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EIXO 2 - Trabalho, Questão Social e Políticas Públicas

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2021-01-22 14:22:43

Description: Trabalho, Questão Social e Políticas Públicas

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ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI impeachment da presidente Dilma. O golpe de 2016 foi orquestrado, à época, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), aliados a grupos econômicos do setor produtivo e financeiro, com colaboração expressiva do judiciário e da grande mídia, em prol de uma maior atuação do Estado na canalização de recursos públicos para amortecer os efeitos da crise e socorrer o capital (BEHRING; TEIXEIRA, 2018). Já registramos que a redução de gastos sociais e de outros gastos, em razão da dívida pública e outros encargos financeiros, constituiu uma unidade nos governos anteriores. No entanto, após o golpe, com a posse de Michel Temer é estabelecido um ambiente de congelamento neoliberal dos gastos públicos e um novo regime fiscal ultraliberal. Em dezembro de 2016 é promulgada a Emenda Constitucional 95/2016, como resultado da chamada PEC do Fim do Mundo (PEC 241-55/2016), que limitou por vinte anos os gastos públicos. Além de instituir um mecanismo de controle dos gastos federais, que passa a ser vinculado com a inflação acumulada, conforme o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) (BEHRING, 2018). A EC 95/2016 foi responsável por intensificar o ajuste fiscal e instituir o Novo Regime Fiscal e estabelecer um limite de despesas primárias por um período de 20 anos, impedindo o aumento de recursos para investimentos em saúde, educação, ciência e tecnologia e infraestrutura (BEHRING; TEIXEIRA, 2018). Tal medida objetiva limitar o aumento das despesas públicas por meio da restrição ou redução de direitos e serviços públicos. Assim, comprometeu ainda mais o fundo público com o pagamento dos juros e amortização da dívida pública e sepultou, definitivamente, as vinculações orçamentárias das políticas sociais construídas na Constituição Federal de 1988. Mediante a essa Emenda, tanto as políticas que integram a seguridade social (previdência social, assistência social e saúde), como a educação e outros programas tiveram seus recursos orçamentários diminuídos nos próximos vinte anos, inviabilizando a garantia e até mesmo a expansão dos direitos sociais (BOSCHETTI, 2017). O discurso propagado para justificar a EC 95/2016 foi de que em decorrência dos gastos públicos e da dívida pública, seria necessário sacrifícios para sanear o orçamento e recuperar as taxas de crescimento. Entretanto, apesar da dívida ter chegado a uma relação de 70,1% do PIB, em comparação a 2002, essa relação era ainda maior, de 81% 798

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI do PIB. Os números são mais discrepantes quando comparamos a relação dívida/PIB dos Estados Unidos da América (EUA) que, no ano de 2016, era de 101%. O que desmistifica o argumento de que tal medida era imprescindível porque o país estaria quebrado (BEHRING, 2018). Em recente estudo sobre os impactos do congelamento dos gastos sociais, Behring e Teixeira (2018 p. 8-11) comparam as despesas de 2017 em relação a 2016 e observaram que houve queda no orçamento global da seguridade social na casa de 1,7%, sendo que, dentre as políticas que compõem a seguridade social. Nesse mesmo estudo, as autoras apontam que houve diminuição em todos os grupos de despesas de 2017 comparados a 2016, exceto no grupo de recursos alocados para amortização da dívida, que teve aumento de 5,7%, o que demonstra claramente que o teto dos gastos atinge exclusivamente os gastos sociais, mas não altera a transferência do fundo público para o capital financeiro. Contrapondo o argumento de que o excesso de gastos públicos justifica o congelamento, temos o quadro de aumento da dívida pública federal em 14,3% (valores nominais) em relação ao ano de 2016. Isso mesmo diante de alocação de um montante de R$ 11 trilhões para pagamento de juros e amortizações da dívida entre os anos de 1994 e 2015. Esses dados indicam que o problema do orçamento federal consiste em extração de recursos públicos para financiamento de juros e amortização da dívida em detrimento dos direitos sociais (BEHRING; TEIXEIRA, 2018). De modo complementar Boschetti (2018, p. 16) afirma que a EC 95/2016 “[...] é de um aventureirismo irresponsável inimaginável, onde independentemente do desempenho econômico, congela-se os gastos primários do orçamento público brasileiro, no mesmo passo que se libera a apropriação do fundo público pelo capital portador de juros e especuladores [...]”. Inerente a essa conjuntura, o Estado mantém a sua função de regulação e distribuição de parte da riqueza socialmente produzida e apropriada como fundo público e não deixa de participar ativamente da reprodução ampliada do capital, realizando sua função reprodutora da força de trabalho e da população não trabalhadora nos limites da sobrevivência. No âmbito da ação estatal para garantia de acesso aos direitos sociais, essa ação vai se limitar cada vez mais a manutenção de sistemas públicos mínimos ou básicos (BOSCHETTI, 2016). 799

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Não há o que se questionar, portanto, que a EC 95/2016 trará consequências desastrosas para o país em termos de pobreza e desigualdade, já que suprimiu direitos sociais já consagrados e, em nome da desigualdade crescente, tem situado o pobre no centro de políticas focalizadas de assistência. Um exemplo é o que vem ocorrendo nos últimos anos no Brasil, em que a política social se apresenta ainda mais residual, ultraliberal e neoconservadora. E com a adoção dessas medidas de ajuste fiscal e corte de recursos que se colocam a serviço do movimento do capital em busca de superlucros, a ofensiva aos trabalhadores tem se intensificado, de modo a garantir a retomada das taxas de lucro em níveis cada vez mais elevados, num ambiente de profunda regressão da política social e dos direitos sociais no Brasil. E como não se consegue eliminar os direitos sociais positivados na Constituição tem se aplicado o congelamento dos gastos sociais para restringir a sua materialização (BEHRING ; TEIXEIRA, 2018). Os processos que suprimem as condições de subsistência asseguradas pelos direitos conquistados, subtraem as condições materiais que possibilitam à classe trabalhadora deixar de vender à sua força de trabalho em situação determinadas (doença, desemprego, aposentadoria, auxílio saúde) se constituem processos atualizados de expropriação social. Assim como a mercantilização dos bens públicos e das políticas sociais, pois consistem em renovadas formas de garantia da acumulação do capital (BOSCHETTI, 2016). É sob essa lógica perversa e excludente que se insere a EC 95/2016, articulada ao processo de flexibilização / precarização do trabalho, de retirada de direitos sociais e trabalhistas e de políticas focalizadas de combate à pobreza, cujos impactos contribuem para aprofundar o processo de concentração de riquezas. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O congelamento de gastos sociais por vinte anos implica em drástica redução dos direitos e serviços públicos, transfere mais intensamente recursos do fundo público para pagamento de juros e amortização da dívida e acumulação capitalista. Trata-se de uma ofensiva do capital na tentativa de elevar a taxa de mais-valor, sinalizadas ainda pela 800

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI reforma da previdência, contrarreforma trabalhista, novas propostas de privatização e arrochos dos salários e das condições de trabalho no setor público. Os impactos das medidas que arrocham ainda mais o ajuste fiscal incidem diretamente nas condições de sobrevivência da classe trabalhadora, sobretudo, pela via do aprofundamento das reformas neoliberais na previdência e no campo trabalhista e sindical. Como também implicam na redução de gastos com investimentos públicos, precarização das políticas públicas e desmantelamento da rede de proteção social. Em contexto do agravamento da crise do capital, a EC 95/2016 aliada às reformas trabalhistas e da previdência, ao aumento da DRU e as desonerações tributárias corroem ainda mais o orçamento da seguridade social e constituem verdadeiros processos de expropriações de direitos já regulamentados. Consideramos que neste momento de recrudescimento dos ataques a Seguridade Social é imprescindível que os movimentos sociais e os segmentos organizados da sociedade se mobilizem para a reversão desse quadro de subtração de direitos, por meio da corrosão de seu financiamento. Para tanto, a defesa de políticas sociais abrangentes, de caráter universal, que possam disputar e gerar tensões efetivas na alocação do fundo público, e que, sobretudo, tenham impactos maiores nas condições de vida e trabalho das maiorias é uma agenda importante de resistência em tempos de regressão de direitos, de focalização, privatização e mercantilização das políticas sociais. REFERÊNCIAS BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em Contrarreforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. 304 p. BEHRING, Elaine Rossetti. Neoliberalismo, Ajuste Fiscal Permanente e Contrarreformas no Brasil da Redemocratização. In: Anais. XVI Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS). 2018. Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino em Serviço Social (ABEPSS). Vitória (ES): ENPESS/ABEPSS, 2018. BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. Biblioteca Básica de Serviço Social. v. 2. 9ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. 213 p. BEHRING, Elaine Rossetti; TEXEIRA, Sandra Oliveira. O Fardo do Radical Ajuste Fiscal para a Classe Trabalhadora sob a Ótica das Despesas do Orçamento da Seguridade 801

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Social. In: Anais. XVI Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS). 2018. Associação Brasileira de Pesquisa e Ensino em Serviço Social (ABEPSS). Vitória (ES): ENPESS/ABEPSS, 2018. BOSCHETTI, Ivanete. Assistência Social e Trabalho no Capitalismo. São Paulo: Cortez, 2016.192 p. BOSCHETTI, Ivanete. Supressão de Direitos no capitalismo: uma forma contemporânea de expropriação? In: Anais... Colóquio Internacional Marx e o Marxismo. De O Capital à Revolução de Outubro (1867-1917). Niterói-RJ: NIEP-MARX, 2017, p. 01-19. Disponível em <http://www.niepmarx.blog.br/MM2017/anais2017/MC44/mc441.pdf>. Acesso em: 21 julho 2019. DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu; MYNAIO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 33ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013. 120 p. DRUCK Graça; FILGUEIRAS Luiz. Política Social focalizada e ajuste fiscal: as duas faces do governo Lula. In: Revista Katálysis. v. 10. nº 1. Florianópolis: jan/jun 2007. p. 24-34. MARSIGLIA, Regina Maria Giffoni. Orientações Básicas para a Pesquisa. In: Revista Serviço Social e Saúde. Formação e Trabalho Profissional. São Paulo: Cortez, 2011, p. 01-18. SALVADOR, Evilásio da Silva. O Desmonte do Financiamento da Seguridade Social em Contexto de Ajuste Fiscal. In: Revista Serviço Social e Sociedade. n. 130. São Paulo, set./dez. 2017. p. 426-446. YAZBEK, Maria Carmelita. Pobreza no Brasil Contemporâneo e formas de seu enfrentamento. In: Serviço Social e Sociedade; São Paulo, n. 110, p. 288-322. abr/jun. 2012. 802

EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS RECONSTRUINDO PROJETOS DE VIDA NA SAÚDE MENTAL: o Projeto Terapêutico Singular nos serviços de saúde e nas vidas das pessoas com transtornos mentais RECONSTRUCTING LIFE PROJECTS IN MENTAL HEALTH: the Singular Therapeutic Project in health services and in the lives of people with mental disorders Beatriz Morais Freitas1 Eduarda Ketilly Martins Santos2 Lucia Cristina dos Santos Rosa3 RESUMO O presente artigo tem por objetivo mostrar a importância do Projeto Terapêutico Singular – PTS enquanto instrumento de trabalho nos serviços de saúde, bem como, compartilhar os resultados das experiências adquiridas durante o período de execução do projeto de intervenção, como experiência de estágio obrigatório em Serviço Social. Concluiu-se que PTS proporciona maiores possibilidades de atenção e cuidado para com a pessoa com transtorno mental, bem como, melhora a instrumentalidade dos serviços de saúde mental. Desse modo, o PTS se apresenta como um dos principais instrumentos para se trabalhar a complexidade de determinadas realidades das pessoas com transtornos mentais, na perspectiva de colaborar na sua autonomia e reinserção social. Palavras-Chaves: Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental; Instrumentos de Trabalho. ABSTRACT 1Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: [email protected] 2 Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: [email protected] 3 Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí. Docente do Programa de Pós- Graduação em Políticas Públicas. E-mail: [email protected] 803

