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ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas Universidade Federal do Piauí/Brasil Campus Ministro Petrônio Portela Centro de Ciências Humanas e Letras Cidade: Teresina/ Piauí/ Brasil - CEP: 64049-550 Tel. +55 86 3215-5808 contato.sinespp2020@gmail.com www.sinespp.ufpi.br Anais SINESPP: https://sinespp.ufpi.br/anais.php 3018
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI [DATA] DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS EIXO TEMÁTICO 7 3019
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EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS A POBREZA MULTIDIMENSIONAL NO BRASIL, MARANHÃO E SÃO LUÍS: as múltiplas privações de direitos vivenciadas pelas crianças, adolescentes e suas famílias. Mariana Martins C. Almeida Nunes1 Lília Penha Viana Silva2 RESUMO Este artigo tem por objetivo evidenciar o processo de (des)proteção social vivenciado por crianças e adolescentes. Partimos da categoria de análise pobreza multidimensional para retratarmos o contexto socioeconômico de privações de direitos em que vive grande parte das crianças, adolescentes e suas famílias. Retratamos o contexto nacional a partir de seis dimensões prioritárias, sendo elas educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento. Em seguida demarcamos os principais aspectos que dimensionam as questões de privações às famílias Maranhenses, para assim ressaltar o contexto da cidade de São Luís. O percurso realizado, com base em informações coletadas do ano de 2018, demonstra que a necessidade de intervenção Estatal sobre as crianças e adolescentes de famílias empobrecidas acontece, majoritariamente, em virtude do contexto histórico de privações de direitos por elas vivenciado, o que se contrapõe ao estigma socialmente construído de incapacidade das famílias em suas funções de cuidados. Palavras-Chaves: Pobreza multidimensional. Criança. Adolescente. Famílias. ABSTRACT This article aims to highlight the social (un) protection process experienced by children and adolescents. We’ve started from the multidimensional poverty analysis to portray socioeconomic context of deprivation of rights in which most children, adolescents and their families live. We delimitate national scope in six priority dimensions, 1 Assistente Social. Assessora do Gabinete da Secretaria Adjunta de Assistência Social da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social do Estado do Maranhão. Mestre em Políticas Públicas. E-mail: nana_almeida10@hotmail.com 2 Assistente Social. Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social. Doutora em Políticas Públicas. Prof. Colaboradora do PPGPP/UFMA. E-mail: liliapenha@hotmail.com 3021
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI such as education, information, protection against child labor, housing, water and sanitation. Then, we set the main aspects that measure deprivation issues of families from Maranhão, in order to emphasize the local context in São Luís. The journey, based on information collected in 2018, showed us that the necessity of State intervention on the children and adolescents from impoverished families happens, mainly, due to the historical context of deprivation of rights they’ve experienced, which is an opposition to the socially constructed stigma of inability in their care functions. Keywords: Multidimensional Poverty. Child. Adolescent. Families. INTRODUÇÃO Este artigo se situa no âmbito dos estudos desenvolvidos para elaboração de Dissertação de Mestrado em Políticas Públicas no PPGPP/UFMA. O objetivo deste texto está em expressar os aspectos que configuram a pobreza em âmbito nacional, estadual e municipal, destacando as principais características que evidenciam a pobreza multidimensional, mediante as dimensões de privações de direitos que impactam significativamente na vida das crianças, adolescentes e suas famílias. Para isso, como fonte prioritárias, elencamos a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018) e o documento Pobreza na Infância e Adolescência produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (2018). Analisar o processo de proteção integral de crianças e adolescentes e suas famílias, aliado à conjuntura socioeconômica e cultural, é detectar, ao mesmo tempo, a malha de bem-estar ou as privações às quais estão submetidos. Partindo do pressuposto de que a cidade de São Luís é parte de um contexto social e de uma política macroeconômica neoliberal, entendemos a necessidade de traçar um percurso sob os aspectos das privações de direitos em âmbito nacional, estadual e municipal, para detectarmos quem são e por que essas crianças e adolescentes necessitam de medida de proteção do Estado. Para alcançar o status de bem-estar de um indivíduo, de uma família ou de uma sociedade, várias dimensões devem ser agrupadas, haja vista que o ser humano apresenta demandas de diversas ordens. Desta feita, não basta considerar apenas um critério para compreender as necessidades do indivíduo, pois é sobre o viés da multidimensionalidade que trata o nosso estudo. 3022
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Tornaríamos esta análise significativamente limitada, caso elencássemos apenas o critério da pobreza monetária, isto é, o da renda, pois para o desenvolvimento integral das suas potencialidades, crianças e adolescentes demandam outras condições fundamentais, tais como: habitacionais, sanitárias, educacionais e de informação, por exemplo, as quais devem ser ofertadas, por meio de Políticas Públicas. Este artigo está estruturado em duas sessões primárias além desta Introdução e Conclusão. A primeira sessão intitula-se “DIMENSÕES MÚLTIPLAS DAS PRIVAÇÕES VIVENCIADAS POR CRIANÇAS, ADOLESCENTES E SUAS FAMILIAS NO BRASIL” e a segunda “O PANORAMA MARANHENSE DA POBREZA MULTIDIMENSIONAL: o caso do município de São Luís. Por meio dessa trajetória, a análise das informações evidenciou o fato de que crianças e adolescentes necessitam de proteção do Estado, não pela disfunção familiar, mas por diversas dimensões da vida humana, sobretudo pela condição de privações e (des)proteção social imposta às famílias, majoritariamente, as empobrecidas. 2 DIMENSÕES MÚLTIPLAS DAS PRIVAÇÕES VIVENCIADAS POR CRIANÇAS, ADOLESCENTES E SUAS FAMILIAS A exposição de crianças e adolescentes à pobreza multidimensional deve ser analisada sob graus de intensidades específicas, para que seja mensurado o nível de privação ao qual estejam submetidos. Assim, considerando que os direitos humanos são indivisíveis, devendo, portanto, serem assegurados conjuntamente, é que a ausência de um ou mais direitos traduz-se em privações múltiplas, conceito base para este estudo. Elas podem ser subdivididas em intermediárias e extremas, sendo a privação intermediária, quando há o acesso ao direito, porém de maneira limitada ou com má qualidade; e a privação extrema, quando não há acesso nenhum ao direito (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2018). Como primeira fonte de análise, citamos a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018), que elenca cinco dimensões prioritárias, sendo elas a educação, a proteção social, a condição de moradia, os serviços de saneamento básico e a comunicação, por meio dos dados do Pnad Contínua em 2017. Identificamos que o saneamento básico e a educação são, respectivamente, as 3023
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI dimensões com o maior índice de restrições às famílias empobrecidas, seguidas pelas restrições de acesso à comunicação, à proteção social e à moradia. O Brasil é uma nação de grandes proporções geográficas que possui características e especificidades regionais. Dessa forma, esse contexto de privações e ausências de garantias fundamentais reflete-se de forma mais contundente, em determinadas regiões do país, onde se materializam os grandes bolsões de pobreza e desigualdades sociais. O primeiro aspecto a ser considerado sobre os padrões de vida da população é o rendimento domiciliar per capita. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018), o Brasil possui uma renda média domiciliar per capita (por pessoa) de R$ 1.373,00 em 2018, porém 13 estados tiveram renda inferior ao salário-mínimo, isto é, R$ 954,00. O Distrito Federal foi quem apresentou maior rendimento per capita, R$ 2.460,00, valor este que representa quase o dobro da média nacional. Já a menor renda foi detectada no estado do Maranhão, R$ 605,00 por morador, representando, então, menos da metade da média nacional. Quanto às restrições de acesso das dimensões não monetárias, podemos visualizar também fortes discrepâncias entre as unidades federativas. Enquanto no Maranhão, 44,2% da população tinha ao menos três restrições, em São Paulo e no Distrito Federal, esse percentual era de 3,5% e 4,4%, respectivamente. Além disso, nesses últimos entes federativos, há menor número médio de restrições, 0,6 em cada, sendo que no Maranhão, a população possuía média de 2,3 restrições nas dimensões já apresentadas (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2018). Após expor aspectos acerca da pobreza multidimensional e suas dimensões caracterizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018), assim como aqueles que confirmam distinções regionais que demarcam as desigualdades sociais, vimos, a partir de então, a necessidade de apresentarmos as questões que envolvem a pobreza e as múltiplas privações às crianças, adolescentes e suas famílias. Para tanto, o documento Pobreza na Infância e Adolescência (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2018) tornou-se fonte relevante ao estudo. Conforme o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 2018 o Brasil possuía uma população de 208,5 milhões de pessoas, e, conforme Relatório Anual do 3024
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Unicef, 57,1 milhões representavam crianças e adolescentes (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2019). Ainda em 2018, o Estado Brasileiro possuía mais de 18 milhões de crianças e adolescentes que viviam em domicílios com renda per capita insuficiente para adquirir uma única cesta básica, característica da pobreza monetária. Porém, assim como a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2018) também compreende a pobreza para além do critério da renda, considerando os múltiplos direitos e garantias fundamentais, o que coaduna com a análise desta pesquisa. Nessa perspectiva, com base na Pnad 2015, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2018) considerou a renda familiar de meninos e meninas até 17 anos e refletiu sobre as dimensões da pobreza, por meio do acesso a seis direitos básicos e fundamentais e, ao mesmo tempo, essenciais a este estudo: a educação, a informação, a proteção contra o trabalho infantil, a moradia, a água e o saneamento. Analisar a pobreza na infância e adolescência significa, necessariamente, analisar a pobreza e múltiplas dimensões que envolvem o contexto de suas famílias, independente da configuração. A articulação existente entre os tipos de privações (monetárias e não monetárias) impacta significativamente no bem-estar, ou não, nas famílias dessas crianças e adolescentes. Todavia, mesmo compreendendo que quaisquer dos tipos de privações são lesivos, a privação extrema torna-se ainda mais prejudicial. No Brasil, 61% das crianças e adolescentes vivem com algum tipo de privação e 39% sem privações de nenhuma ordem. Do total de 61%, a pobreza monetária classifica- se em 34,3% e as privações múltiplas correspondem a 49,7%. Trata-se de quase 27 milhões de crianças e adolescentes submetidos a privações múltiplas, evidenciando um expressivo número de meninos e meninas sem garantias de direitos, os quais necessitam, portanto, de algum tipo de intervenção estatal. Percebeu-se, portanto, o expressivo número de crianças e adolescentes brasileiros que são privados de seus direitos fundamentais, em que o saneamento básico é a privação que afeta a maior parte (13,3 milhões), seguido por educação (8,7 milhões), água (7,6 milhões), informação (6,8 milhões), moradia (5,8 milhões) e proteção contra o trabalho infantil (2,5 milhões). 3025
