão de candidatos negros e indígenas dentro dos partidos ainda é baixa e que, mesmo quando estão presentes nas organizações políticas, têm menos acesso a recursos e mais dificuldades para aceder aos cargos eletivos”. III. IGUALDADE, DIVERSIDADE E REPRESENTATIVIDADE 96 20. A realidade delineada é inaceitável diante de um contexto constitucional em que a igualdade constitui um direito fundamental e integra o núcleo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas as pessoas são fins em si mesmas, possuem o mesmo valor e merecem, por essa razão, igual respeito e consideração25. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. Como já tive a oportunidade de destacar em inúmeras ocasiões, no mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras. A igualdade efetiva requer igualdade perante a lei, redistribuição e reconhecimento. 21. A Constituição de 1988 contempla essas três dimensões da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já a igualdade como redistribuição decorre de objetivos da República, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem lastro nos objetivos fundamentais do país de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV), bem como no repúdio ao racismo (art. 5º, XLII)26. Tal conjunto normativo é explícito e inequívoco: a ordem constitucional não apenas rejeita todas as formas de preconceito e discriminação, mas também impõe ao Estado o dever de atuar positivamente no combate a esse tipo de desvio e na redução das desigualdades de fato27.Desse modo, uma perspectiva de “neutralidade racial”, ou colorblindness, que desconsidera as diferenças sociais entre negros e brancos, opera como uma forma de discriminação negativa indireta28. O princípio da isonomia impõe, nesse contexto, uma discriminação positiva, em que o fundamento da desequiparação, bem como os fins por ela visados sejam constitucionalmente legítimos. Tanto é assim que a própria Constituição institui distinções com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional e nacionalidade, dentre outros. Não por outro motivo, a própria Constituição admite o emprego de políticas de ações afirmativas, ao instituí-las diretamente em relação às pessoas portadoras de deficiência, determinando que a lei deverá reservar a elas percentual dos cargos e empregos públicos (CF/1988, art. 37, VIII). 22. Nota-se, portanto, que há, sob o prisma da efetivação de uma justiça corretiva e redistributiva, um dever de integração dos negros em espaços de poder, noção que é reforçada pela perspectiva integrativa da diversidade. Esta é conceituada pelo professor Adilson Moreira como “a ideia de que instituições públicas e privadas devem espelhar o pluralismo que existe no corpo social”. Nesse sentido, ao reconhecer que “experiências culturais distintas produzem percepções sociais diferentes”, compreende-se que a composição de um corpo deliberativo plural contempla interesses mais diversos do que uma composição homogênea e garante um funcionamento mais democrático, por exemplo, do Parlamento29. Nesse ponto, Maíra Kubick aponta que 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 97

a pluralidade pode impactar positivamente a própria credibilidade das instituições políticas, reconhecidamente desgastadas perante a população30. O Professor Adilson Moreira destaca, no entanto, que não se trata de garantir mera representação, mas sim uma participação efetiva, como verdadeira “condição para realização de uma democracia participativa”31. 23. Esse dever de inclusão de mulheres e homens negros em espaços de poder é potencializado no caso dos parlamentos. É que a representação de todos os diferentes grupos sociais no parlamento é essencial para o adequado funcionamento da democracia e para o aumento da legitimidade democrática das decisões tomadas. A democracia é autogoverno e, como tal, pressupõe que as pessoas sejam autoras das decisões capazes de afetar suas próprias vidas. No entanto, quando a representação política é excludente, afeta- se a capacidade de as decisões e políticas públicas refletirem as vontades e necessidades das minorias sub-representadas. Por isso, para impulsionar a aprovação de políticas públicas antirracistas é preciso combater a sub-representação política da população negra. 24. Há, ainda, diversas outras consequências positivas do aumento da representatividade política negra: para além da abertura de espaços de reivindicação política, do impacto na agenda pública e da aprovação de ações e projetos de lei que correspondam aos interesses do grupo representado ( representação substantiva), tem-se a desconstrução do papel de subalternidade atribuído ao negro no imaginário social e a naturalização da negritude em espaços de poder (representação simbólica)32. Nesse sentido, especialistas como Osmar Teixeira e Carmela Zigoni apontam que a solução para a sub-representação negra na política – especificamente em cargos legislativos eleitos pelo sistema proporcional – passa pelo estabelecimento de ações afirmativas. 25. De fato, o imperativo constitucional da igualdade e a própria noção de uma democracia participativa plural justificam a criação de ações afirmativas voltadas à população negra, ou mais precisamente às minorias não brancas, que sejam aptas a garantir a efetiva participação político-eleitoral destas. No entanto, o campo de atuação para a efetivação do princípio da igualdade – formal, material e como reconhecimento – e para o combate ao racismo não se limita à instituição de ações afirmativas. Se reconhecemos que o racismo no Brasil é estrutural, é possível e necessário atuar sobre o funcionamento das normas e instituições sociais, de modo a impedir que elas reproduzam e aprofundem a desigualdade racial33. 98 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE