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI This article aims to highlight the importance of the unique therapeutic project – PTS as a tool for working in health services, as well as to share the results of the experiences gained during the implementation of the intervention project, as a mandatory traineeship experience in Social Services. It was concluded that PTS provides greater possibilities of attention and care to the person with mental disorder, as well as improves the instrumentality of mental health services. In this way, the PTS presents itself as one of the main instruments to work out the complexity of certain situations of people with mental disorders, in the perspective of collaborating in their autonomy and social reintegration. Keywords: Psychiatric Reform; Mental Health; Labor Instruments. INTRODUÇÃO A reforma psiquiátrica brasileira, impulsionada a partir de meados da década de 1970, evocou críticas fundamentais na efetivação dos cuidados à pessoa com transtorno mental no modelo manicomial então vigente, ensejando denúncias de violação de direitos humanos, a partir das resistências às péssimas condições de trabalho implementada por trabalhadores da saúde mental. Tal fato levou a busca de construção de um outro modelo de cuidado que reconhecesse a pessoa com transtorno mental como sujeito de direitos e com direito à cidade. Nesse contexto, o modelo manicomial, segregador é primeiro alçado às perspectivas humanizadoras, o que se mostrou inviável, posto o próprio paradigma de exclusão social subjacente às práticas e à cultura manicomial inculcada na sociedade. Assim, passa-se a investir em um novo paradigma, de desinstitucionalização, na direção da desconstrução de paradigmas, legislação e formas de cuidado, na direção de alterar os processos sociais em torno da pessoa com transtorno mental e de relações sociais eivadas por sentidos segregadores em relação a este segmento, associado a partir do século XVII e XVIII à periculosidade e incapacidade, o que forjou uma relação de evitação social. No campo da reforma psiquiátrica, o cuidado comunitário e territorial tem como objetivo reconhecer o poder contratual e o protagonismo dos sujeitos envolvidos no processo saúde-doença (usuários, família e profissionais da saúde) e estabelecer uma relação de confiança entre os mesmos, na direção da reinvenção da vida e produção de outra sociabilidade em torno desse segmento. Essa relação é considerada de extrema 804

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI importância quando se trata do processo de trabalho desenvolvido nos serviços de saúde mental pelas chamadas “equipes de referência”. Recurso esse que aproxima o profissional da saúde às necessidades e demandas trazidas na singularidade de cada usuário. A equipe de referência tem por responsabilidade acompanhar e gerir um projeto de vida individual aos usuários dos serviços de saúde, bem como busca reinserir a pessoa com transtorno mental no seio familiar e comunitário, se assim for necessário, buscando assisti-los de modo singular por meio de um projeto terapêutico singular. Que é entendido como um instrumento de trabalho interdisciplinar e uma estratégia de cuidado exigida institucionalmente, o que faz com que seja necessário que sua construção esteja atenta às necessidades e demandas dos usuários do serviço ao qual se destina, pois, o PTS irá direcionar as ações de cuidado dos profissionais, tendo em vista a singularidade de cada usuário. Nesse cenário, esse artigo foi elaborado com base no projeto de intervenção das respectivas autoras durante o seu processo de estágio curricular obrigatório, do Curso de Serviço Social, realizado pela Universidade Federal do Piauí, no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II Sul, de Teresina-PI. O referido projeto de intervenção que dá base a este artigo, corresponde à construção de um PTS para um determinado número de usuários do CAPS II Sul objetivando contribuir para a reinserção social e autonomia dos mesmos. A partir das experiências adquiridas durante o processo de implementação do projeto e da materialização dos resultados obtidos, teve-se a produção de um estudo que demonstrava a importância do PTS tanto nas estratégias de cuidado para com a pessoa com transtorno mental, quanto para a construção de um projeto de vida elaborado com próprio sujeito e gerido por um profissional da saúde mental. Dessa forma, este estudo tem por objetivo mostrar a importância do Projeto Terapêutico Singular – PTS enquanto instrumento de trabalho nos serviços de saúde. 2 A POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL E AS ESTRATÉGIAS DE CUIDADO Antes de ser visto como um sujeito de direitos, o “louco” – como era denominada/vista a pessoa com transtorno mental – vivia às margens da sociedade, sob uma lógica excludente e estigmatizante, recluso a muros asilares, afastado do meio 805

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI social, pois associado à incapacidade de discernimento e à periculosidade como condição determinante, percepção que barrava o convívio social, pois homogeneizava um sujeito social heterogêneo e com uma vida complexa e plural. Contudo, desde a Idade Média as interpretações sobre a “loucura” foram tratadas sobre uma mesma lógica: a institucionalização, ou seja, a reclusão do “louco” em instituições de controle, sendo a principal delas o hospital, sendo primeiro o hospital geral da França em 1656, descrito por Michel Foucault (1978), em seu livro História da Loucura, em que convivia com uma variedade de grupos sociais considerados improdutivos para o capital ou desviantes da ordem emergente capitalista Contudo, Santos (2019) destaca que antes da instituição hospitalar se tornar um espaço de controle social, primordialmente, foi criado como um espaço caritativo cujas ações desenvolvidas naquele espaço eram de cunho filantrópico e religioso, oferecendo abrigo. Com o decorrer das transformações socioculturais advindas da Revolução Industrial, a “loucura” foi ganhando novos parâmetros conceituais e com isso houve sua apropriação e tradução médica, na forma de novos meios de tratamento. É nesse cenário que emerge a psiquiatria de Phillipe Pinel que alia o poder da clausura ao saber médico (PRANDONI; PADILHA, 2004). Segundo Castel (1978), Pinel é considerado o pai da psiquiatria por: 1) produzir o primeiro tratado médico filosófico sobre a loucura, em que processa a primeira classificação das então consideradas alienações mentais; 2) estabelecer uma relação de poder, entre médico e “paciente”, intermediado pelo tratamento moral, em que o médico era a referência da sanidade e, 3) estabelecer um lugar de tratamento, o asilo, depois considerado hospital psiquiátrico. Logo, surgem os asilos hospitalares – os manicômios – que “passaram a ser caracterizados como locais para a contenção dos ‘loucos’ e de todo aquele que fugia aos padrões aceitáveis de comportamento social” (SANTOS, 2019, p. 32). No contexto brasileiro não foi diferente, haja vista a importação da forma de tratar da Europa, sobretudo da França, a “loucura” ficou por muito tempo silenciada. Até meados dos anos de 1840, no Brasil, as PCTM eram confinadas junto de outros desviantes da ordem social burguesa, sendo submetidos a agressões que, por vezes, culminavam na prisão e até morte dessas pessoas (MARTINS et. al., 2011). Mas, de acordo com Santos (2019): 806

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Com o advento da Segunda Guerra Mundial em todo o mundo surgiram inúmeras críticas aos asilos e ao modelo manicomial ao qual as pessoas com transtorno mental eram submetidas, visto que as condições de tratamento psiquiátrico nos hospitais violavam o bem-estar físico e mental dos pacientes. (SANTOS, 2019, p. 32) Diante desse cenário, são implementadas reavaliações, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa (com destaque para Inglaterra, França e Itália), a partir das quais emergem várias propostas de reformulação na forma de cuidar. Partiu-se das condições de tratamento nos hospitais psiquiátricos, bem como o modo pelo qual a pessoa com transtorno mental (PCTM) era vista e tratada pela sociedade civil – “tendo em vista que, historicamente, são pessoas que sofrem com estigmas e preconceitos” –, dando início, assim, a vários movimentos de reforma do modelo asilar (SANTOS, 2019, p. 32-33).A maioria das propostas visava a humanização dos considerados “hospitais psiquiátricos”, mas na prática observava-se a oscilação entre ações humanizadoras e retrocessos em relação às mesmas. Dentre os movimentos que surgiram mundo a fora, “um movimento que provocou grandes influências no cenário brasileiro e que questionava o saber psiquiátrico era a Psiquiatria Democrática Italiana” de Franco Basaglia (MARTINS et. al., 2011, p. 30). De acordo com Amarante (2007), as ideias de Basaglia buscavam a superação do aparato manicomial, entendido como espaço de saberes e práticas que materializa o isolamento, a segregação e a patologização da experiência humana. Colocava a loucura entre parênteses e investia nas condições de produção de vida. Mas, implementava uma negação ativa do modelo manicomial, ou seja, começava a desconstrução desse modelo a partir de seu próprio interior. Com o início do processo de redemocratização política do país ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980 cresce o número de movimentos político-sociais que, “se voltando para a defesa do direito à saúde pública e universal” (PEREIRA, 2018, p. 95), dão origem ao Movimento de Reforma Sanitária (MRS) e, em seu interior, surge o Movimento de Reforma Psiquiátrica (MRP), o primeiro ressaltando os direitos sociais e o segundo, os direitos, civis, embora um não prescinda do outro. As mudanças no processo de cuidar da pessoa com transtorno mental têm início na década de 1990, quando ocorre uma reestruturação da assistência psiquiátrica, 807

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI orientada para o cuidado extra hospitalar, quando tem início o financiamento de serviços comunitários (ROSA, 2003), ao mesmo tempo em que é implementado um processo de melhor qualificação da assistência nos manicômios existentes. Um dos principais marcos da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi a promulgação da Lei Federal nº 10.216/2001, tendo em vista que assegura os direitos das PCTM e redireciona o modelo assistencial em saúde mental a uma perspectiva ampliada, como está disposto em seus art. 1º e 3º: Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. [...]. Art. 3º É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL, 2001). Tendo em vista as mudanças propostas pela Reforma Psiquiátrica, no que se refere aos serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, ganham destaque os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) regidos pela Portaria de nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, e considerados a principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica. Os CAPS “são instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e psicológico” (BRASIL, 2004, p. 9). Os CAPS se apresentam como protagonistas no cuidado das PCTM, visto que esses serviços buscam ultrapassar sua própria estrutura física, “em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas ações, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua história, sua cultura e sua vida quotidiana” (BRASIL, 2004, p. 14) Outro aspecto de destaque sobre o Centros de Atenção Psicossocial diz respeito ao modo como são tratadas as estratégias de cuidado relacionadas aos seus usuários, uma vez que cada um está inserido em um contexto sócio-cultural diferente o que demanda um conjunto de atendimentos que respeite a sua particularidade. Conforme o que está disposto no Manual do CAPS (2004): 808

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI É preciso criar, observar, escutar, estar atento à complexidade da vida das pessoas, que é maior que a doença ou o transtorno. Para tanto, é necessário que, ao definir atividades, como estratégias terapêuticas nos CAPS, se repensem os conceitos, as práticas e as relações que podem promover saúde entre as pessoas: técnicos, usuários, familiares e comunidade. Todos precisam estar envolvidos nessa estratégia, questionando e avaliando permanentemente os rumos da clínica e do serviço (BRASIL, 2004, p. 17). Diante dessa perspectiva, os usuários de CAPS em situações graves e persistentes, com situações sociais complexas, devem ter um Projeto Terapêutico Singular (PTS), um instrumento que personalize o atendimento a cada sujeito levando em consideração as suas necessidades tanto dentro da instituição, como no meio social e familiar, bem como as demandas advindas do território no qual está inserido. Mas, no cotidiano assistencial dos Caps tem um profissional responsável pela gestão de um número determinado de PTS, denominado de Técnico de Referência, que se encarrega de monitorar todo processo de reinserção social, articulando ações com a família, a comunidade, a rede socioassistencial e mediando as questões com a própria equipe do serviço quando há necessidades que implique o envolvimento de outras profissões ou políticas. A proposta de reinvestir no PTS emergiu do processo de supervisão de estágio curricular implementado através do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí a partir das necessidades identificadas e pactuadas com a supervisora de campo, quando da análise das manifestações da questão social identificou-se o parco investimento temporal nessa ferramenta de trabalho, haja vista a sobrecarga dos profissionais com as demandas imediatas postas no dia a dia. No CAPS II Sul cada profissional fica encarregado de elaborar e gerir o PTS de um numero de 35 a 40 usuários, um número considerável, sobretudo a partir do entendimento de que os Caps se voltam para usuários com transtornos graves e persistentes. Além disso, predomina como perfil majoritário dos usuários do Caps II Sul, pessoas com tempo significativo de internação psiquiátrica, dispersos em um território com uma amplidão significativa, compreendendo mais de 30 bairros. Ademais, o profissional de Serviço Social não é apenas técnico de referência e está envolvido em muitas frentes de trabalho, como a gestão da Rede-Instituição e Articulação Ria Sul; resposta às requisições do Ministério Público e outras instâncias da 809