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Uma única privação impacta no bem-estar pessoal e familiar, todavia essas consequências são ainda mais presentes no processo de desenvolvimento e de organização da dinâmica familiar, quando se trata, pelos números apresentados, de privações que extrapolam uma única dimensão. Dos 27 milhões que estão com múltiplas privações, há 14,7 milhões de meninos e meninas com apenas uma privação, 7,3 milhões com duas e 4,5 milhões com três ou mais privações. Ainda, neste grupo, existem 13,9 milhões de crianças e adolescentes que não têm acesso a nenhum dos seis direitos analisados, estando, portanto, à margem de todas as Políticas Públicas. Esse quadro, em algum momento, trará sérios prejuízos para o seu desenvolvimento, bem como para a sua organização familiar e social. Isso, para a sociedade conservadora, caracteriza aspectos de desorganização familiar, e/ou o não cumprimento das suas funções de cuidados familiares, refletindo em um sério processo de reducionismo. As privações de saneamento e higiene têm sérias consequências e impactos diretos na sobrevivência de crianças, principalmente aquelas com menos de 05 anos, que rapidamente podem vir a óbito por doenças infecciosas ou por episódios de diarreias. O descarte de resíduos é um dos principais aspectos que revelam a falta de saneamento básico na vida da população infanto juvenil brasileira. Identificamos uma margem de 21,9% de meninas e meninos que vivem em domicílios com apenas fossas rudimentares, uma vala ou esgoto sem tratamento. Mas, no total, são 24,8% que estão em privação de saneamento básico (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2018). Quanto à segunda maior privação, a educação, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Brasil compromete-se a garantir o acesso à educação básica, obrigatória e gratuita de crianças e adolescentes, entre 4 e 17 anos de idade (BRASIL, 1996). Entretanto, possuímos, em território nacional, 20,3% crianças e adolescentes de 4 a 17 anos que têm este direito essencial violado. Desse total, 6,5% estão fora da escola, em privação extrema. Por outro lado, 13,8% estão na escola, mas são analfabetos ou estão em atraso escolar, configurando a privação intermediária (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2018). 3026
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A terceira dimensão com maior nível de privação é a água. No Brasil, 14,3% das crianças e adolescentes não têm a garantia do direito à água. Desses, 7,5% têm água em suas residências, mas não é filtrada ou proveniente de fontes seguras, qualificando, então, a privação intermediária. Além disso, 6,8% não possuem nenhum tipo de sistema ou abastecimento de água dentro de suas casas, em privação extrema. Ressalta-se que a água e o saneamento estão intimamente correlacionados. A ineficiência do saneamento pode impactar diretamente a qualidade da água e, consequentemente, a saúde das crianças e adolescentes. Esse é um fato evidente na sociedade brasileira, uma vez que o saneamento corresponde à dimensão com maior índice de privações. O processo da globalização, do crescimento mercadológico e dos acelerados avanços tecnológicos e científicos fez com que o século XXI fosse também considerado como a era Tecnológica, Informatizada e Digital. Entretanto, a partir das próprias contradições imanentes ao sistema capitalista, parte expressiva das crianças e adolescentes não possui um aparelho de televisão em sua residência. No tocante à privação da moradia, entendemos como necessário qualificar, inicialmente, que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a moradia é um refúgio no qual as pessoas podem se proteger de fenômenos meteorológicos extremos, como calor e frio, e, também, contra fenômenos meteorológicos adversos, como vento e chuva (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2018). Nesse caso, as privações são definidas, com base nas condições de superlotação e da qualidade do material das paredes e do teto do domicílio. Ainda ara o IBGE, uma situação habitacional com superlotação crítica é quando residem mais de três pessoas por dormitório. O IBGE ainda cita que no Brasil, 10,2% da população de crianças e adolescentes vivem nessas condições, o que equivale a 5,5 milhões de indivíduos. Assim, tanto a privação intermediária quanto a extrema redundam em prejuízos conjunturais, uma vez que a qualidade, a localização e o número de pessoas que habitam em uma mesma moradia trazem consequências ao pleno gozo e desenvolvimento sadio de crianças e adolescentes. Essa frustração pode levar a manifestações agressivas que, somadas ao acúmulo de experiências cotidianas estressantes, geram dinâmicas familiares desorganizadas e em permanente tensão (CÁRDENAS; RETAMAL, 2014 apud FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2018). 3027
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Por fim, o trabalho infantil é a violação que atinge 2,5 milhões de crianças e adolescentes. A Convenção dos Direitos da Criança estabelece, em seu art. 32, que “todos os meninos e meninas têm direito a receber proteção do Estado contra a exploração econômica e contra a realização de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou dificultar seu bem-estar” (BRASIL, 1990a, não paginado). As dimensões de privações de direito possuem efetiva articulação. Assim, esses indicadores, que retratam a realização do trabalho infantil, desde a primeira infância até o último ano da adolescência, estão diretamente correlacionadas às famílias com baixa renda financeira, isto é, privações monetárias. Existe uma localização territorial específica no Estado Brasileiro para aqueles que estão completamente à margem da garantia de direitos. Ainda de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (2018), nas Regiões Norte e Nordeste que encontramos o maior número de crianças e adolescentes em situações de privações. Além disso, mais do que no urbano, é na zona rural que, reiteradamente, são identificados. Considerando também todos os aspectos que envolvem o contexto da formação sócio-histórica da sociedade brasileira, são os meninos e meninas negras que estão à frente das violações sofridas. Portanto, os prejuízos, quanto à vivência da pobreza multidimensional, por meio das seis dimensões apresentadas, são vivenciados, majoritariamente, por crianças e adolescentes negros, que vivem nas áreas rurais e/ou periferias das Regiões Norte e Nordeste do país. Após configurar o panorama nacional, demos sequência às principais características que elencam o Maranhão como um dos estados de maiores desigualdades sociais e que, portanto, demandam efetivas intervenções estatais, por meio de Políticas Públicas. O intuito é que as famílias obtenham condições reais de cumprir com suas funções protetivas. 3 O PANORAMA MARANHENSE DA POBREZA MULTIDIMENSIONAL: o caso do município de São Luís O estado do Maranhão, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017a), encontra-se na 10ª colocação entre os estados mais populosos do país. Possui cerca de 6,5 milhões de habitantes, o que representa 3,4% da população 3028
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI brasileira e 12% da nordestina. Além disso, mais de 30% da população maranhense vive nas zonas rurais de seus municípios. De acordo com o ranking do Atlas de Desenvolvimento Humano (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2013a) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017a), o Maranhão está na 26ª posição, entre os 27 estados da federação, com o Índice de Desenvolvimento Humano de 0,639. Observamos, então, a disparidade existente entre os IDHs do 1º colocado, que é do Distrito Federal com 0,824, e o último, que é o estado de Alagoas com 0,631. Em relação à renda per capita, a menor renda detectada no país é a do estado do Maranhão, que é de R$ 605,00 a 710, representando, então, menos da metade da média nacional. Esses valores tornam-se ainda mais precários, quando nos referimos às áreas periféricas e rurais do estado. Conforme a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018) o Maranhão lidera, quanto às privações relativas ao saneamento básico, trazendo todos os riscos e prejuízos sociais à saúde de sua população. Além disso, estando a dimensão da comunicação em segundo lugar, revela um estado de pessoas alheias à possibilidade de informação, do conhecimento e, consequentemente, do desenvolvimento social. Isso também se ratifica através dos indicadores que evidenciam o nível de instrução das pessoas de 25 anos ou mais de idade, a saber: aqueles sem instrução, 17,8%; ensino fundamental incompleto, 36,3%; ensino fundamental completo, 7,5%; ensino médio incompleto, 4,6%; ensino médio completo, 24,2%; ensino superior incompleto, 2,1%; ensino superior completo, 7,4%. Considerando os 5565 municípios do território brasileiro, duas cidades do Maranhão estão entre os 5 municípios com os piores Índices de Desenvolvimento Humano, sendo elas: Marajá do Sena, na posição 5562ª, com 0,452; e Fernando Falcão, na posição 5564ª, com 0,443 (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2013b). Na perspectiva de mapear e, sobretudo, intervir na extrema pobreza e desigualdades sociais existentes no estado do Maranhão, houve a implantação, a partir de 2015, do Plano “Mais IDH”, que instituído pelo Decreto nº 30612 de 02 de janeiro de 2015, visa ao desenvolvimento socioeconômico sustentável. Assim, com o foco de atuar nos 30 municípios maranhenses com os mais baixos IDHs, o Plano objetiva construir, por meio de uma base de dados que seja capaz de nortear, a elaboração e implementação de Políticas Públicas. 3029
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Mediante a configuração nacional e estadual, pode-se, a partir de então, situar como a cidade de São Luís se estabelece, em meio à conjuntura socioeconômica apresentada e como isso reflete sobre as famílias submetidas ao contexto das múltiplas privações. No ranking do IDH para o estado do Maranhão, São Luís está em 1º lugar e a cidade de Fernando Falcão em último (217º) com 0,443. Traçando parâmetro com o ranking nacional, São Luís está na posição 249ª, sendo que o 1º lugar é de São Caetano do Sul – SP com o IDH de 0,862. Na posição 5565º, a cidade de Melgaço – PA, com 0,418, apresenta o pior IDH do país (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2013b). No que se refere aos domicílios com rendimentos mensais de até ½ salário- mínimo por pessoa, o IBGE ainda aponta que 38,8% da população Ludovicense vivem nessas condições, colocando o município em penúltimo lugar no estado, ou seja, na 216ª posição e, nacionalmente, está em 2897ª. No intuito de concluir este item que aponta os indicadores sociais, destacamos dois Programas Federais da Política de Assistência Social, que se materializam no município de São Luís, com a finalidade de assegurar garantias especificamente às pessoas em situação de vulnerabilidades sociais: o Cadastro Único e o Bolsa Família. O Cadastro Único é a base de dados do Governo Federal, na qual estão registradas as informações socioeconômicas das famílias de baixa renda domiciliadas no território brasileiro, que são aquelas que possuem renda mensal de até ½ salário-mínimo por pessoa. Do total de 1.101.884 habitantes (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017b), o município de São Luís possui, com base nas informações do relatório do Ministério da Cidadania (BRASIL, 2018b), até junho de 2019, 193.898 famílias inseridas no Cadastro Único. Desse total, 161.144 famílias possuem o cadastro atualizado nos últimos dois anos e das 175.326 famílias com renda de até ½ salário- mínimo, 145.118 famílias estão com cadastro atualizado que indica renda de até ½ salário-mínimo. Os quantitativos em questão demonstram que são quase 200.000 mil famílias registradas em situação de pobreza e mais de 145 mil em situação de extrema pobreza, o que qualifica uma família em completa situação de privações. 3030
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Quanto às famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família no município de São Luís, identificamos que, ainda conforme relatório do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), há somente 77.119 famílias beneficiárias, configurando-se em um número significativamente inferior ao de famílias com cadastro atualizado que estão em situação de extrema pobreza (BRASIL, 2018c). Importa destacarmos que o processo de transferência de renda não depende apenas do cadastro da família no Cadastro Único. Para o recebimento do recurso financeiro, é necessário que, tanto a família quanto o poder público assumam compromissos para garantir o devido acesso das suas crianças e adolescentes à saúde e à educação, as chamadas condicionalidades do Programa. Ao analisar os relatórios de repercussão do Programa Bolsa Família, emitidos no ano de 2018, identificamos que, em relação ao descumprimento das condicionalidades de saúde, 308 crianças não realizaram o acesso à vacina e 13 mulheres não realizaram o pré-natal. Em relação à baixa frequência escolar, os dados dos relatórios apontam que 1.021 famílias apresentam crianças/adolescentes nessas condições (BRASIL, 2018d). Dessa forma, com o objetivo de identificar quais são as questões que não lhes permite acessar a essas garantias, é que o atendimento/acompanhamento pelos Serviços da Política Pública de Assistência Social tornam-se indispensáveis. Em São Luís, cabe à Semcas a implementação dos Serviços Socioassistenciais de atendimento e acompanhamento desse público infantojuvenil e suas famílias que se encontrem em situações vulneráveis e de privações sociais. 4 CONCLUSÃO As famílias brasileiras empobrecidas, cerceadas de suas garantias sociais, vivenciam profundas desigualdades socioeconômicas reificadas historicamente. Observamos uma dicotomia social entre as famílias que cumprem com suas funções protetivas e aquelas que, pelas múltiplas determinações, não conseguem cumprir com essas funções, criando-se o estigma entre as capazes e as incapazes, as estruturadas e as desestruturadas. Esses parâmetros fundam-se, essencialmente, no modo de produção capitalista, uma vez que a riqueza socialmente produzida permanece com um pequeno grupo em 3031