26. Um desses campos de atuação é justamente a identificação de casos de discriminação indireta, relacionados à teoria do impacto desproporcional (disparate impact)34. Muitas vezes, normas pretensamente neutras (i.e., compatíveis com a igualdade formal) produzem efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a grupos marginalizados, de modo a violar o princípio da igualdade em sua vertente material. A teoria já foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal em algumas ocasiões, como no julgamento da ADI nº 1.946 (Rel. Min. Sydney Sanches), em que se conferiu interpretação conforme ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20/1998, que instituiu um valor máximo para o pagamento de benefícios peloINSS, para excluir de seu âmbito de incidência o salário-maternidade. Isso porque, caso o empregador fosse obrigado a arcar com a diferença entre o teto previdenciário e o salário da trabalhadora gestante, haveria um desestímulo à contratação de mulheres, produzindo um impacto desproporcional e discriminatório sobre elas. 27. A implementação de ações destinadas a combater o racismo é uma responsabilidade social que abarca inclusive e principalmente aqueles que se privilegiam do sistema35. Tal perspectiva é densificada pela Lei nº 12.288/2010, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial e prevê expressamente que “ é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas [...]” (art. 2º). Essa participação, “em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de”, entre outros, “adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa” e “ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais” (art. 4º, II e IV). IV. APRECIAÇÃO DAS INDAGAÇÕES FORMULADAS NA CONSULTA 28. Como relatado, a consulente formulou quatro indagações, nos seguintes termos: a) “As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira?”; b) “É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres?”; c) “É possível aplicar o entendimento dos precedentes 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE 99

supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”; e d) “É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”. 29. Tais indagações podem ser agregadas em dois pontos principais. Primeiro, saber se os recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão da cota de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas, de acordo com o percentual de 50% para cada grupo, dada a distribuição demográfica brasileira. Segundo, saber se deve haver reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a consequente destinação proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão para candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%. Passo a analisar tais questionamentos. a) Repartição entre as mulheres dos recursos financeiros e tempo de rádio e TV 30.A consulente questiona a forma de distribuição, entre as candidatas mulheres, dos recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres. O Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 5.617, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, j. em 15.03.2018, e o Tribunal Superior Eleitoral, na Consulta nº 0600252-18/DF, sob a relatoria da Min. Rosa Weber, j. em 22.05.2018, deram um passo decisivo no sentido do incremento da efetividade das cotas de gênero ao equiparar o percentual de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha a lhes serem destinados, bem como do tempo de rádio e TV, respeitando-se, em todo caso, o mínimo legal de 30%. Dentre os fundamentos utilizados, destaca-se que “a igualdade entre homens e mulheres exige não apenas que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultado” e que “a 100 3ª Edição da Revista de Jurisprudência do COPEJE


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