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI justiça, o que obstava a intensificação da gestão de todos os PTS em igualdade de condição. Nesse sentido, avaliou-se conjuntamente a pertinência em se investir na intensificação da construção e fomento à implementação de alguns PTS remetidos a 5 usuários mais “estáveis”, tendo como horizonte, contribuir para a reinserção dos usuários no seio familiar e/ou no espaço comunitário, o que delineou o projeto de intervenção, implementado entre fevereiro a junho de 2019. Diante disso, observou-se que o PTS preservava agenda do usuário no interior do serviço, com parco alcance para suas relações externas ao Caps. O presente texto tem por objetivo reconstituir a experiência implementada através do projeto de intervenção. 3 O PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR COMO INSTRUMENTO DE TRABALHO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL O Projeto Terapêutico Singular – PTS, é entendido como aparato interdisciplinar que conta com as contribuições dos diferentes profissionais que integram os serviços de cuidado para com a pessoa com transtorno mental, e que tem por recursos “valorizar o poder terapêutico da escuta e da palavra, o poder da educação em saúde e do apoio psicossocial” (PINTO; JORGE; PINTO et. al., 2011, p. 494). A sua dimensão singular representa: O locus onde se inscreve a concepção de ser humano que determina a ação de saúde oferecida para alcançar o objetivo de criar produtos de saúde: cuidar, melhorar a qualidade de vida dos usuários, ampliar o entendimento e a apropriação do processo saúde-doença, entre outros (PINTO; JORGE; PINTO, et al, 2011, p. 494). O cuidado humanizado na saúde, em específico, na saúde mental, tem como objetivo reconhecer o protagonismo dos sujeitos envolvidos no processo saúde-doença, seja usuário, família ou profissionais de saúde mental. “Estes devem compartilhar e, coletivamente, definir a estruturação dos serviços ofertados, buscando qualificar a oferta e asseverar a operação do direito” (SANTOS et al, 2018, p. 02). Dessa forma, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) utilizam o PTS como um instrumento de trabalho em equipe, o que possibilita a participação do usuário e da família, e por consequência a construção da sua autonomia. 810

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Levando em consideração que o Projeto Terapêutico Singular é uma estratégia de cuidado exigida institucionalmente, faz-se necessário que sua construção esteja atenta às necessidades e demandas dos usuários do serviço ao qual se destina, bem como às condições de saúde do usuário e seu modo de compreender a vida, pois, o PTS irá direcionar as ações de cuidado dos profissionais, tendo em vista a singularidade de cada usuário. A elaboração do PTS deve ser norteada pela relação de confiança entre profissionais-família-usuários, pois a partir da confiança é “possível a compreensão da história do outro” (SILVA et al, 2016, p. 02). Nos serviços de saúde mental o PTS não deve servir apenas para registro de que medicações o usuário irá precisar, ou registro das atividades que ele participa ou não no serviço. A sua função vai além da superficialidade de um medicamento ou atividade de grupo. O mesmo deve proporcionar ao usuário parâmetros para a autoconstrução de um projeto de vida além do CAPS, viabilizar que essas pessoas se percebam enquanto integrantes de um espaço seja familiar e/ou comunitário e que, assim, possam planejar para si objetivos de vida, de uma vida que respeite suas limitações, mas, contemple suas possibilidades em um contexto de vida reconhecido. É importante destacar que o espaço de construção do PTS também revela as condições de envolvimento dos familiares no cuidado da PCTM, pois, nos casos onde existe uma sobrecarga sobre a família – e com isso, uma sobrecarga na relação com a pessoa com transtorno mental – é necessário que se busquem meios tanto para viabilizar a comunicação com o serviço, quanto para fortalecer a relação entre usuário e família. Outro fator a ser considerado, para que o PTS tenha efetividade diante das proposições de seus respectivos usuários, diz respeito às condicionalidades do território no qual a PCTM está inserida, uma vez que, suas demandas se estendem a um conjunto de dimensões que devem ser contempladas pelos serviços do território, de modo a proporcionar que o usuário se perceba enquanto integrante daquele espaço. Assim, o PTS se faz importante tanto para a construção do trabalho dos profissionais do serviço, quanto para um possível projeto de vida elaborado em conjunto com os usuários a partir de suas perspectivas de vida, dos seus anseios, de suas potencialidades e de seus limites – tendo em vista que nossos limites não indicam até 811

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI onde podemos ir, mas nos dizem que ao alcançarmos determinado ponto, podemos, se quisermos e dadas as condições postas pela realidade, ultrapassá-lo. Foi traçado um perfil sociodemográfico dos 5 usuários acompanhados pelo projeto de intervenção, sendo 4 do sexo feminino e1 masculino. A maioria, 2, tem ensino médio incompleto e um tem ensino médio completo, o que destoa da maioria dos usuários do CAPS II Sul, que tem maioria com ensino fundamental incompleto. A idade varia dos 35 aos 53 anos, ou seja, adultos. A maioria conta com uma renda oriunda de benefícios assistenciais, PBC, sendo que um tem auxilio doença. Com esse perfil, causava estranheza a manutenção desses usuários, aparentemente estáveis, utilizando de maneira intensiva o Caps, o que sinalizava para outras possibilidades de se inserirem em outras políticas ou projetos. As ações empreendidas com o grupo circunscreveram ações grupais com familiares, uma vez que foi percebido o distanciamento dos familiares no cuidado ao usuário dentro do serviço, e a partir das atividades propostas pelo projeto, houve a reaproximação familiar do serviço e consequentemente do cuidado ao familiar com transtorno mental. Um aspecto importante foi observar um número significativo de filhos jovens que acompanhavam suas mães com transtorno mental, em uma inversão de papéis. Identificou-se relatos de uma mãe usuária do serviço que vivenciou a mesma situação com sua mãe, que era usuária de álcool e outras drogas, ou seja, uma vivência que se reproduz, sendo intergeracional. Tal fato foi investido na perspectiva de estimular trocas entre filhos cuidadores, reestabelecer os vínculos afetivos entre mães e filhos e minimização dos impactos negativos do sentimento de desproteção social, pois na sociedade brasileira a mãe é vista como a principal figura de suporte para toda a família. Logo, a mãe tendo transtorno mental, vulnerabiliza os filhos e a família como um todo. Foram desenvolvidas atividades de cinema, que consistiu na exibição de filmes como uma estratégia de desenvolver ações socioeducativas (MIOTO, 2009), na perspectiva de socializar informações e simultaneamente implementar ações reflexivas; de leitura, que teve por objetivo instigar o hábito pela leitura, bem como exercitar a memória, a percepção e a interação entre eles; rodas de conversa sobre sentimentos, que teve por finalidade apreender como os usuários se sentem em relação à experiência com uma enfermidade estigmatizante e ao modo como os familiares e a sociedade os 812

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI tratam, buscando meios para dialogar sobre suas dificuldades e possíveis estratégias para contorná-las. Ao se observar reprodução de ações estigmatizantes ou de violência no meio familiar, investiu-se no empoderamento dos usuários através de orientação social. Destaca-se, também, a realização de uma roda de conversa sobre as bases do PTS, que teve por finalidade apresenta-los como uma estratégia constitutiva do processo de produção de cuidado, promover o diálogo sobre as perspectivas de cuidado, autonomia e projeto de vida, bem como incitar os usuários a tomarem maiores iniciativas de vida que estejam direcionadas para além do CAPS, iniciativas que envolvam seus anseios e projeções pessoais. Observou-se que o CAPS ainda é visto majoritariamente pelos usuários como um lugar protegido, em que são compreendidos em suas limitações, em que criam uma rede de amizade e solidariedade, o que muitas vezes parece desestimular a ampliação de laços para além do serviço de saúde mental, o que pode configurar em outra forma de institucionalização. As atividades dinamizadas proporcionaram o diálogo entre os usuários e a equipe multiprofissional sobre temas socialmente relevantes, tais como: preconceito, estigmas e desigualdade. Outro fator observado nesse período, foi que através dos diálogos e atividades, alguns usuários despertaram o desejo de retornar à escola e/ou realizar alguma atividade laboral. Durante o período de execução de algumas atividades, ficou perceptível nos usuários o desejo de construir um projeto de vida, mesmo que com metas a curto prazo e dentro de seus limites e possibilidades. E por fim, houve a sistematização com os produtos dos 5 estudos sociais analisados a partir do projeto em tela, visando deixar materializado para a equipe e respectivos usuários as apreensões obtidas através de seus prontuários e das conversas realizadas com eles, com o intuito de que a equipe dê continuidade à implementação dos Projetos Terapêuticos Singulares. 4 CONCLUSÃO Compreende-se que os Centros de Atenção Psicossocial, enquanto serviços substitutivos, representam um importante aparato no enfrentamento do modelo manicomial, visto que se valem da perspectiva do cuidado em liberdade prestando, 813

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI assim, serviços que giram em torno da preservação dos direitos civis dos seus usuários, bem como tem por finalidade a reconstrução dos laços sociais, familiares e comunitários, que vão possibilitar a autonomia do sujeito. Diante dessa perspectiva, as estratégias de cuidado utilizadas pelos profissionais que atuam nos CAPS devem estar estruturadas com base nas diferentes realidades que envolvem as pessoas com transtornos mentais, partindo da análise de suas subjetividades e buscando pelos instrumentos adequados a cada caso, para que, assim, esses sujeitos possam se perceber enquanto protagonistas de suas vidas. Nesse sentido, o Projeto Terapêutico Singular se apresenta como um dos principais instrumentos para se trabalhar a complexidade de determinadas realidades das pessoas com transtornos mentais, visto que, o PTS demanda uma atenção minuciosa dos profissionais ao analisar a amplitude de cada cenário envolvido em sua construção. Apesar de suas contribuições para o trabalho nos serviços de saúde mental, há que se destacar a dificuldade que os profissionais enfrentam em estar se utilizando desse instrumento, pois, o mesmo exige uma certa disponibilidade de tempo que é comprometida pela dinamicidade, sobrecarga e condições precárias do serviço, haja vista o transporte muitas vezes não estar disponível para o planejado, o que inviabiliza incursões pelo território de vida dos usuários e ações externas ao CAPS. Nesse sentido, a equipe gestora dos PTS, em muitas situações, tende a persistir também muito no interior do equipamento, o que não é o desejável. Nesse contexto, destaca-se a importância da Rede Instituição e Articulação - RIA Sul, como um dispositivo importantíssimo para o diálogo intersetorial, sobretudo entre a política de saúde e assistência social que atuam no mesmo território de vida do usuário, haja vista a participação dos profissionais do CAPS e o diálogo interinstitucional a partir do PTS, inclusive. Destarte, investir no Projeto Terapêutico Singular implica em ampliar as possibilidades de atenção e cuidado para com a pessoa com transtorno mental, bem como, melhorar a instrumentalidade dos serviços de saúde mental – uma vez que, o PTS demanda ações conjuntas com outros serviços e políticas sociais presentes no território do seu respectivo sujeito – e proporcionar que os sujeitos construam sua autonomia com base em seus anseios de vida. 814

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI REFERÊNCIAS AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro, Editora: Fiocruz, 2007. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atendimento à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004, 86 p. _______. Ministério da Saúde. Portaria Nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Estabelece as diferentes modalidades de Centro de Atenção Psicossocial – CAPS. Diário Oficial da União, 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html. Acesso em: 20 de fevereiro de 2020. _______. Ministério da Saúde. Lei Nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União: Brasília, Presidência da República/Casa Civil, 2001. CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Petropólis: Vozes, 1978. FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. MARTINS, Álissan Karine Lima et. al. Do ambiente manicomial aos serviços substitutivos: A evolução nas práticas em saúde mental. Sobral: Rev. Sanare, v.10, n.1, p.28-34, jan/jun. 2011. Disponível em: https://sanare.emnuvens.com.br/sanare/article/view/140/132. Acesso em: 22 de fevereiro de 2020. MIOTO, Regina Célia Tamaso. Orientação e acompanhamento social a indivíduos, grupos e famílias. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. PEREIRA, Sofia Laurentino Barbosa. Intersetorialidade na política de saúde mental: Uma análise a partir das articulações tecidas pelos/as assistentes sociais nas redes intersetoriais. 2018. 288 p. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2018. PRANDONI, Raul Fernando Sotelo; PADILHA, Maria Itayra Coelho de Souza. A reforma psiquiátrica no Brasil: eu preciso destas palavras. Texto & Contexto Enfermagem, Santa Catarina, v. 13, n. 4, p. 633-640, out-dez. 2004. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/714/71413417.pdf. Acesso em: 20 de fevereiro de 2020 ROSA, Lucia Cristina dos Santos. Transtorno mental e o cuidado na família. São Paulo: Cortez, 2003. 815