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI detrimento de toda uma classe que alimenta essa produção. Assim, as famílias empobrecidas compõem a vasta camada que, reiteradamente, sofre as graves consequências de uma sociedade desigual. Sob essa ótica, os maiores prejuízos, diante desse contexto de pobreza e consequente falta de acesso a direitos básicos, são vivenciados pelas crianças e adolescentes dessas famílias. Isso se ratifica, por meio dos índices que evidenciam as privações à educação, ao saneamento básico, à saúde, à internet; à vivência do trabalho infantil, entre outros. As diversas dimensões de privações, que permeiam as famílias dessas crianças/adolescentes, apresentam maiores probabilidades de causar impactos nas funções quanto ao cuidado e à proteção, sendo a garantia da convivência familiar e comunitária um dos aspectos mais prejudicados nesse processo. Outrossim, considerando que as condições socioeconômicas determinadas pelo sistema econômico de produção são o bojo do processo de fragilidades nas funções protetivas das famílias empobrecidas, é que se torna indispensável a intervenção do Estado, diante das situações em que as famílias apresentam dificuldades de continuar liderando as garantias essenciais às crianças e aos adolescentes. REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 22 nov. 1990a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Bolsa Família. In: BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Aplicações. Brasília, DF: MDS, 2018b. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/bolsafamilia/. Acesso em: 10 set. 2019. BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Relatório do Bolsa Família e Cadastro Único: São Luís/MA. In: BRASIL. Ministério da Cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. Aplicações. Brasília, DF: MDS, 2018c. Disponível em: https://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/bolsafamilia/relatorio-completo.html. Acesso em: 10 set. 2019. 3032
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família: Estados e Municípios. In: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. SIGPBF. Brasília, DF: MDS, 2018d. Disponível em: http://www.mds.gov.br/mds-sigpbf- web/indexPublico.jsf. Acesso em: 10 set. 2019. FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA. Pobreza na infância e na adolescência. Brasília, DF: Unicef, 2018. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades@: Brasil: Maranhão. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama. Rio de Janeiro, 2017a. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/panorama. Acesso em: 10 ago. 2018. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades@: Brasil: Maranhão: São Luís. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama. Rio de Janeiro, 2017b. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ma/sao- luis/panorama. Acesso em: 10 ago. 2018. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil: Maranhão. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas Brasil. Brasília, DF: FJP/PNUD/ Ipea, 2013a. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_uf/maranhao. Acesso em: 10 set. 2019. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil: ranking: todo o Brasil. In: INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas Brasil. Brasília, DF: FJP/PNUD/ Ipea, 2013b. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/ranking. Acesso em: 10 set. 2019. 3033
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS CRIME É O QUE NOS RESTA? Adolescentes infratores que encontram na criminalidade uma alternativa de sobrevivência: desafios propostos ao serviço social no judiciário Luiz Carlos da Costa Braga Júnior 1 RESUMO Este artigo aborda a temática da criminalidade na infância e juventude, a partir de ensaio teórico e pesquisas bibliográficas, cuja análise serviu para refletir sobre como a criança era vista pela sociedade brasileira no período colonial e como essa análise reflete na contemporaneidade. Fazendo um recorte desde o período da implantação do sistema capitalista na Europa aos dias atuais, levando em consideração que a exploração do trabalho infantil é um dos fatores que mais contribui para o aumento da criminalidade. Nesse contexto, o presente artigo vai mostrar qual é o papel desempenhado pelo assistente social inserido no campo jurisdicional, no qual esse profissional acaba se deparando com essas problemáticas que surgem como demanda para serem solucionadas. Palavras-Chaves: Crianças e Adolescentes. Atos Infracionais. Criminalidade. Direitos. ABSTRACT This article addresses the theme of criminality in childhood and youth, based on a theoretical essay and bibliographic research, whose analysis served to reflect on how the child was seen by Brazilian society in the colonial period and how this analysis reflects in contemporary times. Making a cut from the period of implantation of the capitalist system in Europe to the present day, taking into account that the exploitation of child labor is one of the factors that most contributes to the increase in crime. In this context, the present article will show what is the role played by the social worker inserted in the jurisdictional field, in which this professional ends up facing these problems that appear as a demand to be solved. Keywords: Children and Adolescents. Offenses. Criminality. Rights. 1 Graduando em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB E-mail: jrbraga25@gmail.com 3021
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO Ao abordamos temas relacionados a crianças e adolescentes, percebemos que a figura da infância tal qual conhecemos hoje, nem sempre foi ligada à inocência e ao cuidado de proteção que é comum na grande maioria das famílias na sociedade contemporânea. Por séculos, a criança foi tratada como indivíduo dotado de responsabilidades, porém sem direitos. Para a sociedade da Idade Moderna e principalmente do período da implantação do sistema capitalista, a criança passou a ser uma mão de obra barata, pois elas eram tratadas como adultos quando o assunto se pautava em produção de mercadoria e exploração da força de trabalho. Nesse contexto de exploração do trabalho que se estabeleceu na gênesis do capitalismo, o que se percebeu com o passar dos anos, foi que cada vez mais crianças e adolescentes acabavam enveredando para a criminalidade mediante não aguentarem tamanha exploração lançadas sobre seus ombros. Uma vez que inseridas no mundo da criminalidade, essas crianças e adolescentes passam a ser também exploradas pelo próprio universo do crime. Os atos infracionais cometidos por esse público é uma resposta ou uma reação ao sistema em que estão inseridos. O que se observa principalmente em um país como o Brasil, que não investe em educação pública de qualidade, é que cada vez mais o número de crianças e adolescentes envolvidos em situação de risco (nesse caso criminalidade) tem crescido de forma alarmante a cada ano. De acordo com o site noticicias.uol.com.br, em uma matéria publicada no dia 30 de outubro de 2017 por Luís Adorno, no qual apresenta a evolução da criminalidade em pouco mais de uma década. Entre 1996 e 2014, o número de jovens entre 12 e 17 anos que foram apreendidos no Brasil pela prática de crimes aumentou em quase seis vezes. De acordo com o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública [...] há uma crescente no encarceramento de adolescentes no país: passou de 4.245 para 24.628. [...] Ainda de acordo com o levantamento anual, o principal crime praticado por menores de idade no Brasil é o roubo (45%), seguido do tráfico de drogas (24%). Em terceiro, está o crime de homicídio (9,5%) seguido do furto (3,3%). Em 2014, o maior número de crimes praticados por menores de idade foi registrado em São Paulo (10.211 casos). Na sequência, vêm Pernambuco (1.892), Minas Gerais (1.853) e Rio de Janeiro (1.655). O Estado com menos atos infracionais cometidos por menores é o de Roraima (37). (ADORNO, 2017). 3035
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Esses dados apresentados são reflexos de um total descaso por parte das autoridades públicas que não investem em educação e cultura para reverter essa realidade cruel, sobretudo para com esse público vulnerável, principalmente aqueles que vivem em zonas periféricas, os excluídos da sociedade. Pois um país que prioriza a educação, consequentemente terá melhorias significativas em todas as demais áreas, tais como: segurança, saúde, cultura, lazer, etc, proporcionando uma melhor qualidade de vida à população. Porém, o que vemos, entre as autoridades políticas do nosso país, é o empenho em desfazer, desmanchar, descentralizar os poucos direitos já conquistados pela sociedade civil. Pois quem acaba arcando com o prejuízo é a população pobre que por sua vez é composta por crianças e adolescentes que têm tanto direito como qualquer outro indivíduo. Nesse contexto de vulnerabilidade da população carente, o serviço social entra no cenário de luta por garantia desses direitos usurpados, em que o assistente social passa a ser o protagonista que atuará com o intuito de proporcionar melhorias para essas crianças e adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade. Para isso, os assistentes sociais precisam estarem munidos de conhecimento e preparados para entrar no campo de batalha, visto que é esse profissional quem vai defender os direitos desses que a sociedade tanto menospreza e mostrar que o crime não é o que resta para essas crianças e adolescentes. Infância anulada: o peso da responsabilidade imposto pela necessidade de trabalhar Historicamente, a sociedade vivencia desigualdades significativas que se personificam em incontáveis problemáticas nas mais diversas áreas da vida. E isso ficou ainda mais latente com a implantação do sistema capitalista e com a Revolução Industrial na Europa entre os séculos XVIII e XIX. Esse modo de produção, com o passar dos anos, foi se intensificando cada vez mais, passando a utilizar-se da força de trabalho de homens e de mulheres, que se viam obrigados a trabalhar jornadas intensas em fábricas. Não havia lei que garantissem/concedessem algum direito de proteção ou pudessem assegurá-los contra quaisquer adversidades provenientes desse sistema que até os dias atuais tem se 3036
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI objetivado em extrair o seu lucro através da exploração da mão de obra da classe trabalhadora. Nesse período inicial do capitalismo, pudemos observar o desenvolvimento das relações de trabalho que proporcionou um avanço e eficiência na produção da mercadoria. Aperfeiçoamento que se tornou possível através da tecnologia utilizada nas máquinas implantadas das grandes fábricas e indústrias, passando a realizar em pouco tempo um trabalho que outrora era necessários dias ou meses para ser concretizado. Por outro lado, em contrapartida ao desenvolvimento industrial, foi notório o agravamento das múltiplas expressões da questão social que começaram a se intensificar na forma de desemprego estrutural, trabalho informal, precarização das relações de trabalho. O êxodo rural passou a ser naturalizado devido à falta de recursos no campo e dessa forma o trabalhador camponês se viu obrigado a abandonar suas terras para ir em busca de trabalho nas cidades. Com isso, surgiram as áreas periféricas aumentando a favelização que por sua vez passou a ser um agravante contributivo da questão social, entre inúmeras outras problemáticas que trouxeram à tona o aumento significativo da pobreza. Tudo isso começava a ganhar destaque no cenário dos grandes centros urbanos. DECCA, (1991. p. 38). Da ênfase à ideia de como surgiu a necessidade de introduzir a criança no trabalho fabril devido às dificuldades enfrentadas em uma família quando ocorria a gestação de uma criança e a mulher se via impossibilitada de trabalhar. “As mulheres grávidas trabalhavam até a hora do nascimento do filho, sem direito à licença maternidade ou remuneração. Quando o filho nascia, a mulher perdia o posto de trabalho, piorando ainda mais a renda familiar”. Foi nesse cenário de desigualdades sociais, em que as condições se apresentavam de forma precária, que as crianças e adolescentes, passaram a ser introduzidos nas fábricas. A priori, apenas os órfãos eram entregues aos donos das fábricas, como destaca THOMPSON, (1987 p. 203) “[...] um órfão entregue como ‘aprendiz’ pela paróquia a um Peter Grimes ou a um carvoeiro bêbado, em algum ‘antro’, estava submetido a um tratamento cruel, num isolamento ainda mais terrível”. Porém, com o aumento da pobreza e a falta de recursos financeiros, os operários viram a necessidade de introduzirem seus filhos para que dessa forma pudessem obter um pouco mais de recurso financeiro para a subsistência do lar. 3037