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI SILVA, Ariná Islaine da; et al. Projeto Terapêutico Singular para Profissionais da Estratégia de Saúde da Família. Cogitare Enfermagem, vol. 21, n. 3, jul/set. 2016 p. 01- 08. SANTOS, Eduarda Ketilly Martins. Intersetorialidade Entre Políticas Sociais: A articulação da assistência social na política de saúde mental a partir de experiências da RIA Sul. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Serviço Social) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2019. 816

EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL E A PANDEMIA DO COVID 19 DOMESTIC WORK IN BRAZIL AND THE COVID PANDEMIC 19 Cristiane Luiza Sabino de Souza1 Joyce Santos2 RESUMO Neste artigo temos por objetivo analisar o trabalho doméstico no Brasil, mostrando suas determinações e explicitando os signos das relações sociais de dominação nos quais ele se insere, bem como seus vínculos genéticos com as relações sociais fundadas no escravismo colonial. Inferimos que o lugar que tem sido reservado hoje a tantas mulheres negras e/ou pobres, é muito similar ao que as mulheres escravizadas tiveram, relações de superexploração, reforçadas pela cultura do servilismo e dominação, características que se acentuam no contexto da pandemia Covid19. Trata-se de um estudo realizado a partir de revisão bibliográfica e análise documental. Do ponto de vista teórico, temos como principal aporte a teoria crítica, em particular, a partir da referência em autoras(es) negras(os) cuja obra perpassa pela concepção da indissociabilidade das determinações de classe, raça e gênero na constituição da sociedade moderna. Palavras-Chaves: Trabalho Doméstico, Superexploração, Covid 19. ABSTRACT In this article, we aim to analyze domestic work in Brazil, showing its determinations and explaining the signs of the social relations of domination in which it is inserted, as well as its genetic links with the social relations founded on colonial slavery. We infer that the place that has been reserved today for so many black and / or poor women, 1 Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 2 Estudante de graduação em Serviço Social na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 817

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI is very similar to what the enslaved women had, overexploited relationships, reinforced by the culture of servility and domination, characteristics that are accentuated in the context of the Covid pandemic19. This is a study based on bibliographic review and document analysis. From the theoretical point of view, we have as main contribution the critical theory from the reference in black authors (s) whose work goes through the conception of the inseparability of the determinations of class, race and gender in the constitution of modern society. Keywords: Housework, Overexploitation, Covid 19. INTRODUÇÃO Desde o processo de colonização no Brasil, as relações estabelecidas com as mulheres negras perpassam por violências, abusos e diversas formas de exploração. A análise estrutural da sociedade brasileira não pode ser desvinculada de seu passado escravocrata e expropriador, porque muitos elementos fundados pelo escravismo colonial, tornam-se base determinante para o capitalismo dependente, reproduzidos como condição fundamental da superexploração (SOUZA, 2019). O racismo é uma daquelas determinações, e estrutura todas as relações objetivas e subjetivas dessa sociedade, conforme aponta Silvio Almeida (2019). O pensamento hegemônico na sociedade moderna se estrutura a partir da ideia de inferioridade humana do povo negro, bem como, da sua inexistência enquanto sujeito político na sociedade. Neste artigo, partimos de uma perspectiva de totalidade, entendida como síntese de múltiplas determinações, na qual raça, gênero e classe, são determinantes fundantes das relações sociais da sociedade capitalista, as quais encontram um movimento particular nas sociedades de capitalismo dependente, formadas a partir do escravismo colonial, como é o Brasil (SOUZA, 2019). Nesta perspectiva, a análise da realidade evidencia que mulheres negras permanecem, historicamente, na base da pirâmide da superexploração e da dominação, subjugadas à negação de direitos e às mais perversas expressões da “questão social”. No contexto da pandemia de Covid 19, as desigualdades estruturais - constituídas por determinações de raça, gênero e classe - mostram-se latentes nas 818

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI especificidades dos números de casos dos infectados pelo vírus1 e, também, nos números de óbitos. Pesquisas realizados nos Estados Unidos mostram que, naquele país, a população negra é a mais afetada tanto pela infecção e também letalidade da doença. No Brasil a situação é semelhante. As desigualdades estruturais, oriundas do histórico de superexploração e dominação, implicam no não acesso ao sistema de saúde, à água potável, à moradia adequada, etc, que são fundamentais para os cuidados em relação a doença. Os boletins do Ministério da Saúde, mostram que, no Brasil, há uma tendência de maior letalidade do vírus entre pardos, pretos e indígenas. Entre abril e maio, de 2020, mudou o perfil dos mortos, aumentando drasticamente os óbitos de pessoas negras, assim como mudou o perfil socioespacial: no início a doença estava entre as classes médias altas e nos bairros nobres, passando para a periferia e as camadas mais empobrecidas. Dados da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC (2020), mostram que 67% dos cidadãos brasileiros, que dependem exclusivamente do SUS, são negros (pretos e pardos) e a maioria dos pacientes com Diabetes Melittus, Tuberculose, Hipertensão Essencial Primária e doença Renal Crônica, que configuram grupo de risco para COVID-19, também são negros. Comorbidades que, como mostra Gonçalves (2017), não são inerentes à condição biológica das pessoas negras, mas sim, exclusivamente, às condições sociais de vida, oriundas das desigualdades. O segundo caso de óbito confirmado no Brasil, foi o de uma empregada doméstica, que contraiu o vírus de sua patroa que havia retornado de uma viagem à Itália. Situação que diz muito sobre a continuidades das relações de dominação e servidão forjadas desde a escravidão. A necessidade de permanecer na linha de frente do sustento de suas famílias, faz com que, mesmo frente a necessidade de isolamento social, várias mulheres tenham que deslocar até o trabalho, por meio de transporte público lotado, realizar o trabalho doméstico dobrado na casa de famílias, cujos membros estão isolados em seus quartos, comendo, bebendo e existindo, enquanto esse Ser negado, continua a produzir, servir e se expor. Nesse artigo temos por objetivo abordar o trabalho doméstico no Brasil, mostrando suas determinações e explicitando os signos das relações sociais de dominação nos quais ele se insere, bem como seus vínculos genéticos com as relações sociais fundadas no escravismo colonial. Inferimos que o lugar reservado hoje a tantas 819

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI mulheres negras e/ou pobres, na divisão social, racial e sexual do trabalho, é muito similar ao que as mulheres escravizadas tiveram: relações de superexploração, reforçadas pela cultura do servilismo e dominação, características que se acentuam no contexto da pandemia Covid19. O artigo está organizado em quatro sessões. Trata-se de um estudo realizado a partir de revisão bibliográfica e análise documental. Do ponto de vista teórico, temos como principal aporte a teoria crítica, em particular, a partir da referência em autoras(es) negras(os) cuja obra perpassa pela concepção da indissociabilidade das determinações de classe, raça e gênero na constituição da sociedade moderna. 2 O CENÁRIO DO TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL Entender o trabalho doméstico e sua vinculação com a situação social das mulheres negras e/ou pobres no Brasil, hoje, requer explicitar o processo histórico que as lançou na base da pirâmide social. A marginalização da parcela negra da classe trabalhadora, no mercado de trabalho, após a Abolição, bloquearam as possibilidades de mobilização vertical da mesma, mantendo-a como uma franja marginal, numa situação social, econômica e política muito semelhante à situação dos escravizados (MOURA, 1988). No que tange às mulheres negras, Mascarenhas (2013), aponta que para estas, o trabalho doméstico passou a figurar como meio de sobrevivência após fins do século XIX: Com o fim da escravidão, o mundo do trabalho passa a ter outras configurações do ponto de vista jurídico: os que eram escravos agora estão libertos. A incorporação dessa mão-de-obra liberta ao mundo do trabalho se deu, majoritariamente, pelo trabalho doméstico. Nos grandes centros urbanos o trabalho doméstico ocupou um lugar de centralidade nas relações de trabalho estabelecidas entre ex-senhores e ex-escravas. O sujeito feminino negro passa a realizar as tarefas do lar a partir de outros arranjos sociais, que são em muitos casos estabelecidos por contrato de locação de serviços (MASCARENHAS, 2013, p. 15). Para o autor supracitado, a herança escravocrata continuou latente nas condições precárias de trabalho, o preconceito e a desvalorização dos serviços prestados pelos(as) trabalhadores(as) domésticos(as) e permeia alguns dos problemas vividos ainda hoje pela classe. 820

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O serviço doméstico no pós-abolição assume características muito próximas da estrutura escravista vigente no período anterior. Assim, a abolição da escravatura não representou melhora significativa para os empregados domésticos. Sem nenhuma instrução e sendo considerados como indivíduos de nível inferior, os negros contaram com poucas perspectivas de conseguirem trabalhos dignos ( MASCARENHAS, 2013, p.16). De acordo com Dossiê Mulheres Negras (IPEA, 2013) na sociedade brasileira, as mulheres negras permanecem na base da pirâmide social, marginalizadas do processo econômico, político e cultural. Lélia Gonzalez (1983) já denunciava a cultura racista e sexista da nossa sociedade, que reproduz a ideologia estereotipada da mulher negra como mulata, doméstica e mãe preta. As configurações do desenvolvimento capitalista no Brasil e a divisão social, sexual e racial do trabalho, fazem com que a mulher negra se volte para a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de dependência das famílias de classe média branca. A empregada doméstica, tem sofrido um processo de reforço quando à internalização da diferença, da “inferioridade”, da subordinação (Gonzalez, 1979, p.15) Os mesmos princípios servis e exploratórios mantidos no período da escravidão, se mostram presentes nas vivências de muitas mulheres negras em seus trabalhos precarizados. O trabalho doméstico, no Brasil, é uma atividade massivamente feminina. De com a PNAD/IBGE (2018), 6 milhões de pessoas exerciam trabalho doméstico remunerado, sendo que, destas, 92% eram mulheres. A associação direta entre mulher e cuidados, é uma construção da sociedade demarcada pela divisão sexual do trabalho. Além disso, esse também é um setor marcado pela informalidade, precariedade e superexploração. No Brasil, a proteção ao trabalho sempre foi frágil e restrita, não havendo, em nenhum momento da nossa história, políticas sociais universais que garantisse o mínimo à classe trabalhadora, como afirmam Paiva, Rocha e Carraro (2010, p.26) Na agenda neoconservadora, a política social restringe-se a mecanismo focal de minimização dos piores efeitos da pauperização, transferindo responsabilidades para a chamada sociedade civil, termo sutil da privatização dos serviços públicos. Em direção análoga, tal agenda reforça metodologias subalternizadoras de vigilância e controle sobre os indivíduos, sustentadas na visão de que as problemáticas sociais são chagas particulares dos indivíduos. A síntese deste modelo é um arranjo pulverizado de ações emergenciais, que nem de longe se propõem à transformação, sequer imediata, das condições de vida da população. 821

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Nesse sistema a informalidade ou ausências de direitos, às trabalhadoras domésticas remuneradas são a categoria mais desconsiderada pelos mecanismos institucionais. Apenas em março de 2013 a legislação foi alterada, equiparando os direitos das trabalhadoras domésticos aos demais empregados. Essa proposta de emenda constitucional ficou conhecida como PEC das domésticas, firmada na Lei complementar 150/2015. De acordo como essa Lei, trabalho doméstico também se inclui mensalistas, diaristas, babás, cuidadoras, motoristas, jardineiros ou quaisquer outros profissionais contratados para cuidar continuamente dos domicílios de seus empregadores, bem como de suas famílias. Os números da PNAD/IBGE (2018) também revelam 63% dos trabalhadores domésticos remunerado é composto por mulheres negras, ou seja, cerca de 4 milhões. Esses números mais do que estatísticas contam uma história marcada por desigualdades e falta de oportunidades. Nesse caso, além da dimensão de classe, a vida das mulheres negras é marcada também pelo racismo e pelo sexismo, como já apontava Lélia Gonzalez (1984;1979). Os dados da PNAD/IBGE (2018) revelam, ainda, um envelhecimento da categoria das trabalhadoras domésticas remuneradas. A síntese dessa informação é que enquanto as mulheres mais novas buscam outras oportunidades de emprego, como por exemplo o telemarketing, secretariado, atendimento, garçonete e trabalhos afins, as mulheres mais velhas, sobretudo negras, permanecem tendo o trabalho doméstico remunerado como forma de subsistência. De acordo com Jurema Brites (2013) outros aspectos do trabalho doméstico precisam ser observados, como por exemplo uma série de trabalhadoras que não são contempladas pela legislação trabalhista, como algumas faxineiras e babás, que de acordo com a Lei 150/2015, não cumprem a quantidade de dias exigidos para serem consideradas trabalhadoras domésticas. Lei que, embora de importância histórica, não só, não contemplou todas as trabalhadoras domésticas, como não foi implementada com abrangência e, face ao desmonte da legislação trabalhista, pela Lei 13467/2017, é desfigurada pela ampliação da flexibilização das relações de trabalho. A incidência da contrarreforma trabalhista sobre as trabalhadoras domésticas, acena o aprofundamento das condições de precarização e desvalorização que já estavam inseridas. As formas mais “voláteis” de prestação de serviços domésticos, 822

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI revelam a total falta de seguridade social ou qualquer proteção legal que garanta a estas trabalhadoras condições de, numa situação como a da pandemia, se resguardar. 3 ISOLAMENTO SOCIAL NO BRASIL: DIREITO DE QUEM? No dia 12 de março de 2020 foi publicada pelo governo a medida provisória que orientava o isolamento social como estratégia para contenção do covid 19. A medida trouxe uma série de revoltas a muitos empresários que acreditavam que a quarentena traria graves impactos para economia. Gradativamente o comércio foi fechando e apenas serviços considerados essenciais permaneceram aberto. Porém, na lógica do capital, o termo “essencial” sofre um esvaziamento, e as prioridades deixam de ser a saúde e qualidade de vida da população e torna-se apenas a manutenção do lucro. Nesse contexto, a classe trabalhadora vivenciou (e muitos ainda têm vivenciado) a terrível escolha: Ficar em casa, mantendo-se seguro, porém, sem emprego e sem salário; ou continuar trabalhando e expor-se ao risco de contaminação, para garantir, minimamente a sobrevivência. Com as medidas provisórias aprovadas pelo governo, alguns trabalhadores conseguiram manter-se em casa e garantir pelo menos uma parte do salário, mas essa realidade não abarcou a todos. Uma enorme parcela de trabalhadores/as seguiu trabalhando: Seja porque estão na linha de frente, nos trabalhos essenciais; seja porque, não havendo nenhuma seguridade social, inseridos em empregos informais e por conta própria, ou encontrando dificuldades de negociar com os patrões, não tiveram saída; dentre esses se inserem muitas trabalhadoras domésticas. Mesmo com as medidas provisórias adotadas pelo governo que garantem o direito ao isolamento social dos trabalhadores, algumas trabalhadoras domésticas com contratos de trabalhos mais fluidos, ou foram dispensadas pelos seus patrões, sem nenhuma garantia de remuneração, ou permaneceram exercendo o trabalho, mas expostas à contaminação pelo vírus. Muitas domésticas registradas, com carteira assinada também tiveram dificuldades de negociar a quarentena com seus empregadores, que consideraram imprescindível a continuidade do exercício do trabalho doméstico. Mesmo diante de um contexto pandêmico e com a exposição a 823

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI grande risco dessas mulheres que precisam diariamente ou aos finais de semana se locomover até suas residências e, também, expor suas respectivas famílias. Tal situação demonstra a incapacidade do Estado brasileiro, face às contradições do capitalismo dependente e sua cultura de dominação e servilismo, garantir à classe trabalhadora qualquer política de proteção ampla. As legislações promulgadas durante o período pandêmico são a prova disso. De maneira geral, elas visam muito mais, proteger os patrões e seus interesses econômicos, do que proteger os empregos e empregados. Como é o exemplo da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, que permite que durante o período de calamidade pública, o empregador e empregado estabeleçam “acordo” individual escrito para a manutenção do vínculo empregatício, mas, com a possibilidade de flexibilização da execução do trabalho e redução de salários. Ou a MP 9364, de 1 de abril de 2020, que instituiu a renda emergencial aos trabalhadores, entretanto possibilitou também a suspensão dos contratos de trabalho por até dois meses, ou a redução da jornada de trabalho, o que significou a possibilidade de desoneração dos empregadores e ônus ao/a trabalhador/a. Outra medida que explicita o descaso com a camada mais vulnerável da classe trabalhadora, foi o auxílio emergencial de 600 reais para os trabalhadores informais e outras categorias. Até fosse aprovado, foram longas campanhas e denúncias por parte da massa de brasileiros que já padeciam com a fome nesse período pandêmico. A primeira proposta do governo era um auxílio de apenas 200 reais que bem sabemos que não atende nem o mínimo da alimentação básica de uma família. Em 19 de março de 2020, o Supremo Tribunal Federal, passou a considerar o Covid 19 como doença ocupacional, garantindo que os trabalhadores que contraíssem o vírus nas suas jornadas de trabalho poderiam responsabilizar as empresas que deverão arcar com os custos da recuperação do funcionário. O que, para trabalhadores informais “uberizados” e por conta própria, dentre os quais estão muitas empregadas domésticas. não modifica em nada a situação. A letargia do Estado em implementar políticas públicas consistentes e amplas, nessa conjuntura de crise sanitária, não é apenas descaso com os mais pobres, é, na verdade, o modus operandi do capitalismo dependente, no qual a política genocida tem dado a tônica à sua atuação. Frente a tal situação, somente a luta coletiva e organizada dos que vivem do trabalho pode tensionar a ordem imposta. No item abaixo, traremos alguns relatos de trabalhadoras domésticas, que explicitam o 824

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI caráter da superexploração, do servilismo e das condições de opressão a que estão inseridas e que se aprofunda no contexto da pandemia. 4 PANDEMIA COVID 19 E TRABALHO DOMÉSTICO: O DESMASCARAMENTO DA NEGAÇÃO DE DIREITOS NO BRASIL. O contexto pandêmico deixou evidente o caráter das relações trabalhistas no Brasil. Vários setores de trabalhadores começaram a tensionar, tanto o governo como os empresários, por condições de trabalho dignas para a população. Nesse contexto, movimentos sociais e sindicatos tem um grande protagonismo, além das grandes redes de solidariedade que se organizaram pelo Brasil. No setor do trabalho doméstico não é diferente. Um movimento que ganhou muita força neste contexto, foi a organização de filhos e filhas de trabalhadoras domésticas em prol do direito a quarentena remunerada para as trabalhadoras no período de isolamento social. A campanha tomou repercussão na internet com a divulgação de uma carta manifesto, que além de pautar suporte financeiro e segurança sanitária para as trabalhadoras, também apresentou vários relatos de exploração sofridas por essas mulheres. A organização sindical também moveu um grande empenho para que as trabalhadoras domésticas fossem assistidas neste período de pandemia. a Federação Nacional das trabalhadoras Domésticas, Fenatrad, realizou uma série de ações que incluíram, campanhas de conscientização aos patrões sobre a quarentena remunerada, divulgação das informações atualizadas sobre o direito das domésticas, intermediação em questões jurídicas além do fortalecimento de diversas redes de apoio com os Sindicatos pelo Brasil. Essas ações foram fundamentais para as lutas da categoria, de modo a organizar as trabalhadoras e fortalecer as reivindicações. A campanha “Carta manifesto pela vida das nossas mães”3, que teve repercussão nacional e em vários jornais, da voz às tentativas de resistência dessas trabalhadoras e suas famílias: “Minha mãe trabalha como empregada doméstica, babá, diarista desde os 14 anos. Nesse surto de Coronavírus aqui no país, nenhum empregado disse que pagaria para ela”, conta Bruna Fabrícia da Silva em relato postado na rede social do coletivo. “Ela é diarista hoje em dia, trabalha em quatro casas pela 3 https://www.facebook.com/cartamanifesto/ 825

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI semana. A diária da minha mãe é 80 reais, mas, mesmo assim, eles não pagam para ela se resguardar”, completa a moradora de João Pessoa (PB). Vários jornais também fizeram reportagens sobre a situação. “Ela [a empregadora] disse que eu tenho o livre arbítrio para vir ou não, e que se eu quisesse ir de carro poderia deixar na sua garagem. Ela me deixou à vontade, mas se eu não vou, não recebo\" (...)\"Em outro lugar que eu trabalho, nas segundas e sextas, falaram que vão me dispensar. Mas disseram que não tinham como me pagar”. (EL PAIS, 17/03/2020 “Num primeiro contato, um cara ligou logo cedo, de um número privado, perguntando se eu poderia limpar um apartamento vazio. Fiquei com medo e perguntei se haveria alguém no local”, conta Nielly. “Quando ele respondeu que estaria lá, declinei. À tarde ele ligou de novo e perguntou se eu não toparia fazer a faxina por R$ 1.200, mas depois teria que masturbá-lo. Desliguei e ele passou a insistir, mandava ainda fotos íntimas. Tive que mudar o número.” (EL PAIS, 17 de março,2020) “No meu caso, minha vó trabalhou anos em uma casa de família. Ela tinha seus 63 anos, chegava lá às 6h duas vezes na semana, depois passou a cozinhar, a passar, a lavar terraço… Ganhando apenas R$100, sem a passagem. Em janeiro ela veio a óbito e a mensagem recebida pelo whatsapp foi “ Dona Conceição, arrumei outra pessoa para pôr no seu lugar, já que a senhora não veio mais, a minha casa tá toda suja porque as paredes foram pintadas.”(CARTA CAPITAL, 10 de abril, 2020) “Mainha é diarista todo dia uma casa diferente, nesta segunda feira quando explodiu o lance do coronavírus meu irmão me manda um zap dizendo que a nossa mãe não queria entrar em casa pois a patroa teria dito a ela que estava com febre e que era para minha mãe ficar atenta. Esse episódio fez mainha tomar um banho de álcool em gel, não por desinformação era por DESESPERO de alguém que ela ama dentro de casa pegar o coronavírus.” (CARTA CAPITAL, 10 de abril, 2020) As campanhas de denúncias e reivindicações de direitos das empregadas domésticas, ao dar espaço para que trabalhadoras e familiares se manifestassem, revelam a profundidade da dominação de classe, gênero e raça às quais estão inseridas nesse sistema de superexploração. Além da ausência de proteção social assegurada pelo Estado, o tratamento desprezível dado às mesmas pelos empregadores, revela as facetas mais brutais da nossa sociedade, cindida pela superexploração e pelo racismo estrutural. A inferiorização do outro, a destituição da sua humanidade é a lógica que perpassa as relações entre patrões e empregadas domésticas, lógica que explicita os vínculos genéticos entre este tipo de relação e o processo de escravidão que fundou o país. 826

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A superexploração da força de trabalho das trabalhadoras domésticas remuneradas, durante a pandemia do Covid 19, tem demonstrado o quanto a classe trabalhadora brasileira está exposta a diversos tipos de vulnerabilidades. Em meio a uma crise sanitária, toda sociedade fica exposta a contaminação e letalidade do vírus. No entanto, as desigualdades sociais estruturadas pela relação de gênero, raça e classe deixam evidente que uma parte específica da população é mais afetada. Diante disso, profissões como o emprego doméstico remunerado, explicitam a precarização, informalidade e diversas formas de opressão e violências contra essas mulheres, que necessitam, mesmo diante de condições sanitárias desfavoráveis, manter-se trabalhando pela sobrevivência de suas famílias. Durante a pandemia do Covid 19 ficou ainda mais perceptível que a estrutura capitalista segue uma lógica de vidas que valem mais, e outras muito menos, por vezes, nada. Mostrando a urgência da luta pela ruptura com o sistema vigente. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018. BRASIL. Ministério da Saúde. Boletim Coronavírus - COVID 19. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/. Acesso em: 18 jun. 2020. BRASIL. Decreto-lei nº 150, de 01 de junho de 2015. Contrato do Trabalho Doméstico. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm. BRASIL. Medida Provisória n° 927, de 22 de março de 2020. Das alternativas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2020/Mpv/mpv927.htm. BRASIL. Medida Provisória n° 936, de 22 de março de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019- 2022/2020/mpv/mpv936.htm. 827