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Um número cada vez maior de empregados era necessário para atender à crescente procura, e por isso tais intermediários levavam sua matéria-prima não apenas aos membros das corporações que, nas cidades, estavam dispostos a trabalhar para eles, mas também para os homens, mulheres e crianças das aldeias. (HUBERMAN, 1986). Para essas crianças e adolescentes, a rotina de trabalho era dada de igual modo a dos adultos, trabalho explorado e desumano nos chãos das fábricas, trabalhando por longas e exaustivas horas, sem direito a nenhuma lei que pudesse protegê-los e assegurá-los contra qualquer adversidade proveniente do trabalho explorador, o que de certa forma acabou se assimilando a um trabalho escravo. Geralmente começavam a trabalhar aos seis anos de idade em uma carga horária que chegava a uma jornada de 14 horas por dia, iniciavam as atividades extremamente cedo e saiam das fábricas já à noite. Recebiam salários inferiores, correspondente à quinta parte de um salário de uma pessoa adulta. Muitos não resistiam às condições precárias de trabalho e chegavam a morrer nos chãos das fábricas devido aos inúmeros acidentes que sofriam. A violência física era presente e constante no âmbito das fábricas e indústrias, devido à rotina exaustiva de trabalho que essas crianças eram submetidas. Com o passar dos tempos era inevitável o cansaço, a fadiga e o esgotamento das forças, o que levava à diminuição do ritmo das atividades laborais. Então era muito comum essas crianças sofrerem punições que se davam em forma de castigos severos, socos e tantos outros tipos de agressões que eram aplicados para punir desatenção, atrasos, conversas durante o trabalho e qualquer outra coisa que colocasse em ameaça o processo de produção. LUCA (2001), em relação ao trabalho infantil noturno, vai mostrar e enfatizar como se estabelecia a jornada de trabalho entre as crianças e a violência a que eram submetidas. “As crianças entravavam às 19 horas e saiam às 6 horas da manhã, tendo um intervalo de 20 minutos, à meia-noite. Além da exaustiva jornada noturna, as crianças queixavam-se de espancamento pelo mestre de fiação”. Muitas acabavam fugindo e eram vistas como caso de polícia, pois as colocavam no mesmo patamar de criminosos sendo fichadas quando encontradas. Os que não eram pegos pela polícia ficavam à mercê da criminalidade que acabava sendo uma 3038
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI alternativa de sobrevivência. Para essas crianças e adolescentes, a exploração sexual e os atos infracionais, eram talvez os únicos meios de garantir sua sobrevivência. O que se observa é que o período de Revolução Industrial na medida em que proporcionou avanços tecnológicos na forma de produção da mercadoria, acabou sendo um período tenebroso para muitos e principalmente para essas crianças e adolescentes que viviam nesse contexto de exploração do trabalho. MARX (1988) destaca: [...] milhares de braços tornaram-se de súbito necessários. [...] Procuravam- se principalmente pelos pequenos e ágeis. [...] Muitos, milhares desses pequenos seres infelizes, de sete a treze ou quatorze anos foram despachados para o norte. O costume era o mestre (o ladrão de crianças) vesti-los, alimentá-los e alojá-los na casa de aprendizes junto a fábrica. Foram designados supervisores para lhes vigiar o trabalho. Era interesse destes feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que deles podiam extrair. [...] Os lucros dos fabricantes eram enormes, mais isso apenas aguçava-lhes a voracidade lupina. Começaram então a prática do trabalho noturno, revezando, sem solução de continuidade, a turma do dia pelo da noite o grupo diurno ia se estender nas camas ainda quentes que o grupo noturno ainda acabara de deixar, e vice e versa. Todo mundo diz em Lancashire, que as camas nunca esfriam. (1988, p. 875-876). Às ordens da criminalidade: uma realidade presente nos dias atuais Podemos observar que o motivo de haver tantas crianças e adolescentes inseridas no mundo do crime nos dias atuais, se dá devido a uma construção histórica de desigualdades sociais perpassadas por séculos e muito pouco se fez para mudar tal situação. ABREU (2016, p. 38) enfatiza que a criança, no período da Revolução Industrial, era apenas um instrumento de uso de mão de obra barata utilizada pelos capitalistas no intuito de produzir a mais-valia. “Sob o capitalismo nascente, a criança transformou-se em um valor mercantil em potencial, deixando de ser um fardo, para emergir como força de produção, lucro e riqueza para o Estado”. Aqui no Brasil não foi diferente da Europa no que se refere à exploração de crianças e adolescentes. No período colonial, a criança era vista de igual modo a um adulto. Crianças índias e negras eram o principal alvo dos colonizadores que se utilizavam da exploração desses seres indefesos passando a escravizá-los. De acordo com Faleiros (1995, p. 224): “sofriam humilhações, maus-tratos e abusos sexuais, e, no 3039
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI entanto, não havia muitas crianças escravas abandonadas, uma vez que sua sina estava traçada como propriedade individual, como patrimônio e mão-de-obra”. Abreu (2016) também vai afirmar assim como Faleiros, que a criança no tempo do Brasil Colônia era enxergada como um indivíduo desvalorizado: […] as terras brasileiras começaram a ser povoadas em 1530 e além dos homens e mulheres que aqui aportaram nas embarcações portuguesas do século XVI, havia também a presença de crianças. [...] As crianças eram expostas a muitos sofrimentos no difícil cotidiano em alto mar, em qualquer circunstância. Grumetes e pajens sofriam abusos sexuais de marujos rudes e violentos e as órfãs tinham de ser guardadas e vigiadas para que se mantivessem virgens, pelo menos até desembarcarem em terra firme. […] Os grumetes, meninos de nove a 16 anos, e não raras vezes de menor de idade, eram recrutados pela Coroa entre o órfão desabrigado e famílias de pedintes, para servir nas embarcações lusitanas. Apesar da baixa idade, realizavam a bordo as tarefas mais pesadas e perigosas, sofriam com as longas travessias marítimas, por disporem das piores acomodações, além de receberem uma ração restrita e de péssima qualidade, frequentemente contaminada por microrganismos causadores de constantes diarreias. Além da inalação, do escorbuto, das condições insalubres das naus e das doenças que grassavam em alto mar, muitos grumetes eram sodomizados por marujos e oficiais inescrupulosos. (ABREU, 2016, p. 39, 40). Todos esses fatores agravantes relacionados às crianças e adolescentes contribuíram de forma direta para a ampliação da criminalidade, que com o passar dos anos e mesmo com o fim da escravidão, tem se intensificado com força total na sociedade contemporânea. A crescente participação de crianças e adolescentes no crime ocorre de forma muito prematura. Em geral, essas crianças começam na criminalidade com menos de 12 anos de idade, o convívio em regiões onde favorece o aumento da criminalidade faz com que o tráfico, a violência configurada nas mais diversas formas sejam a única alternativa para elas, sem contar que, na grande maioria das vezes, os mesmos são criadas em lares totalmente desestruturado, rodeados de inúmeras problemáticas tais como: drogas, prostituição, violência, seja ela de caráter físico, sexual ou moral, desemprego e falta do mínimo necessário para sobrevivência como alimentos, roupas, abrigo, etc. Em concordância com esse fato, o site redebrasilatual.com apresenta os dados que apontam para a crescente participação desse público na criminalidade entre os anos de 2006 a 2017. De acordo com a pesquisa, que envolveu 261 jovens e adultos inseridos na rede do tráfico de drogas no varejo, a principal faixa etária em que os entrevistados afirmam ter entrado na atividade ilícita corresponde ao período 3040
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI entre 13 e 15 anos, com 54,4% das respostas. O estudo levanta ainda um dado preocupante: o aumento no número de pessoas que entrou para o tráfico entre 10 e 12 anos de idade. Esse percentual passou de 6,5% em 2006 para 13% em 2017. O principal motivo citado para justificar a entrada no tráfico é a questão financeira, 62% alegam que queriam ajudar a família e outros 47%, ganhar muito dinheiro. A busca por adrenalina, a ligação com amigos e a dificuldade em conseguir um emprego também estão entre as razões mais citadas. O relatório acrescenta que 66,3% dos entrevistados tiveram experiência profissional anterior à entrada no tráfico, mas encontraram condições de trabalho precárias, o que tornou a opção pela atividade ilícita mais atraente. (REDAÇÃO RBA, 2018). Outro agravante que é percebido em muitas dessas famílias é a não participação efetiva dos pais na criação dessas crianças e adolescentes. Muitos são presidiários e cumprem penas também por crimes cometidos, outros são foragidos da polícia e acabam abandonando suas famílias, nesse contexto, a criança e o adolescente acabam crescendo e sendo direcionados a praticar atos infracionais que acarretam em crimes agravantes ligados à violência. O ato delinquente pode ser compreendido como um ato simbólico que se reveste de esperança se ouvirmos que há um pedido de reconhecimento, uma busca do pai simbólico, decorrente de uma fragilidade na filiação, já que o pacto social não sustenta o pacto edípico. Não estamos aqui defendendo que o crime é uma consequência direta da pobreza; estamos afirmando que há relação entre filiação, pertencimento, laço social e ato criminoso. Entendemos por ato criminoso não apenas o roubo, o furto, o homicídio, mas também não oferecer filiação e pertencimento a grande parte da população. Um Estado que não dá essa sustentação ao sujeito é perverso. Por isso, acreditamos que um caminho significativo para diminuir a criminalidade é investir em tudo que favoreça a cultura, que dê ao sujeito um lugar social que garanta sua pertença à sociedade na qual vive. (SEQUEIRA, 2011, p. 28). Diante desse quadro de desordem no lar, muitas crianças e adolescentes tomam para si a responsabilidade de prover o sustento da família, visto que em grande parte dos casos não há a figura paterna, a quem deveria ser incumbida a tarefa de provedor. Outros têm seus pais presentes, porém, esses acabam reproduzindo nos filhos o mesmo direcionamento errôneo que foi passado a eles, tornando-se um ciclo hereditário de desestruturação familiar. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente: \"É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz\". (ECA – Art. 60). Mas como não trabalhar quando se vive em situação de miséria? O que fazer quando o mercado de trabalho fecha as portas para esses indivíduos que vivem em estado de vulnerabilidade e que não têm meios para se qualificar para tal? Como 3041
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI corresponder às expectativas da sociedade se não há expectativa de vida para essas crianças e adolescentes? Daí o grande questionamento do presente artigo: O crime é o que nos resta? Infelizmente essa tem sido a única opção escolhida por muitos, não porque querem, mas porque precisam para poder sobreviver. Um tanto contraditório quando se diz que estão encontrando no crime um meio de sobrevivência, visto que vai ser a própria criminalidade que acabará ceifando essas vidas. Ou seja, além da situação de descaso em que vivem, além da falta de recursos financeiros que possa proporcionar o mínimo necessário para se manter, ao entrarem na criminalidade é como ter entrado em um jogo de roleta russa no qual vão contar com a sorte para manter-se vivos. E mesmo sobrevivendo, é comum em meio a esse público inserido na criminalidade, ser alvo de ações policiais nas quais se empenham em remover do convívio social o que eles denominam de “risco à população”. Dessa forma, muitos são detidos, visto que a vida de criminalidade acompanha essas crianças e adolescentes até a fase adulta, isso se conseguirem atingir essa fase, visto que o mundo da criminalidade ceifa as vidas de forma precoce. Encerrado em prisões, esses indivíduos são tratados sem nenhuma dignidade, passam a ser a escória da sociedade. Um lugar que deveria prepará-los reabilitando-os para voltar ao convívio com a sociedade acaba sendo o grande proporcionador de aumento da própria criminalidade. E ao cumprirem a pena saem sem expectativa de vida, sem um direcionamento, sem um amparo das autoridades que deveriam inseri-los na sociedade como cidadãos dotados de direitos e deveres. Em meio a essa situação de desamparo, acabam voltando para a criminalidade, reforçando o questionamento feito anteriormente que agora passa a ser uma afirmação em que vão dizer que devido a tais circunstâncias o crime de fato é o que lhes restam. A prisão não cumpre o papel ressocializador e reabilitador a que se atribui a sua existência; pelo contrário, os altos índices de reincidência demonstram que ela possui rupturas significativas dos laços sociais. Alguns chamam esse processo de prisionização, pois os internos adquirem hábitos e valores condizentes com o ambiente prisional, cuja ética e moral diferem dos valores socialmente incentivados. O confinamento transforma-se em uma maneira de neutralizar uma parte da população excedente, provocando, estrategicamente, rupturas com o trabalho, com uma identidade social, com pessoas efetivamente significativas, com tudo que tinha valor antes da prisão. Então após o aprisionamento e suas estratégias de aniquilamento do eu, 3042