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BRITES, Jurema Gorski. Trabalho doméstico: questões, leituras e políticas. Cad. Pesqui. [online]. 2013, vol.43, n.149, pp.422-451. ISSN 0100-1574. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000200004. Acesso em 19 de junho de 2020. CARTA CAPITAL. Coronavírus escancara realidade escravista de diaristas e domésticas. São Paulo, 10 de abril de 2020. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/change-org/coronavirus-escancara-realidade- escravista-de-diaristas-e-domesticas/ Acesso em: 20 de jun. 2020. EL PAÍS. No Brasil informal com coronavírus, domésticas dependem de altruísmo de patrões para evitar contágio. São Paulo, 17 de março de 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-17/no-brasil-informal-com-coronavirus- domesticas-dependem-de-altruismo-de-patroes-para-evitar-contagio.html-casa- salarios-em-dia/ GONÇALVES, Mônica Mendes. Raça e saúde: concepções, antíteses e antinomia na atenção básica. 2017. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira.In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua. 2018. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9171-pesquisa-nacional-por- amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=o-que- e.%20Acesso%20em:%2018%20abr.%202020. Acesso em 18 de junho de 2020. MASCARENHAS, Luiz Guilherme de Souza. A novel legislação do empregado doméstico e a busca por igualdade de direitos. 2013. 59 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2013. MARCONDES, Mariana Mazzini et al. Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no brasil. Brasília: Ipea, 2013. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20 978 Acesso em 19 de junho de 2020. MOURA, Clóvis. Estratégia do Imobilismo Social contra o Negro no Mercado de Trabalho. Rev. São Paulo em Perspectiva, 2(2): p. 44-46, abr./jun. 1988. PAIVA, Beatriz; ROCHA Mirella; CARRARO Dilceane. Política social na América Latina: ensaio de interpretação a partir da Teoria Marxista da Dependência. In: Revista SER Social, Brasília, v. 12, n. 26, p. 147-175, jan./jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12702 Acesso em 19 de junho de 2020. SBMFC - Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade/ GT de saúde da população negra. Manifestação sobre ausência de dados da Covid 19 desagregados 828

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI por raça-cor. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/noticias/gt-de-saude-da- populacao-negra-manifestacao-sobre-ausencia-de-dados-da-covid-19-desagregados- por-raca-cor/ Acesso em: 18 abr. 2020. SOUZA, Cristiane Luiza Sabino de. Terra, trabalho e racismo: veias abertas de uma análise histórico-estrutural no Brasil. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Socioeconômico, Programa de Pós Graduação em Serviço Social, Florianópolis, 2019. 231 p. 829

EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS SUBDESENVOLVIMENTO E DEPENDÊNCIA NO CERRADO PIAUIENSE: Agronegócio da soja e a superexploração da mercadoria força de trabalho em Uruçuí-PI UNDERDEVELOPMENT AND DEPENDENCE IN THE CERRADO PIAUIENSE: Soy agribusiness and overexploitation of the labor force merchandise in Uruçuí-PI Francisco Eduardo de Oliveira Cunha1 Sérgio Gonçalves dos Santos Júnior2 RESUMO O presente artigo busca compreender dialeticamente a recente transformação do espaço agrário do estado do Piauí, como produto da divisão internacional do trabalho imposta pelos países centrais, que ditam às diversas regiões do globo o que produzir. O método de investigação realizado neste trabalho se deu a partir de uma análise na linha da Teoria Marxista da Dependência, buscando se identificar nas relações sócio produtivas estabelecidas entre o capital e os assalariados rurais do agronegócio, a categoria da superexploração da força de trabalho. Como resultado, o estudo evidenciará o caráter dialético do capital agrário piauiense onde os trabalhadores assalariados rurais produzem riquezas “alheias” e se apropriam tão somente de suas misérias. Palavras-Chaves: Agronegócio. Superexploração da Força de Trabalho. Economia do Piauí. ABSTRACT This article seeks to understand dialectically the recent transformation of the agrarian space in the state of Piauí, as a product of the international division of labor imposed by central countries that dictate to different regions of the globe what to produce. The research 1 Professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: [email protected]. 2 Mestrando da Pós-Graduação em Ciências Econômicas, Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: [email protected]. 830

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI method carried out in this work was based on an analysis in line with the Marxist Theory of Dependence, seeking to identify itself in the socio-productive relations established between capital and rural agribusiness wage earners, the category of overexploitation of the workforce. As a result, the study will highlight the dialectical character of Piauí's agrarian capital where rural wage workers produce “alien” wealth and only appropriate their miseries. Keywords: Agribusiness. Overexploitation of the Workforce. Economy of Piauí. INTRODUÇÃO O recente processo de ocupação do cerrado piauiense se iniciou na década de 1970 mediante a manifestação da especulação fundiária como uma fase prévia à inserção na dinâmica global de produção de commodities em larga escala que ocorreu na década de 1990, principalmente com a chegada de produtores oriundos da região centro-sul do Brasil. Dessa forma, o cerrado do sudoeste piauiense se tornou, nos últimos anos, um centro de atração de produtores rurais e investidores nacionais e estrangeiros, atribuindo à região um papel relevante no desempenho econômico do estado no atual século. Ao direcionar nosso olhar investigativo ao espaço agrário piauiense, somos instigados a uma série de reflexões paradoxais. É lúcido admitir que nos deparamos com uma região em que se evidenciam elementos de atraso e subdesenvolvimento, mas com processos produtivos de agricultura intensiva em tecnologias e que interagem com regiões modernas, desenvolvidas e de capitalismo avançado. Na ânsia de se investigar e compreender a inserção do cerrado piauiense no comercio mundial recente, bem como oferecer um olhar específico ao papel do trabalhador assalariado rural desta região específica, o presente trabalho se vale do subsídio analítico conceitual da Teoria Marxista da Dependência, desenvolvida por autores como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, André Gunder Frank, entre outros. Para avançar nas análises com vistas a dar sentido ao aparato teórico-abstrato da teoria marxista em geral, bem como elucidar a tese da superexploração da força de trabalho no setor do agronegócio da soja no Piauí, analisar- se-á dados secundários coletados no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 831

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI (IBGE), Ministério da Economia (ME), especificamente no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) e Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí (CEPRO), Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) e demais bases e institutos de pesquisas diversos. Assim, o referido trabalho se esforça em buscar compreender dialeticamente a recente transformação do espaço sócio produtivo agrário (cerrado) piauiense como produto da determinação do que vem de fora, em consonância com a divisão internacional do trabalho imposta pelos países centrais, que ditam às diversas regiões do globo o que, quando e como produzir. Dessa forma, entende-se que nosso estado tem sua estrutura produtiva determinada e inserida dentro de uma dinâmica de reprodução do capital global, que impõe aos espaços rurais brasileiros a condição de meros abastecedores de produtos agrícolas e matérias primas, a fim de atender aos interesses das regiões de capitalismo central, ratificando assim sua condição de subdesenvolvimento e dependência, denunciada por Marini (2017) e demais autores que desenvolvem a abordagem metodológica da teoria marxista da dependência. Por fim, acredita-se que a referida análise buscará provocar discussões acerca do caráter dialético do capital agrário piauiense, com vistas refletir sobre as recentes transformações ocorridas na economia rural piauiense e sua inserção à dinâmica global de produção de commodities, onde os trabalhadores assalariados rurais do cerrado produzem riquezas “alheias” e se apropriam tão somente de suas misérias. 2 A INSERÇÃO DO ESPAÇO AGRÁRIO PIAUIENSE NO CAPITALISMO GLOBAL O estado do Piauí no ano de 2017 registrou um PIB de 45,4 bilhões, com um destacado crescimento real de 7,7%, quando cotejado aos 1,32% de crescimento do país no mesmo ano. Conforme a CEPRO (2019), fundamentada a partir de análise dos dados do IBGE (2020), o que alavancou referido desempenho no estado foi principalmente o volume de produção na Agropecuária (com 130,3% de crescimento em relação a 2016), com destaque especial para a produção da soja, a qual apresentou acréscimo de 313,57%, no ano de 2017, comparado a 2016. Diante disso, é razoável afirmar que o capitalismo que se desenvolve no Piauí recente tem grande participação de seu espaço 832

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI agrário, especificamente com o setor do agronegócio que avança na região do cerrado do sudoeste do estado. A inserção do espaço agrário piauiense na dinâmica do capitalismo global pode ser mais bem explicada por Marini (2017), quando este elucida que a integração da América Latina no desenvolvimento do capitalismo se deu a partir da necessidade da criação de uma oferta mundial de alimentos e de matérias-primas, a fim de atender a expansão industrial e da população urbana europeia e demais países centrais. Com efeito, o Piauí integra-se ao comércio mundial mediante uma imposição da divisão internacional do trabalho aos países e/ou regiões periféricas, requerendo destes uma especialização em produtos primários, enquanto aos países centrais fica a incumbência da produção de manufaturados. A partir deste ponto, Marini (2017) desenvolve duas categorias essenciais em sua análise que são a tese das trocas desiguais e a categoria superexploração da força de trabalho, que se apresentam como centrais para a compreensão da realidade do trabalhador rural, latino-americano, brasileiro e piauiense. Segundo o autor, ao ser integrada ao mercado mundial como ofertante de alimentos e matérias-primas, a América Latina desempenha papel significativo na determinação e no aumento da mais- valia relativa nos países industriais. Elucida Marx (1999), em linhas superficiais, a mais-valia relativa refere-se às formas de exploração (leia-se, consumo) da mercadoria trabalho assalariado que se dão a partir de transformações das condições técnicas de produção e que resultam na desvalorização da força de trabalho. Ao relacionar mudanças nas condições técnicas de produção com a mais-valia relativa, Marini (2017) trata de esclarecer uma confusão costumeira entre a referida categoria marxista e o conceito de produtividade. Logo, esclarece que o aumento da produtividade não necessariamente assegura aumento da mais-valia relativa, conforme explica: Ao aumentar a produtividade, o trabalhador só cria mais produtos no mesmo tempo, mas não mais valor; é justamente esse fato o que leva o capitalista individual a procurar o aumento de produtividade, já que isso permite reduzir o valor individual de sua mercadoria, em relação ao valor que as condições gerais de produção lhe atribuem, obtendo assim uma mais-valia superior à de seus competidores — ou seja, uma mais-valia extraordinária. Dessa forma, essa mais-valia extraordinária altera a repartição geral da mais-valia entre os diversos capitalistas, ao traduzir-se em lucro extraordinário, mas não 833

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI modifica o grau de exploração do trabalho na economia ou no setor considerado, ou seja, não incide na taxa de mais-valia. Se o procedimento técnico que permitiu o aumento de produtividade se generaliza para as demais empresas e, por isso, torna uniforme a taxa de produtividade, isso tampouco acarreta o aumento da taxa de mais-valia: será elevada apenas a massa de produtos, sem fazer variar seu valor, ou, o que é o mesmo, o valor social da unidade de produto será reduzido em termos proporcionais ao aumento da produtividade do trabalho. A consequência seria, então, não o incremento da mais-valia, mas na verdade a sua diminuição (MARINI, 2017). Diante do exposto pelo autor, fica patente que a elevação de produtividade pode concorrer para o aumento da quantidade produzida que, dadas as condições sociais (e, sobretudo técnicas) de produção, permitem redução de preço de custo individual ao capitalista que as implementa. Uma vez disseminada com os demais capitalistas daquele setor, a referida elevação de produtividade concorrerá para a redução do preço de custo do setor como um todo, que poderá impactar no preço de mercado do setor, no sentido de também reduzi-lo, logo, acarretar inclusive uma possível redução de mais-valia, caso não haja impactos no valor da força de trabalho. Isso nos faz perceber que, a determinação da taxa de mais-valia não passa pela produtividade do trabalho em si, mas pelo grau de exploração da força de trabalho, ou seja, a relação entre o tempo de trabalho excedente (em que o operário produz mais-valia) e o tempo de trabalho necessário (em que o operário reproduz o valor de sua força de trabalho, isto é, o equivalente a seu salário). Só a alteração dessa proporção, em um sentido favorável ao capitalista, ou seja, mediante o aumento do trabalho excedente sobre o necessário, pode modificar a taxa de mais-valia (MARINI, 2017). Com isso, o autor esclarece que a mais-valia relativa estará intimamente relacionada à redução do valor social das mercadorias que se vinculam aos bens necessários à reprodução da força de trabalho, ou seja, os bens-salário (bens de primeira necessidade, como alimentos, por exemplo). Dessa forma, somente mudanças nas condições técnicas que concorram para a redução dos preços dos bens-salário, consequentemente dos valores da força de trabalho, que estarão relacionadas à mais- valia relativa. Com o exposto, ratifica-se o papel da América Latina na determinação do aumento de taxas de mais-valia nos países centrais, uma vez que ao prover alimentos e matérias-primas para os países industrializados, a América Latina contribui para a elevação da oferta de alimentos (bens-salários), concorrendo para a redução dos preços 834