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI temos um novo homem, desenraizado, sem trabalho, sem família. (ABREU, 2011, p. 22 e 23). É duro de digerir tal situação, porém é a realidade nua e crua que está latente no nosso dia a dia. Países como o nosso que não investem em educação de qualidade só tendem a conduzir-se para esse patamar de pauperização, criminalidade e desmonte dos poucos direitos já conquistados, o que não deixa de ser uma jogada estratégica do neoliberalismo. Infelizmente, essa realidade ainda é presente em nossa sociedade no dia a dia. Apesar de se ter uma lei que garanta a proteção de crianças e adolescentes, para muitos, isso não passa de uma utopia a violência que por sua vez se configura de variadas formas, está presente em todas as camadas sociais. Porém, é nas camadas mais periféricas que essa violência vai se expressar de forma escancarada. A falta de assistência para com essa população que vive em estado de vulnerabilidade, como também o descaso das autoridades públicas que por sua vez deveriam investir em mais educação de qualidade para com essas crianças e adolescentes assim como programas de geração de rendas para seus familiares, não apenas dando o peixe, mas ensinando-os a pescar, ou seja, possibilitando que essas famílias sejam preparadas para o mercado de trabalho, é um dos principais motivos para a ampliação dessa criminalidade. Porém, o que se tem observado é que não há uma preocupação por parte destes que detêm os meios para mudar tal situação e devido essa falta de atenção para com a população carente e em estado de vulnerabilidade acaba proporcionando uma ampliação da criminalidade envolvendo esse público de infantojuvenil. [...] temidos e ameaçados, eles (adolescentes infratores) buscam um lugar que lhes é negado. A escola já não sabe acolhê-los. A família representa um controle muito menor do que em outras épocas. [...] Na nossa sociedade, as comunidades ou relações de vizinhança já não aparecem como os fatores mais decisivos das relações (CRAIDY E GONÇALVES, 2005, p. 20). O Serviço Social no judiciário: demandas, desafios e propostas É em meio a esse cenário de descrédito e descaso que vai surgir uma personagem importante para atuar como o protagonista, o assistente social, que fará com que essas crianças e adolescentes, até então esquecidas pela sociedade e pelo 3043
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI poder público, passem a se inserir na sociedade como cidadãos constituídos de direitos e deveres garantidos e assegurados por lei. O assistente social é o profissional mediador que tem seus princípios pautados no Código de Ética Profissional que visa à defesa dos direitos humanos. Esse profissional vai trabalhar com o objetivo de garantir que direitos sejam respeitados, indo além de uma visão conservadora e moralista da sociedade diante das respectivas demandas. O papel do serviço social inserido no campo sócio jurídico é fundamental para a elaboração de políticas públicas e medidas protetivas e socioeducativas, que garantam a essas crianças e adolescentes uma possibilidade de mudança de vida. Respaldados no (ECA) – Estatuto da Criança e do Adolescente, esses profissionais passam a ser os agentes interlocutores nas lutas por direitos e proteção das crianças e adolescente. Antes da criação do ECA, as ações voltadas para esse público inserido na criminalidade se estabeleciam na doutrina da situação irregular, ou seja, a perspectiva era fundamentalmente corretiva. Já com o surgimento do ECA, a prioridade estabelecida foi na garantia de direitos, em concordância com o que preconiza a Constituição Brasileira de 1988. Dessa forma, passou-se a entender que a criança e o adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, independentemente de ter cometido ou não atos infracionais. A Constituição Federal de 1988 é outra ferramenta crucial que vai servir de instrumento para os assistentes sociais na defesa e garantia de direitos a esse público alvo, conforme consta em seu Art. 227 que a garantia e a proteção da infância e da juventude se objetiva e se pauta na definição de que crianças e adolescentes são portadoras de direitos e esses direitos são de responsabilidade da família, da sociedade e do Estado: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Art.227 da CF/1988). Através da mediação dos assistentes sociais com o judiciário para com essas crianças e adolescentes infratores, é possível garantir uma inserção na sociedade que 3044
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI não seja através de punições de caráter violento, mas sim por meio de medidas socioeducativas e com a devida assistência dada de forma adequada. É a intervenção que dá forma, caracteriza e determina o modo do fazer profissional, desvelando a especificidade do Serviço Social no campo das ciências sociais aplicadas. [...] desenvolve-se por um conjunto de ações com o usuário, com a equipe, nas diversas instâncias institucionais e locais, espaços em que se manifestam as relações objetivas e subjetivas. Neste sentido é através da intervenção que se operam os significados, os rumos, as mediações, a intencionalidade da ação profissional, revelando, assim, os valores morais, éticos e políticos. (Rodrigues, 1999, p. 15). O fazer profissional do Serviço Social se dá de maneira separada, no entanto, esse trabalho vai se articular através dos instrumentos políticos, administrativos e legais, dos mecanismos de proteção social que se objetiva na viabilização do acesso aos resultados desses instrumentos, dos órgãos que são os espaços utilizados pelos defensores de direitos, e das ações que são as práticas sociais implementadas pelos defensores. O Serviço Social atua em meio inúmeras contradições. Nesse sentido, é de fundamental importância que o profissional se construa e se capacite de maneira que possa entender os mecanismos e estratégias pelos quais a estrutura social se reproduz. Pois, a compreensão dessas problemáticas e do sistema que as envolvem, permite ao profissional esclarecer e compreender a realidade que só é vista na maioria das vezes apenas pelo senso comum. Dessa forma, ao se adquirir o conhecimento da totalidade é que a intervenção poderá atingir os objetivos previstos no Projeto Ético Político da profissão. Nesse momento que se instala em meio a participação dos indivíduos constituídos de direitos, no desenvolvimento das lutas sociais para garantia dos direitos humanos e, sem dúvida, esse passa a ser um dos maiores desafios enfrentados pelos Assistentes Sociais principalmente no campo sócio jurídico. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por mais que se levantem profissionais empenhados em querer de certa forma mudar a realidade social e assim causar um efeito positivo, o que podemos observar é que na grande maioria das vezes ou quase sempre, isso não sai da teoria, do discurso 3045
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI utópico. Mas não é culpa desses profissionais, e sim daqueles que detêm o poder para mudar tal situação. O Brasil hoje é o modelo de descaso mais evidente que podemos observar. É um país que tem assumido uma conjuntura conservadora apoiada em um neoliberalismo que prioriza o desmonte dos direitos conquistados e o enriquecimento dos grandes empresários e assim favorecendo o aumento das misérias e mazelas da população pobre. Por mais que profissionais como os assistentes sociais e tantos outros de áreas diversas que se dedicam a lutar por igualdade e justiça social se levantem, no propósito de trazer melhorias a população, em determinados momentos, são de certa forma impedidos de realizarem tais feitos. Porém, mesmo com todo esse bloqueio que surge em sua frente, esses profissionais são a resistência. Essa resistência é necessária para que os direitos conquistados não sejam extintos. Desta forma a população, principalmente crianças e adolescentes, envolvidos em problemáticas de caráter ligados à criminalidade, possam se acertar com a lei e conquistar seu lugar na sociedade como cidadãos dotados de direitos. REFERÊNCIAS ABREU, Cristiane de Cássia Nogueira Batista de. A infância vitimizada: retratos da violência doméstica contra a criança / Cristiane de Cássia Nogueira Batista de Abreu. - 1 ed. - Curitiba: Appis; 2016. ADORNO, Luís. Número de adolescentes apreendidos cresce seis vezes no Brasil em 12 anos. São Paulo. 30 de outubro de 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/10/30/numero-de- adolescentes-apreendidos-cresce-seis-vezes-no-brasil-em-12-anos.htm. Acesso em: 25 de janeiro de 2020. BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. - 10ª. ed. rev. e atual. – (Brasília): Conselho Federal de Serviço Social, (2012). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1998). Disponível em: www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_06.06.2017/art_227_.asp. Acesso em: 25 de janeiro de 2020. 3046
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) Estatuto da Criança e do Adolescente: disposições constitucionais pertinentes: Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. – 6. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2005. CRAIDY, Carmem Maria; GONÇALVES, Liana Lemos. Medidas socioeducativas. Da repressão à educação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Industria, trabalho e cotidiano: Brasil – 1889 a 1930. São Paulo: Atual, 1991. – (História em documentos). FALEIROS, Vicente. Infância e processo político no Brasil. In: PILLOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (Orgs.). A arte de governar crianças. A história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano DelNiño/Santa Úrsula/Amais Livraria e Editora, 1995. HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Leo Huberman. 21. ed. rev. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. LUCA, Tânia Regina de. Indústria e Trabalho na História do Brasil. Do café à Revolução Tecnológica. São Paulo: Contexto, 2001. MARX, Karl. O Capital. São Paulo. Difel, 1988. RBA, Redação. Pesquisa aponta que jovens entram cada vez mais cedo no tráfico de drogas. Rede Brasil Atual, São Paulo. 02 de ago. de 2018. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/08/pesquisa-aponta-que-jovens- entram-cada-vez-mais-cedo-no-trafico-de-drogas/. Acesso em: 10 de fevereiro de 2020. RODRIGUES, Maria Lúcia (Org.). Ações e interlocuções: estudos sobre a prática profissional do assistente social. 2. ed. corr. São Paulo: Veras, 1999. (Série Núcleos de Pesquisa, n. 2. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&ref=000162&pid=S0101- 6628201100010000300008&lng=en. Acesso em: 1º de fevereiro de 2020. SEQUEIRA, Vânia Conselheiro. Vidas abandonadas: crime, violência e prisão/Vânia Conselheiro Sequeira. – São Paulo: EDUC: FAPESP, 2011. THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. V. II, 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1987. 3047
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS O USO DE UM GAME COMO FERRAMENTA DE PROMOÇÃO DE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS EM ESCOLAS A GAME AS A TOOL FOR THE PROMOTION OF ETHNIC-RACIAL RELATIONS IN SCHOOLS Patrícia Krieger Grossio1 Gabriel Moraes Machado2 Cássia Engres Mocelin3 RESUMO Educar em direitos humanos e promover a igualdade das relações étnico-raciais é fundamental para a construção da cidadania. Sabe-se, entretanto, que, apesar de a Lei 10.639 estabelecer a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana nas escolas, há uma lacuna em sua implantação. Pautado nisso, se propôs a criação de um jogo com enfoque em elementos da cultura e história africana. O jogo é desenvolvido com uma turma do segundo ano do ensino fundamental de uma escola do sul do Brasil, composta por crianças de 8 a 10 anos majoritariamente de etnia negra. O objetivo deste artigo é discutir a potência desse jogo enquanto ferramenta de aplicação da Lei 10.639 e de engajamento dos alunos no debate dessa temática em sala de aula. Palavras-Chaves: Relações Étnico-Raciais. Direitos Humanos. Jogos Educativos. ABSTRACT The education on human rights and the promotion of better ethnic- racial relations are fundamental in the process of constructing citizenship. It is known that the Brazilian Law 10.639, which makes the teaching of African history and culture in schools compulsory, has faults in its implementation. Based on the above-mentioned, we are developing a game with African culture and history's elements. The game is being built with a class of the second year of primary school in the South Region of Brazil. The class is composed of children between 1 PhD em Serviço Social pela Universidade de Toronto, Canadá. Professora do curso de Serviço Social da PUCRS. Pesquisador produtividade 1C do CNPq. E-mail: pkgrossi@pucrs.br 2 Psicólogo. PUCRS. E-mail: gabriel.moraesmachado@gmail.com 3 Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pela PUCRS. Bolsista CAPES PROEX. cassiaengres@hotmail.com 3044
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI the ages of 8 and 10 who are mostly of Afro-Brazilian ethnicity. Our purpose is to discuss the power of this game as a tool for the application of the Law 10.639 and as a motivation for students to discuss ethnic-racial relations in the classroom. Keywords: Ethnic-Racial Relations. Human Rights. Educational Games. INTRODUÇÃO A construção da cidadania – compreendendo a educação em direitos humanos, assim como a promoção da igualdade das relações étnico-raciais – ocorre nos processos de educação formal e não formal (CANDAU e SACAVINO, 2013). Nessa tarefa, os espaços formais de educação têm grande importância, uma vez que não só têm papel importante na propagação de padrões culturais, mas também pela sua potência enquanto espaços possíveis de debate e problematização, sendo estas essenciais para a educação em direitos humanos (CANDAU e SACAVINO, 2013). No Brasil, os últimos anos apresentam uma gama de estudos que têm como foco o desenvolvimento de jogos educacionais e o uso da gamificação – resumidamente a utilização de elementos dos jogos para a resolução de problemas – como ferramenta capaz de aumentar o interesse, motivação e engajamento dos estudantes em diversos temas abordados nos espaços de educação. Não só isso, tais práticas têm potencial de ampliar os espaços de ensino para além da sala de aula, levando o aluno a ter um contato espontâneo com as temáticas fora do espaço educacional (MONTE e DEMOLY, 2012; OLIVEIRA, BITENCOURT e MONTEIRO, 2016). Partindo dessa perspectiva, estamos desenvolvendo um jogo que se baseia em elementos da história e cultura africana para promover discussões sobre a temática étnico-racial. O projeto conta com uma equipe interdisciplinar composta por professores e estudantes de Serviço Social, Engenharia de Software, Design, Educação e Psicologia. O objetivo é que esse game sirva como porta de entrada para a abordagem do tema em sala de aula e como ferramenta de engajamento dos alunos nessa temática. Este artigo busca discorrer sobre as potencialidades do uso dessa ferramenta na educação em direitos humanos e na promoção de um incremento positivo nas relações étnico-raciais nas escolas e para além delas. 3045
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O desenvolvimento do projeto do game contou com uma pesquisa qualitativa, abordagem escolhida devido à sua potencialidade de abordar as complexidades do objeto estudado – as relações étnico-raciais – entendendo a problemática e as interações de variáveis com tais relações, assim como os processos dinâmicos envolvidos nos grupos sociais (DIEHL e TATIM, 2004). O estudo é desenvolvido com uma turma piloto do segundo ano do fundamental composta por crianças de 8 a 10 anos de um colégio público do sul do Brasil. Tal amostra foi escolhida por conveniência ou acessibilidade (GIL, 2002). Há também uma análise do projeto político-pedagógico da escola, com enfoque na educação em direitos humanos e cultura e história africana. Para a coleta de dados, utilizou-se entrevistas com o grupo de crianças e com a professora responsável pela turma, com a finalidade de entender que tecnologias e conteúdos essas crianças consumiam. Para a análise de dados, adotou-se a análise de conteúdo de Bardin (2011), que compreende três fases: formulação, execução e análise. No desenvolvimento do jogo, utilizou-se a metodologia do design thinking, que envolve ao menos quatro etapas, sendo elas: imersão, ideação, prototipação e desenvolvimento. Na etapa de imersão, obtém-se a empatia dos sujeitos, atores do produto e as demandas efetivas acerca do problema a ser tratado. Na etapa de ideação, são utilizadas técnicas de brainstorming, com o objetivo de instigar questionamentos e sugestões acerca da solução a ser desenvolvida. Na terceira etapa, prototipação, as sugestões apresentadas pelos envolvidos (alunos e professora) são estruturadas por meio de uma proposta (como uma tela, um formulário, um cenário de um jogo etc.) para que, então, sejam validadas. Por último, na etapa de desenvolvimento, a solução é efetivamente implementada – no caso deste projeto de pesquisa, a implementação do game propriamente dito. O processo de design thinking é interativo e, portanto, envolve múltiplas interações entre os envolvidos e a equipe de design para o desenvolvimento e aprovação da solução (VIANA et al., 2012). 2 O GAME E A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS Conforme as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, essa constitui-se como um dos eixos fundamentais do direito à educação. Tem como finalidade a promoção de uma educação que objetive a mudança e a transformação social e fundamenta-se nos princípios da dignidade humana, da igualdade de direitos, 3046
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI no reconhecimento e valorização das diferenças e da diversidade, na laicidade do Estado, na democracia na educação, na transversalidade, vivência e globalidade e na sustentabilidade socioambiental (BRASIL, 2012). A educação em direitos humanos como um processo orientador da formação integral dos sujeitos de direitos possui como uma das suas dimensões a serem articuladas o “[...] desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados” (BRASIL, 2012, p. 2). Nesse sentido, a construção de um jogo como uma ferramenta potencializadora da educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, vem ao encontro da educação em direitos humanos. Com isso, o jogo articula, ao mesmo tempo, forma e conteúdo, direitos humanos e relações étnico-raciais, escola e realidade/contexto social. Partimos do entendimento de que a construção coletiva de um game sobre a cultura negra envolve um processo de construção de cidadania no sentido de materializar a Lei 10.639/2003. Para Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 42), a “[...] cidadania não é dada aos indivíduos de uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas é o resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo histórico de longa duração”. De forma semelhante, Milton Santos chama a atenção para a estabilidade precária da cidadania, uma vez que está sempre em situação de ameaça, assim como os direitos humanos, que não são dados, são frutos de reivindicação e luta permanente para a sua efetivação: Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruição das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido. A cidadania [...] para ser válida deve poder ser reclamada. (SANTOS, 2007, p. 20). A cidadania da população negra, por muito tempo, foi negada devido à escravidão, e ainda hoje esse segmento populacional sofre os resquícios dessa herança escravocrata, resultando no fato de que negros e negras ocupam as piores posições sociais na estrutura hierárquica social, com os menores índices de escolaridade e renda e ocupando os trabalhos mais precarizados. Para Adilson Moreira (2017, p. 1053), 3047
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI [...] a natureza estrutural do racismo nos fornece elementos essenciais para compreendermos a realidade de um pertencimento subordinado. Ele regula o funcionamento de instituições públicas e privadas, as interações pessoais na vida cotidiana, as representações culturais de grupos minoritários. Partimos do pressuposto de que a escola não está separada dos conflitos e violências estruturais que estão presentes na realidade social, como o racismo estrutural, portanto, a escola é atravessada, e por vezes determinada, por esses determinantes étnico-raciais e sociais. Assim, os conflitos, os preconceitos e as discriminações também fazem parte do cotidiano escolar. Contudo, a escola apresenta- se, também, como um lugar privilegiado para a adoção da educação em direitos humanos, a fim de acolher, reconhecer, mas, sobretudo, enfrentar tais condutas que violam direitos humanos, pois “Educar aos direitos humanos significa educar ao paradigma dos direitos humanos, isto é, a um conjunto coerente de teorias, métodos e, especialmente, considerando a dimensão da experiência como ponto de partida” (CESCON e STECANELA, 2015, p. 92). Além disso, no entendimento de Pinheiro (2015), a ideia de uma educação em direitos humanos tem como princípios básicos os princípios de tolerância e respeito. Educação em direitos humanos é definida como a prática educativa que se funda no reconhecimento, na defesa, no respeito e na promoção dos direitos humanos. Trata- se de uma formação que respeita as dimensões históricas, políticas e sociais da educação e que se baseia nos valores, princípios, mecanismos e nas instituições relativas aos direitos humanos em sua integralidade e em sua relação de interdependência e indivisibilidade com a democracia, o desenvolvimento e a paz. Educar em direitos humanos significa, portanto, educar para o exercício dos direitos. (CESCON e STECANELA, 2015, p. 96). Com base nesta perspectiva, os direitos humanos não estão restritos ao regramento normativo em nível nacional e internacional. Eles devem ir para além, ganhar materialização e concretude em práticas cotidianas que atravessam as diferentes culturas que compõem a diversidade humana. “Não se educa para os direitos humanos trancados numa sala, durante algumas horas por semana. Educar em direitos humanos supõe ultrapassar a transmissão verbal e passar ao agir” (CESCON e STECANELA, 2015, p. 96). 3048
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3 É SÓ UM JOGO! EUROCENTRISMO, CULTURA E REPRESENTAÇÃO Os videogames têm ganhado grande popularidade nos últimos anos. Passmore et al. (2017) apontam que essa mídia superou outras formas de mídia em termos de popularidade e consumo. Todavia apontam um grande hiato da presença da diversidade nas narrativas desses jogos. Passmore et al. (2017) também trazem que, no cenário americano, embora haja um massivo contingente de jogadores negros, um estudo apontou que, de 4966 personagens em 150 jogos de 2009-2015, apenas 9,67% eram negros enquanto 84,95% eram brancos. Apesar de se tratar de um estudo americano, seu impacto pode ser pensado no espaço brasileiro, uma vez que o jogo no Brasil é um produto que massivamente vem por meio da importação. Essa tendência dos games vem na contramão de outras mídias, como séries e filmes – principalmente em serviços de streaming - que já apresentam uma evolução da representação de diversidade em suas narrativas (PASSMORE et al., 2017). Anibal Quijano (2005, p. 1) disserta sobre como a tendência da globalização é a “[...] culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial”, trazendo que, a partir disso, é possível a disseminação da colonialidade, que, por sua vez, é uma colonização na esfera do pensamento, uma experiência mental do eurocentrismo que estabelece uma concepção de uma raça e cultura superior, evoluída, em detrimento de outras, sendo o próprio conceito de raça uma construção para agenciar a construção dessas identidades e papéis sociais. Aliado a isso, no Brasil dos anos trinta, inicia-se um processo que é altamente disseminado nos dias de hoje, o mito da democracia racial, que traz uma falsa celebração da diversidade e uma relação racial ambígua, com ausência de distinções raciais e de classe. Todavia, seguem-se claras no cotidiano as relações de poder e discriminação, uma incompatibilidade do ser negro – na ausência de suavizações dessa negritude – com o prestígio social. Sansone (2003) refere que esse mito da democracia racial é amplamente aceito pela população, conforme segue: [...] trata-se de um mito aceito pela grande maioria, reproduzido na vida cotidiana, e que, em certo sentido, reflete uma realidade digna de análise antropológica e não pode ser tratado como se fosse uma farsa imposta de cima para baixo a fim de ocultar o racismo, ou uma espécie de falsa consciência (étnica) [...] Nas classes mais baixas, esse mito popular coexiste 3049