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI desses bens, consequentemente acarretando a redução do valor real da força de trabalho nos países industrializados, bem como nos países periféricos. Uma vez esclarecido esse importante papel da América Latina na determinação da mais-valia relativa, os esforços de Marini (2017) se direcionam a explicar a crença de uma dissimulada vantagem nessa relação entre o nosso continente e sua integração ao comércio mundial, a partir do que ele denomina de segredo da troca desigual. Na pretensa ideia de trocas de equivalentes na sociedade capitalista (elucidado por Marx nos capítulos iniciais d’O Capital), escamoteiam-se mecanismos que permitem realizar transferências de valor, burlando as leis de troca determinadas pelos preços de produção e expressas nos preços de mercado. Com efeito, a inter-relação de regiões periféricas e centrais – com menor e maior produtividade do trabalho, respectivamente (ou entre produtores de matérias-primas e bens manufaturados) – apresenta nuances, conforme expõe Marini (2017): E assim como, por conta de uma maior produtividade do trabalho, uma nação pode apresentar preços de produção inferiores a seus concorrentes, sem por isso baixar significativamente os preços de mercado que as condições de produção destes contribui para fixar. Isso se expressa, para a nação favorecida, em um lucro extraordinário, similar ao que constatamos ao examinar de que maneira os capitais individuais se apropriam do fruto da produtividade do trabalho. É natural que o fenômeno se apresente sobretudo em nível da concorrência entre nações industriais, e menos entre as que produzem bens primários, já que é entre as primeiras que as leis capitalistas da troca são exercidas de maneira plena; isso não quer dizer que não se verifiquem também entre estas últimas, principalmente quando se desenvolvem ali as relações capitalistas de produção. No segundo caso — transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e matérias primas — o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual (MARINI, 2017). A partir da exposição do que Marini (2017) chama de troca desigual, fica patente o processo de transferência de valores (ou mais-valia), uma vez que a defasagem entre as composições de capital3 do centro de da periferia, escancara a distância da produtividade do trabalho entre ambos os espaços produtivos, condicionando aos países periféricos a perpetuarem sua condição de subdesenvolvidos e dependentes do 2 De acordo com Marx, a composição do capital, refere-se a uma relação entre o capital constante (meios de produção) e o capital variável (força de trabalho). 835

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI centro, a partir da integração global. Acerca disso, sintetiza Carcanholo (2013), quando elucida que, Economias centrais, com tendência de possuir capitais com maior composição orgânica do capital em relação à média do seu setor e de outros setores de produção, tendem a se apropriar de um valor produzido por capitais operantes nas economias dependentes. Esta condição estrutural obriga os capitalismos dependentes, para que possam se desenvolver (CARCANHOLO, 2013). Marini (2017) esclarece que a lógica da manutenção desse sistema de trocas, embora desigual e desvantajosa para os países dependentes, para o capital torna-se viável, conforme apresenta o autor: O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador (MARINI, 2017). Dito de outra forma, significa que os capitais das economias dependentes, impacientes, talvez, para a realização de seus lucros, preferem reduzir salários de que elevarem suas capacidades produtivas com investimentos, consequentemente que viessem a concorrer para o aumento da composição orgânica do capital (elevação da produtividade do trabalho) em seus setores e/ou regiões produtivas. Até porque, uma vez que produzem para fora, suas demandas independem dos salários praticados (e consumidores) internamente. Diante disso, Marini (2017) apresenta o que talvez seja a categoria que melhor caracteriza a peculiaridade do capitalismo dependente, a saber, a superexploração da força de trabalho, que se apresenta como um mecanismo de compensação em que o capitalismo dependente se utiliza para fazer frente às transferências de valor ao capitalismo central. Trata-se de uma lei de compensação, que é superexplorar (ou super consumir) a mercadoria força de trabalho, como condição de sobrevivência nessa competição desigual global, sobretudo nos seus níveis de produtividade do trabalho. Evidencia-se que, para além das transações das trocas de mercadorias, sejam matérias- primas, sejam manufaturados, a apropriação de valor realizado encobre a apropriação 836

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de mais-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de cada nação (MARINI, 2017). Por fim, a transferência de valor é, portanto, transferência de mais-valias. Nessa dinâmica, a América Latina e especificamente o espaço agrário no cerrado piauiense, contribuem para incrementar a taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos países industriais centrais. Os trabalhadores latino-americanos e os trabalhadores rurais do agronegócio piauiense, por sua vez, produzem volumosas riquezas internamente em seus espaços produtivos, exportam (ou transferem) tais riquezas para fora, conforme determinado pelo centro e, permanecem tão somente com vossas misérias e a necessidade de perpetuação destas, para sobreviverem. 3 A SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO RURAL NO SETOR PRODUTIVO DA SOJA, EM URUÇUÍ-PI Segundo Vilarinho et al. (2018), evidenciado nos dados do IBGE (2020), a cadeia produtiva do cerrado piauiense, destaca-se com a produção de soja, milho, feijão, arroz, milheto, sorgo e algodão, bem como as reservas de minério de ferro, níquel, gás e petróleo; e ainda a pecuária. Entretanto, é a soja a principal commodity do agronegócio piauiense, responsável por ter colocado o Piauí como terceiro maior produtor da região Nordeste (IBGE, 2020; VILARINHO et al., 2018). A título de análise, o referido estudo se limitará ao município de Uruçuí-PI, em virtude de seus desempenhos recentes não somente no valor da produção de soja, mas também, por responder historicamente, de 2002 a 2017 em média, por 22,29% da quantidade total de soja produzida no estado do Piauí, conforme Gráfico 01. Gráfico 01 - Participação % na quantidade total de soja (em grão) produzida no Piauí 100% 80% 60% 40% Demais municípios Uruçuí (PI) 20% 0% Fonte: Elaboração própria com base no IBGE (2020) 837

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A década de 1990 foi crucial para o processo de transição econômica da região do cerrado. A partir do processo de expansão do agronegócio no cerrado piauiense, a região de Uruçuí-PI e alguns municípios do seu entorno, migraram de uma economia essencialmente extrativista, para uma economia forjada na produção de soja. Com efeito, para que o referido fenômeno se intensificasse, era necessário um processo de transição do trabalhador rural, bem como das relações de trabalho neste setor de produção. Com isto, o trabalhador rural agora necessariamente deveria migrar para a condição de trabalhador assalariado rural (CUNHA & SANTOS JÚNIOR, 2019). Tal fenômeno pode ser evidenciado com a evolução da formalização dos vínculos de emprego que se expandiram descomunalmente na região, especificamente no município de Uruçuí-PI, conforme observado no Gráfico 02. Gráfico 02 - Quantidade de vínculos de empregos formais ativos no ano Uruçuí (PI) 403 419 455 679 510 599 520 747 839 899 1.123 1.012.9133 1.004 834 161 274 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 Fonte: Elaboração própria com base no ME (2020) O Gráfico 02 atesta, portanto, a expansão dos empregos formais em Uruçuí-PI, verificando uma taxa de crescimento acumulado de 242,73%, de 2002 a 2018. Referidos números apontam ainda para uma taxa de crescimento médio dos empregos na ordem de 16,18% ao ano. A priori é de se deduzir que geração de emprego e renda deva corroborar para melhoria das condições de vida dos sujeitos alvos desse fenômeno, sejam capitalistas, sejam trabalhadores. Entretanto, a essência do fenômeno de apropriação desigual das riquezas geradas é dissimulada pela aparência dos números que escancaram o vigoroso desempenho econômico do agronegócio da soja piauiense, como será demonstrado no decorrer da análise. Entretanto, nesse ponto importa destacar o processo de transição do trabalhador rural informal autônomo, hegemonicamente vinculado à economia extrativista e familiar, para um trabalhador 838

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI assalariado, formal e vinculado a processos produtivos patronais, em ritmos/velocidades distintos dos anteriormente verificados, bem como métodos, objetivos e condições de execução de seus trabalhos vinculados agora às necessidades do capital. Ademais, quando se analisa somente o desempenho dos números (em sua aparência) e não os seres humanos ali secundarizados (a essência), perde-se de vista essa característica imanente à lógica de expansão capitalista – a de ser concentradora e excludente – ao passo que se insinua a disseminada retórica de melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento socioeconômico para a região, a partir de meros números de postos de trabalho criados, sem adentrar nos aspectos específicos das relações laborais pertinentes à precariedade das condições de trabalho, de renda, entre outras, provocadas pela modernização agrícola. Diante do exposto, é essencial se recorrer à teoria marxista da dependência, quando ela denuncia que as economias latinas (incluindo o setor rural do estado do Piauí), devido ao processo de transferência de mais-valor para as economias centrais, tem seu padrão de acumulação centrado na superexploração da força de trabalho, mecanismo este que tem como objetivo contrabalancear esse fenômeno da transferência (troca desigual). Deste modo, a referida categoria idealizada por Marini (bem como as demais categorias discutidas na teoria marxista), é uma importante ferramenta conceitual/analítica que permite compreender as relações que cercam a economia política latino-americana e, portanto, brasileira e piauiense. Por se tratarem de variáveis não apanhadas pelos sistemas de contas regionais/nacionais oficiais, logo, não mensuráveis pela estatística econômica corrente (que mensuram preços correntes), considerando ainda que a mais-valia relativa, assim como a superexploração da força de trabalho, sejam variáveis de valor, carece-se, entre os estudiosos, um modelo que balize as investigações empíricas dessas situações histórico-concretas (LUCE, 2012) em nossas economias. Com efeito, uma das alternativas que se apresenta para se obter indícios desta superexploração é confrontando a rendimento do capital frente ao da classe trabalhadora. Diante disso, o Gráfico 03 tenta evidenciar essa comparação desigual de apropriação das riquezas em Uruçuí-PI. 839

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Gráfico 03 – Contraste remuneração capital-trabalho no município de Uruçuí-PI 500.000.000,00 400.000.000,00 300.000.000,00 200.000.000,00 100.000.000,00 0,00 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 Remuneração do Trabalhador Remuneração do Capital (Lucro) Fonte: Elaboração própria com base no IBGE (2020) e ME (2020) A partir do Gráfico 03, fica patente o distanciamento abissal das remunerações do capital e do trabalho de tal forma que se evidencia não somente a manutenção, mas, sobretudo o alargamento histórico, principalmente nos anos de melhores desempenhos econômicos, como é o caso dos períodos entre 2003-2005, 2008-2009 e de 2011-2012; 2014-2015 e 2017. De posse destas evidências, a análise marxista da forma social capitalista transcende o plano abstrato do “imaginário” e teórico, passando a ser perceptível e concreto, tomando corpo quando se contrasta a renda do trabalho e a mais-valia (lucro) apropriada pelo capitalista. Evidencia-se, portanto, que a relação que impera no capitalismo é de exploração da força de trabalho, e no caso específico do setor agropecuário piauiense, de superexploração dessa mercadoria pertencente aos trabalhadores rurais, que se intensifica e se alarga historicamente. Diante dessa análise, têm-se condições instrumentais necessárias para a investigação da superexploração no município de Uruçuí-PI (mesmo que ainda embrionária), uma vez que se pode verificar uma pequena parcela da sociedade se apropriando da maior parte da riqueza produzida, reforçando um dos pressupostos de Marx (1999) e especificamente Marini (2017), na evidência da categoria superexploração da força de trabalho. Na continuidade da análise da categoria marxista da exploração e superexploração, conforme Marini (2017), com efeito, apresentar evidências ainda maiores da afirmação do caráter de superexploração no qual os trabalhadores rurais do cerrado piauiense estão submetidos, convém desenvolver uma análise da evolução 840