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI com a minimização da diferença de cor nas práticas sociais, com momentos de intimidade extra-racial e com a criação de estratégias individuais destinadas a reduzir a desvantagem racial. (entretanto) em algumas situações, essas estratégias individuais associam-se a tentativas problemáticas de manipular a aparência física negra no cotidiano. (SANSONE, 2003, p. 11). A formação de relações sociais nessas premissas constrói um jogo de poder baseado no sentimento da inferioridade, inadequação e distorção. A formação de relações sociais fundadas nessa idéia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, conseqüentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. (QUIJANO, 2005, p. 117.) Em consonância com o supracitado, Higgin (2008) aponta uma tendência em jogos de fantasia de possuírem massivamente personagens brancos e construções de mundo eurocêntricas, sendo a “diversidade” representada por raças fantasiosas de colorações de pele atípicas (verde, amarelo, laranja etc.), configurando isso uma estratégia para não representar personagens negros. Na mesma linha, Passmore et al. (2017) usam o termo “High Tech Blackface” (Blackface tecnológico) para simbolizar que trabalhar a diversidade nos jogos vai além de “pintar a pele” – prática que aponta como comum nos jogos – mas sim que esses personagens necessitam ter uma história, aparência, linguagem, comportamento etc., baseados em sua cultura. Cabe salientar ainda que dados como os contidos no Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2016) e Atlas da Violência (IPEA, 2019) revelam um alarmante número de homicídios da população negra e do gênero feminino, reafirmando a importância da problematização desses tópicos. No ambiente escolar, a Lei 10.639, de 2003, torna obrigatória a inclusão do ensino de história e cultura africana no currículo escolar, todavia, na prática, poucas escolas têm tal implementação. Ver-se nesse “espelho eurocêntrico” produz uma distorção da autoimagem e um prejuízo à autoestima; logo, a produção de uma mídia baseada na cultura e história africana se faz importante para não só mitigar a falta de representação da cultura negra, 3050
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI mas também ajudar a operacionalizar a Lei 10.639 nas escolas, assim como para fortalecer a identidade e autoestima das crianças negras, uma vez que a falta de produtos representando essa população a leva a ter que consumir um produto com o qual não conseguem se identificar (se ver representadas), o que afeta os benefícios cognitivos, emocionais e sociais possíveis dessas mídias (PASSMORE et al., 2017). Além disso, Passmore et al. (2017) apontam que as poucas iniciativas de jogos com diversidade têm tido resultados muito positivos no engajamento desses públicos, o que denota o desejo por tais produtos. Não obstante, o jogo configura ainda uma potente ferramenta no processo de ensino-aprendizagem (ALVES, 2008). 4 O GAME E A PROMOÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Nesta seção, abordaremos algumas reflexões sobre o processo de concepção do jogo, que se encontra em estágio de desenvolvimento. Destaca-se o caráter de inovação e ineditismo no desenvolvimento desse game, pois, em pesquisa por jogos similares (ex. jogos Dandara e Angola Janga) em site voltados a essa mídia, não se identificou a existência de jogos que utilizassem elementos da cultura negra com uma perspectiva educacional. Ainda, em entrevista com a professora da turma, identificou-se que os heróis e personagens-referência das crianças da turma não eram negros, sendo inclusive relatado um caso em que a professora havia levado uma sacola com algumas bonecas – brancas e negras – e pedido para as crianças escolherem as princesas na sacola e nenhuma boneca negra foi escolhida. Ao questionar o porquê da escolha das bonecas brancas, as crianças falaram sobre a cor da pele e cabelo crespo das bonecas negras. Dados como esse demonstram o impacto da falta de referência e protagonismo de personagens negros em produções audiovisuais no imaginário e autoestima dessas crianças, uma vez que simbolicamente não há um espaço de protagonismo delegado a elas. Em conversas com a turma piloto, descobriu-se um maior interesse dessas crianças por jogos do gênero sandbox e soft horror (ênfase para a sensação de adrenalina e apreensão), além do alto consumo de canais e conteúdos digitais sobre jogos e gameplays. Visto isso, pensou-se em usar elementos característicos desses gêneros a fim de tornar o jogo mais atrativo para essa faixa etária, e em desenvolver uma narrativa que deixa diversos elementos em aberto, ou não totalmente explicados, 3051
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI além de breves referências (easter-eggs) com o objetivo de instigar a curiosidade dessas crianças e possibilitar que o(a) professor(a), a partir dessa curiosidade, aborde a temática em sala de aula, formato esse similar ao usado em gameplays e vídeos de curiosidades sobre games. Devido ao jogo ser pensado para ser consumido em sala de aula, o projeto inicial contará com quatro fases que funcionam tanto como aros individuais (com sentido fechado em si mesmo) como em conjunto (proporcionam um sentido expandido quando consumidos juntos), sendo que cada fase terá duração média – considerando fatores replay – de 30-45 minutos, podendo ser consumidas em um período de aula. Planeja-se, também, elaborar um material de apoio para professores com informações sobre o jogo e elementos históricos e culturais utilizados, de forma a facilitar o diálogo sobre o jogo. Cabe ressaltar que, pedagogicamente, o objetivo do jogo não é esgotar o conteúdo curricular sobre história e cultura africana, mas sim ser um elemento que instigue o engajamento dos alunos no aprendizado sobre a temática, assim como ser uma ferramenta de implementação da Lei 10.639. O jogo possuirá protagonista e personagens centrais negros, assim como personagens femininas de importância narrativa, contribuindo para a mitigação da lacuna dos espaços de protagonismo negro em produções audiovisuais, assim como para promover relações de gênero mais igualitárias. A construção da personagem não se restringirá à cor da pele, mas, sim, apresentará um contexto e história que o localize em sua cultura. A narrativa do jogo se passa em duas linhas, a realidade e a fantasia. Na linha da realidade, nossa(o) protagonista está prestes a iniciar aulas de capoeira, entretanto, ele(a) não possui uma boa relação com elementos da cultura africana devido a imposições sociais, atribuindo significado negativo a diversos elementos, como, por exemplo, o som dos tambores. Ao longo da narrativa, essa personagem reconstruirá seus conceitos acerca da cultura africana por meio de uma imersão fantástica nas histórias que ouve de sua mestra de capoeira e de sua família, as quais representam a linha narrativa da fantasia, que se desenrola através de sonhos e imaginação. Visualmente, a evolução da personagem – lida como um desprendimento dos preconceitos e atribuições negativas à cultura africana – poderá ser vista por suas vestimentas e cabelos, que adotam progressivamente elementos dessas culturas. A escolha da capoeira se deu por conveniência, por tratar-se de uma parte importante da 3052
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI cultura afro-brasileira, riquíssima em história e significado, além das possibilidades de gerar jogabilidade e de ser um bom fio condutor da narrativa. Esteticamente, o jogo trabalhará com cores e elementos visuais que remetem à cultura africana, assim como elementos de fauna, geografia, história e cosmologia africana, como o N’golo, Maraná, baobás, Kianda, Nzambi, o Quilombo de Palmares, menções à Angola, moscas tsé tsé etc. Como dito, a história se passa na realidade e fantasia, e a ideia inicial é que essas duas narrativas sejam marcadas de forma discreta entre si, representadas por meio de cores e estética distintas: na realidade, haverá cores e uma estética mais ligada à cultura ocidental, ao passo que, no campo da fantasia, as cores e estética serão mais ligadas à cultura africana. 5 CONCLUSÃO Diante do aumento da popularização de jogos e da cultura digital, estratégias como jogos e materiais gamificados se mostram como ferramentas para um engajamento eficaz, pois se utilizam de uma linguagem similar à utilizada pelas gerações mais novas. Busca-se, assim, adaptar o conteúdo didático a uma linguagem atrativa e estimulante, criando-se um elemento potencializador no âmbito da aprendizagem (ORLANDI, DUQUE e MORI, 2018; SANTOS e FREITAS, 2017). Uma vez que as produções audiovisuais são importantes para a formação e perpetuação do imaginário social (BIROLI, 2012), é importante produzir narrativas protagonizadas por negros, assim como por mulheres, a fim de mitigar a lacuna na representação dessa população em histórias e produções audiovisuais. Segundo Grossi et al. (2019), ao não se verem representadas nessas produções, as autoimagens, o reconhecimento de potencialidades e pertencimento étnico-racial das populações negras são afetados negativamente. A representação favorece, assim, o incremento à autoestima e autoimagem de meninos e meninas negras. A produção desse game é socialmente relevante – principalmente em face ao contexto atual de ataque e regressão de direitos humanos – e poderá servir não só como instrumento didático-pedagógico e lúdico para a aprendizagem da cultura africana, contribuindo para a implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 (que tornam obrigatório o ensino de história e cultura africana nas escolas) e para uma educação em direitos humanos e construção de cidadania, mas também para a valorização da cultura 3053
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI africana, representação dessa comunidade, valorização da identidade negra, possibilidade de reconhecimento da criança enquanto protagonista, além da valorização da diversidade étnico-racial e de gênero no ambiente escolar. REFERÊNCIAS ALVES, Lynn Rosalina Gama. Games e educação – a construção de novos significados. Revista Portuguesa de Pedagogia, n. 42-2, p. 225-236, 1 jul. 2008. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rppedagogia/article/view/1245. Acesso em 02 de junho de 2020. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2011. BIROLI, Flávia. É assim, que assim seja: mídia, estereótipos e exercício de poder. In: ENCONTRO COMPOLÍTICA, 4., 2012, Rio de Janeiro. Anais.... Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/rbcp/article/viewFile/5732/4738>. Acesso em: 01 abr. 2020. BRASIL. Ministério da educação. Conselho nacional de educação. Resolução nº 1, de 30 de maio de 2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Brasília, 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10 889-rcp001-12&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 23 maio 2020. BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, 11 mar. 2008. BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática \"História e Cultura Afro-Brasileira\", e dá outras providências. Diário Oficial da União, 10 jan. 2003. CANDAU, Vera Maria F.; SACAVINO, Susana Beatriz. Educação em Direitos Humanos e formação de educadores. Educação, v. 36, n. 1, p. 59-66, jan./abr. 2013. CESCON, Everaldo; STECANELA, Nilda. Educação à paz e em direitos humanos. Conjectura: Filos. Educ., v. 20, n. especial, p. 85-100, 2015. COUTINHO, Carlos Nelson. Cidadania e Modernidade. Perspectivas, v. 22, p. 41-59, 1999. 3054
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI DIEHL, Astor Antônio; TATIM, Denise Carvalho. Pesquisa em ciências sociais aplicadas: métodos e técnicas. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2004. GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. GROSSI, Patrícia Krieger et al. O uso de um game como instrumento de promoção de relações étnico-raciais e de gênero. In: SEMINÁRIO DE POLÍTICAS DO MERCOSUL, 7., 2019, Pelotas. Anais do VII SEPOME. Pelotas: UFPEL, 2019. v. 7, p. 1-12. HIGGIN, Tanner. Blackless Fantasy: the disappearance of race in massively multiplayer online role-playing games. Games and Culture, v. 4, n. 1, p. 3-26, 1 dez. 2008. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas da violência 2019. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_ atlas_da_violencia_2019.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2019. MONTE, Washington Sales; DEMOLY, Karla Rosane do Amaral. O Jogo Digital na Criação de Processos de Inclusão Social de Jovens. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE JUVENTUDE BRASILEIRA, 2012, Pernambuco. Anais... Pernambuco: UNICAP, 2012. Disponível em: <http://www.unicap.br/jubra/wp- content/uploads/2012/10/TRABALHO-71.pdf> Acesso em: 16 nov. 2018. MOREIRA, Adilson José. Cidadania Racial. Quaestio Iuris, v.10, n. 2, p. 1052-1089, 2017. OLIVEIRA, Thâmillys M.; BITENCOURT, Ricardo; MONTEIRO, Wilmara M. Experiências com Gamificação no Ensino de Computação para Jovens e Adultos no Sertão Pernambucano. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JOGOS E ENTRETENIMENTO DIGITAL, 15., 2016, São Paulo. Proceedings of SB Games 2016. São Paulo, 2016. ORLANDI, Tomás R.; DUQUE, Claudio G.; MORI, Alexandre M. Gamificação: uma nova abordagem multimodal para a educação. Biblios, n. 70, p. 17-30, 2018. PASSMORE, Cale J. et al. Racial Diversity in Indie Games. In: CHI PLAY, 2017. Extended Abstracts Publication of the Annual Symposium on Computer-human Interaction in Play - Chi Play '17. Amsterdam, 2017. p. 137-151. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1145/3130859.3131438>. Acesso em: 02 abr. 2020. PINHEIRO, Celso de Moraes. Respeito e tolerância: princípios para uma educação em direitos humanos. In: GUÉRIOS, Etiène; STOLTZ, Tania (org.). Educação em direitos humanos: qual o sentido?. Ijuí: Unijuí, 2015. p. 277-300. QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais – 3055