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI histórica, contrastando o valor médio da força de trabalho4 no setor agropecuário, especificamente dos trabalhadores do cultivo da soja, com o valor do salário mínimo e do salário mínimo necessário segundo a proposição do DIEESE (2020), que podem ser verificados no Gráfico 04. Gráfico 04 – Comparação Remuneração Média do Cultivo da Soja* x Salário-Mínimo Nacional x Salário Mínimo Necessário** no município de Uruçuí-PI 5.000,00 4.000,00 3.000,00 Remuneração média 2.000,00 Salário Mínimo 1.000,00 Salário Mínimo Necessário - Fonte: Elaboração própria com base no ME (2020) e DIEESE (2020) Notas: * Tabela CNAE 2.0 Subclasse Cultivo da Soja; ** Estimativa feita pelo DIEESE, salário-mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas. Com base no Gráfico 04, enfim, evidencia-se historicamente a tese da superexploração da força de trabalho dos trabalhadores rurais da soja em Uruçuí-PI, a partir da constatação do achatamento dos salários médios nominais praticados abaixo do salário-mínimo e absurdamente distante do que deveria ser o salário necessário, conforme estimativa do DIEESE (2020). Em Uruçuí-PI, no período de 2006 a 2017, o salário médio praticado no cultivo da soja representou 31,31% da média histórica do salário-mínimo nacional no mesmo período. Com esses dados cristaliza-se a ideia fundamental de Marx (1999) de que a relação da sociedade capitalista não se encontra em torno da troca de equivalentes, mas sim na relação de exploração daqueles que possuem os meios de produção sobre aqueles que não tem outra coisa, a não ser a sua força de trabalho. Na periferia, nos países dependentes, há um aviltamento dessa relação e é justamente nesse cenário que reside a importância de se resgatar a categoria superexploração de Ruy Mauro Marini, pois é ela quem “permite capturar o movimento 4 A remuneração média do cultivo da soja foi calculada a partir dos dados obtidos junto ao CAGED/ME, obtendo-se a partir da remuneração nominal total do setor de cultivo da soja, dividida pela quantidade de vínculos formais CLT também do mesmo setor. 841

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI real das relações entre capital e trabalho nas suas múltiplas dimensões, do ponto de vista da produção e circulação do valor” (LUCE, 2012, p. 126). 4 CONCLUSÃO Ao entender a forma social que se denomina capitalismo como um sistema- mundo, interligado local e globalmente, percebe-se que o urbano e o rural, assim como o centro e a periferia, são indissociáveis. Com efeito, o meio rural tem papel fundamental no processo econômico e nas transformações ocorridas durante o processo de (re)organização do capital. Na periferia, onde a divisão internacional do trabalho especializou o continente latino-americano como uma colônia agroexportadora, o principal setor atingido numa remontada do sistema capitalista foi o espaço sócio produtivo agrário. Dessa maneira, em uma das remontadas do capitalismo brasileiro, o cerrado piauiense passou a ser ocupado e teve seu modo de produção (e os sujeitos que ali vivem) completamente alterado. A referida região produtiva passou a produzir commodities de forma intensiva e a ser integrada ao mercado internacional. Com isso, a produção que antes era pautada no modo agroextrativista, com trabalhadores rurais independentes e com práticas de policulturas, tornou-se agora, hegemonicamente, uma produção nos moldes capitalistas, onde os trabalhadores passam a depender quase que exclusivamente do mercado para sua sobrevivência, ao passo, ter sua expropriação de forma permanente. É na busca de se compreender tais transformações sócio produtivas ocorridas a partir da subsunção da região do cerrado piauiense ao capitalismo global, que nos deparamos com a importância e auto sustentação da tese de Ruy Mauro Marini, a qual afirma que as economias dependentes são fundamentalmente pautadas na superexploração da força de trabalho. Municiados dos dados ora apresentados e postos em discussão neste estudo, aqui podemos, mesmo que embrionariamente do ponto de vista metodológico, atestar a veracidade da categoria superexploração da força de trabalho. Desvela-se, vê-se que o valor do trabalho, atribuído pelo capitalista, passa longe de atender as necessidades mais básicas do trabalhador, enquanto equivalente necessário à reprodução de suas condições materiais de existência. 842

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Logo, a partir da análise teórica e instrumental, se acredita que este trabalho cumpre com o seu objetivo ao denunciar que o trabalhador assalariado latino- americano e, consequentemente o trabalhador assalariado brasileiro e piauiense, sobretudo da região do agronegócio do cerrado, tem sua relação produtiva com o capital forjada na superexploração da força de trabalho, tendo seu desgaste prematuro, uma vez que as evidencias mostraram uma maior intensificação do consumo da mercadoria da força de trabalho sem o devido acompanhamento do pagamento de bens-salários na mesma proporção, sobretudo em períodos de desempenho econômico-numérico considerável no setor agropecuário do cultivo da soja. Por fim, entende-se que o referido estudo retrata a essência da realidade dos trabalhadores assalariados rurais do agronegócio piauiense, ao qual se lançam diariamente na vil esperança de melhoria de suas condições de vida, por serem beneficiados com os trabalhos formalizados pelo capitalismo rural, mas que têm como única certeza o fato de criarem volumes consideráveis de riquezas para o agronegócio mundial, se apropriando tão somente de suas próprias misérias e em proporções absurdamente desumanas. REFERÊNCIAS CARCANHOLO, M. D. O atual resgate crítico da teoria marxista da dependência. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro , v. 11, n. 1, p. 191-205, Apr. 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981- 77462013000100011&lng=en&nrm=iso>. Access em 15 fevereiro 2020. CEPRO. SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS. PIB do estado do Piauí 2017. Teresina: CEPRO, 2019. DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Salário-mínimo nominal e necessário. Disponível em: < https://www.dieese.org.br/ analisecestabasica/salarioMinimo.html>. Acesso em: 09 abr. 2020. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Agropecuária Municipal. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br>. Acesso em: 07 abr 2020. LUCE, Mathias Seibel. A superexploração da força de trabalho no Brasil. Revista Soc. Bras. Economia política, São Paulo, n° 3, p. 119-141, junho 2012. MARINI, R. M. Dialética da dependência. In Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 9, n. 3, p. 325-356, dez. 2017. 843

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 1. 17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. MONTEIRO, M. S. L. Ocupação do Cerrado piauiense: estratégia empresarial e especulação fundiária. 227 p. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2002. ME. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. RAIS. Relatório Anual de Informação Social. Disponível em < http://bi.mte.gov.br/bgcaged/login.php> Acesso em 07 abr. 2020. VILARINHO, L. S.; LOPES, W. G. R.; MONTEIRO, M. S. L. Desenvolvimento e capital social no agronegócio do Cerrado do Piauí, Brasil. R. Tecnol. Soc. v.14, n. 30, p. 30-46, jan./abr. 2018. 844

EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS TRANSFORMAÇÕES CONTEMPORÂNEAS NO MUNDO DO TRABALHO: limites e possibilidades na atuação profissional dos(as) assistentes sociais CONTEMPORARY TRANSFORMATIONS IN THE WORLD OF WORK: limits and possibilities in the professional performance of social workers Lívia Kelly da Silva1 Leila Maria Passos de Souza Bezerra2 RESUMO O presente artigo consiste em recorte de Trabalho de Conclusão de Curso, no qual se discutiu as mutações do mundo do trabalho, no sistema capitalista, com vistas a analisar seus desdobramentos e inflexões na práxis profissional do assistente social, na condição de trabalhador(a) assalariado(a) inserido na divisão sociotécnica do trabalho. Essa reflexão crítica foi construída a partir de uma revisão bibliográfica e literária com vistas a abordar sobre a implementação dos processos de reestruturação produtiva e de acumulação flexível, que alteram, significativamente, as relações de produção e de trabalho na contemporaneidade, com implicações negativas sobre a classe trabalhadora, com foco na precarização e informalização do trabalho. Importa salientar o papel das medidas neoliberais, em curso na vida brasileira, sobretudo, a partir da década de 1990, a implicar em perdas de direitos sociais e trabalhistas, que atravessam e afetam a atuação de assistentes sociais, dada a sua condição de trabalhadores assalariados. Palavras-Chaves: Mundo do trabalho. Serviço Social. Prática profissional. ABSTRACT 1 Mestranda em Serviço Social, Trabalho e Questão Social pela Universidade Estadual do Ceará (MASS/UECE). 2 Prof.ª Dra. em Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (UECE). 845

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI This article consists of an excerpt from the Course Completion Work, in which the changes in the world of work were discussed, in the capitalist system, with a view to analyzing its developments and inflections in the professional praxis of the social worker, as a worker. wage earner inserted in the socio-technical division of labor. This critical reflection was built from a bibliographic and literary review with a view to addressing the implementation of the processes of productive restructuring and flexible accumulation, which significantly alter the relations of production and work in contemporary times, with negative implications on the working class, with a focus on precarious and informal work. It is important to highlight the role of neoliberal measures, which are underway in Brazilian life, especially since the 1990s, to imply the loss of social and labor rights, which cross and affect the work of social workers, given their condition as wage workers. Keywords: World of work. Social Service. Professional practice. INTRODUÇÃO O presente artigo aborda “achados” de nossa pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de graduação em Serviço Social3. Objetivamos, assim, refletir acerca das configurações do mundo do trabalho na contemporaneidade, no fazer profissional dos(as) assistentes sociais, tendo por base a implementação de medidas neoliberais que entraram em curso, sobretudo, a partir da década de 1990, com impactos diretos nas relações e condições de trabalho no sistema capitalista e em suas particularidades na vida brasileiras. Jessé Souza (2017) nos auxilia a respeito da configuração da sociedade brasileira contemporânea, uma vez que nos instiga a pensar sua formação sócio-histórica, sobretudo, sua estruturação fundada na escravidão da população negra. Ao tratar sobre os conflitos sociopolíticos que permeiam a constituição de um Brasil “moderno”4, o autor ressalta que, embora esse modelo pareça algo restrito ao seu “passado” recente, as dinâmicas de hierarquização das relações sociais, de autoritarismo e de racismo(s) 3 Intitulado TRABALHO E INSTRUMENTALIDADE NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL EM FORTALEZA-CE: VERSÕES E REFLEXÕES DE ASSISTENTES SOCIAIS NOS CENTROS DE REFERÊNCIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL – CRAS BOM JARDIM E CANINDEZINHO. 4 O autor se utiliza deste termo para explicitar a tentativa de integração do país ao mercado internacional – que se caracteriza a partir de sua competitividade - na medida em que se distancia da realidade a qual pertence, de dependência econômica. 846

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI perduram em nosso cotidiano, passíveis de assumirem outras roupagens nestes anos 2000. A perspectiva de Iamamoto (2013) fortalece nossa reflexão ao salientar que as desigualdades sociais constituídas ao longo da formação social brasileira e adensadas na contemporaneidade só podem ser compreendidas a partir da apreensão da realidade social em sua relação com as matrizes históricas que permeiam o cotidiano. Esta autora chama nossa atenção para o fato destas desigualdades sociais se acentuarem face à contraditória e frágil atuação estatal, ora sob a regência do projeto político-cultural e transnacional neoliberal. Nestes moldes, por um lado, o aparato estatal disponibiliza parco e decrescente orçamento público para as políticas sociais na lógica de prestação de serviços sociais focalizados na pobreza5, atendendo cada vez mais precária e seletivamente a interesses da classe trabalhadora. Por outro ângulo, atua fortemente nas tentativas de “sanar” os desdobramentos da crise estrutural do capital e satisfazer aos interesses da classe capitalista, de maneira a garantir os processos de produção e reprodução do sistema sociometabólico do capital neste século XXI. Ao analisar as tessituras da sociedade moderna para além da dimensão econômica, a reconhecer, portanto, suas imbricações com as dinâmicas político culturais e a constituição das classes e grupos sociais brasileiros, Souza (2017) evidencia que as desigualdades sociais, nos marcos do nosso capitalismo periférico e dependente, exigem reconhecer o abandono social histórico das classes trabalhadoras e, dentre estas, da população negra, em situação de pobreza pluridimensional e circunscrita às zonas urbanas construídas como “margens”. Em sua reflexão crítica, Souza (2017) enfoca que o acesso – ou não – destas classes e grupos sociais ao capital econômico se entrecruza com o acesso – ou não - ao capital social e ao capital político, a operarem neste processo reiterado da reprodução das relações hierárquicas e de desigualdades sociais (im)postas às classes trabalhadoras. Em consonância, têm implicado ainda em dinâmicas de segregação e de estigmatizações socioterritoriais destas populações em 5 Os desvios do orçamento destinado à Seguridade Social para o pagamento da dívida pública, fortalece a política macroeconômica. Este processo conta com a participação direta do Estado, na medida em que é ampliada a interferência desse aparato no setor econômico. As políticas e os serviços sociais são fundamentados por ações focalizadas e que visam somente a gestão da pobreza, uma vez que que combater e erradicá-la não condiz com os parâmetros de regulação do capital (BEHRING, 2013). 847


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