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clasco, 2005. p. 117-142. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 23 maio 2020. SANSONE, Lívio. Introdução: Um Paradoxo Afro-latino? Marcadores étnicos “ambíguos”, divisões nítidas de classe e uma cultura negra vivaz. In: SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2003. p. 9-35. SANTOS, Júlia de Ávila; FREITAS, André Luis Castro. Gamificação Aplicada a Educação: Um Mapeamento Sistemático da Literatura. Renote, v. 15, n. 1, jul. 2017. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007. VIANA, Maurício et al. Design thinking: inovação em negócios [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro: MJV Press, 2012. WAISELFSZ, Jacobo. Mapa da violência 2016: homicídios por armas de fogo no Brasil. 2016. Disponível em: <https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2019. 3056
EIXO TEMÁTICO 7 | DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS O TRATAMENTO AOS ADOLESCENTES AUTORES DE ATO INFRACIONAL: construção histórica de suas bases legais TREATMENT OF ADOLESCENT AUTHORS OF INFRATIONAL ACT: historical construction of their legal bases Mariana Almeida Rodrigues1 Vitória Beatriz Santana Alves2 RESUMO O referente artigo aborda a construção histórica de bases legais que foram direcionadas às crianças e adolescentes que praticavam/am atos considerados criminosos. Assim sendo seu objetivo é expor e esclarecer as bases legais antigas e atuais ligadas ao ato infracional e seu tratamento aos adolescentes, juntamente na sua construção histórica. A metodologia utilizada para pesquisa é de cunho bibliográfico, com referência na nota técnica do CFESS e artigos selecionados a partir do ano de 2010. Foi analisado durante a construção do trabalho que as bases legais destinadas aos adolescentes foram frutos de necessidades a partir de cada contexto histórico. Dessa forma foi verificada o desenvolvimento dessas bases legais, porém sua ineficiência quando aplica, principalmente na medida de internação, se aproximando ainda do seu caráter punitivo e repressivo, comparado as antigas formas de correção aos jovens e ao sistema carcerário. Palavras-Chaves: Crianças e Adolescentes. Contexto Histórico. Bases Legais. ABSTRACT The article refers to the historical construction of legal bases that were aimed at children and adolescents who practiced acts considered criminals. Thus, its objective is to expose and clarify the old and current legal bases related to the infraction act and its treatment to the adolescents, together in its historical construction. The methodology used for research is a bibliographical one, with reference in the 1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: mari.rodrigues.life@hotmail.com 2 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: vibeatrizsalves@gmail.com 3044
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI technical note of the CFESS and articles selected from the year 2010. It was analyzed during the construction of the work that the legal bases destined to the adolescents were fruits of needs from each context historic. In this way, it was verified the development of these legal bases, but its inefficiency when applied, mainly in the hospitalization measure, still approaching its punitive and repressive character, compared to the old forms of correction to the young people and to the prison system. Keywords: Children and Adolescents. Historical Contexto. Legal Bases. INTRODUÇÃO O presente artigo busca apresentar a evolução histórica dos direitos referentes às crianças e adolescentes, com ênfase no tratamento dado aos adolescentes em conflito com a lei. Trata-se de uma revisão bibliográfica, de cunho qualitativo que teve como fonte artigos científicos, bem como uma nota técnica do Conselho Federal de Serviço Social, disponibilizado no site do mesmo (http://www.cfess.org.br/). Quanto ao acesso dos artigos, foram por meio da biblioteca virtual SciELO (https://www.scielo.org/), o primeiro acesso fora no dia 18 de maio de 2019 e os assuntos pesquisados foram: ato infracional e medidas socioeducativas, dos quatro estudos selecionados, o mais antigo data do ano de 2010 e o mais recente, de 2015. Ao todo foram quinze resultados do assunto pesquisado. A análise qualitativa se efetivou com a leitura dos trabalhos mencionados, o fichamento das principais exposições no trato da conquista de direitos das crianças e adolescente bem como nas medidas socioeducativas adotadas para o enfrentamento do ato infracional, posteriormente buscou-se estabelecer uma síntese do que foi encontrado e a elaboração do texto que se segue. 2 DESENVOLVIMENTO Anterior as garantias de direitos conquistadas pela constituição cidadã de 1988, a partir dos movimentos sociais, que consolidaram a partir da instituição de direitos sociais, civis, políticos, os quais abarcam setores antes não vistos como sujeitos de direitos na história brasileira, incluindo as crianças, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que é o marco regulador dos direitos humanos das crianças 3045
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI e adolescentes no Brasil, delonga-se em relação ao contexto internacional que vinha a frente com declarações e convenções as quais debatiam princípios básicos de proteção à infância e adolescência. Nesse contexto, no começo do século XX, é que se começa a redigir documentos oficiais destinados às crianças e adolescentes. Para demarcar esses acontecimentos, têm momentos que se expressam de forma pertinente na história: a Declaração de Genebra, de 1923, regida pela instituição Save the Children, a qual continha princípios básicos de proteção à infância; a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, composta por dez princípios; e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, que tem como base dois princípios – o interesse superior da criança e o direito a expressar a sua opinião – que será mais adiante debatido juntamente com o contexto brasileiro. Essa visibilidade em questão do assunto, não se expressa de forma espontânea, mas foram direitos conquistados a partir de necessidades e exigências de cada contexto histórico. A precursora do debate em defesa do reconhecimento dos direitos da infância foi a inglesa Eglantime Jebb, [...] responsável pela fundação de um movimento internacional de discussão das repercussões das guerras na vida das crianças, o Save the children Fund International Union, o qual se tornou base para que, em 1923, fosse promulgada a Primeira Declaração dos Direitos da Criança, conhecida como Declaração de Genebra. Conforme Soares (1997, p.80), o texto da Declaração ressalta um discurso da proteção e auxílio à infância enfocando o atendimento às necessidades de sobrevivência das crianças. (ANDRADE, 2010, p. 81-82). Devido a esse reconhecimento da necessidade de debater e assegurar o status de sujeito e dignidade da condição humana, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial momento em que várias crianças ficaram órfãs, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou a Declaração Universal dos Direitos da Criança. De forma Internacional e anterior a 1988, ano que demarca a aprovação da atual carta magna brasileira, são esses os acontecimentos que se expressam de forma peculiar e atrativa aos pesquisadores do assunto. Direcionado o tema para o Brasil, a trajetória do reconhecimento da criança e adolescente e sua dignidade humana se apresenta de forma peculiar, e a criação de políticas públicas direcionada a estes se deu de forma inexistente por muito tempo. 3046
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Até início do século XX, as ações voltadas para esse segmento ficaram ao encargo da Igreja Católica e das Santas Casas de Misericórdia. Especificamente, no concernente ao adolescente autor de ato infracional, no final do século XIX, na emergente São Paulo, quando se iniciava o processo de urbanização e industrialização que trazia às cidades populações oriundas do meio rural, além de imigrantes, a questão da criminalidade juvenil passava a representar temor para a sociedade. (TEJADAS, s.a., p. 4). Segundo Tejadas (s.a.), o Código Penal Brasileiro de 1890 não considerava criminoso o menor de 9 anos de idade, porém aqueles de 9 a 14 anos, eram considerados pelo código capazes de discernimento, de compreender situações, de separar o certo do errado. Assim, quando praticavam algo que fosse denominado como criminoso eram levados para instalações industriais disciplinares para recuperação. Acima dos 14 anos de idade, as crianças e adolescentes já eram direcionadas as delegacias juntamente com os adultos. Desta forma em 1902 foi criado o Instituto Disciplinar onde crianças e adolescentes eram levados por cometer atos criminosos, sendo realizado atividades de agricultura e instrução militar. Logo após em 1923, foi estabelecido o Juízo de Menor. Então como pode ser visto uma visibilidade maior às crianças e adolescentes no Brasil como distinção das suas capacidades se relacionada aos adultos só foi compreendida mesmo que de suas menores formas expressas, no começo do século XX. Diante dos expostos elucidados acima uma legislação específica se deu apenas em 1927 com o Código de Menores, “[...] fruto da união de juristas e médicos, embasados em teorias higienistas e morais”. (SCISLESKI; BRUNO; GALEANO; et al., 2015, p. 508), que dominavam as crianças e adolescentes como “menores abandonados” e “menores infratores”, determinando-os como indivíduos em situação irregular, a qual culpabiliza e individualiza os seus problemas, considerando apenas como problemas indivíduos e não sociais, que necessita de uma análise total, da sociedade, meio, família, comunidade, em que o indivíduo estava inserido. O tratamento ao jovem autor de ato infracional, no contexto brasileiro de redemocratização O contexto brasileiro do final da década de 1980 era de conquistas de direitos, tendo como grande marco a promulgação da Constituição Federal de 1988. Conhecida 3047
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI também como Constituição Cidadã, a situação das crianças e adolescentes fora tratada em seu artigo 227: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, a adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, n.p.). As políticas de proteção social foram garantidas mais tarde, com a aprovação do texto da Convenção Internacional, em 1989 e que passou a vigorar no Brasil no ano subsequente, e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, fora consolidado o direito daqueles com idade inferior aos 18 anos, sendo vistos como sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. A Convenção tem como alicerce a prioridade no interesse da criança, concomitantemente com o direito de expressar sua opinião, quanto ao adolescente em situação de conflito com a lei no seu artigo 37 é exposto como dever do Estado preservar para que nenhuma criança seja submetida a tortura, tratamento ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. A detenção de uma criança deverá seguir a lei e apenas em última instância, no menor período de tempo, em estabelecimento diferente dos adultos, terá o direito de manter o contato com a família, salvo circunstâncias excepcionais, bem como o acesso à assistência jurídica. Em processo de aprimoramento dos acordos firmados na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, tem-se também as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing, de 1985; as Regras Mínimas das Nações para a Elaboração de Medidas não privativas de Liberdade - Regras de Tóquio, de 1990; as Diretrizes de Riad para a Prevenção da Delinquência Juvenil, de 1990; as Regras Mínimas das Nações Unidas para Jovens privados de Liberdade, de 1990; e, na América Latina, o pacto San Jose da Costa Rica, de 1969. (TEJADAS, s.a., p. 2). Diante disso, rompe-se a perspectiva tradicional, mudando as ações voltadas aos adolescentes em conflito com a lei. Anteriormente no Brasil, eram adotadas medidas com o caráter unicamente punitivo, expondo esses adolescentes a práticas autoritárias e repressivas. Com o ECA “[...] a orientação direciona-se para a garantia de direitos, compreendida a partir da doutrina integral, conforme já apontava a Constituição brasileira de 1988, ao compreender a criança e adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.” (FREITAS, 2011, p. 33). O ECA prevê a imposição de medidas socioeducativas aos adolescentes, com idade entre 12 e 18 anos, que sejam 3048
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